O que calma tem a ver com calor?

Nesse calorão que anda fazendo, é preciso beber muita água e manter a calma. Mas o que a calma tem a ver com o calor? Ao contrário do que possa parecer, tem muito a ver.

Tudo começa com o grego kaûma, “calor”, parente de palavras que deram em português cáustico, cautério e cauterizar, portanto termos que remetem à ideia de “fogo, queimar”. Kaûma passou ao italiano como calma, em que o u foi trocado pelo l por analogia com as palavras caldo, “quente”, e calore, “calor” — ocorreu aí a famosa pseudoetimologia, do mesmo modo como o nosso redemoindo virou rodamoinho por se acreditar que tenha algo a ver com rodar (afinal os redemoinhos são ventos que rodam).

Pois bem, o italiano calma significava originalmente o mesmo que o grego kaûma: calor. Mas, por uma metonímia do tipo “efeito pela causa”, passou a designar a pasmaceira provocada pelo calor, e daí quietude, falta de movimento, de agitação. Essa calma era especialmente a ausência de ventos no mar, a calmaria que impedia os navios de navegar ou os obrigava a utilizar remos. Daí para o sentido de tranquilidade enquanto ausência de tensão nervosa foi um pulinho. E daí também surgiram o adjetivo calmo e o verbo acalmar. Posteriormente apareceu o medicamento contra ansiedade chamado calmante.

Pois é, nestas noites quentes, abrasadoras, cáusticas, tem gente até tomando calmante para conseguir dormir.

Féria, feira, férias e feriado: o que essas palavras têm a ver?

Em novembro temos dois feriados próximos, a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra, sendo que, este ano, o segundo será um feriadão prolongado, e as pessoas já se preparam para viajar e curtir um pouco a vida fora das grandes cidades, em seus refúgios na praia ou no campo. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado — e consequentemente da palavra — era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”. E, por sinal, holiday é a contração de holy day, “dia santo”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

E a féria era originalmente o dinheiro arrecadado pelos comerciantes em um dia de feira. Daí que féria passou a significar o ganho diário de um profissional, a quantia ganha por ele durante uma diária de trabalho.

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs- (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com prudência nas estradas e moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto. E até a volta!

Uma correção e um brinde

Duas semanas atrás, apresentei aqui uma etimologia que depois constatei estar incorreta; por isso, hoje faço a retificação. Trata-se da expressão “não ter eira nem beira”, isto é, ser muito pobre. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que eira, do latim area, que também deu o português área, era uma espécie de roçado que os mais ricos tinham em suas casas e os pobres não. E beira era o beiral que supostamente cobria a eira. Supostamente porque é pouco crível que um pequeno beiral pudesse cobrir uma eira. O mais provável é que a palavra beira tenha entrado na expressão apenas para rimar com eira. Em resumo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente morava em péssimas condições.

A versão que apresentei no artigo anterior é bastante corrente entre os guias turísticos de cidades históricas brasileiras ao referirem-se às casas coloniais, mas infelizmente não corresponde à realidade. E o problema é que falsas etimologias às vezes enganam até os especialistas.

Mas vamos ao brinde: saber alguma coisa de cor é saber de memória, certo? Mas de onde vem a palavra cor, que só ocorre na expressão “de cor”? Em português medieval, cor, com o aberto, significava “coração”, do latim cor, cordis, donde o nosso cordial. Posteriormente, essa palavra foi suplantada pelo derivado coração, cujo sufixo ‑ção ainda não está bem explicado: alguns etimólogos o atribuem ao latim ‑tionem, sufixo que indica ação; outros veem aí um aumentativo de cor.

Mas por que saber algo de memória teria a ver com o coração se é no cérebro que armazenamos nossas memórias? É que os antigos não sabiam disso (não havia neurociência na época) e acreditavam que a sede dos pensamentos e sentimentos era o coração, afinal é ele que bate mais forte quando estamos emocionados.

Da expressão “saber de cor” saiu a mais extensa “saber de cor e salteado”, isto é, pulando partes, sem seguir a ordem em que as informações foram memorizadas.

A potência e o ato

Antes que algum engraçadinho faça piada, já aviso que o título deste artigo não tem nada a ver com sexo. O que quero tratar aqui são as palavras gregas érgon e enérgeia, utilizadas por Aristóteles para resolver uma questão sobre a perenidade ou mutabilidade do Ser, colocada por outro filósofo grego, Parmênides, e que admitem várias traduções em português moderno dependendo da área do conhecimento em que se esteja. Potência e ato produzem, por exemplo, os derivados potencial e atual (no sentido de “efetivo”, não no de “contemporâneo”).

Em áreas como a administração de empresas e a engenharia, é comum distinguir entre a produtividade e o produto. Aliás, aí costuma aparecer um terceiro termo, intermediário entre eles, a produção. Logo, produtividade é a quantificação da capacidade de realizar a produção; esta é o processo de geração de produtos, sejam eles materiais (bens) ou imateriais (serviços); e o produto é o bem em si, objeto de valor econômico.

Na física, distinguem-se os conceitos de energia e trabalho. Realizar um trabalho é aplicar uma força sobre um corpo de modo a provocar seu movimento. Para realizar esse trabalho, é preciso que haja energia: um motor elétrico só se movimenta e executa um trabalho (como mover um portão automático) se houver energia elétrica passando em seu interior.

Como já deve ter dado para perceber, enérgeia deriva de érgon por parassíntese (parassíntese é o resultado da prefixação e sufixação simultâneas), mediante o prefixo en‑ e o sufixo ‑eia. E érgon, “trabalho”, que aparece em termos do português como ergonomia e teste ergométrico, vem da raiz indo-europeia *werg-, que também produziu o inglês work, igualmente “trabalho”.

A ideia central de Aristóteles ao introduzir esses termos em sua filosofia era distinguir entre algo real, palpável, que ocorreu ou está ocorrendo, e algo apenas possível ou provável, que pode ocorrer ou não. Para isso, ele de certa forma retoma os conceitos platônicos de mundo real e mundo ideal: o real é o ideal realizado.

O já citado Parmênides argumentava que, se o ser é e o não ser não é (logo o Nada não existe), a mudança seria uma ilusão, já que implicava a transformação do ser em não ser e vice-versa — para que algo mude, é preciso que algo que não era passe a ser.

Aristóteles responde que a árvore já existe potencialmente na semente que será plantada, logo não há surgimento nem desaparecimento, apenas transformação, o que reforça o pensamento de outro filósofo, Heráclito, segundo o qual pánta rheí, “tudo flui” em grego, isto é, tudo muda o tempo todo, de modo a ser impossível entrar duas vezes no mesmo rio: a cada vez, tanto nós quanto o rio já mudamos.

Em suma, potência remete ao poder (ou não) ocorrer, e ato, ao efetivo ocorrer. A potência dá origem à noção filosófica e também linguística da modalidade e, por conseguinte, dos verbos modais (querer, dever, saber, poder). Por sinal, para quem tiver interesse, em meu mais recente livro, O universo da linguagem, há um capítulo falando sobre a questão da modalidade.

Uma curiosidade: em inglês, actual não significa “atual, contemporâneo” e sim “efetivo”. Essa língua preservou o sentido original da palavra latina actualis, “relativo ao ato”.

Pensando bem, este artigo até poderia ser também sobre sexo. Afinal, a potência sexual significa a capacidade de realizar o ato sexual, e o ato propriamente dito é o sexo efetivamente realizado.

Mais algumas palavras que se usam numa única expressão

Duas semanas atrás, publiquei uma lista de palavras da língua portuguesa que só ocorrem numa única expressão, isto é, estão fossilizadas numa fórmula pronta e jamais ocorrem fora dessa fórmula. Só que alguns leitores reclamaram da falta de certas expressões; por isso, estou elencando mais algumas. São elas “a esmo”, “às avessas”, “sem eira nem beira”, “ao deus-dará”, “de chofre”, “de enfiada” e “ao bel-prazer”.

“A esmo”, que significa “ao acaso” e é expressão equivalente à anteriormente citada “à toa”, contém o termo esmo, “cálculo aproximado, estimativa grosseira”, derivado de esmar, do latim aestimare, “estimar”. E aestimare contém o elemento aes, que quer dizer “bronze, metal precioso” e, consequentemente, “dinheiro”. Logo, estimar era primeiramente avaliar o preço de uma mercadoria.

“Às avessas” contém a palavra avessas, a qual tem a ver com avesso, do latim adversus, que também nos deu por via culta adverso. A ideia por trás dessa expressão é bem transparente: “às avessas” significa “de forma contrária ao usual ou ao que recomenda o bom senso”.

“Não ter eira nem beira”, como se sabe, é o mesmo que “não ter um tostão furado” ou “não ter onde cair morto”. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que, até o século XIX, eira e beira eram os nomes do térreo e do primeiro andar dos sobrados. Os ricos moravam em casas de dois andares; os pobres, em casas térreas. Logo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente não tinha onde morar, era morador de rua ou indigente.

“Viver ao deus-dará” é viver sem recursos, sujeito às vicissitudes da sorte, abandonado ao próprio destino. É que antigamente, diante de tantas adversidades, os desvalidos, geralmente muito religiosos, costumavam dizer num tom misto de conformismo e esperança que na hora do aperto Deus lhes proveria. Perguntados como iriam se virar, respondiam: “Deus dará”.

“De chofre” e “de enfiada” são expressões um tanto antiquadas, mas cuja menção vale a pena. Chofre, palavra onomatopaica, quer dizer “choque repentino” e também “tiro ao pombo”, prática abjeta que alguns idiotas chamam de esporte, além de “tacada de bilhar”. Portanto, “de chofre” significa “repentinamente”.

Enfiada é uma fileira de coisas, especialmente objetos atravessados por uma mesma linha, como as contas de um colar. Logo, “de enfiada” remete a uma grande quantidade de coisas entrouxadas de uma só vez, como um amontoado de informações que se dá a alguém sem que haja tempo de o cérebro processá-las. Antigamente se dizia, por exemplo, que fulano havia dito uma enfiada de disparates.

Finalmente, “fazer algo ao seu bel-prazer” contém a palavra composta bel-prazer, junção de bel, forma apocopada de belo, e prazer, cujo significado é “arbítrio, vontade própria”.

Não é curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes?

Qual a diferença entre “judeu”, “hebreu”, “israelense” e “israelita”?

