A educação para a arte

Um dos papéis da educação é estimular nos indivíduos o gosto pela arte de qualidade. Para isso, ela parte do princípio de que é preciso “educar” os olhos e os ouvidos. Caso contrário, as pessoas só apreciariam obras vulgares e de pouco conteúdo. Não há nessa proposta algo de preconceituoso ou de elitista?

As crianças adoram certos alimentos, enquanto outros elas só comem obrigadas. Adultos acham gostosos certos alimentos porque foram acostumados desde pequenos a consumi-los. É por isso que em alguns lugares do mundo se come peixe cru, insetos, etc.

Uma piada que precisa ser explicada é realmente engraçada?

Em resumo, há certas obras que nos agradam naturalmente, sem que tenhamos de aprender a gostar delas; outras só são apreciadas por quem foi “condicionado” a gostar delas. Não é que estas não deem prazer, mas se trata de um prazer “oculto”, não óbvio, um prazer “iniciático”, que só alguns conseguem sentir.

Isso põe a questão: será que uma obra é intrinsecamente boa (por exemplo, quando produz prazer de modo instintivo, em mentes não treinadas) ou tudo não passa de condicionamento?

É função da escola “educar” o olhar e o ouvido no sentido de condicioná-lo a um padrão estético arbitrariamente estabelecido como de bom gosto por uma elite cultural ou econômica?

O que ocorre é que a escola tenta fazer — sem muito sucesso, devido aos seus métodos repressivos — o que a mídia deveria fazer, mas não faz: apresentar ao público a maior diversidade possível de gêneros artísticos para que cada um possa escolher do que gosta mais. O problema é que os meios de comunicação sempre oferecem mais do mesmo — e trata-se de obras que não primam pelo conteúdo, mas por serem vendáveis. Fica aí a questão: não serão elas vendáveis justamente porque coincidem com nosso modelo “instintivo” de prazer? Ou seja, não serão populares essas obras exatamente porque ativam as zonas de prazer do cérebro de pessoas não treinadas? Será então que a “educação do olhar” feita pela escola não é uma ação contrária à natureza? Mas ser o contrário da natureza não é exatamente a definição de cultura?

Fica aqui a reflexão.

Relembrando e refletindo sobre Belchior e seu legado

Nos últimos dias, acabei casualmente voltando a ter alguns contatos com a música de Belchior, que eu não ouvia há muito tempo. Primeiro, me deparei com um documentário na TV por assinatura sobre sua vida e obra; depois, um programa no rádio dedicado a ele; e mais algumas canções suas que tocaram no rádio do carro enquanto eu dirigia (“Dentro do carro / Sobre o trevo / A cem por hora, ó, meu amor”). Isso me fez refletir um pouco sobre esse ícone da música popular brasileira desaparecido há quase seis anos, em 30 de abril de 2017.

Por sinal, sua morte me pregou uma peça: alguns dias antes, eu havia participado de uma matéria para o Fantástico, da Rede Globo, sobre o Dia da Língua Portuguesa, que é comemorado em 5 de maio. Essa matéria iria ao ar exatamente em 30 de abril, mas, na hora agá, a morte do artista “derrubou”, como se diz no jargão jornalístico, a matéria de que eu participava. No domingo seguinte, o Dia da Língua já havia passado, e a reportagem jamais foi ao ar.

Mas não guardo mágoa de Belchior por ele ter roubado minha cena: sem dúvida, sua morte foi um fato muito mais relevante do que as minhas considerações sobre a língua portuguesa. Aliás, ele foi um grande cultor do idioma: suas letras são poemas impecáveis, de um vernáculo esmerado e burilado, e ele próprio se dizia um artesão da palavra, alguém que passava horas tentando melhorar um verso que já estava ótimo.

Antônio Carlos Belchior, que também se autodenominava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, portanto, como ele próprio jocosamente dizia, um dos maiores nomes da MPB, surgiu no cenário da música brasileira no âmbito de um movimento de artistas cearenses chamado “Pessoal do Ceará”, que também revelaria Fagner, Ednardo e Amelinha, dentre outros. No entanto, diferentemente destes, Belchior é um artista que eu tenho dificuldade em classificar como de MPB, pois sua música transitava entre o rock, o blues e as baladas românticas. Não que outros nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Jorge Ben Jor não tenham flertado com o pop-rock: após os Beatles, a Jovem Guarda e a Tropicália, praticamente todos eles fizeram isso em algum momento. Mas, no caso de Belchior, sua música revela algumas contradições.

Em primeiro lugar, seus versos eloquentes repisavam certos temas recorrentes: o desalento pelo fim do sonho hippie (The dream is over, lembram?), a juventude perdida, a inadequação do rapaz sertanejo na cidade grande, o sentimento de pertença latino-americana. Belchior era alguém que, já nos anos 1970 era um saudosista dos anos ’60. E isso com apenas 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Como ele próprio diz na canção A Palo Seco, aquele seu desespero era moda em 73. O problema é que essa temática do fim da contracultura foi ficando datado, mesmo a canção tendo sido reeditada três anos depois com a letra alterada para “76”. A década de ’70 passou, e com ela o sucesso de Belchior. Tanto que, nos anos ’80, ele basicamente lançou inúmeras regravações de seus sucessos da década anterior. O desespero de Belchior havia saído de moda.

Como apenas um rapaz latino-americano que era, ele afirmava, também nessa mesma canção, que “Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues”. Só que, contraditoriamente, a canção em questão é exatamente um blues. Por sinal, Belchior falava muito do sertão de onde saíra, mas sua música jamais teve um acento nordestino; ao contrário, era muito urbana e muito anglo-saxônica. Suas referências sempre foram John Lennon (“a felicidade é uma arma quente”), James Dean e outros símbolos da cultura pop internacional. Por isso, acho difícil enquadrar Belchior na mesma MPB de Edu Lobo, Chico Buarque, Dori Caymmi, Ivan Lins, Gonzaguinha, João Bosco, nossa recém-falecida Sueli Costa, e mesmo de nomes nordestinos como os já citados Caetano, Gil, Fagner, Djavan, além de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e outros mais fincados na herança da Bossa Nova e dos ritmos nacionais.

Ao mesmo tempo, não vejo Belchior como integrante do cenário roqueiro dos anos ’70, ao lado de Rita Lee, Sérgio Hinds, Arnaldo Batista, Raul Seixas, Erasmo Carlos…

Talvez essa dificuldade de se enquadrar em qualquer gênero dentro da música popular brasileira, embora revelasse a grande qualidade de ser único e revolucionário — além de sua figura exótica, com seu enorme bigode, que mais o aproximava dos cantores hispano-americanos ou talvez do country americano, além de sua voz rouca e fanhosa —, acabou por relegá-lo a um certo ostracismo. Com efeito, a partir dos anos 1990, ele vai aos poucos desaparecendo de cena até literalmente sumir. Especulações à época diziam que ele teria abandonado a carreira musical e fugido de seus credores. Belchior acumulou dívidas impagáveis — não no sentido do riso e da hilaridade, bem entendido, mas no da insolvência financeira —, abandonou bens, foi morar de favor até no Uruguai, tentou manter oculta sua identidade (se bem que isso era quase impossível em se tratando de uma figura como ele), foi descoberto por fãs e pela imprensa, voltou à obscuridade e finalmente morreu aos 70 anos, ofuscando minha estreia na televisão.

Lembro que a mãe de um colega meu de classe no colégio era muito fã de Belchior, tinha todos os discos dele, sabia de cor e cantava todas as suas canções, e eu, que na época curtia o pop internacional e a disco music, ou no máximo uma MPB mais ortodoxa, tipo Chico e Milton, achava estranho aquele gosto por um cantor bigodudo que eu, equivocadamente, equiparava aos bregas da época: Waldick Soriano, Odair José, Reginaldo Rossi, Altemar Dutra, Nelson Ned, y otros más. Demorei algum tempo para compreender a verdadeira dimensão da obra de Belchior, que, embora não seja dos meus artistas favoritos, é inegavelmente um dos gigantes da nossa música, além de um grande poeta.

Entrevista com Sérgio Cabral

Depois de ser posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro último, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-presidiário Sérgio Cabral decidiu dar sua primeira entrevista como cidadão livre e ficha-limpa (todos são inocentes até que se prove a sua culpa, após trânsito em julgado na última das infinitas instâncias do Poder Judiciário).

O repórter da televisão designado para entrevistar o ilustre político e mão-leve começa a entrevista perguntando:

— Senhor governador, como o senhor se sente depois de ter passado seis anos preso, condenado a mais de 400 anos de prisão, e agora em liberdade?

— Olha, rapaz, quando eu decidi partir pra corrupção, avaliei que era um bom negócio, no Brasil tudo é movido a propina, os mecanismos de fiscalização são falhos, superfaturar uma obra é muito fácil e ninguém percebe, e, mesmo quando há denúncias, a gente sempre diz que é intriga da oposição. No final, as investigações levam anos e não dão em nada; esses crimes nunca são julgados mesmo, né? E ainda tem o foro privilegiado. Além disso, a vida de nababo que eu e meus companheiros levávamos compensava plenamente o risco.

Só que, quando eu fui preso na Operação Lava-Jato, obrigado a confessar os meus crimes e a devolver parte do dinheiro desviado e, ainda por cima, fui condenado a centenas de anos de prisão, confesso que bateu um arrependimento: ir pra cadeia depois de ser um político de prestígio, que sonhava até ser presidente da república, foi duro.

Mas fiquei preso só seis anos, tive regalias na cadeia, como TV com DVD e caviar no jantar, e ainda pude curtir a companhia de alguns parças, como o meu brother Pezão, por exemplo. Ou seja, esses seis anos passaram depressa. Logo em seguida, fui pra prisão domiciliar, que de domiciliar só tem o nome, pois eu podia sair na rua à hora que quisesse, só não podia sair do país sem autorização judicial. E domicílio de rico é outra coisa, né?

Então, diante disso, eu comecei a reavaliar a situação e a achar que tinha valido a pena tudo que eu fiz. Afinal, ainda tenho muito tempo pela frente pra curtir a grana que eu desviei e que não tive que devolver aos cofres públicos. Até eu ser julgado e condenado na última instância, esses processos todos já terão caducado — ou eu estarei velho demais pra ir pra cadeia. Quem sabe role até um indulto presidencial ou uma graça, né?

— Mas, governador — interpela o repórter —, o senhor não acha um escárnio com o povo brasileiro o senhor estar por aí livre, leve e solto, gastando o dinheiro roubado dos contribuintes, mesmo tendo sido condenado a quatro séculos de prisão?

— Olha, garoto, em primeiro lugar, “dinheiro roubado” não, “desviado”, ok? Em segundo lugar, se tem alguém escarnecendo do povo, não sou eu, é o Poder Judiciário, eu só estou cumprindo ordens judiciais. Ou seja, eu estou rigorosamente dentro da lei. O problema não sou eu, é a lei. Só que eu, sinceramente, não tenho do que me queixar dessa lei, pra mim ela é muito boa. Aliás, pra você ver como são as coisas, o juiz que me condenou e mandou me prender está sendo investigado e pode até ser punido com a aposentadoria compulsória, isto é, ficar pelo resto da vida recebendo salário sem trabalhar — se bem que uma punição assim até eu queria, né?

— O senhor quer deixar uma última mensagem para os nossos telespectadores?

— Olha só, na minha concepção, o Brasil não é, como dizem, o país da corrupção, pois corrupção tem no mundo inteiro; no Oriente Médio, por exemplo, a coisa é bem pior do que aqui. O Brasil é, sim, o país da impunidade, e é a impunidade que alimenta a corrupção. Eu não teria feito tudo o que fiz se não tivesse a certeza de que, no final, ia me dar bem, como de fato me dei. As nossas leis são feitas pra não punir ninguém — a não ser, claro, os três P’s: preto, pobre e puta. Afinal, grande parte daqueles que fazem as leis, nossos ilustres legisladores, também têm problemas com a Justiça — e não sem razão! Então eles fazem leis pra si próprios, pensando que um dia também poderão ser beneficiados por elas. Minha mensagem é: meus amigos, no Brasil, o crime compensa! Muito obrigado pela oportunidade e um abraço a todos os telespectadores.

Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.

Luiz Felipe Pondé e a pauta dos animais

Recentemente, o filósofo Luiz Felipe Pondé publicou um vídeo em seu canal do YouTube respondendo à pergunta “Por que não me preocupo com a pauta dos animais?”. Admiro muito Pondé por sua sensatez e equilíbrio na análise das mais diversas questões, desde as existenciais até as políticas, mas no vídeo em questão sou obrigado a dizer que o pensador tratou a questão de forma rasa e pouco sensível.

Logo de início, ele argumenta que a natureza é uma máquina de sofrimento e que, embora ninguém em sã consciência seja a favor do sofrimento, animais se alimentam de animais e que se deveria perguntar a um leão se ele é a favor do sofrimento. Mais adiante, ele questiona o que farão os veganos se um dia descobrirem que os vegetais também têm sentimentos: comerão o próprio corpo como única saída possível?

Todos sabemos que seres vivos se alimentam de outros seres vivos, sejam eles animais ou vegetais. Nisso a natureza é sábia, pois, se nos alimentássemos de minerais, que são recursos não renováveis, estaríamos devorando nosso próprio planeta. Portanto, até por ser uma lei da natureza, alimentar-se de animais não seria, em princípio, um problema ético. A questão é como o ser humano trata os animais que come.

O leão tem no antílope (eu ia dizer “veado”, mas algum militante LGBTQIAXYZ pode se sentir ofendido) seu alimento, mas, para comê-lo, ele precisa caçá-lo, e aí temos uma luta de igual para igual. Um dia é da caça, o outro do caçador, logo às vezes o leão mata e come o antílope, às vezes o antílope consegue fugir e sobreviver — para azar do leão.

Os índios (ou indígenas, ou povos originários) brasileiros costumam caçar para comer e até usam um meio um tanto desleal em relação aos bichos que caçam chamado arco e flecha; sim, com esse artefato tecnológico, levam certa vantagem sobre a presa, o que não aconteceria se caçassem só com as próprias mãos. Mesmo assim, jamais caçam além do que precisam para o seu consumo imediato, e algumas tribos ainda realizam cerimônias religiosas em memória dos animais que abatem, encomendando sua alma aos deuses num ato de gratidão.

Já nossa moderna civilização transformou os animais em mercadoria. Quando o dinheiro fala, qualquer princípio ético ou moral se cala — ou é calado. Nas fazendas de gado, tanto de corte quanto leiteiro, bem como nas granjas e avícolas, as condições de vida dos animais são absolutamente miseráveis e desumanas. As técnicas utilizadas no  abate de animais são de fazer inveja a qualquer administrador do campo de concentração de Auschwitz. A pesca predatória nos oceanos elimina muito mais peixes, moluscos e crustáceos do que aqueles que vão ser efetivamente comercializados e consumidos — o que já não seria pouco diante de uma humanidade de 8 bilhões de bocas ávidas de comida. Como resultado, temos a progressiva extinção de um grande número de espécies, o que vem causando um desequilíbrio ambiental irreversível.

Mas a pauta animal não se restringe ao veganismo: quem compra um cãozinho de raça está alimentando uma máfia de criadores inescrupulosos, para quem cachorro é dinheiro, e por trás de todo filhote fofinho há uma mãe (eles chamam desumanizadamente de “matriz”) maltratada, totalmente carente de cuidados, que dirá de carinho, cujo único propósito na vida é parir, e um pai (eles chamam de “reprodutor”) igualmente tratado como mera máquina de copular fêmeas. Quando não servem mais a esses propósitos capitalistas, são simplesmente descartados (mortos é uma palavra muito forte, né?).

Outro grande equívoco do Sr. Pondé em seu vídeo é associar a pauta animal a um modismo de comportamento. É mais ou menos o que faz a direita que enriquece vendendo armas e agrotóxicos ao dizer escarnecendo que “isso é coisa de esquerdista”. Nesse caso, a caridade, o pacifismo, o ambientalismo, a luta por justiça social e, mais ainda, a ética, a solidariedade, a gentileza, o amor ao próximo, tudo isso são pautas de esquerda, “coisa de comunista”. Sei que Pondé não é exatamente um direitista burro; suas posições políticas estão mais ao centro do que à direita, e burro é algo que ele definitivamente não é. Entretanto, sua crítica aos modismos de comportamento, à qual eu também faço coro (por exemplo, só nesta postagem zombei duas vezes da excrescência chamada linguagem politicamente correta), o levou desta vez a tecer um comentário raso onde ele poderia ser profundo, mesmo que seu vídeo ficasse um pouco mais longo. Talvez a pressa de produzir conteúdo toda semana para manter o famigerado engajamento (e a consequente monetização) o tenha levado à pouca reflexão, o que não é típico dele. Mas pode ser também que ele seja de fato um insensível, alguém a quem o excesso de leitura de filosofia, de gnósticos, estoicos até os cínicos, tenha embrutecido. Afinal, segundo a racionalidade fria da filosofia, a natureza é uma máquina de sofrimento, não é mesmo? E máquinas não têm sentimento. Por enquanto.

Voltando de férias com um desagravo

Estive sumido aqui do blog neste mês de janeiro, em parte porque, como todo filho de Deus — embora ateu —, eu também tenho direito a umas merecidas férias. Mas em parte também porque passei por uma experiência que, durante semanas, me tirou totalmente a vontade de escrever.

Logo nos primeiros dias do ano, assistimos ao funeral do eterno Pelé, um dos meus grandes ídolos, que tive a sorte de ver jogar. A morte do Rei e a oportunidade de rever, nos inúmeros documentários que a televisão exibiu, seus incríveis lances provoaram em mim uma emoção só comparável a outra que também vivenciara pouco antes: a despedida dos palcos de Milton Nascimento, meu ídolo maior, em show no Mineirão, na minha amada Belo Horizonte, ao qual estive presente em novembro último. Isso me inspirou a escrever um artigo traçando um paralelo entre esses dois brasileiros geniais. O título seria Dois reis negros, dois brasileiros geniais. O texto se iniciava assim:

Dois negros. Dois brasileiros. Dois mineiros. Um, de Três Corações. O outro, de Três Pontas. Um, nascido a 23 de outubro de 1940. O outro, a 26 de outubro de 1942. Signo de escorpião. Um, nascido no Rio, mas criado em Minas. O outro, nascido em Minas, mas radicado em Santos. Dois gênios em suas profissões. Dois homens que emocionaram e emocionam o público. Dois cidadãos do mundo. Ambos de sobrenome Nascimento. O primeiro, de nome Edison (depois alterado por ele mesmo para Edson). O segundo, de nome Milton. Ambos nomes ingleses: o do inventor da lâmpada elétrica e o do autor do Paraíso Perdido.

E o artigo seguia falando sobre o imortal legado de Pelé, deus do futebol, e sobre a maravilhosa obra musical do Bituca, como Milton Nascimento gosta de ser chamado, e sua contribuição para a MPB, para o Brasil, para o mundo. Nesse texto, eu falava sobre a minha emoção diante do apoteótico show a que assisti, num Mineirão mais lotado que num Cruzeiro x Atlético. Eu terminava agradecendo por ter tido a sorte de ser contemporâneo desses dois gênios, de ter nascido no mesmo país e planeta que eles.

Todas as semanas, publico neste blog textos que escrevo da melhor forma que consigo, tentando falar às vezes de assuntos difíceis como linguística numa linguagem que atinja o maior número possível de leitores, especialmente os não iniciados no assunto. Graças a um dom natural, tenho prazer e facilidade em escrever e, modestamente, acho que faço isso bem. Por isso mesmo, a tarefa de escrever todas as semanas não me é pesada; pelo contrário, minha escrita flui com facilidade. Mas, quando escrevo sobre a língua, ou sobre a política nacional, ou sobre as mazelas do nosso país e do nosso tempo, escrevo com a cabeça. Já quando escrevi a crônica sobre Pelé e Bituca, o fiz com o coração, tomado de profunda emoção e rara inspiração. Tanto que mal podia esperar para que chegasse segunda-feira, dia 9 de janeiro, para publicá-lo. Seria um dos melhores artigos que já produzira na vida. De quebra, no dia anterior, havíamos perdido Roberto Dinamite, outro grande craque do nosso futebol, e eu aproveitaria o ensejo para também lhe prestar uma homenagem. Por último, eu pretendia finalizar com um comentário sucinto deplorando em palavras irônicas a barbárie ocorrida em Brasília na véspera, o fatídico 8 de janeiro.

Pois qual não foi minha surpresa e choque naquela segunda-feira ao abrir o arquivo Word em que estava o meu artigo e constatar que, com exceção do primeiro parágrafo (esse que transcrevi acima), o resto do texto havia sumido. Como? Teria eu por acidente apertado alguma tecla e deletado o restante do texto e a seguir salvado o arquivo? Possivelmente foi o que ocorreu. Como faço backup dos meus arquivos num HD externo ao meu laptop, fui até lá e, para minha decepção, o arquivo em backup também estava mutilado. A partir desse momento, comecei a entrar em pânico. Pesquisando na internet, descobri que o Windows salva versões anteriores dos arquivos, só que essa função precisa ser habilitada e, não se sabe por que cargas d’água, ela não vem habilitada de fábrica. Ou seja, o senhor Bill Gates, nerd que sempre foi, deve achar que todos os usuários dos seus produtos são formados em ciência da computação. Pois bem, descobri tarde demais que não havia versão anterior salva do meu pobre arquivo. Passei o dia baixando softwares de recuperação de arquivos deletados e até encontrei uma versão de 2017 do meu arquivo — ou seja, uma versão absolutamente inútil.

Conclusão: perdi meu texto para sempre, sem que ele tenha tido a chance de ser lido por uma alma sequer — mesmo eu jamais o lerei de novo, e tudo que me resta dele são alguns flashes na memória. Reescrevê-lo é impossível: a emoção e a inspiração que eu tive jamais se repetirão. Além disso, o momento de sua publicação passou; como dizem, perdi o timing.

Meus leitores podem achar bobagem, mais vivenciei um verdadeiro sentimento de luto nesses dias, comparável à perda de um ente querido. Com a diferença de que, quando perdi meus pais, sofri por um tempo, mas guardei comigo a lembrança de todos os anos de vida em que pude desfrutar de sua companhia. E desse artigo que perdi, que era como um filho (sim, amigos, os livros e artigos que escrevo são como meus filhos), o que vou guardar?

Isso tudo só fez reforçar minha ojeriza pela tecnologia. Ojeriza que começou ainda nos anos 90, quando eu finalizava minha tese de doutorado num computador XT, daqueles de telinha verde (os mais jovens nem fazem ideia do que seja isso). Pois, em certo momento, o “bicho” travou, o que fez minha tese, produto de seis anos de insano trabalho, simplesmente sumir. E na época não havia dispositivos de autorrecuperação como os do Windows de hoje em dia — na época sequer havia Windows! Felizmente, após algumas manobras e muito desespero, consegui salvar uma versão tosca do meu trabalho. Passei dias reformatando parágrafo por parágrafo, negrito por negrito, itálico por itálico, refazendo tabelas, redesenhando figuras, reescrevendo o último capítulo, que não havia sido salvo. Mas pelo menos consegui recuperar o conteúdo do arquivo. Esse episódio, somado ao assédio moral que sofria do meu orientador, explica o surto depressivo que tive à época e que me custou anos de tratamento psiquiátrico.

Sou do tempo da máquina de escrever, e os textos que datilografava quando era adolescente ainda estão comigo. Livros impressos ou escritos à mão, alguns com mil anos ou mais, ainda resistem nas grandes bibliotecas do mundo. Mas arquivos “virtuais”, estejam eles num HD ou na nuvem, podem sumir a qualquer momento. E estamos inconsequentemente digitalizando toda a nossa cultura, todo o nosso acervo de conhecimentos, eliminando o papel sob a desculpa de poupar o meio ambiente — como se fosse o papel o grande vilão da emergência climática que vivemos.

Queridos leitores e amigos, este texto é um desabafo e um desagravo. Posso estar ficando velho, mas ninguém me convence de que um videogame de futebol que joga sozinho é melhor que uma partida de futebol de botão. Que joguinhos de celular que se jogam com dois polegares são mais divertidos do que uma bola de futebol, um pião, uma bicicleta ou bolinhas de gude. Que brincar no playground do condomínio é mais bacana do que correr descalço na rua, sem medo de doença ou de bandido.

Volto à rotina da escrita, porque simplesmente não consigo viver sem isso, mas com profundo pesar e medo das próximas perdas. Até a semana que vem.

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Ah, um adendo: na minha opinião, não é o colapso climático ou a guerra nuclear o que vai em breve destruir a humanidade; é a Inteligência Artificial.

Sobre Pelé e a genialidade

A recente morte de Pelé, ídolo dos ídolos, celebridade das celebridades, deus do futebol, o eterno Rei, o mais ilustre dos brasileiros, fez aumentar subitamente de frequência o uso da palavra gênio, e não sem justa razão. É bem verdade que essa palavra anda meio banalizada ultimamente, tendo virado elogio fácil a qualquer um que, na suspeita e duvidosa opinião de alguns, tenha realizado algum feito notável, ainda que trivial. Nesses nossos tempos, Anitta é um gênio por ter chegado ao topo do ranking do Spotify, Galvão Bueno é o gênio da narração esportiva, Steve Jobs foi o gênio da tecnologia por ter inventado o i-Phone, e por aí vai. Mas, apesar desse uso lisonjeiro e pouco autêntico do termo, existem e existiram os gênios verdadeiros, aqueles que revolucionaram com sua inteligência e habilidades ímpares as áreas em que atuaram. Se para nós Pelé se tornou, mais do que um nome próprio, um substantivo comum designativo do indivíduo que chegou ao mais alto nível de seu ofício, tornando-se insuperável, podemos dizer que muitos seres humanos merecem esse epíteto. Não é errado dizer que Ivo Pitanguy foi o Pelé da cirurgia plástica, que Oscar Niemeyer foi o Pelé da arquitetura, Ayrton Senna o Pelé do automobilismo, Michael Phelps o Pelé da natação, Muhammad Ali o Pelé do pugilismo, e assim por diante. Talvez até devêssemos grafar Pelé nesse sentido com inicial minúscula: “o deputado fulano de tal é o pelé da corrupção”.

Mas, ao assistir na TV nestes últimos dias aos feitos fantásticos, inigualáveis e, por que não?, sobre-humanos do nosso querido Rei, me vêm à mente os nomes de muitos pelés que admiro e tenho como guias e fontes de inspiração, cada um tendo sido um divisor de águas em sua profissão, repartindo-a em “antes” e “depois” dele; alguns, diferentemente, foram tão iluminados que fundaram a própria profissão; para estes, só existiu o “depois”.

