Hoje, Dia do Trabalho, o assunto não podia ser outro se não ele mesmo, o trabalho – ou melhor, a palavra trabalho. Se hoje se acredita que o trabalho dignifica o homem (isto é, o ser humano, o que inclui evidentemente as mulheres), a origem da palavra não é tão digna assim. Afinal, durante muito tempo, a ideia de trabalho esteve ligada às classes mais baixas da sociedade, ou seja, escravos, servos e operários. Tanto que trabalho se origina do latim tardio tripalium, um instrumento de tortura formado de três estacas de madeira cruzadas (tripalium quer dizer literalmente “três paus”), em que os escravos eram amarrados para ser açoitados.
Essa palavra latina também passou a outras línguas românicas como o espanhol trabajo, o catalão treball e o francês travail, sempre com o sentido de “trabalho”. Do francês, passou ao inglês travel, “viajar”, pois, segundo consta, as estradas inglesas na Idade Média eram tão ruins que viajar por elas era um verdadeiro suplício.
Menos estigmatizada que trabalho era a palavra lavor, do latim labor, tanto que os intelectuais não se referiam à sua atividade como um trabalho e sim como um lavor do espírito.
Labor e seu derivado laborare deram em português, além de lavor, o verbo lavrar (isto é, trabalhar a terra para semeá-la) e, deste, os substantivos lavra e lavrador, assim como lavoura (do latim laboria, derivado de labor). “Trabalho” em italiano é até hoje lavoro, derivado de lavorare, do latim laborare. Esse verbo também aparece em termos cultos como elaborar e colaborar, designativos de ações que implicam a ideia de trabalho: elaborar é criar do nada, e colaborar é trabalhar juntos.
O adjetivo “trabalhista” em espanhol é laboral e o partido trabalhista inglês é o Labour Party.
Mas também em outros idiomas a palavra para “trabalho” remete às classes baixas. Por exemplo, o alemão Arbeit provém de uma raiz indo-europeia *orbh‑, que significava “órfão” (por sinal, o português órfão vem do grego orphanós, que descende dessa raiz indo-europeia). Mas o que tem o órfão a ver com trabalho? É que, na Antiguidade e Idade Média, as crianças órfãs eram recolhidas pelas famílias na condição de serviçais, ou seja, não tinham os direitos que tem hoje uma criança adotada; os órfãos eram meros prestadores de serviços, em troca dos quais recebiam casa e comida, mas não tinham direito a herança. (E aqui vai mais uma curiosidade: a palavra alemã para “herdeiro” é Erbe, que também procede da raiz indo-europeia *orbh‑. É que o herdeiro só tinha acesso aos bens dos pais quando estes morressem, ou seja, quando se tornasse órfão.
Mas vou parando por aqui porque este texto está me dando trabalho, e hoje, Dia do Trabalho, é dia de descanso. Até a próxima!
Caramba! Ao ler a origem de Arbeit, não há como não imaginar que a frase dos letreiros nas entradas dos Campos de Concentração nazistas tenha sido um cruel e maldoso trocadilho com sua origem etimológica.
Pois é, Daniel, “Arbeit macht frei”.
Caro Aldo,
É possível que você já o tenha escrito e que eu não o tenha encontrado no blogue, mas, se não tiver sido o caso, sugiro-lhe que escreva um artigo sobre como se faz pesquisa etimológica.
Eu suponho que hoje ela se apoie em corpora de textos antigos, mas eu não faço ideia de como se organizam esses corpora, se alguém sai copiando à mão os manuscritos da Antiguidadr e da Idade Média; se os documentos são escaneados etc.
Uma vez li um comentário de um brasileiro, escrito no espaço de comentários do blogue de um revisor português bastante casmurro, mas muito bom, segundo o qual pó-de-perlimpimpim teria sido inventada pelo Monteiro Lobato, e logo desconfiei de que fosse etimologia de orelhada. Bastou procurar no Google Livros para encontrar a expressão em espanhol, italiano, francês, alemão e inglês, desde, pelo menos, o século XVIII, antes de nascerem os avós do Monteiro Lobato. E com o mesmo sentido de engodo anunciado como miraculoso para tapear incautos.
Por essas e outras, sei que houve e ainda há muita etimologia de orelhada, e não faço ideia de como se faz etimologia a sério, cientificamente.
Um abraço,
Rodrigo.
Caro Rodrigo, eu me lembro de já ter falado sobre isso em algum artigo, mas de forma sucinta. A verdade é que a complexidade do trabalho etimológico é tanta que só pode ser explicada em detalhe em livro. E há bons livros no mercado. Indico-lhe dois, ambos do meu amigo Mário Viaro, o maior etimólogo do Brasil. São eles: “Por trás das palavras” e “Manual de etimologia”. Em dois de meus posts mais recentes, falei sobre o projeto DELPo e sua metodologia revolucionária, antenada com os avanços tecnológicos do século XXI. Mas disse também que esse projeto, baseado na USP, e do qual eu faço parte, está parado há mais de ano, sem previsão de retomada. Até o seu site foi tirado do ar.
Sobre as etimologias de orelhada, são a maioria das que você vai encontrar por aí, algumas até em dicionários.
Obrigado pelas indicações, Aldo. Vou comprar os livros do Mário Viaro.
Bom dia Aldo. Parabéns pelo texto, e muito obrigado! Estou pesquisando sobre a origem da palavra trabalho, e confesso que a única fonte que encontrei relacionando a palavra Airbet com -org foi este artigo. Gostaria de saber se você possui alguma fonte pra eu usar na minha dissertação. Quem sabe até um artigo escrito por você. Desde já agradeço.
Leonardo, eu é que agradeço pelo apoio!
Você encontra essas informações nos dicionários etimológicos. Por exemplo, o Duden – Das Herkunftswörterbuch e o famoso dicionário etimológico indo-europeu de Julius Pokorny.
Muito obrigado Aldo! Utilizei as indicações, mas citei seu blog também na dissertação. Eu pesquiso na área jurídica, e seu material foi um achado para mim. Ele corrobora a tese de um francês (Alain Supiot), de que o as origens da compreensão do trabalho na Alemanha são muito diversas das origens greco-romanas. Para este autor, os romanos, por terem uma tradição muito mais escravista, tratavam a mão de obra muito mais como mercadoria; enquanto os germânicos tinham uma visão mais institucional, entendendo o trabalho como ligação de uma pessoa à comunidade. Agradeço de coração a ajuda.
Não tem de quê! Se possível, divulgue o meu blog entre os seus amigos. Talvez eles também se interessem.