A onda migratória que tem invadido a Europa nos últimos anos, formada em dado momento sobretudo por refugiados sírios e africanos, nos faz lembrar que o Brasil sempre foi um país aberto à imigração. De fato, muito do nosso progresso devemos a povos que para cá vieram e com o seu trabalho ajudaram a construir esta nação, dentre os quais se destacam portugueses, espanhóis, italianos, alemães, suíços, poloneses, japoneses, árabes e judeus.

Estes dois últimos povos não constituem propriamente nacionalidades e sim etnias, pois ninguém tem nacionalidade árabe (quem nasce na Arábia Saudita é de nacionalidade saudita e não árabe), mas o que chamamos de árabes eram, na verdade, imigrantes na sua maioria sírios ou libaneses, cuja língua nativa é o árabe. Portanto, árabes são todos os povos cujo idioma pátrio é o árabe. Árabe é, pois, um termo étnico e linguístico.

Bem mais difícil é definir o que seja judeu. Para complicar, muitos usam as palavras judeu, hebreu, israelita e mesmo israelense como sinônimos, o que dá margem a uma grande confusão — e a muitos preconceitos também, diga-se de passagem.

Comecemos então por definir o mais simples: israelense é o termo jurídico que define o cidadão nascido no Estado de Israel ou que possua a cidadania desse Estado, qualquer que seja a sua etnia ou religião. Tanto que há árabes muçulmanos nascidos em Israel e, portanto, detentores da cidadania israelense, o que lhes dá direito a utilizar os serviços públicos daquele Estado. Grande parte do conflito entre judeus e palestinos se dá exatamente por causa da disputa de ambos os povos pelo mesmo território.

israelita, hebreu e judeu são nomes que originalmente designavam um povo de língua semítica que habitava a região do Oriente Próximo chamada Judeia. Lá constituíram um reino chamado Israel (não confundir com o atual Estado de Israel), daí serem chamados de israelitas (isto é, filhos de Israel). Mas como os hebreus eram praticantes de uma religião monoteísta por eles mesmos criada e que veio a ser chamada de judaísmo, o termo judeu passou ao mesmo tempo a designar o povo hebreu e sua religião. Enquanto todos os praticantes do judaísmo eram hebreus e todos os hebreus praticavam essa religião (ou seja, as duas comunidades coincidiam totalmente), hebreu, judeu e israelita eram sinônimos perfeitos, tanto para denominar a etnia quanto a religião. (A única diferença, se podemos mencionar alguma, é que hebreu era o habitante de Hebron, judeu o habitante do reino de Judá, e israelita o habitante do reino de Israel. Na prática, todos os três um mesmo povo.)

As coisas começaram a se complicar quando ocorreu a Grande Diáspora judaica, que levou o povo hebreu a se espalhar por vários territórios ao redor do mundo e a assumir várias nacionalidades. Os descendentes dos habitantes da Judeia continuaram a professar o judaísmo e a se sentir pertencentes ao povo de Israel, daí continuarem a se autodenominar judeus. Mas, como uma pessoa pode converter-se ao judaísmo sem ser de etnia hebraica, assim como um descendente de hebreus emigrados pela Diáspora pode ter qualquer nacionalidade, além de poder converter-se a qualquer religião — ou mesmo renunciar a toda fé, como muitos judeus que se declaram ateus —, o termo judeu começa a comportar uma ambiguidade que não permite saber se estamos falando de raça, etnia, nacionalidade ou religião.

Para tornar mais claro o raciocínio, vou adotar termos alternativos para distinguir todos esses conceitos. Em primeiro lugar, convencionemos que o praticante da religião judaica, qualquer que seja sua origem étnica, seja chamado de judaísta. Reservaremos então o termo hebreu para designar os antigos habitantes de Hebron e da Judeia, que por volta do século XIII a.C. criaram o judaísmo e constituíram o reino de Israel.

Por conseguinte, chamaremos de hebreodescendentes aos descendentes dos antigos hebreus, quer tenham nascido em Israel ou em qualquer outro país, quer sejam judaístas ou praticantes de qualquer outra religião (ou de nenhuma). O resultado é que costumamos chamar de judeus tanto aos judaístas quanto aos hebreodescendentes. E é talvez aí que nasce o preconceito que persegue os judeus.

Vou fazer uma analogia para que o leitor entenda melhor. Sou brasileiro, neto de italianos, e venho de uma família católica, embora eu mesmo seja ateu. Os italianos, como se sabe, têm como pátria a Itália e são descendentes, assim como os franceses, espanhóis, portugueses, romenos, etc., dos antigos romanos, povo que viveu na Antiguidade num grande império chamado Roma.

Portanto, sou brasileiro, mas, por ser neto de italianos, tenho direito à cidadania italiana, o que quer dizer que posso morar na Itália e lá usufruir todos os serviços públicos a que os cidadãos italianos têm direito. No entanto, jamais digo que sou italiano, até porque isso seria uma impropriedade (não fui criado na Itália, não sou falante nativo do idioma italiano nem compartilho a maioria das características culturais do povo italiano; além disso, não me naturalizei italiano). Nesse sentido, sou 100% brasileiro e me orgulho disso apesar de todas as mazelas do nosso país. Além disso, poderia dizer de mim mesmo que sou um romanodescendente, já que meus ancestrais há 2 mil anos eram romanos, mas, sinceramente, não vejo muito sentido em proclamar isso. (Os romanodescendentes são o que se costuma chamar simplesmente de latinos, mas tampouco saio por aí dizendo que sou um latino.) Em suma, sou apenas um brasileiro.

No entanto, tenho um amigo que se diz judeu. Assim como eu, ele é nascido e criado no Brasil, portanto sua nacionalidade é oficialmente brasileira, embora ele também goze de cidadania israelense. Seus pais são igualmente brasileiros; seus avós vieram da Alemanha, Polônia e Ucrânia; seus bisavós, da Hungria, Ucrânia e Rússia; e se prosseguirmos nessa viagem ao passado de sua genealogia, encontraremos pessoas do Leste europeu pelo menos nas 20 últimas gerações, de modo que seu mais recente antepassado a viver na Palestina deve tê-lo feito por volta do século X ou XI da era cristã.

Esse meu amigo nasceu numa família em que todos praticam o judaísmo, mas ele, que cedo se interessou pelas ciências naturais, tornou-se cético, agnóstico e enfim ateu. Hoje é professor de física numa importante universidade. Ele não é judaísta nem hebreu (nem poderia, já que os hebreus, segundo a minha nomenclatura, bem entendido, não existem mais), é apenas um hebreodescendente bem distante. Entretanto, ele se diz judeu e assim a ele se referem os outros.

Eu e ele temos situações análogas. Somos ambos nascidos e criados no Brasil, filhos de brasileiros, descendentes de europeus até onde a árvore genealógica de nossas famílias alcança, além de não praticarmos nenhuma religião. No entanto, ele se considera pertencente a um povo que não é o brasileiro, nem o alemão nem o polonês nem o ucraniano: ele é integrante do povo judeu.

O que vocês achariam se eu eventualmente dissesse que faço parte do povo católico? Ou do povo romano? Algumas seitas cristãs até costumam denominar seus fiéis de “povo de Deus”, mas a palavra povo aí não tem qualquer conotação étnica como tem no caso dos judeus; além disso, quem me conhece e sabe do meu anticlericalismo, daria risada do meu suposto catolicismo.

Mais estranho ainda seria se eu reivindicasse para mim a etnia romana, já que sou descendente do “povo de Roma”, que um dia também se dispersou, se miscigenou e virou italiano, francês, português, etc. Como tenho senso de ridículo, digo que sou brasileiro e, se quiserem saber mais, explico que sou neto de italianos. Ponto final.

A questão é que nós, descendentes de italianos, em geral não nos consideramos um povo à parte dentro de outro povo: não somos uma nação dentro do Brasil, como são os povos indígenas. Tampouco os italodescendentes espalhados pelo mundo agem como se fossem uma entidade transnacional, uma nação sem território que está em todos os territórios. (A bem da verdade, uns poucos, bem poucos mesmo, até fazem isso.)

É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. Mas não nos esqueçamos de que a Itália também só passou a existir como Estado em 1861: antes disso era, no dizer de Metternich, “uma mera expressão geográfica”.

Outro argumento que se pode lançar é que, durante séculos, independentemente de sua origem geográfica, os judeus foram discriminados no Ocidente pela Igreja Católica, o que fez com que todos eles fossem vistos como um único povo e, ao mesmo tempo, um povo distinto dos europeus. Mas é preciso lembrar que, durante a Idade Média, em que essa perseguição foi mais sistemática, não só os judeus eram vistos como uma nação: a própria cristandade constituía uma nação que transcendia territórios e Estados. Portanto, se em tempos medievais havia apenas duas nacionalidades — judeus e cristãos —, hoje as coisas não são mais assim: os cristãos deixaram há muito de ser uma nação transestatal; hoje a nacionalidade política se sobrepõe amplamente à identidade religiosa. O mesmo poderia valer em relação aos judeus.

O fato é que o apego de meu amigo às suas longínquas origens hebreias, a ponto de ele se identificar com uma nação que tecnicamente não existe, é o que atrai para si uma certa suspeita. Como ele mesmo me relatou, já foi algumas vezes vítima de preconceito racial por ser judeu. Mesmo veladamente, alguns colegas deixam transparecer alguma desconfiança, pois o veem como um “agente infiltrado”. Certamente não é o caso do meu amigo, mas muitos judeus tomam atitudes que contribuem para essa imagem de “jogo duplo”: ricos empresários judeus nascidos e criados no Brasil que enviam dinheiro para ajudar Israel na guerra contra os palestinos; judeus nascidos e criados no Brasil que pedem em testamento para ser enterrados em Israel; muitos que se organizam em comunidades e clubes em que a entrada de não judeus é vista com muita estranheza, e assim por diante.

Neste momento em que se afigura uma guerra entre Israel e o Hamas que tende a ser longa e sangrenta, alguns fatos me chamam a atenção. Outro dia, uma “brasileira” (aparentemente carioca, a julgar pelo sotaque) que vive em Israel e tem sobrenome eslavo declarou na televisão que vai alistar-se no exército israelense e combater ao lado do namorado, que é soldado e já está na linha de frente da batalha. Ela tranquiliza sua família, que vive no Brasil, e afirma que é preciso lutar por Israel, segundo ela, o único lugar em que os judeus podem viver. A julgar por sua fala, sua pátria é Israel e não o Brasil, e ela não vê nosso país como um lugar onde judeus possam viver, embora ela própria tenha nascido e por muito tempo vivido no Brasil, e sua família ainda esteja aqui e em segurança.