Por exemplo, penso em Aristóteles, o maior filósofo de todos os tempos, capaz de fazer reflexões profundas e complexas sobre todas as áreas do conhecimento, um homem cujas ideias na maioria dos campos em que filosofou ainda são válidas nos dias de hoje e que fez isso numa época em que a filosofia ainda dava seus primeiros passos. O fato é que nenhum filósofo depois dele conseguiu realizar obra mais perene e monumental do que o famoso estagirita, como ficou conhecido.

E o que dizer de Isaac Newton, o sábio inglês que, ao ver, segundo dizem, cair uma maçã, enunciou as leis que regem nosso Universo e que explicam todos os fenômenos físicos, exceto os muito rápidos (próximos à velocidade da luz) e os muito pequenos (na escala subatômica)? Newton não só fundou a física moderna, especialmente nos domínios da mecânica e da óptica, e, de certa forma, toda a ciência moderna, mas também foi um dos mais brilhantes astrônomos e matemáticos de todos os tempos. E, como se não bastasse, ainda fazia estudos em teologia e ciências ocultas. Apenas um homem se igualou a ele, mas não o superou: foi Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade. Esses dois gênios resumem toda a física. No entanto, Newton prestou reverência a seus mestres, outros gênios um pouco menores mas sem os quais Newton não seria Newton: Copérnico, Galileu e Kepler. Do mesmo modo, Aristóteles não seria quem foi sem seus mestres Sócrates e Platão, e também Tales, Anaximandro, Parmênides, Leucipo, Demócrito…

Enquanto isso, Charles Darwin revolucionou a biologia e, de quebra, abalou nossas mais profundas crenças religiosas com a Teoria da Evolução das Espécies, uma ideia simples, como são todas as ideias geniais, e que hoje se aplica a animais, plantas, línguas, culturas, sociedades, sistemas planetários e o próprio Universo. Mais uma vez, Darwin deve tributo a predecessores menos festejados pela História como Lineu e Lamarck.

Saindo da ciência e indo para a arte, como não lembrar de Johann Sebastian Bach, o maior compositor de todos, o sujeito que não apenas produziu os maiores hits de todos os tempos (sim, se vivesse nos dias de hoje, Bach seria um hitmaker maior que Paul McCartney ou Burt Bacharach, certamente ganhador de todos os Grammys) como simplesmente definiu a estrutura da música ocidental. Tudo o que Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, os Beatles, Michael Jackson, Tom Jobim, etc., fizeram só foi possível porque Bach fez primeiro. E sua música sublime é conhecida nos quatro cantos do mundo; não há ninguém que nunca tenha ouvido alguma de suas melodias, nem que seja num comercial de televisão. Aliás, conta-se que um certo crítico musical, quando perguntado quem em sua opinião era o rei da música, respondeu: “Beethoven”. Sua resposta causou surpresa e certa indignação ao indagador, que arguiu: “E Bach?”. Ao que o crítico esclareceu: “Beethoven é o rei da música, já Bach é o deus da música”.

E Lavoisier, o homem que inventou a química e tornou possíveis todos os infinitos produtos industriais que temos hoje? E Thomas Edison, o maior inventor da História? E Sigmund Freud, o médico que desvendou a mente humana? E Leonardo da Vinci, o grande polímata, considerado por muitos o maior de todos os gênios, um craque (poderíamos dizer “um Pelé”) na pintura, escultura, arquitetura, música, poesia, engenharia, anatomia, botânica, aeronáutica, precursor de grande parte dos inventos que só surgiriam oficialmente séculos depois dele, sobretudo o “inventor” do Renascimento e, por consequência, do mundo moderno?

E temos ainda alguns gênios menos difundidos, mas não menos brilhantes: Michael Faraday, o autodidata que destrinçou a eletricidade e tornou possível toda a moderna tecnologia; Alfred Wegener, o geofísico alemão que percebeu a complementaridade entre as formas dos continentes e criou a teoria da Pangeia, segundo a qual todos os atuais continentes um dia formaram uma única massa, que se partiu graças ao movimento das placas tectônicas; Gian Lorenzo Bernini, o mais magistral dos escultores, cujas estátuas parecem ter vida; William Jones, o jurista britânico que, percebendo as semelhanças entre várias línguas da Europa e da Ásia, postulou sua ancestralidade comum num idioma pré-histórico, o indo-europeu, e, com isso, inaugurou a linguística; e, depois dele, Ferdinand de Saussure, o linguista suíço que deitou as bases dessa ciência a partir de uma meia dúzia de dicotomias, das quais já falei diversas vezes em meus escritos. Enfim, há tantos “pelés” a quem devemos o melhor de nossa ciência, arte, tecnologia, esporte, cultura. E o mais incrível é que a maioria deles partiu de ideias absolutamente simples, só que ninguém as teve antes deles, e que se mostraram revolucionárias, além de terem trabalhado às vezes com os recursos mais rudimentares, como a bola de meia com que Pelé aprendeu a jogar futebol. Como diz um provérbio chinês antigo — e mineiro moderno —, inteligente é quem descobre o óbvio. O que nosso Pelé fez com a bola nos pés é no fundo muito simples, mas que outro jogador seria capaz de fazê-lo? Na verdade, muitos craques, como Zico, Maradona, Ronaldo, Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, fizeram em algum momento algo que Pelé fez, mas o Rei fez primeiro; e fez, sozinho, o que todos os outros craques fazem juntos. Ou seja, seria preciso somar o talento de todos eles para produzir Pelé. E esse gênio, um dos maiores da galeria que elenquei aqui, era negro, pobre e brasileiro, para nosso orgulho. Pelé morreu. Viva Pelé!

Palavra do ano: democracia

Mais um ano se finda, e é chegada a hora de elegermos a palavra do ano, o vocábulo mais utilizado e repetido nos últimos doze meses ou o que melhor sintetiza o espírito desse período. E, a meu ver, esse vocábulo é democracia. Certas palavras só se tornam importantes quando aquilo que elas representam se torna escasso: ninguém fala o tempo todo sobre o ar que respiramos a não ser que ele comece a faltar. Assim foi com a democracia. Deveria ser um termo banal, designativo de algo onipresente como o ar, mas, se tanto falamos dela neste 2022, é porque tivemos o medo real de perdê-la. Mais do que isso, tivemos a consciência do quanto ela esteve e ainda está sob ameaça.

Em pleno século XXI, a democracia idealizada pelos filósofos iluministas do século XVIII ainda é exceção e não regra; a maior parte dos seres humanos vive sob regimes que nem de longe se parecem democráticos. A brutalidade do poder que oprime e se legitima pela violência e pelo terror ainda domina a maioria das sociedades e estados. Por ser tão rara, a democracia é tão preciosa, como uma flor frágil que precisa ser regada e adubada diariamente para que não feneça. E há muitos que querem matá-la, que preferem a tirania porque acreditam ingenuamente que levarão vantagem em estar ao lado dos tiranos, esquecendo-se de que tiranos não têm amigos, apenas se utilizam de seus aliados enquanto estes lhes servem; quando não mais, os descartam impiedosamente.

Democracia, palavra de origem grega formada de dêmos, “povo”, e krátos, “poder, governo”, é o governo do povo, para o povo e pelo povo. É bem verdade que em nenhum lugar do mundo é o povo quem governa. Mesmo na antiga Atenas, berço do termo e do sistema, exerciam o poder todos os cidadãos, que no caso não chegavam a um quinto da população da cidade-estado, já que mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram considerados cidadãos. Nas sociedades modernas, muito mais complexas que a pólis ateniense, a democracia só pode ser representativa ou, no máximo, participativa. Em ambos os casos, os cidadãos elegem representantes, que são quem vai legislar e apoiar — ou não — o governo eleito. E, como a democracia não raro degenera em demagogia, como já alertava Aristóteles, isso num tempo em que ainda nem havia marketing político, os “representantes do povo” não representam o povo e sim os lobbies que os elegeram: grandes corporações, grandes latifundiários, igrejas proselitistas e altamente capitalistas, poderosos sindicatos, até organizações criminosas. Isso quando não representam a si mesmos, isto é, defendem seus próprios interesses particulares, legislando em causa própria.

Apesar de tudo isso, a democracia é, como dizem, o pior dos regimes, com exceção de todos os demais. Estejamos, pois, vigilantes; como disse John Philpot Curran em 1790, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Feliz Ano Novo!

Sotaque de novela

Todo falante (com exceção, talvez, dos estudiosos da linguagem) tem uma visão idealizada da língua que fala, e das outras também. Desde crenças infundadas sobre a “pureza” deste ou daquele idioma até alegações, por vezes cercadas de uma aura cientificista, de que tal língua se presta melhor do que outras a determinados propósitos (comércio, poesia, filosofia, etc.). Essa mesma visão romântica — e por que não dizer chauvinista? — da língua é que leva o paulistano que pronuncia “inteindeindo” ou o carioca que diz “meijmo” a acharem que falam sem nenhum sotaque, que quem tem sotaque são os outros. E aí nascem os estereótipos linguísticos, sobejamente explorados pelos programas humorísticos da TV, nos quais o traço caricatural da fala regional, mais do que tolerado, é enfatizado, haja vista o efeito cômico que produz.

Mas o que dizer de telenovelas “sérias”, em que a imitação da pronúncia ou da sintaxe de determinada região (ou da fala de imigrantes estrangeiros) deveria causar no telespectador uma sensação de ambiência realista, como que a transportá-lo para o meio daquelas pessoas distantes, de fala igualmente tão distante da nossa? Via de regra, o que se vê em nossos folhetins televisivos é um arremedo, às vezes patético, do linguajar dos lugares e épocas retratados.

Atualmente, a Rede Globo (que, por sinal, passou a assinar-se novamente como TV Globo ou simplesmente Globo, conforme aparece na logomarca da empresa) exibe três telenovelas “regionais”: O Rei do Gado, Mar do Sertão e Travessia. Nas três, temos pronúncias caricatas, seja a do caipira (isto é, qualquer cidadão natural do meio rural, desde Rondônia até o Rio Grande do Sul), seja a do nordestino.

Nossa idealização “sulista” da fala deste último nos leva, em primeiro lugar, a achar que em todo o Nordeste se fala igual, portanto numa novela passada na Bahia e noutra em Pernambuco os atores falarão do mesmo jeito. Por sinal, um jeito no qual nenhum nordestino de verdade se reconhece. Nem o baiano nem o pernambucano.

Em segundo lugar, temos a vaga ideia de que no Nordeste o não vem sempre depois do verbo (“— Você quer? — Quero não.”) e mais substitui a preposição com (“Severino saiu mais Maria.”). Só falta explicar que o advérbio não não se pospõe simplesmente ao verbo. O que ocorre é o redobro do não, comum em todas as regiões do país (“Não quero, não”), seguido do apagamento do primeiro não (por preguiça dos baianos, dirão os maldosos). Portanto, é pouco provável ouvir um não posposto ao verbo que não esteja em posição final na oração. Uma frase como “hoje vou não à escola porque está chovendo” é bem improvável em qualquer lugar do Brasil, inclusive no Nordeste.

Em segundo lugar, mais de fato substitui com no sentido de companhia, mas não em outros sentidos. “Este ano a eleição coincide mais a Proclamação da República” ou “ele cortou o pão mais a faca” são construções impossíveis. A não ser nas novelas. (Em 2012, no remake de Gabriela, de Jorge Amado, ouviam-se frases como “Mundinho Falcão casa não mais Gerusa!”.)

E o que dizer do italiano macarrônico que volta e meia assalta nossa telinha, como no caso dos patriarcas das famílias Mezzenga e Berdinazzi de O Rei do Gado? Talvez preocupados em fazer com que um público mal escolarizado entenda o que os imigrantes da estória estão dizendo, o que se faz é pôr na boca dos atores um sotaque artificialmente “cantado”, acrescido de falsos cognatos, como, por exemplo, empregar allora no sentido de “agora” (allora significa “então” em italiano): “Io vó lá allora mesmo!”.

Finalmente, as novelas de época trazem janotas e donzelas do século XIX falando como surfistas: “eu vi ela saindo”, “eu queria muito que a gente ficasse juntos”, e por aí vai. Somem-se a isso cenários caríssimos reproduzindo o Rio de Janeiro dos tempos imperiais onde se leem placas com dizeres como farmácia e comércio, assim mesmo, com f no lugar do ph e m em vez de mm. Sem falar no acento agudo! (Parece que a televisão brasileira, ciosa do seu papel educativo e cultural, adota nas novelas de época a ortografia pós-Acordo Ortográfico de 2009.) Mais convincente do que isso só me lembro do Márcio Garcia fazendo papel de indiano na novela Caminho das Índias, de 2009.

O imbroxável e a parassíntese

Algum tempo atrás, publiquei neste espaço um artigo comentando o neologismo imbroxável, da lavra do nosso futuro ex-presidente (ufa!). Na ocasião, a polêmica era se essa palavra deveria ser grafada com x ou ch. Mas uma outra polêmica surgiu à época, a qual não tive então a oportunidade de abordar e o faço agora. Trata-se da questão de se o termo em questão é ou não uma formação por derivação parassintética.

Para quem não sabe, parassíntese é o processo de derivação em que ocorrem simultaneamente prefixação e sufixação, como em noiteanoitecer, por exemplo. No entanto, as gramáticas tradicionais costumam fazer uma distinção entre a prefixação e sufixação simultâneas e a parassíntese, afirmando que esta última só ocorre quando a palavra não existe só com o prefixo ou só com o sufixo. Nesse sentido, teríamos prefixação e sufixação simultâneas em infelizmente porque também temos infeliz e felizmente. Já em anoitecer, teríamos parassíntese porque não existe *anoite nem *noitecer. Essas gramáticas nos dão uma série de exemplos: abençoar, amanhecer, entardecer, envelhecer, envernizar, enrijecer, entristecer, emagrecer, engaiolar, avistar, resfriar, desalmado, ensurdecer, etc. Notem que a maioria dos exemplos é de verbos, e boa parte deles termina com o sufixo ‑ecer.

Essa definição é problemática. Em primeiro lugar, não existe prefixação e sufixação simultâneas a não ser na parassíntese. O exemplo de infelizmente não é de prefixação e sufixação simultâneas porque podemos perfeitamente pensar que infelizmente resulta de felizmente por prefixação ou de infeliz por sufixação. Logo, a prefixação e a sufixação não são simultâneas. Por outro lado, afirmar que anoitecer é parassíntese porque não existem *anoite ou *noitecer é arriscado. Essas palavras não existem, mas poderiam perfeitamente existir. Na língua, nada é impossível, portanto quem pode garantir que essas palavras não venham a ser criadas futuramente? A partir do adjetivo fresco criou-se refrescar por suposta parassíntese. Só que, tempos depois, surgiu por derivação regressiva o substantivo refresco. Se não soubermos quem surgiu primeiro, podemos perfeitamente considerar que refrescar deriva de refresco por sufixação e não de fresco por parassíntese.

Se o argumento em favor da parassíntese for o de que anoitecer surgiu primeiro que um suposto futuro *noitecer, então teremos que datar a criação de cada palavra na língua para saber quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

Talvez os gramáticos pensem na parassíntese como uma prefixação e sufixação simultâneas em que somente a prefixação ou somente a sufixação são impossíveis. Mas será que existem casos assim? Como eu disse, na língua nada é impossível.

No meu entender, só há duas saídas: ou se considera que parassíntese é a criação de uma palavra por prefixação e sufixação simultâneas quando não existem (ainda) os termos derivados só com prefixo ou só com sufixo (essa definição de parassíntese salvaria casos como o de anoitecer) ou então se considera que a parassíntese simplesmente não existe.

A questão levantada sobre o imbroxável foi que aí, contrariamente ao que eu havia afirmado naquele artigo, não haveria parassíntese porque é perfeitamente possível a existência do adjetivo *broxável, derivado do verbo efetivamente existente broxar. A questão é: *broxável é possível, mas não existe. Portanto, quando o ilustre futuro ex-presidente criou o vocábulo, juntou prefixo e sufixo simultaneamente ao verbo broxar. Se *broxável vier a ser criado, teremos uma situação idêntica à de refresco em face de refrescar.

Esse critério adotado pelas gramáticas da inexistência da palavra só com o prefixo ou só com o sufixo é, como se vê, sujeita a críticas. Afinal, *noitecer, *rijecer, *magrecer ou *gaiolar não existem, mas poderiam existir, uma vez que de amarelo se fez amarelecer, sem prefixo.

O gramático mais arguto poderia objetar que são casos diferentes, pois todo adjetivo iniciado pelo prefixo in‑ ou suas variantes im‑ e i‑ pressupõe um adjetivo primitivo sem o prefixo: infelizfeliz, impossívelpossível, imortalmortal. Logo, imbroxável pressupõe *broxável. Mas voltamos à questão: *broxável poderia existir, mas não existe, assim como *noitecer poderia existir, mas tampouco existe. Então por que temos parassíntese num caso e não no outro?

Se, toda vez que aplicássemos o sufixo ‑ecer a um adjetivo, fôssemos obrigados a aplicar também um prefixo, isso não seria parassíntese e sim circunfixação. Circunfixo, figura desconhecida da maioria dos gramáticos, é um tipo de afixo que se aglutina tanto antes quanto depois do radical. Por exemplo, em alemão o particípio passado dos verbos se faz com o circunfixo ge‑…‑t. Por exemplo, o particípio de tanzen, “dançar”, é getanzt, “dançado”, o de machen, “fazer”, é gemacht, “feito”, e assim por diante. Somente na circunfixação é que o prefixo e o sufixo são agregados simultânea e indissociavelmente ao radical. Por via de consequência, casos como o de anoitecer ou imbroxável não são circunfixações. Então, pelo critério gramatical, devemos concluir que a parassíntese não existe, pois ou temos circunfixação (que não é parassíntese) ou temos prefixação e sufixação simultâneas, mas que poderiam não ser simultâneas, já que a forma só com prefixo ou só com sufixo não existe, mas poderia muito bem existir — e pode vir a existir a qualquer momento, especialmente em Minas Gerais: “O cumpade gaiolô o passarim, depois sortô ele bunitim na mata”. (Brincadeirinha —mineiros, eu amo vocês!)

Resumo da ópera: imbroxável é, sim, uma parassíntese. Se um dia surgir *broxável, será uma derivação regressiva de imbroxável.

Um grande linguista falando sobre a linguagem

Hoje gostaria de citar as palavras de um dos linguistas mais importantes da história da ciência da linguagem, o dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965), sobre o seu (nosso) objeto de estudo: a língua. A citação foi extraída do prefácio da edição brasileira de seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem (São Paulo: Editora Perspectiva, 1975, p. 1-2). Apreciem!

Linguagem – a fala humana – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ele é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pais para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade.

Uma nova modalidade esportiva?

Em tempos de Copa do Mundo, meu leitor Paulo Gilberto sugere uma nova modalidade esportiva, tipicamente brasileira. Vejamos o que ele diz:

Bom dia, Mestre,

O Brasil é um país cheio de excentricidades.
Deve ser, por exemplo, a única nação em que se “corre atrás do prejuízo”, modalidade esportiva não inserida, ainda, nos jogos olímpicos mundiais.
Caso veja alguma importância nisso, gostaria de conhecer sua opinião, preferentemente em comentário a postar no DIÁRIO DE UM LINGUISTA.

Fraterno abraço do admirador do seu trabalho.

Paulo Gilberto Morais dos Santos

Pois é, não é só o Paulo que reclama dessa modalidade esportiva esquisita, “correr atrás do prejuízo”: o famoso Prof. Pasquale Cipro Neto já havia apontado para essa suposta incoerência, argumentando que o que tem lógica fazer em caso de prejuízo é “correr atrás do lucro”.

Na verdade, quem está no “preju” precisa primeiro saldar o rombo em sua contabilidade, zerar o saldo negativo para só depois pensar em lucrar. E é aí que se pode intuir a origem dessa expressão. O indivíduo devedor precisa “correr atrás”, isto é, trabalhar, batalhar, se esforçar para quitar a dívida e assim livrar-se do prejuízo. Nesse sentido, até é plausível compreender a motivação de quem cunhou essa expressão.

Expressões idiomáticas e gírias nem sempre têm muita lógica, mas o fato é que “pegam”, ou seja, caem no gosto dos falantes, que passam a replicá-los como vírus sem muito critério: ninguém pára para pensar se essa ou aquela expressão tem lógica; o que importa é que ela dá conta do recado, vale dizer, expressa bem o que se quer dizer.

Muitos sabichões tentam “corrigir” certos provérbios e expressões idiomáticas, alegando que eles não têm lógica. Alguns casos, de tanto serem reproduzidos na mídia, acabaram famosos. Como exemplos temos “Quem tem boca vai a Roma”, que os sabichões corrigem para “Quem tem boca vaia Roma”. Ora, qual o sentido de vaiar Roma? Talvez os judeus dos tempos em que a Palestina estava ocupada pelos romanos tivessem algum motivo para vaiar as tropas romanas que desfilavam por seu território, mas qual ensinamento tiraríamos desse provérbio hoje?

Ao contrário, “Quem tem boca vai a Roma” nos ensina que, se estamos perdidos, basta usar a boca para pedir informações e assim chegar sem erro ao nosso destino.

Outro caso de correção de provérbio é “Quem não tem cão caça com gato”, “corrigido” para “Quem não tem cão caça como gato”, isto é, sozinho (supostamente, os gatos caçam sozinhos, mas, que se saiba, a maioria dos animais faz o mesmo). Só que a expressividade – e o efeito humorístico – do dito popular está justamente na substituição do cão pelo gato, que não é o animal mais indicado para levar numa caçada. Em resumo, o que o ditado quer dizer é: se você não tem os recursos mais adequados para realizar uma ação, utilize qualquer outro disponível.

Outro dia, minha esposa me repreendeu quando proferi o adágio “A raposa perde o pelo, mas não perde o vício”, dizendo que o correto é A raposa perde o pelo, mas não perde o viço”. Ora, nessa versão “corrigida”, o que se tem é um elogio à estética da raposa: mesmo pelada, ela continua viçosa. Só que o sentido do provérbio é outro: por mais que seja punido, o indivíduo de mau caráter sempre reincide em seus malfeitos. Trata-se da constatação desalentada de que o instinto maléfico ou criminoso é incorrigível.

O Prof. Pasquale também questionou a expressão “risco de vida”, alegando que o mais sensato é dizer “risco de morte”, já que se trata de um alerta para situação perigosa em que o indivíduo descuidado corre o risco de morrer. Ok, nada contra “risco de morte”, mas a expressão “risco de vida” foi cunhada pensando-se no risco que a vida corre em situação de perigo; trata-se, pois, do risco de perder a vida. Portanto, a meu ver, ambas as formas fazem sentido.

Há ainda aquela polêmica sobre se “cuspido e escarrado” não seria, na verdade, uma corruptela de “esculpido em carrara”: “Fulano é seu pai esculpido em carrara” (subentendido que carrara é o mármore proveniente da cidade italiana de Carrara). O problema é que essa expressão existe também em diversas outras línguas, inclusive em italiano, idioma do país onde fica Carrara. E em todas essas línguas, o que há são palavras equivalentes a “cuspido” ou “escarrado” e nenhuma menção ao mármore ou a escultura.

Enfim, a sabichonice por vezes é mais realista do que o rei e quer ensinar o padre-nosso ao vigário. Nuns poucos casos ela acerta, como na expressão “ter bicho carpinteiro”, que, muito provavelmente, é corruptela de “ter bicho no corpo inteiro”.

Quanto a “correr atrás do prejuízo”, nada impede que os inconformados com essa nova modalidade olímpica usem em seu lugar “correr atrás do lucro”. Mas o fato é que, lógicas ou não, as expressões idiomáticas se consolidam e sobrevivem por mais que se as combata. Ou seja, cada um corre atrás do que quiser.

Sobre farmácias e botequins

O que há de comum entre um botequim, uma farmácia e uma loja de roupas? Aparentemente nada, a não ser o fato de que se trata de estabelecimentos comerciais. No entanto, há mais entre eles do que supõe nossa vã filosofia – ou melhor, nossa vã etimologia. Basta recuarmos até o antigo grego ἀποθήκη (apothéke), que passou ao latim apotheca e quer dizer “celeiro, armazém”. Essa palavra deu em português adega (lugar em que se guardam bebidas), bodega (bar de segunda categoria), boteco, botequim, botica (farmácia de manipulação), boticão (alicate usado pelos dentistas para extrair dentes), butique ou boutique (do francês boutique, “loja”). Daí saíram também os derivados bodegueiro (dono de bodega), boticário (farmacêutico), e outros.

O francês tem apothicaire (boticário) e boutique, e o italiano tem bottega (bodega) e botteghino (botequim). Por sinal, as palavras portuguesas butique e botequim vieram respectivamente do francês e do italiano. Do provençal, língua falada no sul da França, veio botica, e do espanhol, bodega. Em alemão, até hoje “drogaria” se chama Apotheke.

Como se pode perceber, o antigo armazém dos gregos se transformou nos mais diversos locais de estocagem e venda de produtos, especialmente líquidos, como as bebidas e os medicamentos, que antigamente eram basicamente poções. E ainda hoje muitas pessoas, depois de se embriagar no botequim, precisam ir à botica, isto é, à farmácia, para curar seu porre.

Cabelo tem a ver com pelo?

A pergunta do título admite duas respostas. Do ponto de vista biológico, a resposta evidentemente é sim: cabelos nada mais são do que os pelos que recobrem a cabeça, mais precisamente o couro cabeludo. Já do ponto de vista etimológico, há controvérsias. Há quem defenda que o latim capillus, “cabelo”, é o resultado da composição (com truncamento) de caput, “cabeça”, e pilus, “pelo”. Ou seja, cabelos nada mais seriam do que os pelos da cabeça. Mas estudos etimológicos mais rigorosos parecem desmentir essa hipótese tão intuitiva.

Em primeiro lugar, é difícil explicar porque capillus tem dois ll enquanto pilus tem um só. É bem verdade que o latim também tinha a palavra pilleus (com dois ll), que designava um barrete (espécie de boina) feito de lã de ovelha não tosquiada (portanto peluda) e que é da mesma origem de pilus. Ocorre que pilus provém da raiz indo-europeia primitiva *pil-, ao passo que pilleus vem da raiz derivada *pils- (com sufixo ‑s – o encontro consonantal ls passava a ll em latim). Então capillus teria a ver com pilleus em vez de pilus? Não parece ser o caso. Além disso, a composição entre caput e pilus daria algo como *capitipilus e não capillus.

