Que booking babaquice!

O site de reservas de hotéis Booking.com está veiculando atualmente uma campanha publicitária na TV chamada The Booking Hero (“o herói das reservas”, numa tradução literal – mas há outra, de duplo sentido, da qual falarei mais adiante). O comercial foi produzido originalmente em inglês pela agência W+K de Amsterdã. Assista à versão no idioma original: https://www.youtube.com/watch?v=tk_pFjr5aV4.

O anúncio veiculado no Brasil é exatamente o mesmo, apenas adaptado ao português. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=1UFAecLGLC8.

É nessa adaptação (que os tradutores chamam tecnicamente de localização) que os problemas se iniciam. Desde que a nossa mídia foi invadida por propagandas estrangeiras (antes da globalização, os comerciais eram todos produzidos no Brasil por publicitários brasileiros, e nessa época nossa propaganda era considerada a segunda melhor do mundo), adaptar para nossa língua e nossa cultura tiradas de humor ou frases de duplo sentido concebidas originalmente em outro idioma e apontando para outros referenciais culturais tem sido um constante desafio – nem sempre vencido com sucesso.

Vamos ao caso em questão. Uma família com feições nórdicas (quantas pessoas no Brasil se identificam com esses tipos?) chega estraçalhada ao hotel reservado e então se surpreende com a beleza do local e a qualidade das instalações. O texto diz “(…) Até este exato booking minuto. A vida pode ser assim quando você é o booking herói das reservas”. Que sentido faz isso em português?

Explicando: a palavra inglesa booking (reserva) foi usada como um trocadilho de fucking, termo de baixo calão, muito usado na linguagem coloquial, que pode ser agregado a qualquer substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, etc., para enfatizá-lo. Por exemplo, a fucking weekend quer dizer mais ou menos o mesmo que “um p… final de semana”; Drop that fucking gun! se traduziria por “Larga a p… dessa arma!”. Por sinal, essa propaganda gerou protestos no Reino Unido, onde os telespectadores se sentiram ofendidos pelo trocadilho malicioso.

Mas vamos ao que interessa: em primeiro lugar, a “tradução” da interjeição inglesa yeah por uau não produz o mesmo efeito de sentido. Quando o chefe da família pronuncia yeah fazendo um gesto com o punho cerrado, o sentido é de vitória (como convém a um herói, tema da campanha), algo como “Viva, acertei!”. Já “uau” indica em português apenas surpresa diante de algo, não o sentimento de triunfo. Sem falar que é bem estranho o protagonista do comercial articular a palavra yeah (como se pode deduzir por leitura labial) enquanto o narrador pronuncia “uau”.

Mas o mais grave é a manutenção da palavra booking no texto em português, exigência óbvia do anunciante. O que é um booking minuto? Ou um booking herói? Quantos falantes do português conhecem a expressão original inglesa a ponto de entender a piada? E mesmo quem domina a língua de Shakespeare será que acha graça nesse jogo de palavras? Ou seja, o que era para ser cômico se torna patético. E revela a subserviência de nossa publicidade aos ditames estrangeiros.

Basta ver quantos anúncios no Brasil terminam com slogans em outros idiomas: Find new roads (Chevrolet), Motion and emotion (Peugeot), Créative technologie (Citroën), Das Auto (Volkswagen), The power to do more (Dell), Open your world (Heineken)… Será que temos de ser poliglotas para consumir? E o que dizer quando a própria marca do produto é pronunciada com sotaque estrangeiro (“chevrolei” por Chevrolet, “riandei” por Hyundai, “djip” por Jeep), às vezes por um locutor brasileiro?

Quando lecionava em cursos de publicidade e propaganda e via tantos novos talentos surgindo ali na sala de aula, tantas mentes criativas com carreiras promissoras pela frente, comecei a defender a tese de que deveria haver uma reserva de mercado para a publicidade brasileira: acho que deveríamos ter uma lei determinando que toda propaganda veiculada no Brasil fosse inteiramente produzida aqui, por profissionais brasileiros. E que a língua desses anúncios fosse obrigatoriamente o português. (Já tive o desprazer de ver na TV brasileira um comercial totalmente falado em inglês.)

Em tempos em que qualquer nacionalismo pode ser confundido com esquerdopatia e uma medida dessas pode parecer saída da cabeça de algum petista, devo avisar que países com tradição liberal bem mais arraigada que a nossa costumam ser bastante ciosos na defesa de sua cultura e seu mercado de trabalho. Enquanto isso, nós tupiniquins ficamos com a pecha de aculturados, com complexo de vira-latas, e assim por diante.

Pode ser que muitos dos meus leitores achem normal essa globalização da publicidade, ou pelo menos um mal inevitável (algo do tipo “aceita que dói menos”), mas para mim comerciais como o do Booking.com parecem pura babaquice. Uma booking babaquice!

A língua portuguesa e as novelas de época

Não é de hoje que as telenovelas e séries brasileiras de época entram em conflito com a língua portuguesa. Parece incrível que milhões são investidos nessas produções entre cenários, figurino, locações, fotografia, caracterização dos atores (e as produções brasileiras estão cada vez mais primorosas), mas cometem-se falhas bobas no tratamento da língua. Isso se deve, talvez, à falta de uma consultoria linguística especializada (que na planilha de custos da produção seria um dos itens menos relevantes).

Lembro-me de Lado a Lado, exibida pela Rede Globo no horário das 18 horas e premiada com o Emmy Internacional de melhor telenovela de 2013, que, no entanto, punha na boca dos personagens expressões e cacoetes linguísticos que certamente não existiam à época da Proclamação da República.

Ontem (dia 6 de janeiro) foi ao ar o terceiro capítulo da excelente minissérie Ligações Perigosas, cuja trama, originalmente passada na França do século XVIII, foi adaptada pela Globo para o Brasil dos anos 1920. Toda a reconstituição de época está impecável: móveis, roupas, calhambeques, a caneta-tinteiro, a cigarreira, as cédulas de réis, o gramofone tocando charleston… Mas eis que, numa das cenas, a câmera revela uma carta escrita pela protagonista Isabel d’Ávila de Alencar em que aparece o nome do amante de Cecília, o professor de música Felipe. E noutra cena, Cecília e Felipe encontram-se numa praia deserta, em cuja areia desenham um coração a enlaçar os nomes de ambos. Até aí, tudo muito lindo e romântico, não fosse o fato de que, até a reforma ortográfica de 1943, “Felipe” se grafava “Philippe”, com direito a “ph” e tudo! “Felipe” com “f” só em Portugal e nos países de língua espanhola. Mesmo assim, a reforma ortográfica em Portugal havia-se dado em 1911, portanto qualquer adulto nos anos ’20 só poderia ser Philippe e não Felipe ou Filipe.

E agora a Globo também anuncia a estreia de Êta Mundo Bom, assim mesmo, com acento circunflexo em “eta”, como se pode ver no logotipo da novela.

Êta_Mundo_Bom!

Para que esse circunflexo? Será que alguém em sã consciência pronunciaria “éta”? E mesmo que exista essa pronúncia (trata-se do nome da letra grega “η”), quem pensaria no alfabeto grego em se tratando de uma novela de temática caipira? Ou seja, não tem desculpa, foi erro de português mesmo!

Fica aqui a pergunta: será que a Globo não tem nenhum consultor para assuntos de língua dando assessoria aos produtores? Ou será que esses erros são propositais, cometidos por quem subestima a inteligência e a cultura dos telespectadores? Seja como for, senhores diretores da Rede Globo, se precisarem de uma consultoria linguística, estou à disposição. E faço um precinho bem camarada.