Outra jovem nascida e criada no Brasil, desta vez com sotaque paulista, no aeroporto já de partida para Israel, declarou à reportagem que está indo lutar na guerra para defender a sua pátria.

De modo geral, a tendência de os judeus se considerarem uma nação à parte dentro de qualquer outra nação que habitem, somada ao fato de não se misturarem com facilidade a outras etnias (casamentos entre judeus e não judeus são pouco frequentes e nem sempre bem vistos), faz com que, apesar de serem vítimas históricas do racismo, sejam muitas vezes injustamente tachados de racistas.

Em resumo, brasileiros filhos de brasileiros, netos de alemães, bisnetos de poloneses e tataranetos de ucranianos são muitas vezes vistos — especialmente pelos menos informados — como se fossem estrangeiros, não importa quão patrioticamente brasileiros eles sejam. Essa ambiguidade no significado da palavra judeu tem, a meu ver, grande peso nessa visão preconceituosa que cerca os judeus.

Enfim, judeus ou israelitas eram em primeiro lugar os hebreus da Antiguidade. Da Idade Média em diante, passaram a ser os judaístas e os hebreodescendentes, sendo que, até certo ponto, todos os judaístas eram hebreodescendentes e vice-versa. Hoje há judaístas que não são hebreodescendentes (como a cantora Aracy de Almeida no fim da vida), há hebreodescendentes que não são judaístas (como Bob Dylan, que se tornou cristão, ou Woody Allen, que é ateu), e nenhum deles é israelense, no sentido de “nascido em Israel”, embora possam usufruir essa cidadania. E, numa grosseira simplificação de linguagem, chamamos a todos eles de judeus.

Enquanto isso, eu, um legítimo romanodescendente, membro da nação cristã (embora ateu), sou apenas um brasileiro. E já acho bastante.

*-*-*

No quadro comparativo abaixo, procuro fazer uma grosseira analogia entre a comunidade judaica e a latina ou romanodescendente.

Quadro comparativo judeus x romanos e seus descendentes

Hebron, Judeia, Judá, reino de IsraelImpério Romano, Itália romana
Estado de Israel (fundado em 1948)República Italiana (fundada em 1861)
judeus, hebreusromanos
hebreodescendenteslatinos
judaístascatólicos

Dor de cabeça e dor na cabeça

Tempos atrás, surgiu um debate dentro do grupo de Whatsapp dos colaboradores da página do Facebook Língua e Tradição (www.facebook.com/linguaetradicao), da qual faço parte, em torno de uma postagem cuja imagem aqui reproduzo.

A pergunta da autora do post é: por que dizemos “dor de cabeça”, “dor de barriga”, mas “dor NO braço” e não “dor DE braço”. Na ocasião, apresentei a teoria de que “dor DE” se refere a dores internas, sobretudo as provocadas por disfunção orgânica, ao passo que “dor NO” se refere a dor externa, provocada por contusão ou mau jeito. Por exemplo, “dor de cabeça” é a chamada cefalalgia; já “dor na cabeça” pode ser fruto de uma pancada. A dor de cabeça em geral é uma dor no cérebro, assim como a dor de barriga é uma dor no intestino. Já uma dor na cabeça ou na barriga afeta os músculos ou os ossos imediatamente abaixo da pele.

Meu colega e amigo Chico Viana complementou: “Parece que a preposição ‘de’ introduz um determinante que alude a algo conhecido, consensual. Ouvir de alguém próximo que está com ‘dor de cabeça’ não preocupa tanto quanto dele ouvir que está com uma ‘dor na cabeça’. Esta última pode ser um sinal de algo mais grave. O mesmo se aplica, por exemplo, a ‘dor de barriga’ e ‘dor na barriga’. A preposição ‘em’ acena ao desconhecido e sugere a necessidade de procurar logo um médico”.

E nosso outro colega e amigo, Rafael Rigolon, acrescentou: “Temos ainda o caso fantástico da ‘dor de cotovelo’ (o despeito amoroso) e a ‘dor no cotovelo’. A primeira é terrível. Só não é pior do que a ‘dor de olvido’ (Millôr)”.

Em resumo, “dor DE” é uma dor conhecida, como a dor de cabeça, de barriga ou de cotovelo, cujas causas são rotineiramente as mesmas. Já “dor EM” é uma dor cuja causa pode ser conhecida ou não, mas nunca é a usual. Por isso, o filhinho de três anos da Carina, autora da postagem, que ainda não é proficiente nessas sutilezas da língua portuguesa, falou em “dor de braço” por analogia com essas dores mais comuns que sentimos cujo nome começa com “dor de”. Toda língua tem essas nuances sutis que só dominamos à medida que vamos nos tornando falantes fluentes. E que um falante não nativo às vezes nunca chega a dominar.

A título de exemplo, o inglês também distingue entre uma dor corriqueira, de causa rotineira, como a dor de cabeça, e uma dor de causa diferente, pouco comum, como uma dor na cabeça: a primeira se chama headache; a segunda, pain in the head.

Palavras que se usam numa única expressão

Vocês já devem ter notado que o português tem várias palavras ou expressões que se usam num único contexto e por isso mesmo estão dicionarizadas junto a esse contexto, não é?

Palavras como tona, toa, léu, dentre outras, só ocorrem em expressões como “vir à tona”, “estar à toa”, “andar ao léu”… Além dessas, temos “à queima-roupa”, “por um triz”, “em riste” (referindo-se unicamente a “dedo”), “breca” (só nas expressões “com a breca”, hoje desusada, e “levado da breca”), “caramba” (só em “pra caramba” e na exclamação “Caramba!”), “de soslaio”, “às pressas”, “de esguelha”, “de supetão”, “às arrascas”, “tintim por tintim”, além dos antiquados “à socapa”, “à sorrelfa”, “sem tir-te nem guar-te”, “de truz”, “à mancheia” e “aos borbotões”.

Muitas dessas palavras eram de uso corrente no passado (por exemplo, truz significa “ruído de queda, estrondo”), mas caíram em desuso, ficando cristalizadas apenas em expressões que usamos no dia a dia, as mais das vezes sem sequer suspeitar de seu significado ou sua origem.

Tona é a superfície da água, logo “vir à tona” é emergir até a superfície. Só que (quase) ninguém diz: “Tenho medo de me afogar, por isso não mergulho, só fico boiando na tona da piscina”. Uma curiosidade: tona, do latim tunna, significava originalmente “casca de árvore, pele fina”; foi daí que surgiu a metáfora de designar a superfície da água de tona.

Do mesmo modo, toa, do inglês tow, era a corda que amarrava um navio a outro; hoje, “andar à toa” é “andar a esmo, sem destino”. Quem está à toa na vida, como na canção de Chico Buarque, está sem fazer nada, sem propósito; quem diz coisas à toa é porque não tem o que dizer.

E léu? Vinda do occitano, língua do sul da França que foi muito importante na Idade Média e legou muitos vocábulos ao português, essa palavra quer dizer “ócio”. “Estar ou andar ao léu” é não ter nada para fazer (quem me dera!).

Queima-roupa, palavra composta que só ocorre em “atirar à queima-roupa” e, metaforicamente, em “dizer ou perguntar à queima-roupa”, é autoexplicativo: quando se atira em alguém de muito perto, a pólvora da bala queima a roupa da vítima. Logo, “à queima-roupa” é usado em diversas situações em que se age agressivamente e sem rodeios.

E por falar em atirar, quando se diz que “a bala passou por um triz” ou que “Fulano escapou por um triz”, a ideia é que faltou muito pouco para que algo muito ruim acontecesse. Triz, do grego thrix, “fio de cabelo”, é um quase nada. Um fio de cabelo é a distância entre a trajetória da bala e o corpo do alvo.

Já que falamos em triz, vamos ao truz. Como disse mais acima, trata-se de uma onomatopeia para ruído de golpe ou queda. Só que “pessoa de truz” é pessoa notável, distinta, de valor. Será que pessoas assim fazem esse ruído?

Na Idade Média, riste, do espanhol ristre, era o suporte em que os cavaleiros repousavam a lança em posição horizontal. Daí o “dedo em riste”, uma analogia com a posição horizontal da lança e seu formato retilíneo e agudo. Hoje, quando não há mais cavaleiros nem justas medievais em que se usam lanças, o significado original de riste se perdeu.

Breca, “cãibra”, passou a ser uma das denominações do Diabo (como cão, tinhoso, cramulhão, etc.). Daí que a exclamação “Com a breca!” é equivalente a “Com os diabos!” e subentende a imprecação “Vá com os diabos, vá para o Inferno!”. Pela mesma razão, uma criança “levada da breca” é um pimpolho cuja alma foi levada pelo Diabo, portanto uma criança endiabrada.

Caramba, de origem sânscrita, mas que nos chegou pelo espanhol, denota admiração, mas passou a ser usado como eufemismo para um termo chulo de sonoridade parecida, o qual originalmente era apenas uma estaca ou mastro de navio, que, por sua forma ereta, se tornou metáfora para “pênis”.

Também  do espanhol, soslaio é “posição oblíqua”, donde “olhar de soslaio” é “olhar de esguelha”, outra palavra de pouco e restrito uso.

A expressão “de supetão” contém a palavra de uso único supetão, corruptela de subitâneo, derivado de súbito; por sinal, paralelamente a súbito, temos em português os adjetivos  populares súpeto e súpito.

Arrascas, da expressão “às arrascas”, vem do verbo espanhol arrascar, forma popular de rascar, “raspar” (daí falar-se de uma voz rascante). Fazer algo às arrascas é fazer à força, como que raspando.

Tintim é onomatopaico e representa o ruído de copos de vidro colidindo — é por isso que, ao brindarmos, dizemos “Tintim!”. Mas “tintim por tintim” é “nos mínimos detalhes”; nesse caso, tintim é sinônimo de detalhe, pormenor.

Bem, faltou falar daquelas expressões que hoje não se usam mais, mas com as quais nos deparamos ao ler os clássicos. “À socapa” significa “às escondidas” (por sinal, escondidas só se usa nessa expressão, assim como pressas em “às pressas”, cujo termo usual é pressa). Sua origem é a expressão sob capa, isto é, oculto sob uma capa. Já “à sorrelfa” remete a sorrelfa, “disfarce para enganar”, portanto o sentido é o mesmo de socapa.