Em segundo lugar, a raiz indo-europeia que originou caput em latim, a saber, *kap-ut, admitia também formas com l: *kap-(e)lo-. Desta segunda provêm, dentre outros, o sânscrito kapála, “tigela, panela, crânio”, e o antigo inglês hafola, “cabeça”.

Em face disso, muitos etimólogos e indo-europeístas acreditam que capillus é uma derivação da raiz *kap-(e)lo-, representando um antigo adjetivo referente a “cabeça” que depois passou a ser usado como substantivo. Então capillus significaria originalmente apenas “capilar” (subentendido “pelo”), nada tendo a ver com pilus.

Curiosamente, o espanhol até hoje denomina “cabelo” mais frequentemente por pelo, embora também disponha da palavra cabello. E nas línguas germânicas, o mesmo vocábulo denomina “pelo” e “cabelo”, como vemos, por exemplo, no inglês hair.

Em resumo, a semelhança entre pilus e capillus em latim pode ser apenas fortuita, uma dessas coincidências que dão pano para a manga em matéria de pesquisa linguística e, portanto, mais uma peça que a evolução cega das línguas nos prega.

O ocaso da civilização?

Nestas duas primeiras décadas do século XXI, temos visto o mundo passar por várias mudanças – a meu ver para pior. Como todos aqueles que têm um pouco mais de idade (no meu caso, nem tanta assim rs), sinto saudade dos meus tempos de infância e adolescência. Na verdade, acho que todo mundo já sentiu, sente ou sentirá saudade desses tempos de despreocupação com o futuro, algo ainda tão distante, e de quase nenhum passado a recordar, quando só o presente importa. E aí temos a tendência a achar que esses tempos foram os melhores não só para nós, mas para todas as pessoas. Olhamos para trás e achamos que nunca, nem antes nem depois, o mundo foi tão bom como naquela época em que éramos mais jovens. Não consultei muitas outras pessoas sobre isso, mas tenho para mim que essa sensação deve ser universal – exceto, é claro, para quem teve uma infância horrível, de privação e violência, por exemplo.

Todavia, no meu caso – e perdoem-me se estou sendo chauvinista –, fico achando que o tempo em que fui criança ou adolescente coincidiu de fato com a melhor época da humanidade, pelo menos nesta parte do planeta que convencionamos chamar de Ocidente.

Se fizermos um retrospecto do que foi a história da espécie humana e em particular a história de nossa civilização, talvez os amigos leitores concordem comigo. Comecemos pela Antiguidade clássica. A civilização greco-romana nos legou um inestimável patrimônio de cultura, arte, filosofia, ciência, fundamentos de ética e moral, mas era, ao mesmo tempo, uma sociedade escravagista, patriarcal, belicosa, xenófoba e dominada por tiranos – mesmo a chamada democracia ateniense não era assim tão democrática, já que excluía a maior parte da população. Portanto, foi uma época de muito arbítrio e pouca liberdade.

Então vieram os mil anos da Idade Média com seu obscurantismo, fanatismo religioso, guerras, fome, peste, falta de higiene, caça às bruxas, ódio a todo conhecimento que não estivesse de acordo com a Bíblia, fogueira aos hereges e nenhuma liberdade de pensamento.

As coisas parecem melhorar com o Renascimento e sua cultura do homem, mas a Santa Inquisição continua a postos, e ainda surgem os monarcas absolutistas. Há uma Revolução Científica acontecendo no século XVII, mas cientistas e pensadores ainda são condenados à prisão ou à morte (Galileu Galilei e Giordano Bruno que o digam). Há também um movimento chamado Iluminismo no século XVIII pregando o estado laico, a separação entre os poderes e o sistema democrático representativo. Mas ainda durante todo o século XIX pouco se pode falar de democracia. Mesmo os regimes republicanos que começam a surgir no Novo Mundo com a independência das antigas colônias europeias têm pouco de democráticos ou representativos. Talvez um pequeno respiro nessa sucessão de tragédias tenha sido a Belle Époque, breve intervalo entre guerras, de 1870 a 1914, em que floresceram as artes e as ciências, e o Ocidente respirou alguma liberdade.

Aí vem o primeiro grande abalo planetário com a Primeira Grande Guerra e seus milhões de mortos, seguida da epidemia conhecida como Gripe Espanhola. Esse conflito descortinou um período sombrio de crise econômica, com a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a subsequente recessão-depressão dos anos ’30, e de crise política, com a ascensão do fascismo e do nazismo, culminando numa convulsão global ainda maior, a Segunda Guerra Mundial.

A partir daí, apesar do início da chamada Guerra Fria e das tensões políticas dela advindas, a Europa ocidental, reconstruída pelo Plano Marshall, e a América vitoriosa começam a viver um período de paz, democracia, mobilidade social, secularismo, liberdade sexual, de costumes e de expressão e florescimento cultural nunca antes vistos: é a era da cultura pop, dos Beatles, de Woodstock, da televisão, da social-democracia e seu estado de bem-estar social. A Europa ainda é atormentada de vez em quando por alguns atentados terroristas de inspiração comunista, mas o clima em geral é de tranquilidade e de efervescência intelectual e artística. Além disso, é a época do conforto: da refrigeração, do aquecimento central elétrico, do chuveiro elétrico, dos eletrodomésticos…

A queda do muro de Berlim em fins dos anos ’80 e o consequente fim da Guerra Fria, aliados ao surgimento da globalização, parecem apontar o início de uma nova era de prosperidade e paz. Só parece. O atentado do 11 de Setembro de 2001 substitui o terrorismo de esquerda pelo terrorismo islâmico. Novos inimigos surgem no horizonte: o Estado Islâmico, a China, ditadura que desponta como a segunda maior potência econômica mundial, a Rússia de Putin e seu desejo de ser o novo imperador do mundo e de nos pôr à beira da Terceira Guerra Mundial. Paralelamente, democracias até então sólidas começam a periclitar: Orban na Hungria, Salvini e Meloni na Itália, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil… A guinada à direita já se esboçava nos anos ’80 com Thatcher, Kohl, Reagan e João Paulo II, ladeada pelo retorno triunfante das religiões e do misticismo na virada do milênio e a progressiva derrocada do laicismo e ascensão de fantasmas como negacionismo, pós-verdade, fake news e outros venenos do esclarecimento.

Como cereja do bolo, chegam as modernas tecnologias, como a inteligência artificial, trazendo o emburrecimento das mentes e a robotização do ser humano, e o aquecimento global, causador das mudanças climáticas, querendo indicar que nosso modelo de civilização globalizado e consumista está chegando aos estertores.

Enfim, o ciclo de paz, prosperidade e resplendor cultural que se estendeu de aproximadamente 1950 a 2000 parece que terminou. Curiosamente, esse período histórico coincide com o reinado da recém-finada rainha Elizabeth, o que de fato sinaliza o fim de uma era.

Pareço muito pessimista? Talvez. Mas creio que o pessimismo é a melhor forma de realismo. Certa vez disseram ao mestre José Saramago que ele parecia um profeta, tal era o grau de acerto de suas previsões sobre o futuro da humanidade. Ao que ele respondeu que é fácil ser profeta: basta prever o pior cenário possível; certamente será este o que se verificará.

Carta ao presidente Lula

Prezado senhor presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, antes de mais nada, quero esclarecer que, no primeiro turno da eleição deste ano, não votei nem no senhor – ou melhor, em Vossa Excelência – nem no seu arquiadversário (ou deveria eu dizer “arqui-inimigo”?) porque não simpatizo com populistas nem de esquerda nem de direita. Por outro lado, neste segundo turno me vi obrigado a votar em V.Ex.ª, mesmo tendo de tapar o nariz para o odor fétido exalado do Mensalão, do Petrolão do triplex no Guarujá, do sítio de Atibaia e das inúmeras confissões de delatores e outras provas de corrupção pelo simples motivo de que, dos dois candidatos que chegaram ao segundo turno, V.Ex.ª era o “menos pior” e o fato é que nem toda a corrupção dos governos do PT se compara ao mal que Bolsonaro fez e continua fazendo ao Brasil. Em todo caso, parece que temos sempre de nos contentar com o menos ruim, já que o bom e o ótimo nunca estão ao nosso alcance.

Ainda assim, quero dar-lhe os parabéns pela vitória e desejar-lhe muita sorte em seu governo, esperando sobretudo que V.Ex.ª e não o Centrão ou os sindicalistas do PT governem este país.

Mas quero acima de tudo lhe fazer um pedido: cuide com especial carinho da educação de nosso país. Por favor, durante seu mandato, ofereça a todos os cidadãos a tão sonhada e necessária educação pública e gratuita de qualidade, pois só com ela, com bons e bem remunerados professores e boa infraestrutura escolar, conseguiremos sair de nossa triste condição de gigante eternamente adormecido, deitado em berço esplêndido, que assiste a outras nações emergentes, com muito menos riquezas e potencial do que a nossa, passarem à nossa frente enquanto permanecemos este país que não deu certo, esta eterna republiqueta bananeira disfarçada de grande nação.

Sim, Sr. Presidente, porque a educação é a solução para todos os nossos problemas. Não adianta falar em gerar empregos – claro, gerar empregos é importante para o país crescer, mas, mesmo com toda a crise econômica, não há falta de empregos, há empregos sobrando; o que falta é mão de obra qualificada para preencher essas vagas. Ou seja, falta educação, falta qualificação profissional. De nada adianta gerar subemprego, trabalho braçal com salário mínimo que jamais tirará o trabalhador da pobreza.

A única solução para acabarmos com essa vergonha que é nossa monstruosa desigualdade social é a educação de qualidade. Quando as crianças e adolescentes da periferia puderem estudar em tempo integral em escolas com três refeições diárias, banheiros limpos e decentes, biblioteca, brinquedoteca, laboratórios, quadra e ginásio de esportes bem equipados, consultório médico, dentário e psicológico, estiverem livres de violência (interna e externa) e puderem seguir assim até o fim do ensino médio, sem precisar interromper seus estudos para trabalhar ou para fugir de tiroteios, esses estudantes poderão entrar nas melhores universidades sem precisar de cotas sociais ou raciais – e poderão pleitear bons empregos. E, com bons empregos, poderão finalmente deixar a periferia.

Com isso, a própria periferia deixará de ser lugar de criminalidade, e os bandidos não terão mais onde se esconder nem como usar a população pobre como escudo humano contra a polícia. Com melhor educação, a pobreza e a violência diminuirão muito, e precisaremos gastar menos com assistência social e segurança pública.

Com melhor educação, e consequentemente melhor renda, as pessoas se alimentarão melhor e terão melhores condições de higiene; logo, precisaremos gastar menos com saúde pública.

Mais bem educadas e com melhor nível de vida, as pessoas precisarão recorrer menos a igrejas caça-níqueis que vendem falsas esperanças em troca dos suados dízimos. Com isso, nossa TV aberta e nossas rádios AM (e também algumas FMs) deixarão de ser dominadas por essas igrejas e seus pastores mercenários. Aliás, um povo bem educado é sempre um povo mais racional e secularista e menos propenso ao fanatismo religioso. Assim, sacerdotes picaretas deixarão de ter o poder que têm hoje de manipular multidões em seu próprio proveito e de amealhar fortunas em mansões e fazendas, canais de rádio e televisão, jatinhos particulares e contas milionárias no exterior. Consequentemente, também deixarão de ter o poder de eleger gigantescas bancadas nos legislativos que tentam impor a toda a população suas crenças e seu modo de vida como se o Brasil fosse uma teocracia.

Com mais e melhor educação, as pessoas não deixarão por certo de dar muita importância ao futebol, às telenovelas e ao Carnaval, paixões de nosso povo, mas compreenderão melhor o valor da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da cultura e da arte de qualidade e não deixarão que essas áreas fiquem à míngua para que projetos eleitoreiros de ocasião sejam priorizados. Com mais e melhor educação, certamente deixaremos de ser este país brega que somos – e que no passado não éramos.

Numa nação mais bem educada e, portanto, mais desenvolvida, haverá menos feminicídios, menos homofobia, menos racismo, menos destruição do meio ambiente e menos tudo o que hoje nos envergonha perante as nações desenvolvidas.

Mas não é só isso: com mais educação, as pessoas saberão votar com mais consciência e escolher melhor seus governantes e representantes. Desse modo, os políticos fisiológicos do Centrão, os coronéis latifundiários do Nordeste, a bancada da bala, a bancada ruralista, a bancada da Bíblia, tudo isso será reduzido a seu devido tamanho, e os parlamentos (federal, estaduais e municipais) refletirão de fato a composição do povo brasileiro em gênero, cor, etnia e idoneidade.

Sr. Presidente, V.Ex.ª não pode errar desta vez como errou no passado, deixando o poder subir-lhe à cabeça e sentindo-se acima do bem e do mal, senão todos sabemos quem poderá voltar ao poder. Tudo é uma questão de como V.Ex.ª deseja passar à História: como o estadista que fez a grande revolução que nosso país precisa ou como mais um político que apenas passou pelo poder enquanto o Brasil permanece o país do futuro – que talvez nunca chegue.

Bruxismo tem a ver com bruxa?

Neste Dia das Bruxas, como não poderia deixar de ser, vou falar de bruxas. Só que não! Na verdade, vou falar de bruxismo. O que será isso: um movimento em favor das bruxas? Nada disso. Esse velho conhecido dos dentistas é o hábito que algumas pessoas – especialmente as nervosas – têm de ranger os dentes de maneira insistente, a ponto de ficarem doloridos e até gastos. Quando eu ainda não era etimólogo, achava que o nome dessa patologia (sim, é uma patologia!) derivava da palavra bruxa, já que o rangido dos dentes lembra os ruídos das casas mal-assombradas dos filmes de terror. E bruxa tem tudo a ver com terror, né? Só que não é nada disso. O termo bruxismo foi formado a partir do verbo grego βρύχειν (brúkhein), significando “ranger os dentes”, e embora todos, inclusive os dentistas, o pronunciem como /bruchismo/, a pronúncia correta é /brucsismo/. Aliás, também existe a forma briquismo, da mesma origem grega.

Já a palavra bruxa é de origem pré-romana, isto é, já era usada pelos povos que habitavam a Península Ibérica antes da chegada dos romanos. Por isso, também se encontra em galego (bruxa), catalão (bruixa) e espanhol (bruja). A bruxa devia ser uma espécie de feiticeira e curandeira das tribos pré-romanas da Ibéria. Essa palavra certamente permaneceu no uso popular mesmo após a adoção do latim pelos ibéricos porque a língua dos romanos não tinha um vocábulo específico para “feiticeiro(a)”, já que não havia esse tipo de “profissional” em Roma. O termo aproximado em latim é lamia, nome de uma criatura que supostamente chupava o sangue das crianças e que deu origem ao nosso bicho-papão.

Feliz Dia das Bruxas!

Negacionismo científico e negacionismo político

Semanas atrás, recebi um comentário a um vídeo do meu canal do YouTube Planeta Língua intitulado “A palavra é… negacionismo”. Nesse vídeo, explico a origem e o significado da palavra, que se tornou tão corrente desde a eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. O comentário em questão afirmava que negacionismo é um termo pejorativo criado pela esquerda para depreciar, humilhar e intimidar a direita. Em outras palavras, o que o comentador do vídeo, indisfarçavelmente de direita, sustenta é que negacionismo não existe, trata-se de uma acusação vazia, o que implica que as posições que os supostos negacionistas defendem são legítimas.

Vamos então primeiramente falar sobre a origem do termo e do porquê de sua criação. A palavra negacionismo foi cunhada em francês (négationnisme) pelo historiador Henry Rousso em seu livro de 1987 A síndrome de Vichy, em que ele o aplica à atitude política de certos membros da direita francesa de negar a existência do Holocausto. Portanto, o termo negacionismo nasceu no âmbito da história e, por isso mesmo, é por vezes chamado de negacionismo histórico.

Na década de 1990, por ocasião dos debates sobre as mudanças climáticas, surgiram os negadores dessas mudanças, os chamados “ambientalistas céticos”. A partir daí, a comunidade científica, especialmente nos EUA, passou a empregar o termo negacionismo (em inglês negationism) em relação a esses céticos. Surgia o negacionismo científico.

Portanto, negacionismo é a postura de negar a realidade e, em especial, fatos cientificamente comprovados como forma de fugir de uma verdade incômoda.
É o triunfo da opinião sobre o fato. O negacionismo se distingue da simples negação porque rejeita uma tese mesmo que ela seja empiricamente comprovável e mesmo já esteja provada um sem-número de vezes. De certa forma, o negacionismo é primo-irmão das teorias conspiratórias. Os adeptos dessas teorias, chamados de conspiracionistas, sustentam que a comunidade científica internacional, denominada depreciativamente por eles mainstream científico, é fechada a novas ideias e rejeita sistematicamente teorias alternativas, como a de que a espécie humana é descendente de extraterrestres ou então teses criacionistas como o design inteligente, por exemplo. Na opinião desses conspiracionistas, a comunidade científica não seria nada mais do que uma máfia.

A questão é que o que eles chamam de mainstream é, na verdade, o conjunto majoritário de pesquisadores do mundo todo que baseiam seus conhecimentos no método científico, isto é, nos dados resultantes de experimentos nos quais uma hipótese é posta à prova e, se contradita pela experiência, é descartada. Essa comunidade de pesquisadores é responsável por estudos minuciosos, rigorosamente planejados e controlados, e sobretudo tão neutros e imparciais quanto possível, o que significa que nenhum resultado é privilegiado a priori, mas as teorias têm de se dobrar ante os fatos, e, se uma teoria entra em contradição com a realidade mostrada pelos resultados empíricos, errada está a teoria, não a realidade.

O ambiente científico é tão controlado que qualquer publicação séria tem de passar primeiro pelo crivo de pareceristas contratados pelo periódico ao qual o artigo é submetido, pareceristas estes de alta reputação científica, que fazem uma análise duplo-cego: nem o parecerista sabe o nome do autor do artigo nem vice-versa. Se aprovado e publicado, o artigo passa agora pelo crivo de toda a comunidade científica; o experimento ali descrito pode ser replicado por qualquer um, e os resultados obtidos devem ser os mesmos relatados no artigo. Se não forem, algo está errado. Logo, uma fraude científica cedo ou tarde é desmascarada. Este é o verdadeiro mainstream da ciência.

Por sinal, é a ele que devemos toda a evolução tecnológica do mundo atual, desde medicamentos para as mais diversas doenças até os modernos meios de transporte e comunicação, dentre tantas outras inovações. Ou seja, se as teorias científicas vigentes estivessem erradas e as “alternativas” é que fossem corretas, certamente ainda estaríamos na Idade Média. O grande problema dessas teorias alternativas, que, a rigor, nem teorias são, mas meras hipóteses, é que elas não têm suporte em dados empíricos, o que equivale a dizer que elas não apresentam provas de sua veracidade, são meros argumentos que podem convencer os mais ingênuos, mas não resistem a um teste mais rigoroso.

Em resumo, ao contrário do que afirma o comentador do meu vídeo, negacionismo não é uma pecha injusta criada pela esquerda política para depreciar direitistas, é uma acusação feita pelas pessoas de bom senso, que aceitam verdades sobejamente provadas, contra as que não as aceitam. O negacionismo é, pois, uma vertente do obscurantismo.

Mas o negacionismo não existe só na ciência, como na história (negação do Holocausto), na biologia (negação da evolução das espécies), na ecologia (negação do aquecimento global) ou na medicina (negação das vacinas); ele existe também na política. A atitude de negar os resultados de pesquisas eleitorais feitas por institutos sérios, com metodologia científica, apenas porque o candidato de sua preferência não está na liderança dessas pesquisas ou, pior, negar o resultado de eleições limpas e seguras, altamente monitoradas até por organismos internacionais, alegando fraude, jamais comprovada, apenas porque seu candidato não venceu, é uma forma de negacionismo político. Por conseguinte, o negacionismo político anda de mãos dadas com o golpismo. Aliás, todos os golpistas partem de uma mentira que eles sustentam como verdade para justificar seu golpe. A alegação de Putin de que o governo ucraniano é neonazista serviu de justificativa para a invasão da Ucrânia. Desde então, o governo russo nega verdades amplamente documentadas pela imprensa como a de que os mísseis russos miram alvos civis ao mesmo tempo que sustenta inverdades como a de que não há uma guerra e sim uma operação militar especial, o que quer que isso signifique.

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Antes que algum bolsonarista me acuse de ser esquerdista, comunista ou “mortadela”, quero esclarecer que sou politicamente de centro e no primeiro turno não votei nem em Lula nem em Bolsonaro. Logo, minhas considerações não têm nenhum caráter sectário ou ideológico, mas são na verdade a mera constatação de uma patologia social de nosso tempo chamada extremismo.

Cultura é artigo de consumo?

Outro dia, em sua coluna Sala de Música, na rádio CBN, o produtor musical João Marcello Bôscoli explicou que a palavra cultura veio do latim colere, que significa “cuidar, cultivar”, e que consumir veio de consumere, que quer dizer “consumir, gastar, destruir”. A partir daí, defendeu a tese de que não se deveria dizer “consumir cultura”, já que isso implicaria a ideia de destruição. Em vez de “consumir música” ou “consumir teatro”, ele sustenta que deveríamos voltar a dizer, como antigamente, “ouvir música”, “assistir ao teatro”, e assim por diante.

As informações etimológicas passadas por ele estão corretas, mas palavras ganham novos significados ao longo de sua história. Assim, se na Roma antiga consumir tinha o sentido exclusivo de gastar e destruir (por exemplo, “as chamas consumiram completamente o edifício”), com o tempo passou-se a empregar o termo referindo-se ao consumo de alimentos, que não deixa de ser uma destruição: destruímos os alimentos ao comê-los para nos mantermos vivos e saudáveis. Mas já que, para comê-los, é preciso primeiro comprá-los – a menos que tenhamos uma propriedade rural que nos forneça todos os recursos alimentícios de que precisamos –, consumir tornou-se sinônimo de comprar, adquirir. E, na sociedade de consumo em que vivemos, em que tudo, inclusive a cultura, virou produto, não é estranho pensar-se em consumir música, teatro, dança, livros, etc.

Aliás, a cultura não deixa de ser uma espécie de alimento – para o espírito, no caso. Assim como devoramos uma fruta, e ela, além de nos alimentar e nutrir, nos dá prazer com seu sabor e suculência, a cultura é algo que devoramos (quem nunca “devorou” um livro ou um disco?) e que nutre nosso espírito, ampliando nossos horizontes mentais. Uma vez comida, a fruta se transforma inexoravelmente em excremento, mas suas vitaminas alimentam nossas células e garantem nossa vida. Uma vez lido, um livro pode até virar calço de mesa, mas seu conteúdo nutriu nossos neurônios e fez mesmo nascerem novos.

Concordo com Marcello que, em tempos em que o consumismo domina as relações sociais e em que também há forte reação contra ele por parte de setores mais esclarecidos da sociedade, falar em consumir cultura pode soar mercantilista ou, no mínimo, fútil. Quem consome não frui, e a cultura deveria ser antes de tudo fruição. Então me lembro de que meu pai, ao ouvir na TV certos roqueiros dizerem que faziam um som, retrucava afirmando que antigamente se fazia música e que os “cabeludos” de hoje em dia (esse “hoje em dia” já faz algumas décadas) só fazem som, isto é, barulho. Pois o “som” que tanto incomodava meu pai atualmente é rock clássico. Imaginem, se ele fosse vivo hoje, o que diria do funk proibidão!

Por outro lado, também podemos despir o termo consumo de seu véu capitalista selvagem e vê-lo como algo que sempre existiu. Afinal, em todas as épocas os artistas tiveram de vender suas criações para sobreviver. Quer fossem sustentados por mecenas ou vendessem seus livros e quadros, bem como recitassem seus versos em praça pública, alguém pagava para lê-los, ouvi-los, assisti-los (assistir a eles, como manda a gramática normativa, é muito feio): a arte, assim como a filosofia e, mais tarde, a ciência, também era um produto vendido no mercado. Van Gogh, que vendeu um único quadro durante a vida, ficaria feliz de saber que suas pinturas hoje são comercializadas aos milhões de dólares. Mozart não desgostaria do fato de suas composições serem vendidas em lojas de CDs (as que ainda existem) ou baixadas em plataformas de streaming. Os poetas gregos cantavam seus poemas acompanhados da lira (o violão da época) na ágora ateniense em troca de moedas e do aplauso dos espectadores. O que há de errado nisso?

Por mais etéreas que sejam, ou pretendam ser, certas criações culturais, seus autores precisam comer, vestir-se, locomover-se, pagar contas… Logo, tudo é produto, tudo é consumível, devorável, digerível e tudo – alimentos ou livros – é nutriente de nossa vida.

Os evangélicos e as eleições

Nestas eleições, em que deveriam estar sendo discutidos os grandes temas nacionais, como a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a infraestrutura, o debate se perde em questões que não têm nada a ver com a administração do país, mas que são caras a grande parte da população, provavelmente por falta de uma cultura política, reflexo de nossa falta de cultura geral. Uma dessas questões é, infelizmente, a religião. Desde sempre, o povo brasileiro escolheu seus governantes e representantes muito em função de suas crenças religiosas. Para muitos brasileiros, mais importante do que se o candidato é honesto ou competente, é se ele acredita ou não em Deus, especialmente no Deus judaico-cristão. Historicamente, padres e pastores têm influenciado muitos fiéis, fazendo pregação política nos templos e por vezes ameaçando com o Inferno e a danação eterna aqueles que não votarem em determinado candidato, o que surte grande efeito nos mais ignorantes – por sinal, boa parte da população brasileira.

Mas desde que se discute religião nas campanhas políticas, o foco têm sido sempre os chamados “evangélicos”, na verdade, protestantes de linha pentecostal, como os membros da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, ou neopentecostal, como os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo. É que existem também os protestantes tradicionais, adeptos das igrejas que surgiram com a Reforma Protestante de Lutero em 1517: são os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, etc. Estes não costumam ser chamados de evangélicos porque seu comportamento em geral difere bastante daquele dos (neo)pentecostais. Portanto, é destes últimos que quero falar, já que são estes que estão no foco da discussão política atual.

O Brasil é um país majoritariamente religioso e sobretudo cristão, abarcando cidadãos das mais diversas fés e confissões, como católicos, protestantes, ortodoxos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, candomblecistas, além daqueles que creem em Deus mas não seguem nenhuma doutrina em particular.

No entanto, não se fala desses grupos religiosos como se fala dos evangélicos, nem o interesse dos políticos está voltado para essas outras comunidades como está para a evangélica. Por quê?