“Sem tir-te nem guar-te” quer dizer “sem cerimônia, repentinamente, sem aviso prévio”. Trata-se de uma corruptela da antiga expressão “sem tira-te nem guarda-te”, isto é, sem que a pessoa pudesse tirar-se ou guardar-se, logo proteger-se de algum ataque.

Mancheia vem de “mão cheia, punhado”. Quem lembra destes versos de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia livros, / livros à mancheia. / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar.”? Talvez poucos lembrem, já que livros hoje em dia têm tido pouca chance de germinar palmas e, por conseguinte, fazer pensar, não é?

Mas “livros à mancheia” é o mesmo que “livros aos borbotões”. E borbotão é um forte jorro d’água, como o de uma grande cascata. A metáfora com a ideia de “grande quantidade” é óbvia, não? É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas).

Que tal uma linguagem neutra de número?

Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:

Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.

E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.

Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.

Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)

Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:

  • Ar duar salar estão ocupadar.
  • Minhar mãor estão sujar.
  • Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
  • Meur doir filhor vão se formar médicor.
  • Comprei um par de sapator.
  • Ambar ar respostar estão corretar.

Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?

É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?

Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.

Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!

Brasileiro fala errado?

Já ouvi diversas vezes a afirmação, feita em tom de reprovação e mesmo de desprezo, principalmente por nossos irmãos lusitanos (mas também por muitos brasileiros), de que “brasileiro não sabe falar português” ou então de que “brasileiro fala português errado”. Ao que os linguistas contestam afirmando que nenhum povo fala errado a própria língua, já que é falante nativo dela. O que essas críticas querem dizer é que o modo como falamos no dia a dia se afasta muito do que prescreve a gramática normativa. Portanto, se falar certo uma língua é afastar-se o menos possível do padrão culto, então de fato falamos errado. Mas por que falamos assim? Para compreender, é preciso visitar a história do português falado no Brasil.

Como se sabe, nosso país surgiu de alguns colonos portugueses que aqui vieram a partir do século XVI, muitos não com a intenção de fincar raízes, mas sim de “fazer a América”, isto é, ganhar o máximo possível de dinheiro e então retornar a Portugal. Aqueles que aqui ficaram tornaram-se proprietários de terras e escravizaram índios e posteriormente negros. Portanto, durante o período colonial, havia uma minoria de brancos (portugueses ou seus descendentes) e uma maioria de indígenas e africanos que, obviamente, não eram falantes nativos de português. Tanto que, até meados do século XVIII, a principal língua falada em nosso território foi a chamada língua geral, uma espécie de tupi modificado: o português só se consolidou como língua oficial do país a partir da proibição do uso da língua geral pelo Marquês de Pombal.

Como consequência, o português foi, até poucos séculos atrás, uma língua “estrangeira” no Brasil, e os negros e índios só falavam português quando tinham de comunicar-se com os brancos. Não sendo falantes nativos, é natural que falassem com uma pronúncia estranha ao português; por exemplo, o r “caipira”, especialmente em substituição ao l (pranta, arface, etc.) viria da pronúncia dos índios, que não tinham o fonema l em sua língua. Mas também é natural que falassem com uma gramática simplificada, como ocorre em geral com as chamadas línguas crioulas (cruzamento da língua dos colonizadores com as línguas dos colonizados). É daí que surge o “nós foi”, “a gente somos”, “eu ponhei”, etc. O mesmo fenômeno se registra em todos os lugares em que um idioma estrangeiro se impôs a uma população que já tinha sua própria língua, especialmente se essa população não era escolarizada, como foi o caso dos nossos negros e índios.

Portanto, o português brasileiro que falamos hoje é o resultado da disseminação a toda a população, inclusive a mais culta, de uma língua que nasceu crioula, resultado da tentativa de estrangeiros não alfabetizados, bem como sujeitos a condições precaríssimas de vida, de falar português. Quando nos estabelecemos como nação, no século XIX, o português padrão era a língua de cultura das elites, mas mesmo estas, quando se dirigiam aos subalternos (escravos, serviçais, comerciantes, ambulantes, mendigos), usavam o linguajar popular, e foi esse o que se generalizou. Com a decadência progressiva da nossa educação, hoje até as elites altamente escolarizadas falam um português que os mais críticos poderiam chamar de “estropiado”.

Vejam um exemplo. Transcrevo abaixo a fala de uma nutricionista e professora universitária (portanto, uma pessoa com formação superior) a um programa de TV. Trata-se evidentemente de um exemplo isolado, mas creio que não difira muito do modo como a maioria dos brasileiros, inclusive os mais escolarizados, fala.

Então, nós precisamos ter em mente que a gente, pra ter saúde, precisa se alimentar direito. […] Você precisa comer aquilo que te faz bem e não só o que é gostoso. […] As pessoas deveriam se alimentar de três em três horas e não só comerem no café da manhã, almoço e jantar. […] O nosso organismo ele é uma máquina muito complexa e precisa ser bem cuidada pra funcionar bem. […] A pessoa que ela se alimenta mal vai ter uma má qualidade de vida, já as pessoas melhores nutridas vão viver muito mais. […] A gente também precisa ter em mente de que quantidade não é qualidade. […] Se eu pôr no prato muito carboidrato e pouca proteína, vou gerar muita massa gorda e pouca massa magra. […] Nós podemos comer tudo que a gente quiser, desde que com bom senso. […] Nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só se alimentar de comida processada. […] Olha, eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante: não acreditem nessas dietas milagrosas. […] A comida, a gente tem que ter muito respeito por ela. […] A finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente. […] Não adianta perder muito peso com uma dieta muito restritiva se, depois de alguns meses, esse peso não se manter. […]

Nesse pequeno excerto, podemos constatar uma série de características (não vou dizer “erros” para não cometer o famigerado “preconceito linguístico”) típicas da fala brasileira, que vou enumerar a seguir.

  1. nós precisamos ter em mente que a gente…” — mistura de nós e a gente no mesmo período;
  2. você precisa comer aquilo que te faz bem” — mistura de você e tu no mesmo período;
  3. “as pessoas deveriam se alimentar […] e não só comerem” — deveriam se alimentar x deveriam comerem (mau uso do infinitivo pessoal);
  4. “o nosso organismo ele é…” — o organismo ele (duplicação do sujeito);
  5. “precisa ser bem cuidada” — verbo transitivo indireto na voz passiva;
  6. “a pessoa que ela se alimenta” — novamente duplicação do sujeito, desta vez com a redundância do pronome relativo que;
  7. “as pessoas melhores nutridas” — flexão indevida do advérbio melhor; aliás, o mais adequado aí seria “as pessoas mais bem nutridas”;
  8. “…precisa ter em mente de que…” — o famoso dequeísmo, ou uso de de que com verbos ou nomes que não demandam a preposição de;
  9. “se eu pôr…” — o uso comuníssimo do infinitivo como futuro do subjuntivo (o certo é “se eu puser…”);
  10. nós podemos comer tudo que a gente quiser” — novamente mistura de nós com a gente;
  11. nós deveríamos ingerir […] e não só se alimentar…” — uso do pronome reflexivo se em lugar de nos: “nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só nos alimentar…”;
  12. “eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante” — além de usar o verbo falar no sentido de dizer, temos a preposição para (pra) no lugar de a: “eu vou dizer a vocês”, ou, o que seria melhor ainda, “eu vou lhes dizer”;
  13. a comida, a gente tem que ter muito respeito por ela” — aqui temos a chamada topicalização: em vez de uma oração com sujeito e predicado, apresenta-se um tópico isolado (a comida) e a seguir se faz uma declaração sobre ela cujo sujeito é outro (no caso, a gente); essa construção sintática é típica de idiomas como o chinês e o japonês, não de línguas europeias;
  14. “a finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente” — aqui temos dois problemas: primeiro, orientar elas em vez de orientá-las; segundo, proibir de comerem, orientar a comerem (mau emprego do infinitivo pessoal);
  15. “se […] esse peso não se manter” — mais uma vez o uso do infinitivo pelo futuro do subjuntivo; o correto seria “se esse peso não se mantiver”.

Falo vários idiomas e tenho facilidade em entender o que os falantes desses idiomas dizem. Como passatempo e também para treinar meu ouvido, costumo assistir a canais de TV estrangeiros e percebo que o modo como as pessoas entrevistadas, mesmo as não tão letradas, falam seus idiomas se distancia relativamente pouco da norma-padrão. É claro que em nenhuma língua as pessoas falam informalmente do mesmo modo como escrevem formalmente. Um falante do inglês, por exemplo, dirá descontraidamente I ain’t got no money, mas redigirá I do not have any money. Isso é natural e não tem nada de errado. No entanto, quando estudamos inglês numa escola de idiomas e aprendemos a gramática “oficial” da língua de Shakespeare e depois ouvimos um falante nativo do inglês, não percebemos tanta diferença entre o que estudamos e o que estamos ouvindo: a flexão dos verbos e nomes, a colocação pronominal, a ordem das palavras na frase, tudo parece bater. Mesmo os portugueses parecem falar de forma mais próxima à gramática normativa. Alguns dirão que é porque a gramática normativa é elaborada com base no português lusitano, o que é pura bobagem. O que se espera de qualquer língua de cultura é que ela tenha uma única gramática e que seja seguida em todos os países que a falam. Quando estudo inglês, a gramática que aprendo na escola se aplica igualmente aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha, à Irlanda, à Austrália, e assim por diante. O mesmo vale para o espanhol, o francês, o alemão…

Quando se pensa na língua portuguesa, é no português padrão ou em algo bem próximo dele que se pensa, não em coisas como essas misturas de tu e você, nós e a gente, duplicação de sujeito, falta de concordância, etc. Das línguas que conheço, fenômenos sintáticos como os que assinalei na transcrição acima só tenho encontrado em português brasileiro.

No entanto, aqui no Brasil temos linguistas que defendem a chamada “língua brasileira”, algo distinto do português, a qual teria sua própria gramática. Por sinal, esses linguistas lutam para tornar oficial essa gramática em contraposição àquela que até hoje temos estudado nas escolas. Tenho falado muito sobre isso aqui neste espaço e apontado a insensatez dessa proposta. Entretanto, não há como negar que o modo como falamos é muito peculiar até aos falantes de português de outros países lusófonos — e não se trata apenas de falarmos de modo diferente: falamos com uma gramática cheia de fenômenos estranhos às demais línguas europeias, como pudemos ver na transcrição da fala mais acima.