É fato que as denominações (neo)pentecostais são as que mais têm crescido no Brasil, apontando para a tendência de se tornarem majoritárias dentro em breve. Isso se deve a diversos fatores, mas principalmente ao apelo que essas igrejas têm na população mais carente, oferecendo-lhe a possibilidade de solução mais concreta e imediata de seus problemas do que outras religiões.

Mas, se não só os políticos como também a população em geral tende a considerar os evangélicos um grupo à parte em meio à massa dos religiosos em geral e, mais do que isso, um setor à parte da própria população brasileira, é porque esse grupo tem um comportamento que os diferencia, e muito, dos demais cidadãos, o que também é a causa do preconceito que sofrem.

Para o senso comum, o evangélico é um indivíduo que lê a Bíblia todos os dias, vai à igreja toda semana (às vezes mais de uma vez por semana) ouvir um pastor gritar histericamente, não bebe álcool, usa roupas sóbrias – no caso das mulheres, saias e cabelos compridos; algumas nem se depilam –, só ouve música gospel, só assiste a canais de TV de suas igrejas e sobretudo paga o dízimo à sua igreja “religiosamente” (desculpem o trocadilho).

Diferentemente de outros grupos religiosos, os evangélicos são proselitistas e tentam agregar cada vez mais fiéis às suas igrejas, o que representa cada vez mais dízimos e, portanto, mais poder financeiro, que se traduz em cada vez mais templos e mais canais de rádio e televisão – além, é claro, de uma vida cada vez mais rica e luxuosa para os comandantes dessas igrejas.

Nenhuma outra confissão religiosa tem uma bancada tão organizada no Congresso Nacional: não há uma bancada espírita, judaica ou islâmica, mas há uma poderosa e influente bancada evangélica, por sinal sempre fazendo parte da base de apoio ao governo – qualquer governo que seja. Nenhuma outra confissão tem tantas emissoras de rádio ou de TV. Nenhuma outra confissão é tão rica, com exceção, é claro, da Igreja Católica, mas a riqueza desta resulta de um patrimônio de séculos de hegemonia no Ocidente e não da arrecadação de dinheiro entre os fiéis.

Outro aspecto que chama a atenção aos evangélicos é seu conservadorismo em termos de costumes, o que faz a extrema direita sempre flertar com eles. Mais do que isso, o fundamentalismo e, por vezes, o literalismo das posturas de certos evangélicos os coloca como fanáticos religiosos, e daí vem o preconceito maior contra eles. Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra outros credos, especialmente os de matriz africana, chegando em alguns casos a pregar e a praticar a violência física contra “a religião do Diabo”, bem como sua censura ao homossexualismo, os faz serem vistos como racistas e homofóbicos, portanto cultores do ódio em vez do amor, base de todas as religiões.

Enfim, todos esses aspectos acabam por alimentar a desconfiança contra os evangélicos por parte dos que não seguem essa doutrina. E, pelo crescente tamanho dessa comunidade, nenhuma força política pode ignorá-la, já que, sem ela e seu apoio no Congresso, fica difícil governar. O temor da parcela mais progressista e esclarecida da população é que essa comunidade, vindo a tornar-se majoritária no Brasil, tente impor a toda a sociedade, incluindo os não cristãos e os não religiosos, uma teocracia, em que a “palavra de Deus”, isto é, a Bíblia em sua leitura literal e sobretudo a vontade dos pastores, se sobreponha à Constituição e às leis. Isso seria o fim da democracia, eis por que fanáticos religiosos e extremistas de direita têm tanto apreço uns pelos outros.

Do telefone celular ao besouro

Do telefone celular ao besouro

Aprendemos na escola que a célula é o elemento básico constitutivo de todos os seres vivos, o tijolo da construção da vida. Então por que o telefone celular tem esse nome? O que ele tem a ver com a célula?

Na verdade, em relação à célula sobre a qual aprendemos em biologia, nada. O que acontece é que, para que a telefonia móvel funcione, é preciso que o território seja coberto por um grande número de antenas que atingem com seu sinal uma determinada porção desse território à qual os engenheiros idealizadores da tecnologia deram o nome de célula. Portanto, em matéria de telefonia móvel, uma célula é uma região (por exemplo, um conjunto de ruas da cidade) atendida por uma antena. Quando nos deslocamos ao longo do território, vamos passando sucessivamente de uma célula a outra, o que quer dizer que deixamos de receber o sinal de uma antena e passamos imediatamente a receber o sinal de outra.

Mas por que cada uma dessas regiões cobertas por antenas se chama célula? Obviamente não perguntei aos criadores da tecnologia, nem tenho como, mas a ideia parece evidente: o mapa do território atendido por uma operadora desse tipo de serviço aparece dividido em um sem-número de pequenas áreas, que estão justapostas como as células de um organismo (outra metáfora possível seria a dos favos numa colmeia).

Agora vem a pergunta mais importante (pelo menos para um etimólogo como eu): por que a célula se chama célula? Esse vocábulo veio por via culta, mais precisamente pela linguagem da ciência, do latim cellula, diminutivo de cella, que quer dizer “cela”, lugar pequeno em que se oculta alguma coisa, pequeno esconderijo, e também despensa ou celeiro (note que este último termo deriva de cela). A cella latina também era o local recluso em que os monges dormiam – aliás o fazem até hoje. E, mais recentemente, cela passou também a significar o recinto em que ficam presos os detentos.

A palavra latina cella (anteriormente *celna) provém do verbo celare, “ocultar”, que também aparece na forma celere. Esta última tem um derivado ob- + celere = occulere, cujo particípio é justamente occultus, “oculto”. Todas essas formas radicam no indo-europeu *k̂el-, que significa “ocultar”, e aparece também no latim clam, “às escondidas”, que deu clandestino, bem como no grego calyptós, “oculto”, donde apocalipse, isto é, revelação (retirada da cobertura do que estava oculto).

Como já deu para perceber, a raiz indo-europeia *k̂el- tinha um significado primeiro de “cobrir”, do qual decorre o de “ocultar”. Nesse sentido de cobrir, saíram as palavras latinas color, “cor” (originalmente “tinta”), isto é, aquilo que cobre uma superfície, pintando-a, e cilium, “cílio” (o que cobre o olho). Dessa raiz também nos chegou a palavra de origem germânica elmo – para quem não sabe, o capacete da armadura medieval, ou seja, aquilo que cobre e protege a cabeça.

De lá saiu também o inglês hell, “inferno, lugar subterrâneo e escondido”, bem como hole, “buraco”. Por fim, daí veio o grego koleón ou koleós, “vagina” (acho que não é preciso explicar por quê), do qual nasceu o termo científico coleóptero, um tipo de inseto mais conhecido como besouro.

Quantos significados diferentes se ocultam nessa simples raiz, não? E tudo começou com o nome do telefone celular. Nome, aliás, que esse aparelho tem no Brasil. Em Portugal, chama-se telemóvel. Curiosamente, o nome americano do celular é cell phone, também fazendo referência à ideia de célula, ao passo que seu nome britânico é mobile phone, ou simplesmente mobile. Ou seja, enquanto brasileiros e americanos ressaltam a conexão do aparelho às acima explicadas células, portugueses e ingleses destacam o aspecto móvel dessa tecnologia.

O vocabulário da prisão

“Lugar de bandido é na cadeia!” Esse slogan tem sido muito repetido em campanhas eleitorais por candidatos a deputado ligados à segurança pública. Mas por que a cadeia tem esse nome? Nos dicionários, a primeira acepção de cadeia é “corrente”. Aliás, é daí que vem a expressão reação em cadeia, em que se faz alusão a uma corrente cujos elos estão todos interligados. Decorre dessa definição que o uso do termo cadeia no sentido de “prisão” remete aos tempos em que os prisioneiros ficavam acorrentados.

Por falar em prisioneiro, essa palavra deriva obviamente de prisão, mas sua introdução em português foi influenciada pelo francês prisonnier, tendo sido nessa língua que o vocábulo surgiu pela primeira vez, derivado de prison­, “prisão”. E prisão descende do latim prehensionem, do verbo prehendere, “prender”. Uma curiosidade: prehendere é formado do prefixo prae-, “antes”, e de um nunca documentado verbo latino *hendere, que no entanto sabemos ser cognato do inglês get, “pegar, obter”. Ambos radicam no indo-europeu *ghed-, “pegar”.

Observe que, diferentemente de um presidiário ou detento, um prisioneiro não é necessariamente um criminoso, mas qualquer um que se encontre preso, como, por exemplo, um soldado inimigo numa guerra ou a vítima de um sequestro.

E já que falei em presidiário e detento, o primeiro deriva de presídio, do latim praesidium, “guarnição, guarda”. E praesidiarius em latim era o soldado colocado em postos avançados. Portanto, um presídio era em princípio um lugar de segurança, vigiado por guardas, logo um bom lugar para manter prisioneiros. Já em alemão, Präsidium significa “presidência”.

Por outro lado, detento vem do particípio latino detentus do verbo detinere, “deter”. Então detento quer dizer “detido”. Curiosamente, na linguagem penal brasileira, deter é diferente de prender: uma pessoa pode ser detida para averiguação e, assim, permanecer algumas horas numa delegacia de polícia; já o preso será necessariamente encarcerado. Mas o detento é alguém que está preso e não apenas detido.

Outro dado interessante: ao passo que em português usamos o verbo prender, outras línguas utilizam no mesmo caso o verbo correspondente a arrestar (francês arrêter, inglês arrest, italiano arrestare, alemão arretieren). Enquanto isso, no Direito brasileiro arrestar significa sequestrar um bem, colocá-lo à disposição da Justiça.

E cárcere vem do latim carcer, cuja primeira acepção é “barreira que forma a pista por onde devem seguir os carros”, portanto uma espécie de murada ou alambrado nas laterais de uma estrada. Outra acepção latina é “recinto de onde partem os carros numa corrida”. Como se vê, carcer tem a ver com carrus, “carro” em latim. Mas dessas acepções de “muro” ou “recinto murado” saiu o sentido de “prisão”.

Por último, temos a expressão politicamente correta inventada para denominar os presos: pessoa privada de liberdade. Como toda expressão politicamente correta, ela se refere a pessoa, neutralizando os gêneros. E, em vez de fazer referência à condição de preso, ela remete ao conceito de liberdade, ainda que para negá-lo. É o mesmo processo que denomina o cego como não vidente, o surdo como não ouvinte e, quem sabe, um dia desses passará a designar os mortos como não vivos.

O estilo “Carluxo” de Bolsonaro

Leio num site de notícias que no debate de hoje à noite na Rede Globo Bolsonaro deverá adotar o “estilo Carluxo”, isto é, aquela atitude mais radical, raivosa e aguerrida que, por sinal, notabilizou o presidente desde sempre e que contrasta com a imagem “Bolsonarinho paz e amor” que às vezes seus marqueteiros tentam vender ao eleitorado.

Esse tipo de postura política ganhou o nome de Carluxo por referência ao filho do presidente, Carlos Bolsonaro, principal idealizador e incentivador dessa postura, e cujo apelido – não sei se usado por ele próprio ou se a ele impingido pela imprensa – é um diminutivo carinhoso de Carlos. O que chama aqui minha atenção é a grafia com x desse apelido, a meu ver inadequada. Se a alcunha é utilizada pelo próprio Carlos e por seus íntimos, resta saber se o próprio filho do presidente a grafa com x. Se o faz, é um direito seu. Mas, se não, ou seja, se o apelido lhe foi dado pela mídia, então temos aí um deslize ortográfico. É que ‑ucho é um sufixo diminutivo, por vezes afetuoso, que ocorre em palavras como gorducho, pequerrucho, capucho, fofucho e outras e cuja grafia correta é com ch e não com x (falei semana passada sobre a questão da grafia com x ou ch de imbroxável; este é mais um caso em que a língua portuguesa nos coloca em situação de insegurança).

Mas por que o sufixo ‑ucho é com ch e não com x? Mais uma vez, temos de recorrer à etimologia para explicar. Acontece que esse sufixo é um empréstimo do sufixo diminutivo italiano ‑uccio, por sinal muito frequente em nomes de pizzarias como Micheluccio, Freduccio, etc. (Atenção: isto não é merchandising de pizzarias, ok?) Em italiano, o cc seguido de i soa como /tch/, portanto a pronúncia desse sufixo é /utcho/. Quando aportou em terras portuguesas, lá pelo século XVI, formando os primeiros derivados, o ch português também tinha som de /tch/, logo a transcrição de ‑uccio por ‑ucho foi natural. Somente tempos depois foi que o ch português perdeu o som /tch/ e assumiu a pronúncia atual, que se confunde com a do x. Mas a ortografia manteve o ch mesmo assim, pois nosso sistema é parcialmente fonético (melhor seria dizer fonológico) e parcialmente etimológico. É por isso, por exemplo, que eliminamos o h dos dígrafos th, rh, ph, mas mantivemos o h de hora, hoje, etc.

Conclusão: o colérico filho de Bolsonaro deveria ser Carlucho e não Carluxo. A menos que o próprio, como disse acima, prefira a grafia com x. Aí é uma escolha dele, e ninguém tem nada com isso.

Bom debate hoje à noite!

A realeza da língua

Como pesquisador da história das línguas e, mais especificamente, de suas palavras, sempre me interessei pelo estudo da língua que deu origem à maior parte dos idiomas europeus, inclusive o português, e por isso volta e meia falo dela: o indo-europeu. Mais ainda, quando abordo a origem das palavras do português, sempre gosto de recuar no tempo até o Cáucaso de 6 mil anos atrás e trazer a origem primeira de nossas palavras, qual seja, a raiz indo-europeia que lhes serviu de berço.

Diante do falecimento da rainha Elizabeth e consequente ascensão ao trono de seu filho Charles III, quero falar sobre uma raiz que foi muito produtiva nas línguas da Europa e, sem dúvida, na nossa e que tem tudo a ver com reis. Trata-se da raiz *rēĝ- (na verdade, *h3rēĝ- nas reconstruções mais recentes do indo-europeu). É uma raiz verbal que significa “conduzir, reger, liderar”, mas produziu também o adjetivo (particípio) *h3reĝtós, que quer dizer “reto” (já deu para perceber o que isso tem a ver com o português, né?).

Pois é, essa raiz deu palavras em muitas línguas indo-europeias, como o sânscrito, o persa, o grego, o russo, o lituano, o gaélico, mas o que nos interessa aqui são os vocábulos que passaram ao latim e deste ao português. O primeiro deles é rex, genitivo regis, cujo significado é “rei” (literalmente, “condutor, líder”) e que tem como feminino regina, “rainha”. Um cognato germânico dessa palavra é *riks, que aparece nos nomes próprios Érico, Frederico, Henrique e Rodrigo, dentre outros. Por exemplo, Teodorico é “rei do povo”, de *theudo, “povo”, e *riks, “rei”. E o nome próprio português Régis vem do genitivo de rex e significa “do rei”.

De rex saíram regalis, “real”, regius, “régio”, e regnum, “reino”. De real brotaram realeza e realista (isto é, adepto do rei, da monarquia). E de reino vieram reinar, reinado, reinante.

Mas a raiz *h3rēĝ- também produziu o verbo latino regere, “reger”, e seus derivados dirigere, “dirigir”, erigere, “erigir, erguer”, e corrigere, “corrigir”. Em todos há a ideia de linha reta, de direção (para frente ou para cima). E reto se liga à ideia de “certo, justo”. Logo, corrigir é tornar certo (fala-se na vida reta como aquela sem vícios, uma vida certa, correta, justa, bem como se fala da retidão de caráter). A ideia de linha reta também aparece em régua, que permite desenhar linhas retas, e regra, aquilo que dirige uma atividade.

Mas dos verbos acima vieram outras tantas palavras em nosso idioma: direito, direto, direção, diretor, diretriz, diretiva, dirigente, endireitar, correção, corretor, correto, corregedor, corregedoria, escorreito, ereção, ereto, regente, regência, reitor, reitoria, retificar, retificação, e até mesmo termos insuspeitos como endereçar, endereço, adereçar e adereço.

No antigo germânico, *h3reĝtós resultou em *rehtaz, que é a origem do inglês right e do alemão recht, “direito, certo”. O alemão também tem richtig, de mesma origem e mesmo significado.

Em francês, o latim directus, particípio de dirigere, produziu droit, que aparece no lema da monarquia britânica Dieu et mon Droit, “Deus e meu Direito”, ao passo que indirectus gerou o substantivo endroit, “lugar, local” (originalmente, “endereço”).

Mas o latim vulgar não documentado *directiare passou ao francês dresser, “endireitar, arranjar”, que por sua vez chegou ao inglês como to dress, “arranjar, adornar” e, por conseguinte, “vestir”, donde o substantivo dress, “vestido”.

E de dresser o francês criou por prefixação adresser, “endereçar”, e seu derivado adresse, “endereço”, que, mais uma vez, foram dar em inglês o verbo e o substantivo address.

Em linha reta ou às vezes fazendo algumas curvas, a raiz indo-europeia chegou até nós e enriqueceu muito nosso vocabulário. Ah, e antes que eu me esqueça, enriquecer vem de rico, do germânico *rikjaz, “régio, digno de rei”. Como é rica a história das palavras, não?

Um esclarecimento sobre o “imbrochável”

Há alguns dias, publiquei um artigo sobre a correta grafia do neologismo bolsonarista imbroxável. Desde então, tenho recebido vários comentários, alguns dos quais mal-educados e agressivos, que nem me dou ao trabalho de responder, argumentando que certos dicionários abonam a grafia brocha (com ch) com significado de “pincel”. Nesse caso, segundo esses dicionários, broxa (com x) é somente “pincel”, mas brocha (com ch) pode ser “prego” ou “pincel”.

É preciso fazer algumas considerações sobre isso. Em primeiro lugar, até a reforma ortográfica de 2009, os dicionários registravam exclusivamente broxa, “pincel”, e brocha, “prego”. Num primeiro momento, imaginei que talvez essa tendência de considerar que brocha também pode ser “pincel” fosse uma inovação introduzida pelo Acordo Ortográfico de 1990, implantado no Brasil em 2009. Por isso, fui consultar o VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, no site https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario. Pesquisando por brocha, encontro: brocha s.f. “prego”, etc.; cf. broxa “pincel”. Já ao pesquisar por broxa, encontro: broxa adj. 2g. s.f. “pincel” s.m.; cf. brocha “prego”, etc.

Como podemos ver, o VOLP distingue claramente os significados de brocha, “prego” e de broxa, “pincel”. Mais ainda, indica que broxa é substantivo feminino (referente a “pincel”), bem como adjetivo de dois gêneros e substantivo masculino (referente ao indivíduo sexualmente impotente). No verbete brocha, temos cf. (isto é, “confira”) broxa “pincel”. E no verbete broxa, temos cf. brocha “prego”. Fica claro que as duas grafias correspondem a dois significados distintos. E que em cada verbete o VOLP remete ao outro verbete, de grafia e significado diferentes.

Portanto, quando edições pós-reforma ortográfica de dicionários estabelecem que brocha (com ch) significa tanto “prego” quanto “pincel” e põem ambas as acepções no mesmo verbete, ao mesmo tempo em que desaconselham a grafia broxa (com x), temos aí vários problemas.

O primeiro é que não cabe ao dicionário proscrever uma grafia: ou ela é válida porque reconhecida pelo VOLP ou é inexistente. Ora, a grafia broxa consta no Vocabulário Ortográfico, logo é válida e sua interdição pelos dicionários é indevida.

Em segundo lugar, temos o problema etimológico. Broxa vem do francês brosse, que quer dizer “pincel”. Já brocha vem do francês broche, que significa “broca, tacha, prego, fuso de tear” e também “broche” (tendo dado, por sinal, a palavra broche em português). Logo, a diferença de grafia se justifica, afinal o ch francês passa ao português também com ch (veja, por exemplo, chauffeur > chofer), ao passo que ss corresponde em português ora a ss mesmo ora a x (francês passer x português passar, francês caisse, coussin x português caixa, coxim).

Mesmo que a reforma ortográfica tivesse instituído a substituição da grafia broxa por brocha – o que, a meu juízo, não fez –, os vocábulos brocha, “pincel”, e brocha, “prego”, teriam de constituir dois verbetes separados. Dito de outro modo, não seriam duas acepções da mesma palavra e sim duas palavras homônimas. Portanto, os dicionários “moderninhos” erram também aí.

Por fim, se, por absurdo, admitíssemos que os dois significados do termo pertencem à mesma palavra, teríamos o único caso na língua portuguesa de palavra única com duas grafias possíveis e autorizadas. O que temos em nosso idioma e também em muitos outros são palavras homógrafas (mesma grafia e pronúncias diferentes), como leste (do verbo ler) e leste (ponto cardeal), palavras homófonas (mesma pronúncia e grafias diferentes), como concerto e conserto, palavras homônimas (mesma grafia e pronúncia, mas significados e etimologias distintas) como manga (fruta, do malaio) e manga (de camisa, do latim). Temos ainda os chamados alomorfes, palavras de grafia e pronúncia parcialmente diferente, mas com significado idêntico. É o caso de loiro e louro, catorze e quatorze. Aproveito aqui para alertar que alguns dicionários chamam a esses alomorfes de formas divergentes, o que é errado: formas divergentes, alótropos ou dobretes são palavras totalmente distintas, com mesma origem mas étimos (isto é, trajetórias de chegada à língua) diferentes. São formas divergentes aurícula e orelha; desígnio e desenho; prumo e chumbo; defensa, defesa e devesa; plano, porão, piano e chão, dentre outros.

Em resumo e como resposta aos leitores que me advertiram de que eu estaria errado – alguns, como disse, de modo rude e contrário aos princípios da civilidade –, reafirmo que broxa é pincel, brocha é prego e que imbroxável no sentido dado por nosso histriônico presidente é com x e apenas com x. E tenho dito!

Monarquia ou república?

Desde o falecimento da rainha Elizabeth II do Reino Unido e a consequente ascensão ao trono de seu filho, o agora rei Charles III, vem ganhando corpo naquele país o debate sobre o possível fim da monarquia britânica. Pesquisas mostram que cerca de 40% dos britânicos são republicanos, e hashtags como #notmyqueen e #notmyking pulularam nas redes sociais nestes últimos dias.

Sem dúvida, a república é um regime de governo mais moderno que a monarquia, tanto que a maior parte dos países do mundo foi monárquica até o século XIX e, desde então adotou o sistema republicano.

No entanto, gostaria de fazer algumas considerações sobre essa possível opção entre monarquia e república que a eventual impopularidade do novo soberano britânico pode quem sabe levar seus súditos a ter de fazer dentro de algum tempo.

Antes de mais nada, quero esclarecer que não sou monarquista e, apesar do clima romântico que a monarquia brasileira inspirou e que até hoje rende telenovelas de época de grande sucesso, penso que o Brasil teria se desenvolvido mais se tivesse sido uma república desde a Independência. Mas há alguns fatos a serem analisados e ponderados.

Em primeiro lugar, alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, como Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Japão, são monarquias, e não parece que os povos dessas nações estejam descontentes com seus soberanos. Nesses países, o índice de defensores da república é baixo, talvez porque o custo financeiro desses regimes seja menor que o da coroa britânica. De fato, a principal reclamação dos súditos de Charles III diz respeito ao fausto em que vive a família real sustentado pelo dinheiro dos contribuintes – embora há já algum tempo a realeza pague impostos. De todo modo, essas monarquias que citei estão entre os países mais ricos do mundo, perfeitamente capazes de custear esse regime sem prejuízo da qualidade dos serviços públicos. O fato é que, enquanto a pequena parcela mais rica e desenvolvida da humanidade é governada por reis, a imensa maioria dos países mais pobres do mundo é de repúblicas, muitas delas comandadas por ditadores.

Outro fato que talvez explique a antipatia de parcela do povo britânico pela sua monarquia são os escândalos em que volta e meia a família real se envolve. Mas escândalos não são exclusividade da realeza, é bom lembrar. Aliás, o Brasil republicano é pródigo neles.

Por outro lado, a monarquia britânica, com seus rituais de troca da guarda, passeios do monarca em carruagem dourada pela cidade, aparições públicas do soberano na sacada do Palácio de Buckingham, além da existência de palácios e castelos, soldados com fardas belíssimas, títulos de nobreza, etc., tudo isso atrai turistas do mundo inteiro e, por conseguinte, gera renda ao país. É bem verdade que parte dessa renda vai para a própria família real, que licencia produtos – canecas, chaveirinhos, camisetas e outros souvenirs – com a imagem da rainha ou o brasão real, mas, em vez de acabar com a monarquia, bastaria transferir para o estado essa arrecadação. Para se ter uma ideia, a realeza britânica é uma das marcas de maior valor agregado que existem. Se fosse uma empresa, seria uma das mais caras do mundo.

Outro aspecto a ser considerado e que explica a grande atração e fascínio que esse regime exerce é o próprio imaginário popular, muito ligado a reis, rainhas, príncipes e princesas. Aqui no Ocidente, fomos governados por monarcas por pelo menos 2 mil anos, desde o Império Romano, passando pelos reinos europeus medievais, com suas histórias de cavalaria, depois pelas monarquias absolutistas da Idade Moderna, representadas nos romances de capa-e-espada como Os Três Mosqueteiros, até chegarmos às monarquias nórdicas da atualidade. Esse sistema de governo e todo o estilo de vida a ele ligado ainda está tão impregnado em nós que até hoje ninguém chama a um filho pequeno de “meu presidentinho” ou “minha primeira-daminha”: ainda são os príncipes e princesas que nos fascinam e é como eles que as crianças gostam de se fantasiar nas festas infantis. E ainda são contos de fada com príncipes e princesas que contamos aos nossos filhos.

Há ainda a questão da estabilidade política que o regime monárquico proporciona. Em países governados por soberanos, é raro vermos crises institucionais, ameaças de golpe ou coisa parecida. É claro que há reinos e reinos. Uma coisa é a Grã-Bretanha, cujos 70 anos de reinado de uma rainha Elizabeth carismática e popular garantiram essa estabilidade, muito embora a última revolução ocorrida na Inglaterra tenha se dado no século XVII. Outra coisa são reinos como a Tunísia, a Arábia Saudita e a Tailândia. Mas o que pesa aí não é o regime em si, é o nível de desenvolvimento do país. Em outras palavras, nações subdesenvolvidas estão sujeitas a conviver com a instabilidade política qualquer que seja o sistema de governo. Ademais, o risco de corrupção num reinado é menor do que numa república: reis já são ricos e desfrutam dessa riqueza de forma vitalícia, portanto não precisam desviar dinheiro público.

Por sinal, a monarquia britânica tem sido até hoje a responsável por manter o Reino Unido unido, isto é, por impedir a desagregação do estado em face de separatismos como o escocês, por exemplo.

De todo modo, a troca constante de governantes, própria do regime republicano, gera sempre mais instabilidade, especialmente em países como o Brasil, em que é costume cada novo mandatário desfazer todas as realizações de seu antecessor, não necessariamente porque não fossem boas, mas por puro revanchismo político.

Em estados como o Reino Unido, cujo sistema de governo é parlamentarista, o papel do rei é puramente simbólico, assim como também o seria o de um presidente da república. Basta ver que em repúblicas parlamentaristas como Portugal, Itália e Alemanha o presidente pouco apita. Nesse caso, que diferença faria trocar o rei por um presidente? Aliás, grande parte da culpa que se atribui aos monarcas ingleses pelos desmandos do Império Britânico – exploração colonialista, escravidão, roubo de relíquias históricas das colônias – cabe na verdade aos primeiros-ministros do Império, os reais governantes a perpetrar essas barbaridades. Por sinal, a França, republicana desde 1870, cometeu os mesmos abusos em suas colônias.

Por fim, vale lembrar que, se a grande queixa dos republicanos britânicos é o alto custo da monarquia, repúblicas também custam caro. Basta ver os gastos do governo norte-americano com seu presidente em termos de segurança, mas também de cerimonial. Aliás, o estado republicano brasileiro é um dos mais caros do mundo – haja vista o quanto pagamos de impostos – a despeito da pobreza da maior parte de nossa população e dos péssimos serviços públicos oferecidos em troca. Fica aí uma questão para se pensar.

Rei Charles ou rei Carlos?

A recente ascensão do príncipe Charles, filho primogênito da falecida rainha Elizabeth II do Reino Unido, ao trono britânico, fez com que toda a imprensa brasileira passasse a chamá-lo de rei Charles III (houve dois outros monarcas ingleses com esse nome antes dele).

Em Portugal, o príncipe foi chamado de Carlos desde sempre, assim como a rainha era Isabel II, e os filhos de Charles, a saber, William e Harry, são Guilherme e Henrique. O mesmo princípio de tradução de nomes de soberanos vale para os países de língua espanhola, francesa, italiana e alemã.

Mesmo no Brasil é costume referir-se aos monarcas  e papas pelas traduções portuguesas de seus nomes originais. Assim, falamos do rei Luís XIV de França, de Henrique VIII de Inglaterra, do imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico, do papa João Paulo II, e assim por diante. Inclusive os dois supracitados reis ingleses homônimos de Charles são conhecidos no Brasil como Carlos I e Carlos II. Portanto, o mais lógico seria que desde já passássemos a nos referir ao novo rei da Grã-Bretanha como Carlos III e não como Charles III. Aliás, a expressão “rei Charles”, que tem sido veiculada na mídia falada (rádio, TV e podcasts), gera certa confusão com Ray Charles, o famoso cantor americano de rhythm’n’blues e soul.

Quanto a Elizabeth, poderia ter sido aportuguesado para Elisabete, uma vez que o nome em inglês da rainha Isabel de Castela é Isabella e não Elizabeth, o que indica que se trata de dois nomes distintos, ainda que tenham a mesma origem hebraica. O mesmo ocorre com Diogo, Diego, Tiago, Iago, Jaime e Jacó, que são nomes diferentes (por exemplo, ninguém se refere a Santiago como São Jaime ou São Jacó), embora se originem todos do hebraico Ya’akov.

Imbrochável ou imbroxável?

O coro de apoiadores de Bolsonaro que, no último Sete de Setembro, entoou o grito “imbroxável, imbroxável” suscitou, além de perplexidade em muitas pessoas, algumas dúvidas linguísticas. Primeira: essa palavra existe? Segunda: qual a sua origem? Terceira: a grafia correta é imbrochável ou imbroxável?

Primeiramente, é preciso dizer que, ao contrário do que afirmam muitos gramáticos, uma palavra existe na língua a partir do momento em que é criada e passa a ser usada socialmente. Essa nova palavra, que ainda não consta nos dicionários, é chamada de neologismo. Nesse sentido, pode-se dizer que Bolsonaro e os bolsonaristas criaram um neologismo. Se ele sobreviverá a ponto de ser dicionarizado ou se desaparecerá após algum tempo como moda passageira, só a história dirá. Muitos neologismos são assim criados como termos da moda (vide as gírias dos jovens) e, meses depois, caem em desuso. É a lei da seleção natural agindo sobre as palavras como age sobre os seres vivos. Algumas sobrevivem e até deixam descendentes (palavras derivadas, por exemplo), outras morrem e por vezes nem deixam vestígio.

Quanto à origem da palavra imbroxável, é um derivado parassintético do verbo broxar (parassíntese é um processo de derivação que consiste em prefixar e sufixar a palavra primitiva ao mesmo tempo). Trata-se de um termo um tanto chulo para designar a perda da ereção do pênis durante a relação sexual. Logo, imbroxável é o indivíduo que supostamente (apenas supostamente) nunca broxa.

E broxar, de onde vem? Vem de broxa. E broxa, todos sabem, é aquele pincel graúdo que os pintores usam para pintar paredes, especialmente com tinta à base de cal. A relação entre a broxa de pintura e a disfunção erétil é bem sugestiva: quando o pintor mergulha a broxa na tinta e depois a retira da respectiva lata, os pelos do pincel arqueiam todos para baixo sob o peso da tinta impregnada neles.

Como o leitor deve ter percebido, até o momento utilizei broxa, broxar e imbroxável com x, mas também existe em português a brocha com ch, só que com outro significado. Brocha é um tipo de prego, ao passo que o pincel se grafa broxa. Essa é mais uma das pegadinhas do nosso idioma que podem representar uma casca de banana no caminho de vestibulandos e concurseiros. Brocha e broxa são denominadas palavras homófonas, isto é, que têm a mesma pronúncia, mas grafias diferentes.

Portanto, se imbroxável deriva de broxar, e este de broxa, a grafia correta do primeiro é com x e não com ch, como tem saído na imprensa.

Motociata ou motosseata?

Neste Sete de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez promoveu uma motociata – e mais uma vez sem usar capacete –, o que, por sinal, se tornou marca registrada de seu governo. Tanto que essa prática até plasmou a própria palavra motociata, uma passeata de motocicleta. Mas quem consolidou a grafia do termo foi a imprensa escrita. E de maneira errada.

Em primeiro lugar, voltemos à palavra passeata, a primeira da família que surgiu em nosso idioma, como empréstimo do italiano passeggiata, “passeio”, derivada do verbo passeggiare, que, como o nosso passear, remete ao primitivo vocábulo passo. Ou seja, trata-se de um percurso cumprido a pé, dando passos. O que o português fez foi aclimatar o termo italiano ao nosso idioma, substituindo o radical original do verbo passeggiare pelo do verbo vernáculo passear. Em ambas as línguas, a palavra passou em certo momento a designar um deslocamento coletivo, especialmente para protestar ou comemorar.

Quando essas passeatas de celebração ou protesto passaram a ser feitas de carro, cunhou-se o termo carreata utilizando o mesmo sufixo ‑ata de passeata. Agora que Bolsonaro introduziu o hábito de fazer passeatas de motocicleta, o lógico é que se fizesse um mix (chamado de palavra-valise) de moto e passeata, que resultaria na grafia motosseata e não motociata, como trazem a mídia impressa e a eletrônica.

Será que quem cunhou essa grafia motociata estava pensando em negociata, por exemplo? Não seria estranho em se tratando do governo Bolsonaro e seus aliados do Centrão ou da quantidade de imóveis que sua família comprou com dinheiro vivo. Mas não deve ter sido esse o caso. Acho mais provável creditar essa grafia esquisita à ignorância do jornalista que deu à luz o termo, seguida da ignorância dos jornalistas que o replicaram. O problema é que, uma vez consolidada uma grafia errada, leva tempo para consertá-la. Haja vista o tempo que demorou para que as pessoas entendessem que grafar mussarela com ss era errado e começassem a escrever muçarela corretamente com ç.

*-*-*

Em tempo: como brasileiro, me sinto envergonhado pelo papel ridículo que fizemos mais uma vez perante o mundo na comemoração dos 200 anos da independência. “Imbrochável”, comparação machista entre primeiras-damas, uso da cerimônia para fazer campanha política em vez de saudar a importância da data, menosprezo ao convidado de honra da solenidade, o presidente de Portugal, posto no palanque em posição secundária enquanto a lateral do presidente Bolsonaro era ocupada por um Luciano Hang fantasiado de Zé Carioca… Enfim, nenhum respeito à liturgia e às responsabilidades do cargo de Presidente da República, ainda mais em data tão importante e que só se repetirá daqui a 100 anos. Que lástima!

Programas, shows e concertos

Uma das coisas mais interessantes que a linguística nos ensina é que cada língua, espelho de uma cultura, “recorta” a realidade de modo diferente, mesmo quando se trata de línguas muito próximas, que partilham em grande parte uma mesma visão de mundo, como é o caso das línguas europeias.

Um exemplo disso é o curioso caso das palavras programa, show e concerto. Para nós brasileiros, a primeira representa um espetáculo de televisão, seja um musical, uma série, um documentário, uma atração humorística ou “de auditório”, como se diz. Já a segunda é para nós essencialmente um espetáculo de música popular a que se assiste num teatro ou casa de espetáculos (mais raramente num ginásio ou estádio) e que pode eventualmente ser transmitido pela TV. Finalmente, a terceira é um espetáculo de música erudita – também chamada de música clássica, sinfônica ou de concerto –, seja ele presencial ou televisionado.

Em contraste, a língua inglesa raramente emprega program (ou programme) para programas de TV: o usual nesse caso é falar-se em TV show. Em compensação, o que aqui chamamos de show lá nos países de língua inglesa eles chamam de concert, isto é, “concerto”. Igualmente, os concertos de música erudita são concerts para os anglofalantes. O que, a meu ver, faz todo o sentido. Afinal, até o século XIX havia uma clara distinção entre a música erudita, que tinha esse nome justamente por ser consumida pela elite econômica e cultural da sociedade, e a música popular, essencialmente tocada e dançada nos folguedos e festas populares com instrumentos rústicos como pandeiro e banjo.

Naquela época, a música chamada erudita tinha nomes como “Concerto n.º 1 para piano e orquestra opus 31” e era executada em um teatro centenário, com acústica que dispensava microfones e amplificadores, por uma orquestra sinfônica composta de músicos trajando casaca e regida por um maestro que ficava de costas para a plateia. Enquanto isso, a música popular eram valsinhas e modinhas ou então aquilo que hoje chamamos de música folclórica (coco, caboclinho, maracatu, xote, catira, vanerão, fandango, polca, tarantela) e tinha nomes como “A primeira vez em que te vi”, “Não te apartes de mim, ó, linda dama”, e outras cousas do gênero.

O fato é que, a partir do século XX, quando a música sinfônica descamba para coisas como música estocástica e música eletroacústica, utilizando até utensílios como panelas, bigornas e folhas de zinco como instrumentos musicais, e a música popular se torna um conjunto de gêneros muito diferentes entre si, como jazz, tango, bolero, rumba, salsa, merengue, samba, MPB, rock, pop, soul, blues, rhythm’n’blues, funk, dance, house, lounge, K-pop, world music, etc., utilizando orquestras, instrumentos eletrônicos e produções milionárias, fica difícil dizer o que é erudito e o que é popular. Ou seja, atualmente existe apenas música, e a própria música sinfônica ou de concerto se tornou apenas mais um dentre os muitos gêneros que encontramos nas lojas de discos (as que ainda existem, evidentemente) e nas plataformas de streaming.

Hoje, temos o jazz moderno e a música instrumental em geral, além de música new age, jazz-rock, rock progressivo e rock sinfônico, que se aproximam muito da música erudita. Aliás, muitos arranjos do pop internacional e da MPB abusam de elementos sinfônicos, como naipe de cordas ou metais, piano, cravo, órgão, harpa, tímpanos, enquanto músicos sinfônicos compõem peças para sintetizadores, guitarra elétrica, violão, cavaquinho, etc. Isso sem falar de arranjos sinfônicos para canções populares, tipo The Royal Symphony Orchestra Plays Beatles. E sem falar também que compositores populares como Paul McCartney, Robin Gibb e Francis Hime já enveredaram pelos concertos e sinfonias.

Temos ainda as trilhas sonoras incidentais de filmes, compostas por mestres como John Williams, Ennio Morricone, Nino Rota, Michel Legrand e outros grandes nomes com formação erudita e tocadas por orquestras sinfônicas. Temas como os de Indiana Jones, E.T. e Superman são verdadeiras sinfonias.

Ao mesmo tempo, quão populares são Tom Jobim, Burt Bacharach ou Yanni? Dá para metê-los no mesmo balaio de Zeca Pagodinho, Anitta, Michel Teló e Bonde do Tigrão?

Ou seja, voltamos ao que a música era na Antiguidade e Idade Média: uma única forma de arte e uma única profissão, a de músico, que apenas se divide em gêneros por razões estéticas. Sempre haverá aquela música que agrada mais ao ouvido apurado do ouvinte culto e refinado e aquela que agita as multidões, o chamado “povão”. Mas também sempre haverá literatura, teatro, cinema, dança, teledramaturgia e artes visuais para todos os gostos. No entanto, Marcel Proust e cordel nordestino são apenas literatura e não literatura erudita e literatura popular. O mesmo se diga de Leonardo da Vinci e dos grafittis de rua (é bem verdade que, na dança, ainda há quem distinga entre balé clássico e balé moderno, mas as companhias de dança de hoje em dia sabiamente misturam as duas coisas, e as escolas de dança atualmente formam bailarinos versáteis).

Por isso, certos estão os ingleses e americanos, que chamam qualquer espetáculo de música, das sinfonias de Beethoven ao rap de Eminem, de concerto. Afinal, as palavras ganham novos significados conforme evolui a sociedade. Por exemplo, hoje um estúdio é um local onde se gravam discos, vídeos, filmes e novelas e também se fazem fotos e produtos gráficos enquanto, no passado, um estúdio era, como diz o próprio nome, o lugar onde se estuda – um misto de biblioteca e escritório. De uma década para cá, estúdio passou também a ser um nome chique para apartamento conjugado ou quitinete. O mundo muda, a língua muda junto. Simples assim.

Racionalidade, não racionalidade e irracionalidade

A semiótica, ou ciência da significação, é um poderoso instrumento de explicação e compreensão do sentido – tanto explícito quanto oculto – dos discursos. E para cumprir esse objetivo, uma das ferramentas da chamada semiótica greimasiana (proposta inicialmente pelo estudioso lituano Algirdas Julien Greimas) é o quadrado lógico-semiótico. Segundo sua teoria, todo discurso e, por extensão, toda ação humana (que para ele é discurso) se apoia na tensão dialética entre opostos. Seu quadrado semiótico baseia-se no quadrado lógico de Aristóteles, cujos vértices superiores representam dois conceitos contrários (por exemplo, vivo e morto), ao passo que cada um dos vértices inferiores representa o contraditório do atributo situado no vértice superior diametralmente oposto. Seriam eles, respectivamente, não morto e não vivo. Como é óbvio, um ser animado só pode estar num dos estados vivo ou morto. Já um ser inanimado, como uma caneta ou uma pedra, não está nem vivo nem morto.

Para compreender semioticamente a psique humana, vamos colocar nos vértices superiores do quadrado os contrários racionalidade e irracionalidade; teremos então quatro combinações possíveis de situações, conforme a figura abaixo.

Como podemos ver, a não racionalidade, contraditório da racionalidade, não é o mesmo que a irracionalidade. Quando dizemos que os animais são irracionais, na verdade queremos dizer que são não racionais, isto é, não agem segundo a razão, o raciocínio lógico (tenho sérias dúvidas disso); já irracional é toda atitude contrária à razão, como rasgar dinheiro, por exemplo.

A não irracionalidade é o estado de quem está, digamos assim, em seu juízo perfeito. É o que podemos chamar de sensatez ou equilíbrio mental. Já a não racionalidade envolve aqueles processos em que somos guiados por outras instâncias da mente, como a intuição e a emoção. Dito em outros termos, racionalidade é pensar com a cabeça, ao passo que não racionalidade é pensar com o coração. Todos nós fazemos ambas as coisas dependendo da situação. Ninguém responde a uma prova de matemática pensando com o coração: “Vou escolher a alternativa b) porque é a equação mais bonita” (até há alguns vestibulandos que fazem isso, mas não aconselho). Igualmente, ninguém é racional quando está apaixonado. Declarar seu amor ao ente amado com a cabeça em vez do coração certamente não funcionará.

Como resultado, quando somos racionais e não irracionais, portanto, sensatos, estamos no domínio da razão. Já quando não somos nem racionais nem irracionais, somos emocionais: estamos no domínio da emoção, do sentimento.

E quando alguém é ao mesmo tempo irracional e não racional? Essa pessoa está naquele estado que chamamos de loucura: só emoção, nenhuma razão, nenhuma sensatez. Essa loucura a que me refiro aqui não é só a condição patológica identificada pelos psiquiatras como psicose, aquilo que leva muitas pessoas a uma internação em clinicas psiquiátricas e manicômios (nos países em que ainda existem); trata-se na verdade de um estado em que todos nós podemos nos encontrar em determinados momentos da vida. Aquele indivíduo que vê seu bem mais precioso, que levou a vida inteira para conquistar, ser tomado por um assaltante e se atraca com o criminoso sem pensar que pode perder a vida se encontra nesse estado de loucura transitória. Aquele sujeito que, diante de uma situação banal como um arranhão em seu carro ou uma fechada no trânsito, parte para a agressão ou mesmo saca uma arma e mata também está nesse estado. Quem se encontra em depressão profunda e tenta o suicídio, idem. Quem frequenta um culto religioso cujo pastor grita histericamente durante vários minutos, onde se toca e canta música alta e repetitiva até que todos entrem em transe, costuma experimentar esse estado – sim, semioticamente falando, o transe é uma espécie de loucura, que, no caso em questão, leva facilmente o indivíduo a doar dez por cento de sua renda à igreja, dinheiro com o qual o pastor vai comprar sua mansão, seu jatinho particular, seu canal de televisão e vai formar sua bancada no Congresso Nacional. Ou seja, o fanatismo, quer religioso, quer político ou futebolístico, é uma forma perigosa de loucura.

Se razão é pensar com a cabeça e emoção é pensar com o coração, a loucura é o não pensar, o agir sem pensar, o agir por impulso, por instinto ou por perda das faculdades mentais.

Como se pode ver, a semiótica é um instrumento poderoso de explicação da realidade.

Latente e patente

Cada vez mais escuto dizer de algo muito evidente que “está latente”. Outro dia ouvi no rádio que a vitória de Lula nas próximas eleições é um fato latente. E também que é latente a constatação de que há corrupção no governo Bolsonaro. Só que, querendo dizer uma coisa, as pessoas estão dizendo exatamente o contrário. Na verdade, latente quer dizer “oculto, não manifesto, não evidente”. O que as gentes estão querendo dizer é que a vitória do petista e a corrupção no governo do “mito” são fatos patentes. Sim, patente é aquilo que está exposto para todos verem, escancarado mesmo, aquilo que até cego enxerga.

Por pura obra do acaso, o latim patens, particípio presente do verbo patere, “estar aberto, exposto”, que deu patente em português, rima com latens, particípio presente do verbo latere, “estar escondido”, origem do nosso latente.

Essas confusões entre palavras não são raras. Já presenciei muitas pessoas empregarem o adjetivo lívido, que quer dizer “escuro, da cor de chumbo, cinza-chumbo”, no sentido de pálido, isto é, “branco”. Talvez a confusão seja motivada por termos de sonoridade assemelhada como vívido e níveo, que normalmente se aplicam a coisas claras. Ou então seja efeito do chamado impressionismo linguístico, em que costumamos atribuir certos sentidos a palavras com certas sonoridades. Em geral, termos que denotam tristeza ou escuridão contêm vogais posteriores e fechadas como o e u. É o caso de turvo, túrbido, plúmbeo, lôbrego, lúgubre, tumba, túmulo, catacumba, soturno, macambúzio, fúnebre, etc. Ao contrário, palavras com a vogal anterior i costumam soar alegres e sugerir cores claras e sons agudos. É o caso dos citados vívido e níveo, e também de pífano, zinir, tinir, tilintar, clique, tuim, tiziu, sino, campainha, tamborim

A realidade é que certos fatos do nosso cotidiano estão é muito patentes e não latentes. Então, leitor, fique atento para não cometer essa gafe e depois ficar lívido – ou melhor, pálido – de vergonha.

Brasileiros e brasileiras

Foi o ex-presidente da república José Sarney quem eternizou a expressão “brasileiros e brasileiras”, com a qual iniciava seus discursos. Antes dele, o general-presidente João Figueiredo dizia apenas “meus amigos”. E Getúlio Vargas começava suas preleções com “trabalhadores do Brasil”.

Hoje, por influência da linguagem politicamente correta e das pautas identitárias, é cada vez mais comum ouvirmos “bom dia a todos e todas”, “Vossas Excelências senadoras e senadores”, e assim por diante. É bem verdade que a expressão “senhoras e senhores” é muito antiga e existe em todas as línguas – quem não conhece o famoso ladies and gentlemen? –, o que indica que a preocupação em abarcar na comunicação homens e mulheres (ou, antes, mulheres e homens) não é nova.

O problema é que, desde que se passou a disseminar a fake news de que o português é uma língua machista porque faz a concordância no plural pelo gênero masculino (por exemplo, brasileiros inclui homens e mulheres nascidos no Brasil), a distinção todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc., passou a ser sentida como uma necessidade e uma forma de deferência ao chamado “sexo frágil” – isto sim uma denominação machista, já que de frágil as mulheres não têm nada!

Tenho ressaltado muitas vezes que essa ideia de que línguas são machistas decorre da confusão que se tem feito entre quatro coisas diferentes: sexo biológico, gênero psicossocial, gênero semântico e gênero gramatical. Mas não custa esclarecer essa diferença mais uma vez.

Sexo biológico é uma característica que todos os seres vivos sexuados têm e é algo que herdamos “de fábrica”, ou seja, praticamente todo animal pluricelular, incluindo nós seres humanos, nasce macho ou fêmea – a única exceção são alguns animais hermafroditas, que são macho e fêmea ao mesmo tempo.

No entanto, o ser humano, por sua complexidade psíquica, desenvolveu paralelamente ao seu sexo biológico a característica de gênero psicossocial, a qual, por sinal, foi ignorada pela ciência durante muito tempo. Ocorre que muitos indivíduos têm uma orientação sexual distinta da majoritária heterossexualidade: são os homossexuais, os bissexuais e os assexuais (não confundir com assexuados, que são animais não dotados da distinção macho/fêmea). Além disso, independentemente de sua orientação sexual, muitas pessoas se reconhecem como transexuais ou transgênero (não recomendo a forma “transgêneras” e já comentei esse ponto em outra postagem), não binárias, gender-fluid e muitas outras denominações, o que tem feito a sigla LGBTQIA+ crescer cada vez mais (a despeito de o sinal + já abrir espaço para novos acréscimos).

Quanto ao gênero semântico, trata-se de como as línguas interpretam – ou interpretaram até hoje – a realidade dos sexos biológicos e dos gêneros psicossociais. Os gêneros semânticos são cinco:

  • masculino (seres animados do sexo masculino): pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);
  • feminino (seres animados do sexo feminino): mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);
  • neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos): caderno, felicidade (A ração dos cachorros acabou);
  • sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado): criança, testemunha, vítima (O animal que vi na rua estava ferido);
  • complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): ser humano, brasileiros, humanidade (O cão é um animal mamífero).

Esses cinco gêneros semânticos se manifestam nas diferentes línguas através dos gêneros gramaticais. Nesse sentido, há desde línguas com quatro gêneros gramaticais, como o sueco (masculino, feminino, neutro e comum) até línguas sem gênero, como o hopi, da América do Norte. O alemão e o inglês têm três gêneros, masculino, feminino e neutro, sendo que em alemão a distribuição dos seres entre esses gêneros é bastante arbitrária (por exemplo, Sonne, “Sol”, é feminino, Mond, “Lua”, é masculino, Mädchen, “menina”, é neutro). Já em inglês, seres com gênero semântico masculino ou feminino têm igualmente gênero gramatical masculino ou feminino (man é masculino e substituível pelo pronome pessoal he, woman é feminino e substituível por she); os demais entes são todos agrupados no gênero neutro. Os gêneros sobrecomum e complexo são frequentemente representados pelo pronome plural invariável they.

Por fim, o português e todas as línguas neolatinas com exceção do romeno têm dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, resultado da convergência entre o masculino e o neutro latinos num único gênero por força da evolução fonética fortuita.

Como resultado, o português subsume nos gêneros masculino e feminino conceitos portadores dos cinco gêneros semânticos e faz a concordância no plural pelo gênero gramatical masculino por uma simples questão de convenção decorrente da evolução histórica do idioma, desprovida de qualquer viés ideológico.

Aliás, justamente por não corresponderem exatamente a nenhum gênero semântico e menos ainda a gênero psicossocial ou sexo biológico, os gêneros gramaticais deveriam chamar-se gênero 1 e gênero 2 ou gênero marcado e gênero não marcado, como sugerem muitos linguistas. Isso acabaria de vez com essa ideia equivocada de que a língua é machista baseada na confusão irrefletida entre gramática, psicologia e biologia. Vou além: a própria denominação gênero dada a uma categoria gramatical deveria ser trocada por outra para não se confundir com a noção de gênero psicossocial. Fica aí a minha sugestão aos colegas linguistas e aos gramáticos.

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Em agosto de 1977, como reação à ditadura militar então vigente, o Prof. Goffredo da Silva Telles Junior leu diante das arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a famosa faculdade do Largo de São Francisco – a hoje histórica Carta aos Brasileiros, um libelo em favor da restauração do estado democrático de direito. Hoje, exatos 45 anos depois, quando nossa democracia volta a ser ameaçada, um novo manifesto é lido no mesmo local, com igual impacto social, desta vez batizado de Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Sinal dos tempos, a nova carta enfatiza a distinção de gênero e gentilmente coloca as mulheres em primeiro lugar. Pelo andar da carruagem, se dentro de mais algum tempo surgir nova ameaça à nossa democracia, terá de ser redigida uma Carta aos Brasileiros, Brasileiras e Brasileires.