O fenômeno da crioulização linguística não é exclusivo do Brasil, pois ocorreu em praticamente todos os países que foram colonizados pelos europeus. Assim, também há nos Estados Unidos o chamado Black English, um inglês fortemente influenciado pelas línguas africanas dos escravos para lá levados, mas esse dialeto (sim, trata-se de um dialeto) até o momento está restrito aos falantes negros de classe baixa; só pouco a pouco ele começa a penetrar algumas letras de canções feitas por brancos ou a fala de alguns jovens brancos que querem “se enturmar” com os negros.

Do mesmo modo, o espanhol platino tem algumas peculiaridades, como o pronome vos no lugar de ou usted, bem como o uso de uma segunda pessoa do plural terminada em ‑ás ou ‑és em lugar do canônico ‑áis ou ‑éis (por exemplo, hablás e hacés por habláis e hacéis). Mas as divergências em relação ao espanhol padrão não vão muito além disso.

Acima de tudo, o que percebo (mas posso estar equivocado, é claro) é que, enquanto em outros idiomas esses desvios, que chegam em alguns casos a configurar dialetos ou etnoletos (falares de grupos étnicos específicos), estão restritos a certos grupos, especialmente de raça ou classe social, no Brasil estão generalizados por toda a população, inclusive a mais escolarizada.

Certamente, o modo como falamos decorre da própria história do português brasileiro e do modo como a língua portuguesa foi implantada no Brasil, mas, sem dúvida, tem a ver também com nossa escolarização cada vez mais indigente, somada a uma certa ideologia de que esse modo de falar é um patrimônio cultural imaterial que deveríamos preservar, pois revela o “jeitinho brasileiro” de falar, espelho de nosso “jeitinho” de ser (sobre esse “jeitinho”, já falei em outra postagem). De fato, o modo como falamos revela, sim, muito do que somos. Resta saber se o que somos é realmente motivo de orgulho.

A História como ciência

Há uma frase muito conhecida e propalada tanto no meio político quanto no acadêmico dizendo que a História é sempre contada pelos vencedores. Certo, fico imaginando como seria a história da Segunda Guerra Mundial contada pelos nazistas. Mas, de fato, essa frase tem um certo fundamento porque, durante muito tempo, a História não passou de uma narrativa feita sob encomenda dos poderosos para louvar seus feitos. As crônicas medievais, por exemplo, eram narrativas redigidas pelos chamados cronistas, escritores a serviço do rei incumbidos de enaltecer os feitos heroicos do soberano, às vezes até exagerando um pouco nas tintas — e omitindo seus fracassos e defeitos morais, é claro.

Atualmente, em tempos de politicamente correto e lugar de fala, tornou-se comum reivindicar que a História também seja contada do ponto de vista dos derrotados, isto é, das minorias oprimidas, como mulheres, negros, índios, homossexuais, etc. Até aí nenhum problema, parece uma reivindicação mais do que justa. Mas o ponto que quero destacar é: desde pelo menos o século XIX, a História se tornou uma ciência, com objeto bem definido e método próprio (o chamado método histórico), que consiste em procurar reconstituir o passado de uma sociedade da forma mais fidedigna possível com base no maior número de documentos a que se possa ter acesso. Portanto, se a História é de fato uma ciência e, como tal, fiel à realidade dos fatos e a seu objeto, então não há uma História contada pelos vencedores e outra contada pelos vencidos, há apenas História.

Afinal, se um suposto pesquisador homem, branco e heterossexual omitir em sua pesquisa todos os dados positivos em relação às mulheres, aos não brancos e aos gays, ressaltando apenas os pontos negativos desses grupos, esse indivíduo não é um historiador, é um mistificador, um embusteiro — numa palavra, um picareta.

Tenho notícia de alguns livros escolares de História, por sinal aprovados pelo Ministério da Educação, que retratam certos períodos históricos de forma maniqueísta, misturando fatos com juízos de natureza pessoal e ideológica e tomando partido por um lado ou por outro, portanto contando a História do ponto de vista ou do vitorioso ou do derrotado. Isso não é História, no sentido científico do termo, é doutrinação dos estudantes. Um historiador sério deve narrar os fatos tal qual eles ocorreram ou, pelo menos, tal qual se pode inferir que tenham ocorrido a partir dos registros de que dispomos. Como em qualquer ciência, onde é preciso manter a objetividade e a imparcialidade, não cabe ao historiador eleger mocinhos e vilões ou enaltecer os feitos de determinados governos e denegrir a imagem de outros segundo sua preferência político-ideológica. Não lhe cabe fazer juízos de valor, assim como não lhe cabe ressaltar os aspectos louváveis de determinada figura histórica e omitir seu lado obscuro ou vice-versa. Enfim, não cabe ao historiador que se preze e que faça História com perspectiva científica tomar o partido nem dos vencedores nem dos vencidos. Até porque, se a História é de fato uma prática científica, então não pode valer outra frase muito popular que é “a verdade não existe, o que existe são versões”.

Index Verborum Prohibitorum Parte 2 — A Missão

DISCLAIMER: Este texto contém ironia.

Eu não disse que voltava? Pois é, voltei! Dando prosseguimento à minha lista de palavras e expressões que devem ser banidas da língua portuguesa ou reformuladas por serem politicamente incorretas e ofensivas a grupos sociais minoritários, trago hoje as seguintes:

• “ameríndios”: se não há índios e sim indígenas ou povos originários, por coerência os ameríndios terão de ser agora chamados de “amerindígenas” ou “ameroriginários”;
• “bolo nega maluca” e “Samba do Crioulo Doido”: diante do desrespeito tanto a uma etnia quanto a uma condição de saúde, o confeito deve passar agora a ser denominado “bolo mulher afrodescendente com distúrbios cognitivos” e o famoso samba composto pelo cronista e humorista Estanislau Ponte Preta deve ser rebatizado para “Samba do Afrodescendente com Problemas Psiquiátricos”;
• “rainha da cocada preta”: com base nos exemplos anteriores, deixo aos leitores a tarefa de deduzir a nova versão dessa expressão racista;
• “pneu careca”: em respeito aos calvos, será chamado de “pneu com deficiência capilar”;
• “olho gordo”: para evitar gordofobia, o chamado mau-olhado passaria agora a ser conhecido como “olho portador de obesidade” (ou “de sobrepeso”, se preferirem).
• “Terça-Feira Gorda”: pelo mesmo motivo da expressão anterior, passa a ser agora “Terça-Feira Plus Size”;
• “Branca de Neve e os Sete Anões”: já que anão passou a ser termo depreciativo, teremos “Branca de Neve e as Sete Pessoas com Nanismo”;
• “matar as bichas”: além de homofóbica, essa expressão incita à violência contra os homossexuais; portanto, não pode sequer ser substituída, deve ser banida mesmo;
• “gesto nobre”: será que só os portadores de título de nobreza é que têm bom coração? Isso é uma discriminação contra quem não tem sangue azul. Portanto, a expressão agora será “gesto plebeu”.

Também alguns nomes próprios terão de ser alterados, em alguns casos até em respeito póstumo aos seus portadores. É o caso do escultor mineiro Aleijadinho, que a partir de agora figurará nos livros de história como Pessoinha com Deficiência ou então Portadorzinho de Necessidades Especiais. Do mesmo modo, o Negrinho do Pastoreio passará obviamente a ser o Afrodescendentezinho do Pastoreio. Igualmente, o Rio Negro, no estado do Amazonas, será agora o Rio Afrodescendente (essa mudança incluiria o nome artístico daquele famoso cantor sertanejo que faz dupla com o Solimões). O Rio das Velhas, em Minas Gerais, se tornará o Rio das Senhoras Idosas ou então o Rio das Senhoras da Terceira Idade. Já a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas, terá seu nome mudado para Palmeira dos Povos Originários. Finalmente, o Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, terá de receber outra denominação para que não pensem que o nome é uma alusão racista aos moradores do referido morro.

Aproveitando a oportunidade, também sugiro as seguintes alterações em expressões correntemente usadas no dia a dia, as quais ninguém até agora percebeu que são sexistas:

• “o pai ou responsável pela criança” → “o pai, a mãe (ou “e pãe”, no caso de pessoa não binária) ou responsável pela criança”;
• “o dinheiro do contribuinte” → “o dinheiro do contribuinte e da contribuinta”;
• “Dia dos Namorados” → “Dia dos Namorados, Namoradas e Namorades”;
• “título de eleitor” → “título de eleitor, eleitora e eleitore”.

Só assim teremos um Brasil mais justo e inclusivo.

A decadência da Academia Brasileira de Letras

Todas as grandes línguas de cultura têm academias de Letras. As primeiras, como a Academia Francesa e a Real Academia Espanhola, surgiram ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as línguas nacionais começavam a se firmar como idiomas de prestígio e a fazer frente ao até então todo-poderoso latim. A nossa Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1897 por iniciativa do grande mestre Machado de Assis e de Lucio de Mendonça, e seu lema é Ad Immortalitatem, “Para a Imortalidade”, donde seus membros serem conhecidos como “imortais”.

Desde sua fundação, a Academia tem sido reconhecida de maneira inconteste como a guardiã da língua portuguesa no Brasil e de sua literatura. Embora seja uma instituição de cunho privado, ao contrário de outras academias do gênero, sua influência penetra na esfera estatal, como, por exemplo, por ocasião das reformas ortográficas de 1943 e 1990, que se transformaram em leis. Na esteira da legislação sobre a ortografia, coisa que a maioria das grandes línguas do mundo não tem, a ABL publica também o VOLP — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Ilustres literatos e pensadores brasileiros, bem como grandes cultores do idioma pertencentes a outras áreas do saber, como médicos, professores, juristas e jornalistas, pertenceram às suas fileiras, tais como Ruy Barbosa, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, Oswaldo Cruz, Clovis Bevilacqua, Silvio Romero, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, Aloysio Azevedo, Euclydes da Cunha, Laudelino Freire, Vianna Moog, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, e muitos outros.

No entanto, de tempos para cá, a Academia passou a acentuar uma prática que já era algo costumeira desde seus primórdios: eleger membros que pouco ou nada contribuíram para o enriquecimento do idioma e de sua literatura, mas apenas exerciam influência política ou popular. Basta dizer que até Getulio Vargas e Ivo Pitanguy foram imortais.

A eleição de figuras pouco representativas em termos de língua vem desde as origens: os fundadores da ABL decidiram escolher patronos para suas cadeiras, coisa que não existia em outras academias mais antigas, e, como apontou ainda em 1923 o acadêmico Afranio Peixoto num discurso na própria Academia, muitos desses fundadores escolheram como seus patronos nomes de qualidade literária duvidosa, como Adelino Fontoura e Pardal Mallet.

Mais recentemente, a ABL elegeu os ex-presidentes da república José Sarney, autor de Marimbondos de fogo, grande monumento de nossas letras (atenção: aqui há ironia), e Fernando Henrique Cardoso, autor da grande obra literária chamada Plano Real (ironia novamente). A indicação de Sarney deveu-se a Josué Montello, seu conterrâneo, que quis privilegiar — ou garantir uma reserva de mercado — ao Estado do Maranhão. Já FHC escreveu muitos textos acadêmicos (os quais ele posteriormente pediu que fossem esquecidos), mas, a meu ver, nenhum que tenha lustro em termos de apuro linguístico ou qualidade literária.

A seguir, veio o controverso letrista, escritor, místico e ex-hippie Paulo Coelho, aquele que não permite que os revisores corrijam seus (muitos) erros gramaticais e ortográficos porque, segundo sua visão místico-mercadológica, “Deus pode estar num erro de português”.

Então, seguindo o (mau) exemplo da Academia Sueca, que resolveu conceder o prêmio Nobel de literatura ao cantor e compositor americano Bob Dylan, a ABL admitiu mais recentemente os letristas de MPB Geraldo Carneiro, Antônio Cícero e Gilberto Gil, e também a atriz Fernanda Montenegro, o cineasta Cacá Diegues e o jornalista e comentarista “global” Merval Pereira, atual presidente da casa, que, à época de sua eleição, tinha apenas dois livros publicados (hoje tem três), sendo um deles uma coletânea de artigos e o outro uma série de reportagens feitas em coautoria.

Não nego o talento de alguns desses nomes ou o valor artístico de suas obras. No entanto, é preciso fazer algumas considerações. Primeiramente, se a Academia visa a contemplar perfis que muito contribuem ou contribuíram para o engrandecimento do idioma e de sua produção literária, então ela deveria agraciar os produtores de textos e não os simples reprodutores, como é o caso da atriz Fernanda Montenegro, que nunca escreveu uma linha em termos literários (seu único livro é uma autobiografia) e apenas reproduziu oralmente nos palcos e estúdios os textos de outrem.

O segundo ponto é que a ABL é uma academia de Letras, portanto voltada à linguagem verbal, sobretudo à escrita. Então, que sentido tem admitir produtores de discursos musicais ou audiovisuais, em que a linguagem verbal tem aspecto secundário e, por vezes, pouco importante? Em que pese a qualidade dos versos de Gil, seu registro escrito se encontra basicamente nos encartes de seus LPs e CDs (hoje em dia, com as plataformas de streaming, as letras das canções sequer têm versão escrita). Já Antônio Cícero teria sido eleito por versos como os de Fullgas? E por que Chico Buarque, nosso maior letrista e quem sabe maior poeta, vencedor do prêmio Camões, não está na Academia? Por que Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meirelles, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Mario Quintana nunca estiveram?

Este ano, o cartunista Mauricio de Sousa quase se tornou imortal; seria mais um criador cujo foco não é a língua e sim uma linguagem visual (o desenho) e cujos textos, voltados às crianças e vendidos em bancas de jornais, são propositalmente simplórios (ou “simplólios”, como diria o Cebolinha). Com todo o respeito ao brilhante cartunista, um de nossos orgulhos nacionais, em boa hora a Academia preferiu Ricardo Cavaliere, este sim um literato, estudioso e cultor do idioma, autor de relevantes contribuições à língua portuguesa.

Se o lema da Academia faz alusão à imortalidade, e se essa imortalidade é sobretudo da obra e não de seu autor, por que se privilegiam autores de obras descartáveis, como canções populares, filmes já datados ou romances soníferos?

Não há nenhum problema em que autores não ficcionistas, como cientistas, filósofos, filólogos, linguistas, gramáticos, juristas e jornalistas, façam parte da Academia, mas é preciso que tenham produzido obras de relevo em termos linguísticos e/ou culturais, que tenham dado contribuição significativa ao idioma. Entretanto, quer me parecer que o atual critério de escolha dos novos membros é mais político ou mercadológico do que de mérito acadêmico-cultural.

Com isso, a Academia Brasileira de Letras reproduz o que é o próprio Brasil: um país de privilégios, de pessoas “cordiais” (no sentido dado por Sergio Buarque de Holanda), em que amizade e compadrio valem mais do que conquistas pessoais e profissionais, enfim, um país pas sérieux. A ABL é hoje uma triste sombra do que um dia foi — se é que foi.

Que tipo de país queremos?

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para se referir à realidade brasileira, um misto de Bélgica e Índia, um país com leis e impostos de Primeiro Mundo e com serviços e realidade social de Terceiro. A seguir, esse conceito foi estendido para dar conta de um Brasil contraditório, cuja sociedade tem ao mesmo tempo aspectos de Primeiro e Terceiro Mundos: de um lado, uma elite rica e culta, megacidades com infraestrutura de países desenvolvidos, grande parque industrial, importantes universidades produzindo pesquisa de ponta, recordes de produção agrícola, recordes em número de helicópteros e de cirurgias plásticas per capita, produção artística tipo exportação, e, de outro, fome, miséria, analfabetismo, doenças endêmicas, latifúndios improdutivos, muita corrupção, péssimos serviços públicos, comunidades ilhadas no meio de florestas, aonde só se chega de barco, e assim por diante.

Talvez hoje o termo Belíndia já não seja mais tão adequado, visto que a Índia, embora continue a ser um país com população majoritariamente pobre, é uma das nações emergentes e a quinta maior economia global, que também já conta com ilhas de excelência em vários campos, estando, por sinal, em alguns deles mais adiantada que o Brasil. Noutros termos, a própria Índia é hoje uma Belíndia. Por isso, penso que hoje o termo mais adequado para definir o Brasil e a Índia seja Beláfrica. Afinal, o continente africano segue sendo o mais atrasado do planeta em termos políticos, econômicos, sociais e educacionais. É lá que ainda estão os problemas mais graves da humanidade em termos de fome, miséria, superpopulação, educação precária, péssimas condições de saúde e higiene, pouquíssimo desenvolvimento industrial, infraestrutura deficiente, costumes retrógrados, fanatismo religioso, ditadores tirânicos e corruptos, guerras tribais intermináveis, etc. É claro que lá também há bons exemplos de progresso material e cultural, logo nem tudo é pobreza na África. No entanto, em termos gerais de desenvolvimento, especialmente aquele medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano —, a África permanece em último lugar na média dos continentes.

Portanto, se somos uma Beláfrica e não queremos permanecer nesse estado, temos dois caminhos a seguir: ou nos aproximamos da Europa, onde estão os países mais desenvolvidos do mundo, ou nos aproximamos da África, onde estão os mais atrasados. Deveria ser consenso que o modelo a ser seguido é o europeu, com sociedades altamente industrializadas, democracias sólidas e a maior parte da população situada na classe média ou alta e portadora de escolaridade superior. No entanto, certos grupos ideológicos parecem querer que o Brasil rume na direção oposta. Embora façam um discurso aparentemente bem-intencionado (“lacrador” eu diria), polvilhado de um bom-mocismo que soa bem a muitos (especialmente aos que fazem parte de sua “bolha”), o que eles pregam é uma divisão do país em que uma das partes precisa aniquilar a outra. Trata-se da famosa oposição “nós x eles”, que dividiu e polarizou o Brasil.

Somos uma nação plural, somatório de muitas culturas, e essa é nossa grande vantagem estratégica. Nossa diversidade cultural é nosso grande capital, que, somado ao nosso potencial natural (imenso e rico território, riquezas minerais e vegetais, clima favorável, ausência de cataclismos), pode fazer de nós uma potência mundial. No entanto, para esses grupos ideológicos, a cultura brasileira dominante é fundamentalmente branca e europeia e, portanto, exclui a maior parte da população, de origem africana e/ou indígena. Na visão desses grupos, para incluir socialmente essa maioria preta ou parda e sobretudo pobre, é preciso mudar radicalmente nossos paradigmas culturais, não propriamente somando à cultura branca europeia as valiosas contribuições dos indígenas e afrodescendentes, mas erradicando aquela cultura e substituindo-a por esta.

Tenho falado muito aqui sobre o absurdo que é a proposta de alguns linguistas de substituir nossa norma-padrão supradialetal e fundada em longa tradição escrita e literária pelos usos do português brasileiro contemporâneo falado informal, isto é, o linguajar coloquial das ruas. Segundo esses linguistas, a gramática normativa do português é elitista, excludente, opressora, elaborada por homens brancos, burgueses, conservadores, heterossexuais e misóginos, logo precisa ser destruída, num ato revolucionário análogo talvez à Revolução Bolchevique ou à Revolução Cultural chinesa. Vejam o que diz, por exemplo, o livro Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores, organizado por Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (p. 41): “Assim, a emergência de um novo paradigma de gramatização exige a destruição em larga escala do paradigma tradicional e grandes alterações nos problemas e técnicas arraigados historicamente no nosso fazer gramatical, algo próprio do caráter revolucionário” (grifos meus).

Sem dúvida, a linguística pode contribuir e muito para o fazer gramatical, e eu mesmo tenho sempre reiterado que o modelo de análise da língua baseado na gramática grega de Dionísio o Trácio precisa ser superado. Mas a elaboração de gramáticas normativas tem sua lógica própria, que esses linguistas aparentemente desconhecem. Eles criticam aquilo que nem sequer entendem. E elaborar novas gramáticas utilizando o ferramental da linguística é uma coisa, já substituir arbitrariamente um padrão linguístico estável e estabelecido por outro que só é usado na fala descontraída sob o pretexto da inclusão social dos menos favorecidos é pura demagogia. Em vez de levar educação de qualidade aos mais pobres, opta-se por mantê-los na situação em que estão, normalizando sua pobreza material e intelectual. Aos pobres, uma educação igualmente pobre.

Sem dúvida, a norma-padrão que utilizamos baseia-se numa variedade de português calcada no falar das elites culturais da “corte” — seja a Lisboa monárquica seja o Rio de Janeiro imperial. Mas isso é assim em qualquer idioma de cultura: o francês padrão nada mais é do que a língua falada pelos reis e nobres franceses de antanho; o italiano padrão é o dialeto da antiga corte de Florença, e assim por diante. É natural que a classe dominante de uma sociedade imponha a ela seus costumes e também sua língua. Assim como é natural nas sociedades complexas (isto é, as que passaram do estágio tribal ao civilizado) que haja hierarquia, classes sociais distintas e disputas de poder entre elas. No entanto, o que se vê historicamente é que, quando uma classe oprimida depõe o grupo dominante e toma o poder, é ela que passa a ser a classe opressora. Até costumo dizer que, se os europeus tivessem se mantido tribais e os africanos tivessem desenvolvido uma civilização altamente tecnológica, teriam sido os negros a escravizar os brancos. Afinal, o homem é o lobo do homem.