Atma, o sopro da vida

Semana passada, falei sobre a etimologia e o significado das palavras mente, alma e espírito. E, como vimos, tanto alma quanto espírito trazem dentro de si a ideia de sopro, o sopro divino que dá vida à matéria de outro modo inerte. E vimos também que a ideia de vida está intimamente ligada à de respiração. Hoje quero falar sobre outro conceito também pertencente à esfera do imaterial que anima a matéria e que igualmente habita o campo semântico do sopro, da respiração e do ar: é o conceito hinduísta de Atma ou Atman.

Em sânscrito, língua sagrada da religião hindu, essa palavra, grafada no alfabeto devanágari como आत्म, significa “alma” ou “sopro vital”. O Atma é o mais elevado princípio humano, a própria essência divina, informe e indivisível. Para alguns filósofos orientalistas, é a própria conexão com Brahman, o Absoluto (aquilo que numa visão monoteísta chamaríamos de Deus, mas que, para as religiões orientais, não tem esse sentido).

Esse termo Atma aparece em Mahatma, “grande alma”, título dado a pessoas que, por meio da vontade e pela evolução espiritual através de muitas encarnações, atingiram um estágio espiritual avançado. O mais famoso dos Mahatmas, como se sabe, é Gandhi, herói nacional indiano.

Mas, como não sou teólogo, filósofo ou cientista da religião, quero aqui falar sobre a etimologia desse termo.

Em primeiro lugar, temos o grego ἀτμός (atmós), “vapor, ar quente”, que nos deu atmosfera, e que se tentou conectar etimologicamente com o sânscrito ātmán, mas parece que atmós, assim como atmís, nada tem a ver com aquela palavra, já que o a longo (ā) do sânscrito pressupõe um e longo (ē) em indo-europeu. De fato, o Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch (Dicionário Etimológico Indo-Europeu), de Julius Pokorny, apresenta a raiz *ēt-mén-, “vento, alma”, como origem tanto do sânscrito ātmán quanto do antigo alto alemão ātum (alemão moderno Atem, “respiração”, atmen, “respirar”).

Portanto, parte-se de uma raiz primitiva *ēt-, já que *-mén é um sufixo (o mesmo que aparece em palavras latinas como abdomen, dictamen, regimen, etc., que nos deram abdômen, ditame, regime, e tantas outras terminadas em ‑me ou ‑men).

Por fim, quem é mais velho deve se lembrar que antigamente havia no Brasil uma fábrica de produtos plásticos e brinquedos chamada Atma.

Corpo, mente, alma, espírito

As palavras que compõem o título desta postagem aparecem com muita frequência em textos de autoajuda, filosofia, religião e espiritualidade, e todas elas já existiam em latim: corpus, mens, anima, spiritus. Aliás, os romanos já tinham um lema que até hoje é muito verdadeiro: mens sana in corpore sano, “mente sã em corpo são”, um estímulo à prática da atividade física como benefício também à mente.

Embora cada um desses vocábulos represente um conceito distinto e bem definido, o fato é que, com exceção do corpo, entidade física e biológica de cuja conceituação ninguém tem dúvida, os demais conceitos por vezes se confundem, especialmente em línguas que não dispõem de todas as quatro palavras como o português. Então tentemos defini-las para mostrar por que seus significados às vezes se sobrepõem.

Segundo a moderna concepção da neurociência, a mente é o cérebro em funcionamento. Mas o produto da bioquímica do cérebro já era concebido como a sede da racionalidade humana bem antes do advento da neurociência. A mente racional é o instrumento do raciocínio e também da imaginação, do devaneio e dos sentimentos. Desde a Antiguidade, a mente era vista como algo inerente ao corpo vivo, isto é, como a inteligência e a capacidade de discernimento. Não por acaso, mens provém da raiz indo-europeia *men-, que significa “pensar”. Logo, a mente é o lugar onde mora o pensamento, o intelecto.

Os conceitos de alma e espírito se confundem até etimologicamente, pois anima e seu correlato animus significavam primitivamente “sopro”: anima/animus têm a ver com o grego ánemos, “vento”, ao passo que spiritus deriva do verbo spirare, “soprar”, que sobrevive em português em espirar, respirar, inspirar, expirar, aspirar, conspirar, suspirar, etc. Tanto a alma quanto o espírito eram concebidos pelos antigos como o sopro de vida ou sopro divino (essa visão estava presente em várias tradições, da Grécia e Roma antigas ao judaísmo, ao hinduísmo e ao budismo). É que, não podendo explicar racionalmente a natureza da vida e o porquê de alguns entes serem animados e outros não, pensava-se que a vida fosse um dom divino, algo soprado pelos deuses dentro da matéria inerte, dando-lhe vida e consciência. Além disso, no entendimento da época a vida estava diretamente ligada à respiração: se respira, é vivo; se é vivo, respira.

A alma (em grego psykhé) foi desde o início associada a um princípio sobrenatural, que só os seres vivos – e, segundo algumas tradições filosóficas, só o homem – possuem. E desde logo foi vista como algo que habita o corpo, mas distingue-se dele e dele se desprende ao morrermos. Assim, a alma poderia existir sem o corpo, mas não este sem a alma: seres inertes como as pedras não têm e nunca terão alma; o corpo animal ou vegetal, ao ser desprovido da alma, apodrece.

O espírito é um conceito que, para a filosofia, às vezes se confunde com a mente e às vezes com a alma. Para os estoicos, o espírito (em grego pneûma) é o que distingue o vivo do bruto: o intelecto, mas também os sentimentos, as emoções, os estados de alma (ou de espírito). Nesse sentido, a alma é o que dá vida, a mente é a faculdade da razão, e o espírito é a inspiração (vejam aqui o verbo spirare mais uma vez), a imaginação, a criatividade, a emoção, o senso estético, a moral, a ética, a virtude…

Mas o adjetivo espiritual é também muitas vezes empregado como sinônimo de religioso, como em “líder espiritual”, referindo-se a chefes de igrejas ou de seitas. Donde se deduz que o espírito seria um conceito sobretudo religioso.

Já para os espíritas, a alma é o espírito encarnado num corpo físico, e o espírito é uma realidade transcendente que, de tempos em tempos, se incorpora na matéria, dando origem aos seres vivos. É forçoso dizer que essa concepção se restringe à doutrina espírita, não sendo necessariamente partilhada pelas correntes filosóficas.

Essa nebulosidade na definição de mente, alma e espírito no âmbito tanto da filosofia quanto da religião levou a que certas línguas não dispusessem dos três conceitos, mas de apenas dois. Enquanto o português, o espanhol (mente, alma, espíritu), o italiano (mente, anima, spirito) e o inglês (mind, soul, spirit) dispõem dos três significados, o francês (âme, esprit), o alemão (Seele, Geist) e as línguas escandinavas, como, por exemplo, o sueco (själ, ande) admitem apenas dois. O resultado é que a palavra para “espírito” acaba sendo usada também para denominar a mente. Pode-se perceber isso ao consultar os verbetes “mente” e “espírito” em português na Wikipédia e depois carregar as páginas correspondentes nas demais línguas. O leitor verá que será redirecionado em ambos os casos à palavra correspondente a “espírito” em francês ou alemão, por exemplo.

Enquanto em português ou inglês a definição de mente na enciclopédia é fundamentalmente técnica e científica, e a de espírito é filosófica e místico-religiosa, em francês ou alemão tem-se no verbete “esprit” ou “Geist” uma mistura de ambas as coisas.

Nessas línguas, há um certo embaraço quando se trata de um texto técnico de neurociência, por exemplo, em que o conceito de mente, muito bem delimitado, não tem nada a ver com o de espírito, seja em seu sentido filosófico, religioso ou do senso comum. Nesses casos, o francês utiliza às vezes o termo mental (substantivo) para referir-se à mente enquanto fenômeno biológico. Em alemão, usa-se às vezes Verstand ou Vernunft (literalmente, “intelecto” ou “razão”) para distinguir a mente do espírito (Geist). Só que a mente em sentido neurológico não é exatamente o mesmo que o intelecto ou a razão, termos mais afeitos ao vocabulário da filosofia e do senso comum.

É curioso que, embora o latim tivesse o termo mens, este não tenha passado ao francês, língua da lógica e da razão (pelo menos é o que dizem), assim como o vocábulo germânico *mundiz, “mente”, de mesma origem que mens, só passou ao inglês mind, mas não às demais línguas germânicas, como o alemão, idioma que, segundo alguns, é o único no qual é possível filosofar.

Idiomas sem parentesco com características em comum

Um dos princípios da linguística histórica e da linguística comparada para a classificação filogenética de línguas é a busca por traços fonéticos, morfológicos, sintáticos e léxicos comuns entre idiomas distintos. A presença dessas semelhanças estruturais entre línguas costuma ser um bom indício de parentesco entre elas.

No entanto, muitas vezes os linguistas foram induzidos a erro por similaridades estruturais que não decorriam de verdadeiro parentesco – em alguns casos, havia no máximo um parentesco muito distante, que não justificava as coincidências – nem de convergência fortuita, em que processos evolucionários diferentes conduzem casualmente ao mesmo resultado.

Um terceiro fator leva às vezes a que línguas não aparentadas apresentem traços muito semelhantes, como o emprego dos mesmos sons fonéticos, modos semelhantes de formar palavras ou frases e vocabulário comum. Trata-se da interação que historicamente se deu entre elas pelo contato e/ou pelo bilinguismo. Em ambos os casos, a influência recíproca entre os idiomas decorre de sua proximidade geográfica.

Em 1904, o linguista polonês Jan Courtenay argumentou que era preciso distinguir entre semelhanças linguísticas decorrentes de uma relação genética (que ele chamou de rodstvo, “parentesco”) e aquelas decorrentes de convergência devida ao contato linguístico (srodstvo, “afinidade”). Outro linguista, o russo Nikolai Trubetzkoy, introduziu o termo языковой союз (yazykovoy soyuz; isto é, “união linguística”) para denotar essas similaridades não genéticas. Posteriormente, propôs um decalque alemão desse termo, Sprachbund, definindo-o como um grupo de línguas com semelhanças na estrutura morfológica, sintaxe, vocabulário de cultura e sistema fonológico, mas sem correspondências fonéticas sistemáticas nem morfologia básica ou vocabulário básico compartilhados.

O que normalmente ocorre é que populações de línguas diferentes que estão em contato numa fronteira linguística ou por habitarem uma mesma região acabam aprendendo em maior ou menor grau a língua uma do outra e se tornam bilíngues – às vezes, quando há mais de duas populações distintas em contato, trilíngues ou plurilíngues.

Quando isso acontece, surge um fenômeno chamado interferência linguística, em que o falante utiliza inconscientemente elementos de sua língua materna ao falar o idioma estrangeiro. Podem ser sons (o famoso sotaque), palavras (um exemplo típico são falantes do espanhol dizendo una em vez de uma ou usando o sufixo ‑ción no lugar de ‑ção ao falar português) ou mesmo construções sintáticas (novamente um hispanofalante dizendo “me gosta muito isso” em vez de “eu gosto muito disso”).

O resultado é que línguas em convívio acabam adquirindo traços umas das outras mesmo que não tenham relações filogenéticas entre si.

Um exemplo disso são as chamadas “vogais mestiças”, típicas do francês e das línguas germânicas. São vogais anteriores arredondadas, ou, trocando em miúdos, aquelas vogais que pronunciamos como “é”, “ê” ou “i”, mas fazendo “biquinho”. Tecnicamente, essas vogais são representadas no Alfabeto Fonético Internacional como [œ], [ø], [ʏ] e [y]. Essas vogais nasceram nas línguas germânicas quando um o ou u longos ou breves eram seguidos de sílaba contendo i vocálico ou semivocálico. Porém o francês, que é língua românica, mas sempre viveu cercada de dialetos germânicos, adotou essas vogais.

Em contrapartida, o r gutural francês (que aqui no Brasil chamamos de r carioca) surgiu por volta do século XVII como uma pronúncia vulgar da plebe parisiense e acabou, dois séculos depois, tornando-se a pronúncia padrão do r não apenas do francês, mas também do alemão, holandês, luxemburguês e dinamarquês (dialetalmente também do norueguês). E, pasmem, chegou até Lisboa, de onde veio para o nosso país com a Família Real em 1808 e tornou-se um século depois a pronúncia usual não só do Rio de Janeiro como de boa parte do Brasil.

Outro caso interessante de convergência areal (isto é, de área linguística) em línguas não relacionadas geneticamente são as línguas dos Bálcãs (albanês, búlgaro, macedônio, romeno, turco), todas tendo artigo definido posposto ao substantivo (algo como menino-o em vez de o menino), a presença da vogal [ɨ] (cujo som se assemelha ao que emitimos quando levamos um soco no estômago), todas evitando o infinitivo e formando o futuro da mesma forma.

Vale citar também o fato de muitas línguas do sudeste asiático e Extremo Oriente, de famílias tão díspares como o sino-tibetano, hmong-mien, tai-kadai, austronésio e mon-khmer, que se estendem da China à Tailândia, serem isolantes, formadas de palavras monossilábicas, e tonais, apresentando três tons diferentes que distinguem significado.

Temos também a presença do chamado “l escuro” (o l da pronúncia lusitana do português) opondo-se fonologicamente ao l palatalizado (parecido com nosso lh) em línguas eslavas e túrcicas da Ásia central, as consoantes retroflexas (pronunciadas com a ponta da língua no céu da boca) em vários idiomas não aparentados da Índia, os cliques (estalos da língua) tanto nas línguas khoisan quanto nas bantu da África, a ausência do u semivocálico (isto é, [w]) e sua substituição por v nas línguas do leste europeu, a ausência de p no árabe e em línguas do norte da África, e assim por diante.

Na Europa, podemos citar, além dos exemplos já mencionados, construções sintáticas absolutamente paralelas nas línguas românicas e nas germânicas, como os tempos cursivos formados com o verbo “ser/estar” + gerúndio (estou/estava/estarei estudando), presente em português, espanhol, italiano e inglês, os tempos perfectivos com “ter/haver” + particípio (tenho estudado, havia estudado) em todas as línguas de ambas as famílias, a voz passiva analítica com “ser” + particípio (a lição foi estudada) igualmente em todos esses idiomas, além, é claro, de muitas coincidências vocabulares decorrentes de empréstimos mútuos entre essas línguas, bem como importações do grego e do latim clássicos.

O planeta tem esse nome porque é plano?

Parece incrível, mas em pleno século XXI ainda tem gente acreditando que a Terra é plana: são os terraplanistas, que, juntamente com os antivacinistas, formam a maior parte dos chamados negacionistas (o sufixo ‑ista de todos eles evidencia que são seguidores de ideologias ou doutrinas e constituem verdadeiros movimentos – ou seitas).

Existem negacionistas menos populares que esses dois tipos acima, como os que negam a morte de Elvis Presley e os que negam a morte de Hitler (claro, o Führer está vivo e forte aos 133 anos de idade!). Ao contrário, há aqueles que acreditam que Paul McCartney morreu em 1967 e quem está até hoje gravando discos e fazendo shows em seu lugar é um impostor.

Mas um dos comentários mais hilários que li de um terraplanista é que o planeta Terra se chama planeta justamente porque é plano. Tudo bem que nossos antepassados da Antiguidade ou da Pré-História pensassem que a Terra é chata, afinal a extensão de território que eles conseguiam percorrer era pequena demais para perceber a curvatura do nosso corpo celeste. Mesmo o horizonte marítimo visto da praia parece retilíneo, mas Aristóteles sabiamente já argumentava que, se a Terra fosse de fato plana, os navios não desapareceriam no horizonte. E os eclipses mostravam sobre a Lua a sombra circular da Terra, o que os gregos também já haviam percebido. Aliás, foi na Grécia antiga que, pela primeira vez, se mediu a circunferência da Terra. O autor do brilhante feito foi o matemático e astrônomo Eratóstenes de Cirene, e seu erro em relação à medida atual foi de apenas 300 quilômetros!

Mas, se os gregos já sabiam que nosso planeta é esférico, porque lhe deram justamente o nome de planeta? A resposta é simples, pelo menos para quem estuda etimologia e sabe um pouco de grego: é que a palavra grega planétes, que deu nosso planeta, não tem nenhum parentesco com o latim planus, que deu o português plano. Na verdade, planétes quer dizer “viajante”, do verbo plánasthai, “vagar, viajar”. Ou seja, os gregos não só sabiam que os planetas são esféricos como também que se movem no espaço. É verdade que o modelo geocêntrico de Ptolomeu colocava a Terra no centro do mundo, portanto numa posição imóvel em torno da qual os outros planetas giravam. Logo, a denominação planeta inicialmente não se aplicava à Terra. Foram os astrônomos renascentistas, a partir de Copérnico, que compreenderam que o centro era o Sol e que a Terra também se movia (eppur si muove, “e no entanto se move”, teria dito Galileu após ter abjurado do sistema heliocêntrico perante a Santa Inquisição a fim de preservar a própria vida). Portanto, agora a Terra também era um planeta, isto é, um viajante, um corpo errante no Universo.

Infelizmente, 400 anos depois disso e malgrado os esforços empreendidos e os riscos corridos pelos cientistas, ainda tem gente acreditando que a Terra é plana. E usando da falsa etimologia, ou etimologia de botequim, para sustentar sua esdrúxula teoria.

Tá doido, rapaz? Ou melhor, tá inclusão?

Outro dia, publiquei neste espaço um artigo em que teci uma certa crítica à chamada linguagem politicamente correta e à militância que, em nome do justo combate a preconceitos e desrespeito a direitos humanos, sentencia de morte certas palavras, atribuindo-lhes uma carga depreciativa que elas efetivamente não têm, como, por exemplo, afirmar (erroneamente) que denegrir faça alguma alusão à raça negra.

Como era de se esperar, minha crítica, embora fundamentada, gerou algum incômodo em espíritos mais sensíveis a essas causas, na maioria das vezes pessoas bem-intencionadas mas mal-informadas. Um leitor me questionou:

Não entendi se o senhor aceita a mudança da troca das palavras?

E se trocar mudaria para você o que?

E se estudamos a língua com afinco em saber a suas origens, e entendimento ao longo de nossa existência, ela não vale ser revista? Ou que momento isso pode acontecer? Ou não pode?

Sobre o apontamento a pessoas portadoras de deficiências, é algo que está em constante mudança par atingir mais pessoas sem distingui-las como “defeito de fábrica”, já que a sociedade cria um modelo de ser “humano” a ser normatizado e qualquer outro ser humano fora desse padrão é estigmatizado com termos que são excludentes. A empatia no uso dos termos tenta amenizar as diferenças que são consideradas pejorativas por outros (nas mesma definições). […]

Respondi-lhe que, como linguista, sei mais do que ninguém que a língua evolui e, portanto, o léxico muda com o tempo. No entanto, existe uma diferença entre a mudança espontânea feita pelo consenso dos falantes e uma tentativa de mudança imposta por certos grupos de poder. Por exemplo, quem decidiu trocar negro por afrodescendente não foram os falantes do português em geral, nem mesmo os próprios negros; foram sociólogos e antropólogos de universidades públicas na esteira do inglês African American, que tampouco foi criado pelos falantes da língua inglesa, mas por cientistas sociais e intelectuais americanos. O resultado mais concreto dessas tentativas de imposição daquilo que chamei de “novilíngua politicamente correta” é que termos como afrodescendente ou pessoa portadora de necessidades especiais não têm adesão popular; são usados exclusivamente pela imprensa e por ativistas. Os próprios negros em geral se chamam de negros e não de afrodescendentes. Aliás, tenho vários amigos negros e já os vi chamando-se uns aos outros de “negão” ou “crioulo” de forma carinhosa.

Portanto, o que eu critico não é a mudança da língua em si, fato inevitável e que constitui a própria essência da linguagem humana (talvez até de tudo que é humano); minha crítica é à tentativa artificial de imposição de novos termos, bem como a proibição de outros, sem um critério objetivo e por razões meramente ideológicas por parte de grupos políticos que, por vezes, se sentem donos da verdade. Aliás, o fanatismo e o extremismo, sejam eles religiosos, políticos ou até mesmo futebolísticos, surgem quando indivíduos, imbuídos da convicção de que a causa pela qual militam é justa, se sentem no direito (ou, mais do que isso, no dever) de impor sua visão de mundo a toda a sociedade. A Inquisição católica medieval, o nazismo e o comunismo, com suas consequentes atrocidades, nasceram de crenças assim, de que almas precisavam ser salvas, de que o mundo sem judeus ou sem capitalistas seria um mundo melhor.

Em nome do combate ao preconceito e à exclusão social, já tentaram até censurar os dicionários com o objetivo de banir certas acepções consideradas demeritórias a certos grupos. Ora, o dicionário é um espelho da língua: se certos sentidos existem nele é porque existem na língua. Aqui vale o velho adágio: “Não culpes o espelho se tua cara é torta”. Acima de tudo, minha crítica se dirige à hipocrisia de setores políticos que acham que, mudando a linguagem, mudam a realidade. Nesse aspecto, prefiro, por exemplo, continuar chamando os índios de índios, mas vê-los ser tratados com a dignidade que merecem (o que, diga-se de passagem, nunca o foram, e menos ainda neste atual governo) a chamá-los de indígenas ou povos originários e continuar tratando-os com o mesmo descaso histórico como os tratamos atualmente.

Pois bem, um dos efeitos mais deletérios da chamada linguagem politicamente correta (ou linguagem PC, para os íntimos) é o mascaramento da realidade, como se dar nomes bonitos e pomposos a coisas feias as tornasse menos feias. Ou seja, o PC não deixa de ser uma forma dissimulada de manipulação por meio das palavras, e as pessoas comuns, especialmente aquelas que não se deixam influenciar por ideologias (políticas, publicitárias, religiosas, etc.) percebem isso. O cidadão idoso que sempre chamou os afrodescendentes de pretos sem nenhuma conotação pejorativa tem razão de sentir-se perplexo quando agora é advertido de que sua maneira de expressar-se é inadequada, politicamente incorreta ou, o que é pior, racista.

Uma das reações ao patrulhamento ideológico que tenta impor essa novilíngua é a zombaria: expressões PC acabam ganhando sentido bem-humorado (por exemplo, diante de uma tempestade iminente, dizer que o céu está cheio de nuvens afrodescendentes). Expressões politicamente corretas logo produzem versões humorísticas ou paródias, como chamar o careca de “portador de deficiência capilar” ou o baixinho de “pessoa verticalmente deficiente”.

O mais novo rebento desse humor politicamente incorreto (aliás, humor politicamente correto não tem graça nenhuma) decorre da atual – e, a meu ver, acertada – política educacional de incluir nas salas de aula regulares alunos com deficiência cognitiva ou intelectual (outrora deficiência mental), como autistas, portadores da síndrome de Down e outros.

Como se trata de uma política de inclusão social (e a própria legislação educacional assim a denomina), eis que surge a gíria maliciosa entre os profissionais da educação pública: qualquer pessoa que pareça lelé da cuca agora é “inclusão”. A Maria pôs a marmita no micro-ondas e se esqueceu de ligá-lo? Tá na cara que ela é inclusão! O Antônio considera Bolsonaro um defensor da democracia? Só pode estar inclusão! João acredita na honestidade dos políticos do Centrão? Xi, inclusão sem sombra de dúvida!

Como o humor é sempre mais inteligente que o patrulhamento das consciências (o semanário francês Charlie Hebdo que o diga!), não importa quantos termos estrambóticos e rebuscados a linguagem PC invente, o povo vai sempre achar um uso bem-humorado para eles. Mesmo que criado com boas intenções, o PC logo se torna ridículo, e as pessoas cuja fala espontânea não tem maldade nem preconceito utilizam da comicidade como instrumento de defesa contra a “assepsia da linguagem” promovida por esse nosso admirável mundo novo.

Os processos cognitivos e o funcionamento da mente

O que é a mente? Essa questão vem inquietando há séculos os filósofos e os cientistas. Sabemos que a atividade mental é uma das características que distinguem os animais das plantas e dos seres inanimados e que, nos animais superiores, como nós humanos, essa atividade produz algo ainda mais intrigante, que é a consciência.

Para muitos pensadores do passado (e ainda alguns do presente), o conceito de mente se confunde com o de alma ou espírito. O fato de percebermos a realidade, pensarmos e sentirmos é visto por eles como algo divino, sobrenatural, um dom dado por Deus a certas criaturas e não a outras. Já para a moderna neurociência, a mente nada mais é do que o cérebro em funcionamento: são as reações químicas e as descargas elétricas que ocorrem nas sinapses de nossos neurônios cerebrais que produzem em nós a consciência e, com ela, sensações, emoções, imagens mentais e nosso discurso linguístico interno.

A atividade da mente consciente pode ser explicada pelo modelo dos processos cognitivos enunciado pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung no livro Tipos psicológicos.

Os processos cognitivos dividem-se em dois tipos: processos de percepção e processos de julgamento. Os processos de percepção constituem-se nos canais de entrada das informações na mente. Fazendo uma analogia com um computador, podemos dizer que os processos de percepção correspondem ao input, isto é, à entrada de dados na máquina, como quando digitamos algo no teclado ou inserimos um pendrive. Há dois tipos de processos de percepção: a sensação e a intuição.

A sensação consiste nos cinco sentidos básicos do ser humano: visão, audição, tato, olfato e paladar. Portanto, percepções sensoriais são estímulos produzidos pelos fenômenos físicos externos ao nosso corpo e que este é capaz de reconhecer por meio dos órgãos dos sentidos e enviar ao cérebro, como a luz que chega à nossa retina e, através do nervo óptico, é levada como impulso elétrico à região do cérebro responsável pela sua “tradução” em termos de imagem. O mesmo vale para o som em relação aos ouvidos, o tato em relação à pele, e assim por diante.

A intuição, por vezes chamada erroneamente de “sexto sentido”, manifesta-se por meio de lembranças, lampejos, insights, atos de imaginação, momentos de inspiração, sonhos, delírios, alucinações, etc. Todos os conteúdos mentais (imagens, sons, palavras, sensações) que afloram à nossa consciência e não provêm diretamente de estímulos externos (sensoriais) ou do raciocínio são fruto da intuição.

Ela é tecnicamente a emergência ao nível consciente de memórias estocadas (Freud diria “recalcadas”) no inconsciente. Afinal, tudo o que vivenciamos a cada instante de nossa vida é registrado por nossa consciência, mas a maior parte dessas informações não fica nela nem em nossa memória de curto prazo: elas vão direto para o inconsciente e lá ficam guardadas por toda a vida. Por sinal, é justamente porque não podemos nos lembrar de tudo o que vivenciamos que não ficamos loucos. Só que, de repente e de maneira inexplicável, num dado momento aflora à nossa lembrança um fato ocorrido muitos anos atrás e do qual já não nos lembrávamos até porque não tinha maior importância. Mas algo no momento presente suscitou o resgate dessa memória inconsciente.