Se, como pregam alguns de meus colegas linguistas que não conseguem analisar o fenômeno “língua” sem projetar nele suas ideologias políticas pessoais, a gramática normativa em vigor é opressiva e reforça o preconceito linguístico, fazendo com que a população menos favorecida sinta que fala “errado”, substituí-la por uma nova gramática, baseada em outra variedade do português (a preferência desses linguistas é pelo padrão das pessoas pouco ou nada letradas) vai apenas trocar uma opressão por outra. Pois, se a gramática é normativa, portanto seu uso é uma injunção em textos formais, qualquer que seja ela, desrespeitá-la configurará erro, que estará decerto sujeito ao preconceito linguístico (mais uma vez, “o homem é o lobo do homem”).

Sob o pretexto de que nossa cultura e nosso padrão linguístico são eminentemente brancos e europeus, o que se propõe não é acrescentar ao estudo da história das civilizações da Europa e Ásia o estudo da história da África (por sinal, eminentemente oral, uma mistura de fatos e mitos), como, aliás, já vem sendo feito, e sim substituir uma pela outra. Em vez de filosofia grega, estudaremos os orixás africanos (a pergunta que faço é: ser versado em história e cultura africanas abre as portas do mercado de trabalho mais qualificado a alguém?). Em vez de permitirmos que jovens pretos e pardos das periferias tenham acesso à cultura letrada por meio do domínio da norma supradialetal, oficializaremos “eu vi ela” e “vamos se encontrar” como padrão culto.

A lógica desses grupos, que paradoxalmente incluem pessoas de alta cultura e muito bem informadas, é a de que só se combate uma sociedade patriarcal instituindo o matriarcado, que só se apaga a chaga do racismo contra os negros discriminando os brancos, e assim por diante. Numa palavra, o que eles propõem não é justiça social, é uma mera inversão de papéis, em que opressores se tornem oprimidos e oprimidos se tornem opressores. Era mais ou menos essa a lógica dos comunistas de 1917: o proletariado governando a burguesia. O que querem fazer com a língua é uma espécie de vingança dos iletrados sobre os que tiveram a chance de estudar.

Em suma, o que está em jogo é que tipo de país queremos ser: queremos ser como a Bélgica ou como a África? É bom lembrar que até o final do século XIX o Brasil era um país escravocrata, quase exclusivamente rural, sem indústrias, com uma população quase totalmente formada de africanos e indígenas e seus descendentes e governada por uma pequena elite latifundiária composta por descendentes dos primeiros portugueses que nos colonizaram. Foi com a chegada dos imigrantes europeus e asiáticos em fins do século XIX e princípios do XX, logo após o fim da escravidão, que começou nossa industrialização, surgiram as primeiras universidades e a sociedade brasileira foi progressivamente se urbanizando. É que esses imigrantes, mesmo aqueles que foram trabalhar na lavoura em substituição aos escravos, tinham uma cultura urbana e valores milenares de civilização, além de um espírito empreendedor e grande apreço pela educação. Tanto que, duas ou três gerações após sua chegada, seus descendentes, inclusive de muitos que eram analfabetos, já estavam na universidade. E vejam que esses imigrantes sofreram quase tanto racismo quanto os negros e os índios.

Vários de nossos intelectuais de esquerda criticam esse processo de “embranquecimento” da população brasileira promovido pela República Velha como se isso tivesse sido uma violência contra nossa nacionalidade quando, na verdade, esses imigrantes só vieram somar a essa nacionalidade. Não tivesse havido essa onda imigratória, seríamos provavelmente ainda hoje um país predominantemente agrícola e rural, dominado por oligarcas latifundiários, como éramos à época do Império. Mas parece que é exatamente isso que esses ideólogos gostariam que fôssemos.

Aliás, de maneira contraditória e incoerente, esses intelectuais críticos à política de imigração são eles próprios descendentes de imigrantes e certamente não estariam aqui no Brasil nem muito menos ocupando cargos nas universidades não fosse essa política que tanto criticam.

É evidente que a República Velha falhou em dar aos negros recém-libertos condições de emancipação econômica como cidadãos, o que os fez trocar a senzala pela favela. Mas, quase um século e meio após a Abolição, o que o Estado Novo, a República Nova, o regime militar e a Nova República fizeram por essas pessoas e seus descendentes? Já tivemos muito tempo para curar essas feridas, mas tudo que foi feito foram leis e políticas demagógicas, que nada resolvem. Tudo que se faz é um discurso hipócrita de inclusão social, entoado por uma elite acadêmica branca, eurodescendente e de classe média alta.

O fato é que se instalou em nosso meio intelectual, inclusive nas universidades, que deveriam primar pela racionalidade, pelo bom senso e pelo apego à verdade, uma ideologia iconoclasta, que vê tudo que é branco, europeu, ocidental, capitalista, judaico-cristão e, mais, masculino, heterossexual e cisgênero como negativo, opressor, excludente, elitista, quando não fascista. Temos, de fato, uma longa história de dominação de brancos sobre negros e índios, de europeus sobre africanos e outros povos aborígines, mas é preciso ter em mente que o Brasil está inserido no mundo ocidental, que é culturalmente oriundo da civilização europeia e cristã. Logo, apegarmo-nos a tradições africanas e indígenas em detrimento de conhecimentos científicos e filosóficos europeus não vai nos conduzir ao progresso que almejamos. Se queremos nos integrar cada vez mais ao mundo desenvolvido e incluir cada vez mais nossa população nas classes médias e altas da sociedade, não podemos renunciar ao patrimônio de cultura que nos foi legado desde a era greco-romana nem ao padrão linguístico que produziu todo o acervo literário de que dispomos.

Que se valorizem todas as culturas que formaram nosso país, que se acabe com o pernicioso racismo que nos assola, que se ajustem as contas com nosso passado escravista, que se respeitem as culturas nativas, que se estabeleça uma verdadeira justiça social em nosso país é o que todos queremos. Mas esse desideratum só se conquista somando e não subtraindo ou dividindo.

O “jeitinho brasileiro” de falar

Volta e meia, surgem na imprensa matérias sobre a “língua brasileira”, o nosso modo particular de falar português, em geral análises feitas por jornalistas (menos frequentemente por especialistas), além do depoimento de escritores e outros usuários privilegiados — embora não estudiosos — da língua. Com raras exceções, esses textos assumem um tom ufanista em relação ao português tupiniquim, exaltando a nossa criatividade linguística, um jeito malandro, próprio da identidade nacional, que se refletiria no idioma. Segundo esses analistas, o português brasileiro é a perfeita simbiose da mais bela das línguas com o mais versátil dos povos.

Esse tipo de avaliação, além de extremamente subjetivo e questionável pelo seu chauvinismo (já se disse até que só é possível poetar em português, assim como só é possível filosofar em alemão), peca por desconsiderar os fatos: aqueles que enaltecem o “jeitinho brasileiro” de falar nunca empreenderam um estudo sério e sistemático sobre o assunto. Se o fizessem, chegariam a conclusões bem diferentes.

Em primeiro lugar, o português é, das línguas da Europa ocidental (românicas e germânicas), uma das mais difíceis. Claro, os críticos dirão que todas as línguas têm suas complexidades, que nenhuma língua é fácil, etc. etc. Mas, comparando item a item cada um dos aspectos gramaticais (número de tempos verbais, colocação pronominal, flexão verbal e nominal…), veremos que o português é muito mais complexo que o espanhol, francês, italiano ou inglês, por exemplo. Em nível de dificuldade, nossa língua se equipara ao romeno e ao islandês. Mesmo o alemão, tido por muitos como uma língua complicada, é mais simples que o português. Isso porque nossa língua se apoia no binômio complexidade-irregularidade (isto é, muitas regras e muitíssimas exceções); já o alemão tem menos regras que o português, e estas têm poucas exceções.

É óbvio que nenhum povo fala exatamente como dita a norma-padrão, mas qualquer brasileiro que viaje ao exterior — inclusive a Portugal — e conheça outras línguas perceberá que a distância entre como se fala nas ruas e o que estudou nos cursos de idiomas é menor do que no Brasil. Exceção talvez seja o espanhol platino, mas mesmo nesse caso dados empíricos precisam ser examinados.

Em segundo lugar, o “jeitinho brasileiro” de falar é a tentativa de um povo etnicamente heterogêneo, com os mais variados substratos linguísticos, de baixa ou baixíssima escolaridade e espalhado por um território continental de falar uma língua complexa e cheia de irregularidades. Sem dúvida, o português popular tem o mérito de tentar simplificar um sistema que causa embaraço até aos eruditos. Mas as soluções encontradas pela fala do povo nem sempre são as melhores. Às vezes, troca-se uma regra ilógica por outra idem.

Há duas forças cegas atuando sobre a língua: a mutação, que rompe a regularidade, e a analogia, que tenta (mas nem sempre consegue) restabelecê-la. Se o português tem dois tipos de infinitivo (impessoal e pessoal) quando as demais línguas têm apenas um, há necessidade de uma regra disciplinando o uso de um e de outro. Como há uma infinidade de casos dúbios (“os alunos levam tempo para aprender” ou “para aprenderem”?), e, de quebra, existe uma pressão social para falar corretamente (isto é, segundo o padrão culto), os falantes acabam metendo os pés pelas mãos e misturando as formas de maneira pouco lógica e pouco prática (certa vez ouvi um porteiro de casa noturna dizer: “Vocês vão entrarem agora ou preferem esperarem mais um pouco?”).

Objetivamente falando, isto é, deixando de lado as paixões e atendo-nos estritamente aos dados observáveis, o português nada tem de belo ou perfeito. A rigor, nenhuma língua é intrinsecamente bela ou boa, a não ser do ponto de vista particular e tendencioso de quem a contempla. O mesmo sentimento ufanista que nutrimos por nossa língua os falantes de todos os idiomas também têm. É tão possível poetar em turcomeno quanto em português. Excetuando-se os dados objetivos, que o estudo comparado de línguas guiado pelo método científico produz, tudo o mais são fanfarronices patriotescas que em nada contribuem para a real compreensão da língua e de seus impasses.