Essas memórias, por serem inconscientes, não podem ser acessadas diretamente pela consciência, ao contrário das memórias subconscientes, que podem, a qualquer momento, ser recuperadas, como, por exemplo, meu nome, endereço, número de telefone e outras informações que, embora não estejam na minha consciência a todo momento, podem ser facilmente trazidas a ela quando requisitadas. Nesse sentido, podemos considerar as memórias subconscientes como a pasta “Meus Documentos” do nosso cérebro e a consciência como a tela do nosso computador cerebral. Quando precisamos de uma determinada informação (digamos, meu número de telefone), basta abrirmos uma espécie de arquivo “Meu_telefone.docx” da nossa pasta cerebral “Meus Documentos”, isto é, do nosso subconsciente, e o número do telefone desejado aparece na tela do nosso computador, ou seja, vem à nossa consciência.

Já o conteúdo do inconsciente corresponderia, grosso modo, àqueles arquivos ocultos do computador, aos quais não podemos ter acesso, mas que de alguma forma interferem no desempenho da nossa “máquina”. Esse conteúdo revela-se à consciência por meio de sonhos, práticas meditativas, e também pode aflorar aleatoriamente, como quando temos um “estalo” e descobrimos, de modo não intencional, algo de que até então não tínhamos nos dado conta. É o insight, a chamada inspiração. Não à toa, o que chega à nossa consciência a partir do inconsciente é uma combinação, por vezes aleatória, de informações lá arquivadas. Quando um compositor recebe a inspiração para uma nova melodia, isto é, começa a ouvir mentalmente uma música que até então não existe fora de sua mente, o que ele está ouvindo – e, portanto, criando – é uma nova combinação de notas e acordes que ele, como músico, já conhece porque já ouviu muitas vezes, uma espécie de recortar e colar de muitas melodias já existentes e já estocadas em sua memória. É por isso que um indígena do Xingu que nunca teve contato com o homem branco jamais sonhará que está regendo uma orquestra sinfônica. Ele provavelmente sonha todas as noites com caçadas na floresta, animais e plantas de seu habitat, com sua aldeia, seus familiares, e outras coisas do gênero.

Uma vez que a consciência tenha captado informações provenientes do meio externo através dos sentidos ou do inconsciente por meio da intuição, a mente agora precisa processar essas informações. É aí que entram em ação os processos de julgamento. Eles são os responsáveis pelo processamento dessas informações no cérebro e equivalem, na metáfora computacional, ao throughput, isto é, ao processamento dos dados pelos softwares do computador. A mente humana processa as informações da consciência por meio de dois “softwares” básicos: a razão (isto é, o pensamento, o raciocínio) e a emoção (os sentimentos). Isso significa que, quando uma informação qualquer chega à nossa mente via sensações ou intuição, ela suscita em nós pensamentos e/ou sentimentos.

Os sentimentos ou emoções que surgem em nossa consciência, como alegria, medo, saudade, tédio, como resposta a percepções ou pensamentos são na verdade reações bioquímicas produzidas por hormônios e neurotransmissores como a adrenalina, a dopamina, a endorfina, a acetilcolina e outros. Por isso mesmo, muitas emoções que sentimos são acompanhadas de reações corporais, como arrepios ou suores.

Por sua vez, o que chamamos de pensamentos são o produto da nossa razão, ou raciocínio; pensamentos são, na prática, enunciados linguísticos mentais, algo como um diálogo interno entre nós e nós mesmos. Esse diálogo não necessariamente ocorre somente por meio da língua que falamos (o português, por exemplo); na verdade, o pensamento se processa numa linguagem puramente cerebral a que os neurocientistas e os linguistas dão o nome de mentalês, do qual falo em outra postagem, e na qual todas as línguas naturais, isto é, os idiomas humanos, se baseiam. Em linguagem computacional, o mentalês é o sistema operacional no qual rodam todos os “programas” que são as línguas. É como se, para executarmos o software “Português.exe” ou “English.exe”, precisássemos de um sistema operacional pré-instalado chamado “Mentalês®”. Nós, brasileiros, produzimos o tempo todo, ininterruptamente, nossos discursos mentais – uma pequena parte dos quais se transforma em discursos orais ou escritos que externamos aos outros seres humanos – no software “Português.exe”, que é como nosso processador de texto, e é nesse “Word” que redigimos mentalmente nossos pensamentos.

A resposta aos pensamentos e sentimentos que surgem em nossa mente (o equivalente ao output dos computadores) não é um processo cognitivo, mas uma reação aos estímulos que as informações do meio produzem em nós. É em geral uma conduta motora, isto é, uma ação. Por exemplo, ao ouvirmos (sensação auditiva) alguém nos pedir para fechar a porta, compreendemos intelectualmente esse pedido por meio do pensamento e respondemos com a ação motora de caminhar até a porta e fechá-la. Quando assistimos a um filme triste (sensações visual e auditiva), surgem pensamentos e emoções em nossa mente, aos quais podemos eventualmente responder com a ação de chorar. Mesmo ações reflexas, como desviar instantaneamente e sem pensar de uma pedra que é atirada em nossa direção, são respostas motoras a uma percepção sensorial (a visão da pedra se aproximando) e a um julgamento emocional (um susto).

Portanto, o que nossa mente faz o tempo todo, inclusive enquanto estamos dormindo, é captar informações do ambiente pelos sentidos e do inconsciente pela intuição e processá-los em forma de sentimentos e pensamentos. Numa palavra, são a sensação, a intuição, a razão e a emoção que comandam todas as nossas ações, sejam elas voluntárias ou involuntárias, conscientes ou inconscientes.

Os poderes da República

Nos últimos tempos, os três Poderes da República não têm saído dos noticiários. E, como todos sabemos, esses poderes são: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A Constituição de 1988 separou uma quarta instituição, o Ministério Público, desses poderes, dando-lhe autonomia. Embora do ponto de vista jurídico não seja propriamente um dos poderes, o Ministério Público pode, de alguma forma, ser considerado uma espécie de quarto poder. E nos tempos do Império havia ainda o Poder Moderador, exercido pelo imperador, que dava a este, dentre outras, a prerrogativa de dissolver o parlamento e convocar novas eleições, o que o tornava quase um monarca absoluto.

Mas de onde vêm as palavras legislativo, executivo e judiciário?

Legislativo deriva de legislar, palavra formada a partir de legislador por derivação regressiva (derivação regressiva é aquela em que, em vez de acrescentar, subtraem-se afixos). Já legislador e legislação provêm, respectivamente, do latim legislator e legislatio, sendo que legis é o genitivo de lex, “lei”, ao passo que lator, “aquele que leva”, e latio, “ato de levar”, decorrem do particípio latus do verbo ferre, “levar, transportar” e, por conseguinte, “propor”. (Sim, o particípio de ferre é latus, por incrível que pareça!) Portanto, legislar significa “propor uma lei”, logo o Poder Legislativo é a instituição responsável pela elaboração das leis.

executivo vem de executar, formado a partir do particípio latino executus ou exsecutus do verbo exsequi, “seguir até o fim, levar a cabo, executar”. Esse verbo subsiste em português no adjetivo exequível, “que pode ser executado, factível”. O Poder Executivo é então aquele que executa as leis e também projetos, políticas e demais ações de gestão de um governo.

Finalmente, judiciário radica no latim judiciarius, derivado de judex, “juiz”, por sua vez formado de jus, “direito, justiça”, e do verbo dicare, “indicar, mostrar”, relacionado com dicere, “dizer”. Ou seja, o juiz é aquele que diz ou mostra o que é justo, aquele que arbitra um conflito, buscando uma solução satisfatória a ambas as partes.

Sobre o extinto Poder Moderador, podemos dizer que moderar é diminuir, restringir, tornar menos intenso (por exemplo, moderar na bebida, moderar os gastos, etc.). Nesse sentido, o poder dado ao imperador do Brasil era o de moderar, isto é, de restringir os três demais poderes (na prática, de interferir nas decisões deles). E moderar, do latim moderari, provém de modo (latim modus), que quer dizer originalmente “medida”. Logo, moderar é manter dentro da medida, do aceitável, do razoável. É por essa razão, aliás, que a mãe costuma dizer ao filho desobediente “menino, tenha modos!”, isto é, “contenha-se!”.

Militância política e apadrinhamento na área de Letras das universidades públicas

Uma das grandes controvérsias que agitam o meio acadêmico na área de Letras é provocada pelo mau uso, decorrente do mau entendimento, da chamada teoria da variação linguística. Essa teoria, em sua essência, apenas revela o óbvio: que a língua varia de uma época para outra (é a chamada evolução linguística), de uma região para outra (dando origem aos regionalismos e, em certos casos, aos dialetos), de uma classe ou grupo social para outro e, finalmente, de uma situação de comunicação (como uma palestra ou um bate-papo entre amigos) para outra. Mais recentemente, acrescentou-se a essa teoria a variação entre língua falada e língua escrita.

Em nenhum momento, os propositores dessa teoria, como o linguista americano William Labov, disseram que determinada variedade linguística deveria ter mais direito à existência do que outra, assim como nunca disseram que qualquer variedade pode ser empregada em qualquer situação indiferentemente. No entanto, muitos maus linguistas, bem como muitos professores de língua mal formados (ou doutrinados em sala de aula), passaram a “politizar” a língua, vendo na defesa de certas variedades linguísticas e no ataque a outras uma bandeira político-ideológica a ser desfraldada.

E por que esses linguistas, invariavelmente encastelados em universidades públicas brasileiras, têm essa postura? Minha hipótese – e trata-se apenas disso, uma hipótese, pois, em conversas que tenho com eles, jamais confessam seus verdadeiros propósitos – é a de que, como militantes ou simpatizantes de certos partidos políticos de extrema esquerda, adotam a tese gramsciana de que é preciso fomentar a revolução aos poucos, de dentro para fora, “comendo pelas beiradas”, como se diz.

Mas por que esses profissionais e servidores públicos são, em sua grande maioria, de esquerda? Um observador ingênuo (ou nem tanto) diria que, por serem pessoas estudiosas e, portanto, esclarecidas, só poderiam situar-se no flanco esquerdo do espectro político. No entanto, conhecendo melhor os critérios utilizados pelas bancas examinadoras de concursos para preenchimento de vagas docentes em instituições públicas, percebe-se que a escolha feita por essas bancas não é neutra ou isenta nem prima exclusivamente pelo exame do mérito dos candidatos.

Quem já participou de algum desses concursos pode ter presenciado situações como as que eu presenciei ou das quais tive notícia e que passo agora a relatar.

Imagine um concurso para professor doutor em que há quatro candidatos, três dos quais doutorados pela maior universidade brasileira e um pela Sorbonne, sendo que um dos doutorados no Brasil já era professor de uma respeitada universidade pública, e, no entanto, todos os quatro foram reprovados porque aquela que seria a quinta candidata e que havia sido orientanda do presidente da banca no mestrado não pôde participar do concurso porque seu doutorado, feito no exterior, não havia sido convalidado no Brasil a tempo do concurso. Pois dois meses depois, foi aberto novo concurso para aquela mesma vaga, só que desta vez para professor mestre. E, para surpresa de todos (disclaimer: nesta expressão, uso ironia), a moça cujo doutorado não fora reconhecido no Brasil foi a vencedora!

Imagine agora um concurso que ainda nem havia sido oficialmente aberto, mas cujo vencedor já estava previamente escolhido. Um professor de determinado departamento de determinada faculdade de determinada universidade pública pretendia candidatar-se à vaga em outro departamento da mesma faculdade que havia sido aberta com a aposentadoria de determinado professor. O fato é que ele foi aconselhado a não concorrer, uma vez que, na própria reunião departamental que discutiu a abertura do concurso, veiculou-se a informação de que aquela vaga estava prometida a certa professora de uma certa PUC (não digo qual) que desejava encerrar sua carreira numa universidade pública. Realizado o concurso, adivinhem quem venceu? Quem disser que foi a professora vinda da PUC ganha um doce!

Para finalizar, pois os exemplos abundam, mas não quero abusar da paciência do leitor, tem aquele caso do concurso em que certo membro da banca atribuiu nota zero (ZERO!) a todos os candidatos exceto àquele que ele queria “emplacar”. Só que a presidente da banca fez o mesmo com todos os candidatos menos aquela que ela queria ver escolhida. Conclusão: todos os candidatos foram eliminados, a não ser os dois que não receberam zero. (E aqui vai uma consideração: por menos apto à vaga que seja um candidato, jamais alguém detentor de um doutorado é merecedor de uma nota zero.)

Comentou-se à boca pequena que o embate entre os dois membros da banca, ocorrido a portas fechadas como manda o regulamento dos concursos, foi tão vigoroso que pôde ser ouvido do lado de fora. Ao final, venceu o concurso a candidata preferida da presidente da banca. Detalhe: a moça já havia sido coautora da professora em diversos trabalhos publicados, e ambas, ainda por cima, eram colegas de sinagoga.

Esses poucos exemplos mostram que, não raro, os vencedores de concursos docentes em universidades públicas, especialmente na área de Letras, são escolhidos por critérios de afinidade pessoal, profissional e também, como não poderia deixar de ser, político-partidária.

Afinal, o que é o Ocidente?

Nesta última terça-feira, o Vice-Presidente do Conselho de Segurança da Rússia,  Dmitri Medvedev, escreveu em sua conta na rede social Telegram: “Eu odeio os ocidentais. Eles são bastardos e degenerados. Querem a morte para nós e para a Rússia. E, enquanto eu estiver vivo, farei todo o possível para fazê-los desaparecer”. Como temos visto, desde que a guerra na Ucrânia começou, tem havido uma constante e crescente tensão entre a Rússia e o chamado Ocidente. E fica claro que os russos – pelos menos os que estão no poder – não se consideram parte desse Ocidente. No entanto, a Rússia é um país europeu, em que pese ter grande parte do seu território na Ásia, fruto de conquistas ao longo da História. Afinal de contas, o berço do povo russo é a Europa oriental, mais precisamente o reino medieval chamado Rússia de Kiev, que existiu do século IX ao XIII e foi fundado por vikings suecos. O próprio nome Rússia deriva de rus ou russi, palavra do antigo nórdico, língua que deu origem  ao sueco, norueguês, dinamarquês e islandês. E os russos são eslavos, povo de origem indo-europeia surgido no Leste europeu, onde se encontram até hoje.

Se os russos não se sentem ocidentais, e mesmo muitos ocidentais não os consideram como tal, então convém definir o que se convencionou chamar de Ocidente, Mundo Ocidental ou ainda Civilização Ocidental.

O embrião da nossa civilização foi a Grécia antiga, onde, por volta do século VI a.C. surgiu a primeira civilização do homem, isto é, que colocava o ser humano e sua capacidade de raciocínio no centro da realidade. O pensamento racional por oposição ao misticismo foi a primeira grande marca da cultura ocidental, que a distinguiu das culturas orientais.

Esse modelo de cultura pouco depois se espalhou para Roma, misturando-se em parte a tradições locais e resultando no que chamamos hoje de cultura greco-romana. A partir do século I d.C., Roma passou a sofrer a influência do cristianismo e sua moral de origem judaica, tendo mesmo adotado essa religião como oficial do Império Romano em 325 d.C. Agora, a civilização greco-romana era civilização greco-romano-judaico-cristã. Para muitos historiadores, Civilização Ocidental é sinônimo de Civilização Cristã; logo, pertenceriam ao mundo ocidental todos os povos majoritariamente cristãos, incluindo os russos.

O Império Romano nunca foi uma unidade étnica e, desde que conquistou a Grécia, a parte oriental do Império sempre foi mais grega do que latina. Em 395 d.C., o imperador romano Teodósio dividiu o Império em dois: Império do Ocidente, cuja capital permaneceu sendo Roma, e Império do Oriente, com capital em Constantinopla (atual Istambul).

Com o esfacelamento do Império Romano, outro povo incorporava sua cultura a esse substrato: os germanos. Com eles, veio o feudalismo, o direito consuetudinário, que ainda prevalece nos países nórdicos, a cavalaria medieval e sua ética cavalheiresca, os castelos, etc. É a partir dessa época, chamada de Alta Idade Média, que surgem os reinos que depois se transformariam nos atuais Estados europeus: França, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Espanha, e assim por diante. É também o momento em que línguas como o francês, o inglês e outras produzem seus primeiros registros escritos e suas primeiras obras literárias. Como mencionei acima, é nessa época também que surge a Rússia.

Enquanto isso, o Império do Oriente sobreviveria ainda por mil anos com o nome de Império Bizantino. Sua cultura era eminentemente grega.

Em 1054, o Grande Cisma do Oriente provoca uma ruptura no seio do cristianismo, dando origem a duas igrejas: a Católica Apostólica Romana, com sede em Roma, e a Católica Apostólica Ortodoxa, sediada em Constantinopla, atual Istambul. Essa ruptura aumentou a distância cultural que já havia na Europa: é nesse momento que os europeus mais a oeste, que permaneceram fiéis à Igreja de Roma e submetidos à influência da língua latina, passam a ver os europeus do leste, ortodoxos e influenciados pela língua e pela cultura gregas, como algo que já não fazia parte de sua civilização.

O Renascimento e sua retomada dos valores culturais e artísticos greco-romanos, que não chegou ao Leste europeu, aprofundou ainda mais a diferença entre as duas Europas. Embora continuasse a haver um mundo cristão em oposição ao mundo muçulmano que o ameaçava, começava a haver também dois conceitos de Ocidente: o conjunto de toda a cristandade ou somente a cristandade católica.

No século XVI, um novo cisma religioso abalaria a Europa: a Reforma Protestante, que separaria os países do norte, fundamentalmente germânicos, daqueles do sul, predominantemente latinos. Entretanto, esse novo cisma não seria suficiente para romper com o conceito mais restritivo de Ocidente: a ruptura religiosa não representava uma ruptura cultural, e os europeus do norte e do sul continuaram a intercambiar literatura, arte, ciência, filosofia, além de mercadorias. As revoluções da Idade Moderna – a Comercial, a Científica, a Francesa e a Industrial – afetaram toda essa região, mas não chegaram ao extremo leste da Europa. Somente no século XVIII, o czar russo Pedro o Grande promoveu a ocidentalização da Rússia, forçando sua corte a adotar costumes sobretudo franceses. Nesse momento, pode-se dizer que a Rússia voltava a fazer parte do Ocidente.

Os Grandes Descobrimentos do século XVI ampliaram o conceito de Ocidente, incluindo agora também as Américas. O descobrimento da Austrália e da Nova Zelândia no século XVIII levava essa civilização até o Oceano Pacífico. E em 1861 o Japão se abria ao Ocidente, adotando sua cultura. Apesar de manter algumas de suas tradições, pode-se dizer que hoje a terra do Sol nascente também é uma nação ocidental, assim como a Coreia do Sul e também Israel.

A Revolução Bolchevique de 1917, que fundou a União Soviética e inaugurou o comunismo como regime de governo, criou novo fosso entre leste e oeste. Agora o Ocidente era capitalista e o Oriente, ainda mais com a Revolução Chinesa de 1949, socialista. Surgiam o chamado Mundo Livre e a Cortina de Ferro.

A queda do muro de Berlim e o subsequente fim da União Soviética fez com que os países do Leste europeu novamente se aproximassem do Oeste, adotando o capitalismo, a democracia liberal e os costumes e o estilo ocidentais na moda, na música, no cinema, etc.

Agora, Vladimir Putin parece querer distanciar novamente a Rússia da Europa ocidental e dos Estados Unidos e, com a guerra na Ucrânia, parece querer também arrastar os antigos países satélites da extinta URSS para junto de si. O que move Putin a esse intento é sua filiação ideológica ao chamado eurasianismo, movimento político surgido em princípios do século XX, inicialmente inspirado nas ideias de Konstantin Leontiev e liderado, dentre outros, pelo príncipe Nikolai Trubetzkoy, que por sinal era linguista e foi o fundador da fonologia, ou estudo dos fonemas da língua.

O eurasianismo prega que a Rússia não pertence nem à categoria “europeia” nem à “asiática”, mas constitui o conceito geopolítico de “Eurásia”. Situando-se geograficamente entre os dois continentes e tendo em seu território populações de origem tanto europeia, sobretudo eslava, quanto asiática (turcos, fino-úgrios, cartvélios, sino-tibetanos, dentre outros), bem como tendo toda uma história em que se sucedem momentos de aproximação e de afastamento em relação à Europa ocidental, é natural que pelo menos parte dos russos não se sinta realmente pertencente ao mundo ocidental. O nacionalismo russo, que sempre esteve presente, também joga um papel importante nesse posicionamento.

Em seu livro Choque de civilizações, de 1996, o cientista político americano Samuel Huntington define Ocidente como toda a Europa católica e protestante (mas não a ortodoxa, o que exclui até a Grécia, berço de nossa civilização), os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Curiosamente, ele distingue a América Latina do Ocidente, embora nossa cultura seja predominantemente ocidental (contribuições africanas e ameríndias existem também nos Estados Unidos e Canadá).

Já a definição clássica de Ocidente compreende toda a Europa, inclusive a Rússia europeia, toda a América, a África do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. E há ainda algumas outras definições, baseadas em critérios políticos, como, por exemplo, pertencimento ou não à OTAN.

Como vimos, não há um conceito único de Ocidente, mas conceitos apenas parcialmente coincidentes, de modo que a única parte do globo terrestre que está presente em todos é a chamada Europa ocidental, basicamente católica ou protestante e, em termos étnico-linguísticos, fundamentalmente latino-germânica. Mas o Ocidente que Putin e Medvedev querem destruir se chama simplesmente Estados Unidos – a Europa ocidental e, mais ainda, América Latina e Oceania são para eles meros satélites que cairiam junto com o Tio Sam.

Índio ou indígena?

O presidente Jair Bolsonaro recentemente vetou uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que propunha alterar o nome do Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas. Essa atitude reacendeu uma polêmica que já dura algum tempo e que põe em xeque a palavra índio como designativa dos povos de origem asiática que já habitavam as Américas antes da chegada dos europeus, bem como de seus atuais descendentes. Nesse embalo, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz chegou a postar um vídeo no YouTube de reprimenda ao presidente com o título É indígena, sr. Presidente!.

Como todos devem saber, a palavra índio tem a ver com a Índia, e a primeira das acepções desse vocábulo nos dicionários é justamente “o mesmo que indiano” (em espanhol, até hoje, os indianos, habitantes da Índia, são chamados de indios, e em inglês Indian significa indistintamente “indiano” e “índio”). É que, segundo consta, ao chegar ao continente americano, Cristóvão Colombo acreditava ter chegado às Índias. E naquele tempo, Índias era a designação que os europeus davam não só à Índia propriamente dita, mas a todo o sudeste asiático, daí o termo no plural.

Desse modo, Colombo chamou os aborígines americanos de índios, e esse nome ficou consagrado por séculos. Como esses aborígines tinham características físicas peculiares (pele moreno-avermelhada, cabelos pretos e lisos, olhos negros ligeiramente amendoados, nariz discretamente achatado), os antropólogos do século XIX decidiram chamar de índia essa suposta raça humana por oposição aos brancos, negros e amarelos (na verdade, os orientais, que de amarelo não têm nada). Uma classificação antropológica mais moderna denomina os brancos de europoides ou caucasianos, os negros de negroides e os amarelos de mongoloides (não confundir com os portadores da síndrome de Down). Quanto aos índios, são atualmente classificados entre os mongoloides, isto é, são um subgrupo dos humanos que habitam o Extremo Oriente e que um dia, há cerca de 30 mil anos, cruzaram o estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, num tempo em que a calota polar o permitia, e povoaram a América.

Hoje em dia se questiona muito o conceito de raça, visto que, do ponto de vista genético e graças à análise do DNA, se sabe que os humanos têm entre si muito mais semelhanças do que diferenças. Mesmo assim, ainda costumamos dividir a humanidade em raças com base nas características físicas de cada povo. Isso é tão verdade que hoje, mais do que nunca, os negros procuram afirmar-se como tal em sua luta contra o racismo e pela preservação de seus valores culturais.

Quanto a indígena, esse termo que normalmente usamos para nos referir aos ameríndios (e olhe a palavra índio aí de novo, disfarçada!) nada tem a ver etimologicamente com os índios. A palavra vem do latim, portanto já existia bem antes de os europeus terem chegado à América, e significa simplesmente “natural da terra, nativo”, do latim indu-, “dentro”, e geno, “nascer”. Ou seja, indígena é quem nasceu dentro (do país). A semelhança fonética fortuita entre índio e indígena foi um prato cheio para estabelecer-se a confusão e passar-se a achar que só os habitantes originários do Novo Continente são indígenas.

Mas a polêmica, alimentada pelo famigerado movimento politicamente correto, está na crença, trajada de fake news, de que o termo índio é pejorativo e de que põe no mesmo balaio povos de etnias muito diferentes. Em primeiro lugar, ninguém ignora hoje em dia que um txucarramãe é etnicamente muito distinto de um ianomâmi; no entanto, chamá-los todos de índios não é muito diferente de chamar povos tão distintos quanto portugueses e húngaros de europeus. Em segundo lugar, qual a evidência científica de que o termo índio tem conotação pejorativa? Há alguma estatística de uso da palavra que comprove que, na maioria das vezes, é empregada em tom depreciativo? Como homem de ciência, me apego aos fatos e não a opiniões ou crenças, e fatos são comprováveis por dados observáveis. Sem eles, o que há é mera especulação, por vezes a serviço de certas agendas ideológicas. O “cancelamento” de palavras legitimamente vernáculas e sem nenhum cunho preconceituoso como gordo, cego, surdo, vesgo, paralítico, careca, etc., e sua substituição por paráfrases longas e pouco práticas de ser pronunciadas como pessoa portadora de deficiência ou pessoa não vidente (até a expressão deficiente visual vem sendo evitada ultimamente) procura criar uma espécie de novilíngua à moda daquela descrita por George Orwell em seu romance distópico 1984, na qual determinadas palavras ou acepções são banidas com o objetivo de restringir a amplitude do pensamento. Assim, se algo não pode ser dito, não pode ser pensado, logo não existe. O que o politicamente correto faz é justamente isso: em vez de procurar mudar a realidade para melhor, ele a mascara, dando nomes bonitos a coisas feias para que elas pareçam mais bonitas – ou menos feias.

A vítima mais recente da orwellização da língua portuguesa é a palavra escravo, sistematicamente substituída por escravizado – como se pessoas escravizadas não fossem escravas. Por essa lógica, não podemos mais nos referir à Abolição da Escravatura, mas devemos em vez disso aludir à Abolição da Escravização.

O pior de tudo é que essa proscrição de palavras feita pela linguagem politicamente correta não tem embasamento nas ciências da linguagem e é feita por pessoas, em geral militantes ideológicos de cultura rasa, sem nenhum cabedal de conhecimento etimológico ou de história da língua. Recentemente, uma deputada federal propôs banir o vocábulo travestido por afirmar erroneamente que seria uma alusão depreciativa aos travestis.

O fato é que muitos jornalistas, intelectuais e ativistas políticos têm evitado até referir-se aos nativos brasileiros como indígenas e empregado em seu lugar a expressão povos originários. Ou seja, já fizeram o revisionismo do próprio revisionismo linguístico.

Será que falamos todos a mesma língua?

Outro dia comprei um mouse novo para o meu computador. Produzido por uma conhecida marca americana, veio acompanhado de um manual de instruções nas seguintes línguas, e nesta ordem: inglês, português brasileiro, francês, grego, italiano, português lusitano, espanhol e hebraico. Achei curioso que o manual trouxesse duas versões das instruções em português, uma para cada variedade do idioma – e separadas entre si por três outros idiomas. Mais curiosamente ainda, não há nesse manual versões distintas para as variedades do inglês (britânico e americano), francês (europeu e canadense) e espanhol (ibérico, mexicano, argentino, etc.). Mas há duas versões, por sinal diferentes, para a nossa língua.

Lendo mais detidamente as instruções, fica claro por que não foi preciso acrescentar redações alternativas em inglês, francês ou espanhol. É que nessas línguas, os dizeres seriam os mesmos qualquer que fosse a variedade considerada (europeia ou ultramarina).

A empresa fabricante do mouse, que, como disse, é americana, certamente não desconhece as diferenças de seu inglês para o dos britânicos, mas o fato é que uma segunda redação não seria absolutamente necessária, já que coisas como “Insert the AA alkaline battery. For safety information, see the Product Guide” se dizem exatamente da mesma maneira dos dois lados do Atlântico. Já em português a coisa não é bem assim. Senão vejamos (nos exemplos a seguir, a versão brasileira está indicada com PB e a lusitana, com PP):

PB: Insira a pilha alcalina do tipo AA. Para obter informações sobre segurança, consulte o Guia do Produto.
PP: Insira a pilha alcalina AA. Para obter informações de segurança, consulte o Manual do Produto.

PB: Insira o transceptor em uma porta USB do computador.
PP: Insira o transceptor numa porta USB do computador.

PB: Baixe e instale o software … (necessário para usar o botão Lupa).
PP: Transfira e instale o software … (necessário para o botão Lupa).

PB: Quando não estiver em uso, desligue o mouse para prolongar a vida útil da pilha.
PP: Quando não estiver a ser utilizado, desligue o rato para prolongar a vida útil da pilha.

PB: Se o transceptor estiver armazenado no mouse, pressione o botão para soltá-lo.
PP: Se guarda o transceptor no rato, prima o botão para o libertar.

PB: Para obter informações importantes sobre segurança e meio ambiente, consulte o Guia do Produto. Para obter as informações e atualizações mais recentes vá para www…
PP: Para obter informações de segurança e ambientais importantes, consulte o Manual do Produto. Para obter as informações e actualizações mais recentes vá para www…

Bem, acho que os exemplos acima dispensam comentários. E depois dizem que a internacionalização do idioma depende da unificação ortográfica…

As duas maneiras de sofrer

Nos últimos anos, o Brasil tem sofrido com três crises: sanitária, política e econômica. Muitos sentiram na pele – e principalmente nos pulmões – os efeitos da covid-19, outros padeceram a perda de entes queridos, e muitos mais sofreram com o isolamento forçado. Além disso, sofre-se atualmente com a inflação alta e o desemprego idem, além das constantes ameaças à nossa democracia. Mas, diante de tanto sofrimento, vocês sabiam que em português há duas maneiras de sofrer?

A palavra “sofrer” chegou ao português por herança do latim sufferre, passando pelo estágio intermediário sufferere (ou sufferrere) no latim vulgar. Os dicionários registram basicamente duas acepções para essa palavra: padecer, ter dor física ou moral (“Meu avô sofreu muito antes de morrer”; “Ele está sofrendo por amor”); e suportar, ser submetido a, passar por (“Meu avô sofreu uma cirurgia”; “Meu time sofreu uma fragorosa derrota” “Os vírus sofrem mutação”).

A primeira acepção é geralmente intransitiva e admite o substantivo deverbal (isto é, derivado de um verbo) “sofrimento”. A segunda é transitiva e não tem deverbal. Pode-se até pensar que quem sofre uma cirurgia ou uma derrota de alguma forma tem dor. Talvez por isso tal verbo, que em latim significava originalmente “sustentar”, tenha assumido também o sentido de “padecer”.

O latim sufferre é formado de sub- (sob, embaixo, de baixo para cima) e ferre (levar, transportar). Portanto, significa levar algo sobre si, estando embaixo da coisa transportada. Como carregar coisas – especialmente pesadas – não é tarefa das mais agradáveis, sufferre logo passou a ter o sentido de “padecer”, para o qual o latim já dispunha do verbo pati (no latim vulgar, patere), do qual derivaram palavras como “paixão”, “passivo”, “paciente”, etc. Em Valério Máximo temos stuprum pati coacta (forçada a sofrer estupro). E em Sêneca, iniuriam pati (sofrer uma injúria).

No entanto, o latim também tinha um terceiro verbo com o mesmo significado: subire, formado de sub- e ire (ir para debaixo de, portanto, submeter-se ou ser submetido a), que também significa “subir” (isto é, “ir de baixo para cima”), sentido que passou ao português.

Curiosamente, outras línguas europeias usam dois verbos diferentes para as acepções “padecer” e “submeter-se”, em geral empréstimos respectivamente de sufferre e subire. No francês temos souffrir e subir; no italiano, soffrire e subire; no inglês suffer e undergo, este último tradução de subire (under = sub, go = ire).

O que se nota é que tanto sufferre quanto subire contêm o prefixo sub-, que significa “embaixo, de baixo”. Assim, em ambos os casos há a ideia de rebaixamento, inferioridade, submissão. Metaforicamente, quem padece uma dor ou se submete a uma experiência está debaixo de algo. Podemos pensar no escravo que sofre ao carregar peso ou que sofre um castigo. No paciente (do latim patiens, “aquele que padece”) que sofre uma cirurgia, situação em que está deitado e tem os cirurgiões trabalhando por cima. Na coluna que suporta (do latim supportare, “levar, portar embaixo”) o edifício. Ou ainda no trabalhador que sustenta (do latim sustentare, forma intensiva de sustinere, “segurar por baixo”) a família.

Consequentemente, o sentido básico de ambos os verbos sufferre e subire é o de suportar, sustentar, isto é, ficar embaixo de algo, resistindo para não deixar cair. Como o velho Atlas, mítico rei da Mauritânia que, segundo a lenda, tendo-se recusado a hospedar Perseu, foi por este metamorfoseado em montanha – o monte Atlas, no norte da África. Como essa montanha era a mais alta dentre as conhecidas pelos gregos, surgiu o mito de que Atlas suportava o céu sobre os ombros. Não por acaso, as estátuas que representam esse personagem o mostram com uma fisionomia sofredora.

Riberrô? Vierrá?

Outro dia ouvi num intervalo comercial de uma TV pública que uma certa cantora lírica francesa, cujo nome me parece que era Catherine Ribeiro (ou Marguerite, ou Jacqueline…), viria se apresentar no Brasil. O curioso – e, para mim, principalmente irritante – é que o locutor pronunciava o seu sobrenome como “riberrô”. Tudo bem que os franceses pronunciem nomes estrangeiros à moda deles, afinal nós também fazemos isso. Aliás, todos os povos fazem isso. É por essa razão que eles pronunciam os sobrenomes do falecido antropólogo Lévi-Strauss (de origem alemã) e do eterno craque do futebol Platini (do italiano) como “levistrrôss” e “platiní”, respectivamente. Como esses sobrenomes são estrangeiros também para nós, tanto faz dizê-los à maneira dos franceses, dos alemães ou dos italianos. Optamos então por pronunciá-los como os próprios donos dos sobrenomes os pronunciam. Pela mesma razão, o linguista Noam Chomsky é conhecido como “tchómski” tanto aqui quanto nos EUA, sua terra natal, embora a pronúncia original do sobrenome, de origem judeu-russa, seja “khómski”.

Agora, pronunciar à moda estrangeira nomes que são legitimamente portugueses já é demais! Lembro que nas Copas do Mundo de futebol de 1998 e 2002 tivemos que aguentar os narradores esportivos brasileiros chamando os jogadores franceses Vieira, Pires e Fernandez de “vierrá”, “pirrés” e “fernandês”. (Na contramão dessa tendência, esses mesmos narradores chamam o futebolista colombiano James Rodríguez de “rames”, à moda espanhola, quando os próprios colombianos – e o próprio detentor do nome – o chamam de “djeims”, tal como o fazem os ingleses, criadores do nome.)

Mas será que os franceses são tão zelosos assim com nossa pronúncia quando se referem a brasileiros com nomes de origem francesa, como o infeliz eletricista-confundido-com-terrorista Jean Charles de Menezes, morto pela polícia londrina em 2005? Há no Brasil uns poucos sobrenomes franceses, como Bittencourt e Fleury, que pronunciamos erradamente como “bitencur” e “fleurí” quando o certo seria “bitãcur” e “flörrí”. E também pronunciamos Jean como “jiã” e não “jã”, e Charles como “xarles” e não “xarl”. Também temos inúmeros brasileirinhos chamados Rian (ou Ryan), nome inglês que virou moda nas classes mais baixas, onde são chamados de “riã” e não de “ráian”. E “riã” (isto é, rien) quer dizer “nada” em francês. Se for mesmo verdade que um nome pode determinar o futuro de uma pessoa…

Mas voltando ao ponto: será que franceses e ingleses pronunciam Jean, Charles, Rian, Bittencourt e Fleury à moda brasileira quando os donos de tais nomes são nossos patrícios? Certa vez ouvi numa emissora de rádio em Buenos Aires o locutor mencionar um filósofo suíço de nome Rota Punto Rota Punto Ru-ce-au e só após alguns segundos de perplexidade compreendi tratar-se de J. J. Rousseau (ou melhor, Jean-Jacques Rousseau), que muitos no Brasil, inclusive na universidade, tratam na intimidade por “jiã-jaques”.

O chauvinismo linguístico

Chauvinismo é o sentimento patriótico exagerado e fanático, que leva o indivíduo a supervalorizar as qualidades de seu país, ao mesmo tempo em que despreza ou abomina tudo que é estrangeiro. Logo, o chauvinista é também um xenófobo, quando não um racista. De modo mais geral, o termo se aplica igualmente a qualquer defensor radical de um conceito, ideia ou ideologia, que tem atitude agressiva contra todos que sejam contrários ao objeto de sua defesa.

Embora apenas uns poucos tenham esse sentimento exacerbado ou sejam capazes de atitudes virulentas, é muito comum que as pessoas nutram um sentimento de amor ao próprio país pelo simples fato de terem nascido nele. Nesse sentido, o chauvinismo nacional decorre do desconhecimento de outras nações e outras culturas.

Da mesma forma, é muito comum o chauvinismo linguístico, o amor que o falante tem pela própria língua, independente de qual seja, apenas pelo fato de que é a língua que ele fala, a primeira – e, na maioria das vezes, a única – que aprendeu.

Gostar ou não gostar de alguma coisa, seja um país, uma cultura, uma língua ou o que quer que seja, é algo bem subjetivo: em geral, não temos motivos racionais para essa ou aquela preferência, mas somos movidos apenas por sentimentos. E estes, muitas vezes, nos são inculcados desde a infância pelos pais, professores, sacerdotes, governantes, meios de comunicação, etc.

No entanto, para a pessoa que crê, sua crença tem valor de verdade. A maioria dos brasileiros, inclusive os que passam as maiores privações neste país, acha o Brasil a melhor nação do mundo. Obviamente, americanos, franceses, japoneses, costa-riquenhos e ugandenses pensam o mesmo de seus países.

De igual maneira, o chauvinismo também aflora quando o assunto é a língua. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi brasileiros dizerem que o português é um idioma belíssimo, que nenhum outro consegue expressar tão bem e de forma tão poética os sentimentos humanos, que nossa língua é a mais linda e perfeita do mundo, e por aí vai. Chauvinismo puro!

Em primeiro lugar, de um ponto de vista estritamente objetivo, não há línguas melhores ou piores: toda língua é igualmente eficiente em sua função de comunicação. Todos os povos usam diariamente seus idiomas nas mais diversas situações de modo fluente e eficaz. Todo idioma dá conta das necessidades de pensamento e expressão dos seus falantes dentro de sua cultura específica.

Em segundo lugar, se quisermos medir de alguma forma e segundo algum critério a “qualidade” das línguas em termos de sua simplicidade, facilidade de aprendizado, praticidade de criar novas palavras, etc., devemos recorrer a uma área da ciência chamada linguística comparada ou comparativa, que faz o cotejo e a análise das semelhanças e diferenças estruturais entre as línguas de todos os seus pontos de vista: fonético, fonológico, morfológico, sintático, lexicológico, semântico e até ortográfico.

Em outro artigo, falei sobre essa especialidade linguística, à qual me dedico formalmente há pelo menos 30 anos e informalmente desde a adolescência. Por meio dela, é possível dizer que o português não é das línguas mais complexas do mundo, mas é mais complexa gramaticalmente do que a maioria de suas irmãs românicas, tendo uma série de irregularidades estruturais que outras línguas não têm ou têm em menor grau, ou, ainda, já tiveram, mas eliminaram. Por exemplo, o português é a única língua-padrão europeia a ter mesóclise, futuro do subjuntivo, pretérito mais-que-perfeito sintético e infinitivo pessoal. É também a língua com a colocação pronominal mais cheia de regras. Do meu ponto de vista particular, embora nenhuma língua seja perfeita (nem o esperanto, idioma artificial extremamente simples em todos os aspectos), há várias línguas próximas ao português com gramática mais simples, pronúncia mais suave e grafia mais lógica do que ele. Quanto a questões subjetivas, como a expressividade ou a beleza poética do idioma, posso garantir que, nas mãos do bom poeta e do bom escritor, qualquer língua é um instrumento perfeito para criar beleza e eloquência.

Mas o chauvinismo linguístico, alheio a todas essas considerações de cunho técnico-científico, endeusa a língua pátria e a cultura que ela expressa sem se dar conta da real importância que essa língua e cultura têm no concerto mundial.

Assim, os falantes ufanistas do português ignoram que nosso idioma, embora seja o quinto mais falado no mundo, só detém essa posição por causa da grande população do Brasil. E que, mesmo sendo muito falada, é muito pouco difundida internacionalmente. Como resultado, também a literatura e a cultura veiculadas por ela são pouco conhecidas, com exceção talvez de Paulo Coelho, das telenovelas brasileiras, do nosso futebol e de alguns artistas da MPB. Em termos de relevância ou interesse dentro da própria Europa, o português ocupa mais ou menos a mesma posição que o norueguês ou o polonês.

No aspecto político, econômico, científico e tecnológico, nenhum país lusófono tem destaque mundial. Portugal foi um grande império colonial no século XVI, mas, mesmo assim, jamais foi uma potência política ou militar na Europa, capaz de influir nos destinos da história do continente, que sempre girou em torno de players mais centrais, como a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Áustria e a Itália. Mesmo países periféricos como a Espanha, a Suécia e a Rússia tiveram papel maior que Portugal na história europeia e ocidental. O Brasil é, sem dúvida, a nação lusofalante mais destacada no plano econômico, mas ainda uma economia secundária e pouco confiável. No terreno político, nem Brasil nem Portugal têm peso em termos globais. (Que dirá os demais países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde ou Timor Leste!) Na verdade, grande parte do noticiário sobre nós que chega ao mundo desenvolvido trata de mazelas como fome e doenças ou acontecimentos folclóricos, como o mau comportamento de nossos dirigentes.

Por tudo isso, vejo com perplexidade e certo desalento as manifestações chauvinistas com relação ao nosso país e à nossa língua. Falta-nos um certo senso de realidade. Mas fazer o quê? A maioria dos povos do mundo não têm nenhuma razão objetiva para se orgulhar de si mesmos, mas se orgulham. O chauvinismo é próprio da natureza humana.

A graça do indulto

Desde que o presidente Jair Bolsonaro concedeu ao seu aliado político, o deputado Daniel Silveira, o indulto individual à pena a que fora condenado pelo Supremo Tribunal Federal, indulto esse chamado tecnicamente de graça, essa palavra veio à baila e ao noticiário nesse sentido em que quase ninguém, a não ser os juristas, a conhecia. Vamos então falar sobre esse vocábulo, um dos mais polissêmicos (isto é, que têm mais significados) da língua portuguesa.

Em primeiro lugar, graça quer dizer favor, mercê. Mas também pode ser benevolência, estima, amizade. Pode ainda, segundo a teologia, ser a participação do homem na vida divina, antes do pecado, assim como um socorro espiritual concedido por Deus. E também perdão, indulgência, indulto (aqui temos o sentido do ato de Bolsonaro). Pode ser algum atrativo pessoal, físico ou moral, um certo charme ou elegância. Pode ser um chiste, uma pilhéria. E ainda o nome de uma pessoa (Qual é a sua graça?). Isso sem falar que há mulheres cujo nome é Graça. Como nome próprio, é também o designativo de três deusas gregas, as três Graças. E de graça quer dizer “grátis”. Pode-se ainda cair nas graças de alguém ou estar em estado de graça. E, até que, no século XVI, o rei de França Francisco I instituísse o tratamento de “majestade” para reis, os súditos se dirigiam ao soberano pelo pronome de tratamento Vossa Graça. Finalmente, é graças à graça presidencial (desculpem o trocadilho) que trato hoje deste assunto aqui no blog.

O que há de comum entre as palavras graça, grato, gratidão, agradecer, agradar, desgraça, desgraçado, engraçado, grátis, gratificar, congratular, agraciar, congraçar, e destas com favor, mercê e obrigado? Na primeira série de palavras fica clara a presença de um radical graç‑, graci‑, grat‑ ou grad‑, que remete à raiz latina grat‑, de gratus, “grato, agradecido”. Portanto, o latim gratia, qualidade de gratus, e que deu o nosso graça, era não só a gratidão de quem recebe um favor, mas também o próprio favor (e está aí a relação com a palavra favor, da qual falarei mais adiante). É que havia entre os antigos a obrigação da reciprocidade, isto é, quem recebe um favor fica em débito, portanto está obrigado a retribuir ao seu donatário (será que hoje essa reciprocidade ainda existe?). E assim temos a explicação de por que dizemos obrigado ao agradecer um favor.

É que favores ou graças são algo que não se tem nenhuma obrigação de prestar, mas se faz por mera generosidade, isto é, “de graça” ou “grátis”. Por isso, em espanhol se diz gracias, em italiano grazie e em francês merci (que quer dizer “mercê”, ou seja, “favor”) em lugar do nosso obrigado. Por isso também, a Virgem Maria é “cheia de graça”, de generosidade. E a exclamação “Graças a Deus!” é uma expressão de agradecimento por uma graça alcançada.

Logo, agradar significa “tornar grato, receptivo, simpático”. E como se granjeia a simpatia de alguém? Sendo alegre, descontraído, bem-humorado, “engraçado”. Daí que graça também passou a significar “alegria, jovialidade” (por exemplo, a graça da mulher brasileira) e, por extensão, “hilaridade, comédia”. Como resultado, o bom humor evoluiu para o senso de humor e o humorismo.

Outra maneira de agradar alguém é gratificando-o – financeiramente, de preferência. Mas há muitas atividades que, mesmo não remuneradas, são gratificantes. E quando alguém faz algo gratificante, para si ou para a coletividade, nós nos congratulamos com ele.

Mas, se a pessoa perde a confiança de seu benfeitor, cai em desgraça. Na Idade Média, o fiel que supostamente caíra em desgraça em relação a Deus se tornava um desgraçado. Esse adjetivo, que inicialmente significava apenas “infeliz”, assumiu uma forte conotação pejorativa, tendo sido até algumas décadas atrás um dos insultos mais contundentes de que dispúnhamos. Hoje em dia, parece estar caindo em desuso, substituído por xingamentos de mais baixo calão.

Voltando ao caso Silveira, é possível dizer que ele foi “agraciado” com o perdão presidencial.

Finalmente, favor, que não tem relação etimológica com graça, mas é seu sinônimo em muitos contextos, também nos deu, através do italiano, favorito, que quer dizer “favorecido”. Assim, quando dizemos que numa licitação pública houve favorecimento a um dos concorrentes, o que estamos dizendo é que a empresa vencedora era favorita desde o início, portanto sua vitória já estava decidida previamente. Fato corriqueiro, mas nem um pouco engraçado, no nosso país. Da mesma forma que anistiar por razões políticas ou pessoais quem é condenado pela justiça não tem a menor graça.

O dengo e a dengue

Ainda nem terminou a pandemia de covid-19, e o Brasil já vê explodirem os casos de dengue, mal que nos assola quase todos os anos dada a dificuldade no combate ao seu transmissor, o mosquito Aedes aegyptii, em parte por descaso de parcela da população, que deixa água acumulada em vasos, latas, pneus, piscinas não tratadas e outros repositórios de água parada que servem de criadouro ao inseto.

Mas de onde veio a palavra que nomeia essa doença? Há uma controvérsia sobre isso. Alguns dicionários trazem dois verbetes distintos com a denominação dengue, o que configuraria um caso de homonímia. Temos então dengue1, proveniente do quimbundo ndenge, cuja forma paralela é dengo, que significa “birra, melindre, faceirice, requebro”. É aquele charminho que as crianças – e também certos adultos, especialmente mulheres – fazem, donde chamá-los de dengosos. E temos também dengue2, de origem castelhana, referente à doença contagiosa propriamente dita.

Só que o dicionário etimológico Corominas da língua espanhola só registra uma entrada para dengue e a ela atribui tanto o significado de “melindre” quanto o de “doença epidêmica”. Segundo essa obra, por sinal um dos melhores dicionários etimológicos que existem, tal palavra seria de origem expressiva na primeira acepção e relacionada a outras, como dingolondango, “mimo”, tenguedengue, “melindre, afetação”, e tenguerengue, “a ponto de cair”. Portanto, justamente aquela acepção que em português se atribui ao quimbundo, língua africana falada em Angola, parece ser tão castelhana quanto a segunda, a de doença.

No entanto, como a palavra data em espanhol de 1732, época em que os colonizadores ibéricos já traficavam escravos da África, não é impossível que a língua espanhola tenha tomado o vocábulo do quimbundo. Quanto aos supostos cognatos dingolondango, tenguedengue e tenguerengue, tudo pode não passar de mera coincidência. Esses impasses deixam louco qualquer etimólogo.

Pelo menos, no Brasil fazemos a distinção entre o dengo, isto é, a qualidade de quem é dengoso, e a dengue, enfermidade que mata pessoas todo ano, de modo que, qualquer que seja a origem da palavra – ou das palavras, caso sejam de fato homônimas –, jamais associamos os sintomas da infecção com uma possível frescura do doente.

De onde vem o sufixo “‑alha”?

Olá, Professor! Gostaria de saber de onde vem o sufixo de palavras como “gentalha”, “parentalha” etc. Muito obrigado.
Wilberley Araújo Gomes

O português tem muitas palavras terminadas em -alha, como as citadas gentalha e parentalha, e também canalha, migalha, muralha, mortalha

Também tem palavras terminadas em -ália, como genitália, parafernália e Tropicália. Ambos os sufixos provêm do latim -alia, plural neutro de -alis, sufixo que em português forma adjetivos como nacional, central, cultural, etc. A diferença é que -alha nos chegou por herança latina ou empréstimo de outra língua românica, enquanto -ália é forma culta, vinda do latim por empréstimo.

O sentido latino desse sufixo era plural e coletivo. Assim, se genitale era a redução por elipse da expressão genitale organum (“órgão genital”), o plural genitalia significava “os genitais” (novamente subentendendo “órgãos”). Igualmente, Saturnalia eram as Saturnais, festas em honra do deus Saturno (redução de Saturnalia festa, plural de Saturnale festum, “festa saturnal”). Como a festa durava vários dias, era natural que se usasse sua denominação no plural. E paraphernalia eram os pertences pessoais que a noiva levava para seu novo lar após o casamento. Muitas dessas palavras passaram ao português em sua forma erudita, introduzidas por literatos, como genitália e parafernália. Outras herdamos diretamente do latim e, nesse caso, houve evolução fonética transformando o l seguido de i na consoante palatal lh. Foi assim que o latim Parentalia, “festa anual em homenagem aos parentes mortos” (plural neutro de parentalis, derivado de parentes, “antepassados, parentes”) resultou no português parentalha, com o sentido de “reunião de parentes, conjunto de todos os parentes”. A partir daí, o sufixo -alha se tornou produtivo na formação de coletivos, especialmente depreciativos, como gentalha (reunião de gente baixa, populacho, ralé). Aliás, canalha, que nos chegou do italiano canaglia (o sufixo italiano -aglia tem a mesma origem e significados que o português -alha) também significa “ralé, populacho, escória”, portanto tem sentido coletivo, e posteriormente passou a designar também o membro dessa classe. E como a tradição costuma associar às pessoas de baixa extração social os piores defeitos, daí para “canalha” passar a significar “calhorda, patife” foi um pulinho. Da mesma forma, migalha é um diminutivo um tanto quanto depreciativo de miga, que já é por si só qualquer coisa insignificante.

Aqui um comentário: o italiano canaglia era um coletivo de cães (cane em italiano), não em seu sentido literal de matilha de cachorros e sim no de pessoas biltres. É que em italiano cane também significa “biltre, patife, calhorda”, como na expressão figlio di un cane, cujo equivalente em português acho que não preciso mencionar, né?

Portanto, nós seres humanos sempre atribuindo aos pobres animais os defeitos que são nossos e exclusivamente nossos!

O sufixo culto -ália se presta à formação de nomes designativos de reuniões de pessoas, como o movimento musical da Tropicália (reunião de músicos de um país tropical) ou a Carnavália, feira de negócios relacionados ao Carnaval (e também título de uma canção dos Tribalistas).

Mas atenção: nem toda palavra portuguesa terminada em -alha ou -ália possui esse sufixo. Palha vem do latim palea, tralha vem de tragula, fornalha de fornacula, navalha de novacula, e assim por diante.