Dito de outro modo, só podemos resolver problemas se tivermos consciência de que eles existem. A defesa apaixonada do “jeitinho brasileiro” de falar surte o mesmo efeito que a exaltação do jeitinho brasileiro de lidar com a lei, a política, a cidadania. Se quisermos ser de fato uma nação desenvolvida, precisamos ser menos autocondescendentes e parar de tratar o vício como virtude. Todas as línguas têm defeitos e qualidades, umas mais, outras menos; todos os povos têm seus pontos positivos e negativos, inclusive no trato com o idioma. O tal “jeitinho”, como já assinalado por inúmeros antropólogos, nada mais é do que a forma como tentamos contornar, às vezes de modo desonesto, as dificuldades oriundas de nossa própria formação moral e cultural deficiente: um estado oligárquico e profundamente burocrático, leis classistas, educação e saúde precárias, as exigências de um mundo globalizado e altamente tecnológico, e assim por diante. Um dos desafios que enfrentamos e para o qual não estamos bem preparados é justamente a língua portuguesa padrão, um sistema tão emperrado quanto os demais. Por isso, diante dos entraves do idioma, também temos de nos virar. E dá-lhe jeitinho!

Tudo bem, que estejamos conseguindo nos comunicar com eficiência e criatividade apesar de todos os pesares não deixa de ser louvável, mas daí a acharmos que nosso sistema de comunicação é nota dez vai uma grande distância. Talvez repetir o senso comum, praticar o bom-mocismo e engrossar o coro dos contentes (numa palavra, “lacrar”), dizendo o que todos querem ouvir, seja uma estratégia politicamente mais inteligente do que provocar polêmica pondo o dedo em certas feridas. Mas nunca sairemos do subdesenvolvimento enquanto ficarmos legitimando os nossos erros em vez de corrigi-los.

Qual é o correto: pulso ou punho?

Certa vez, tive uma dor no pulso, provavelmente causada pelo uso do computador, e procurei um ortopedista, que me corrigiu dizendo que eu não tinha dor no pulso e sim no punho, pois pulso é a pulsação cardíaca, que antigamente se media apalpando o punho (alguns médicos ainda fazem isso hoje).

Respeito muito a terminologia médica, embora ainda não tenha assimilado muito bem o porquê de certas mudanças, como a de rótula para patela ou de aparelho digestivo para sistema digestório, mas isso é outra conversa. Também compreendo que os médicos não queiram confundir o pulso, no sentido de pulsação, com o punho, parte do antebraço que se liga à mão. Mas o fato é que eu não estava errado ao chamar o punho de pulso, pois, primeiramente, os dicionários efetivamente registram no verbete pulso a acepção de “parte do antebraço”. Em segundo lugar, quase toda designação tem uma origem metafórica ou metonímica. Assim, o pulso enquanto parte do corpo tem esse nome justamente porque é nele que os médicos verificam a pulsação cardíaca. Logo, tomar o pulso passou a significar tanto “tomar, pegar o punho do paciente” quanto “tomar (isto é, examinar) a pulsação cardíaca”. Na verdade, faz-se o primeiro para fazer o segundo. Se devêssemos rejeitar a denominação pulso enquanto parte do corpo por ser uma metonímia, então também deveríamos rejeitar punho, já que vem do latim pugnus, que significa “soco” e deriva do verbo pungere, “bater”. Aliás, daí vêm os verbos impugnar, repugnar e propugnar, bem como pungir, pungente e punção. Por fim, teríamos de renomear o relógio de pulso para relógio de punho. Será que pegaria?

Sobre ideologia e pragmatismo

Pessoas que professam ideologias, sejam elas políticas, religiosas ou mesmo futebolísticas, tendem a achar que todos os seres humanos são igualmente ideológicos. Por sinal, uma frase frequentemente repetida pelos ideólogos de esquerda é “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”. Antes de mais nada, é preciso definir do que estou falando, já que essa palavra tem vários significados. Refiro-me à ideologia como crença numa doutrina, isto é, num conjunto de ideias e propostas que, para quem nelas crê, têm valor de verdade, portanto não são sentidas como crenças e sim como verdades absolutas. Pessoas assim não conseguem compreender a diferença entre crer e saber: para elas, tudo é objeto de crença, inclusive as afirmações embasadas em evidências concretas; logo, a própria ciência não passa de uma doutrina. Essas pessoas equiparam a eficácia de vacinas ou a esfericidade da Terra à virgindade de Maria ou a ressurreição de Jesus. E, obviamente, a ideologia em que acreditam é a verdadeira e as demais, falsas. Como, para elas, tudo é ideologia, elas não conseguem conceber uma postura filosófica e pessoal chamada pragmatismo, misto de ceticismo e bom senso, que consiste em não aceitar passivamente qualquer afirmação como verdade inquestionável e sempre preferir modelos de conduta e propostas de solução de problemas que já se tenham provado eficazes. Mas, sim, há pessoas pragmáticas, que não se deixam seduzir pelo canto da sereia de certas doutrinas e olham criticamente toda e qualquer afirmação ou proposta de solução. É verdade que são bem raras, até entre os chamados “intelectuais”, muitos deles também profundamente contaminados por ideologias, especialmente as políticas. E o mais irônico é que muitos desses intelectuais dizem ter uma visão “crítica” da realidade.

De fato, é bem difícil livrar-se das ideologias, primeiro porque, como disse acima, a maioria das pessoas não tem consciência de que é ideológica, mas pensa que sua crença é a própria Verdade; segundo porque somos doutrinados desde a infância por pais, professores, padres, pastores, lideranças políticas ou artísticas, influenciadores digitais, a mídia, etc.; terceiro porque, como humanos mortais que somos, padecemos de uma terrível fraqueza emocional que nos leva a nos agarrarmos desesperadamente a nossas próprias certezas, afinal a crítica pressupõe a dúvida, e temos aversão ao desconhecido, sobretudo ao desconhecido supremo que é a morte. Por isso, precisamos acreditar em divindades que nos protegem e salvam se formos devotados a elas, em vida após a morte e também em políticos salvadores da pátria, em sistemas políticos e econômicos que proporcionarão a felicidade e a paz eternas à humanidade, e assim por diante.

Só que as ideologias não são ideias isoladas, são conjuntos estruturados e coerentes de ideias e atitudes que são vendidos como um pacote completo. Se sou de direita, então tenho de ser contra o aborto, o casamento gay (e contra os gays de modo geral), as vacinas, a Teoria da Evolução e a favor da pena de morte, do armamento da população, do Estado mínimo, da privatização total e irrestrita de todos os serviços públicos, da inviolabilidade da propriedade privada, do garimpo na Amazônia, etc.

Já, se sou de esquerda, tenho de ser a favor do casamento gay, do ensino da ideologia de gênero nas escolas, da linguagem neutra de gênero, da liberação da maconha e das outras drogas, do controle estatal dos meios de comunicação, de um Estado forte e intervencionista, da estatização de todos os serviços públicos, do banimento dos dicionários de palavras que sejam consideradas politicamente incorretas, e por aí vai.

Quando se trata de ideologia, não há meio termo: ou se compra o pacote completo ou se é um traidor da causa, um alienado, um inocente útil, massa de manobra, um “isentão”, ou seja, alguém que, por ação ou omissão, serve à ideologia oposta. Não à toa, para os esquerdistas os isentões estão a serviço da direita, e vice-versa.

Só que a realidade é mais complexa do que sonha nossa vã filosofia — ou ideologia. Não há soluções mágicas para os problemas humanos, até porque somos criadores compulsivos de problemas. Nem o cristianismo, nem o islamismo, nem o marxismo, nem o neoliberalismo, nem a filosofia new age vão nos livrar de nós mesmos, embora os adeptos dessas doutrinas achem que sim.

Diante do cardápio de “soluções” oferecidas por essas ideologias, posso perfeitamente escolher aquelas que funcionam na prática, sejam elas de esquerda ou de direita, de modo frio e racional, portanto sem me deixar levar por paixões ou idiossincrasias. Posso concordar com a esquerda em certos pontos e discordar em outros, assim como posso fazer o mesmo com a direita. Mas, para que isso funcionasse na prática, seria preciso que todos fossem igualmente pragmáticos, o que está muito longe de acontecer.

Por exemplo, uma discussão como a que ocorre sobre a legalização do aborto em todos os casos e não só nos atualmente previstos na lei brasileira deveria dar-se com base em dados objetivos e não em dogmas religiosos. Primeiro, um embrião é um ser vivo e, mais, um ser humano ou só um projeto, um amontoado de células? Um embrião ou um feto pode ser considerado juridicamente um sujeito dotado de direitos? Ele tem consciência, é um ser senciente, ele sente dor, ele sabe que está vivo? A possível vida desse embrião vale mais do que a de um jovem negro morto pela polícia? Vale mais que a de um cão ou gato morto por maus tratos? Vale mais que a de uma galinha morta em ritual religioso? Vale mais que a dos insetos nos quais pisamos no dia a dia? E, se vale, com base em qual ética? Essa ética é universal? Tem amparo em evidências fáticas? Até qual fase da gestação o aborto deveria ser permitido, caso o fosse? As mulheres deveriam ser consultadas sobre algo que diz respeito a seus próprios corpos?

Indo além, a liberação do aborto melhoraria ou pioraria as condições de saúde pública? Aumentaria ou reduziria a criminalidade? Aumentaria ou diminuiria a mortalidade de mulheres jovens? Contribuiria ou não para a paternidade e maternidade responsáveis, para o planejamento familiar, para a erradicação da pobreza e da desigualdade social, para a superpopulação mundial? Como é a vida em países em que o aborto é legalizado e em países em que não é: melhor ou pior do que aqui?

Evidentemente, não tenho resposta a todas essas questões, embora saiba que especialistas no tema as têm para a maioria delas. Só que, nesse debate, o que prevalece não é o parecer técnico de quem estuda há décadas o problema, é a pressão de grupos ideológicos, tanto de um lado quanto de outro, os quais defendem suas posições apenas porque acreditam cegamente nelas — e acreditam porque foram condicionados desde muito cedo a acreditar. A ideologia é uma máscara que, de tanto ser usada, se cola de tal modo ao rosto de seu usuário que ele acaba por confundi-la com sua própria face.

Citei como exemplo a questão do aborto, mas poderia tratar igualmente da pena de morte, da redução da maioridade penal, do controle de natalidade, da descriminalização das drogas, das privatizações, da taxa de juros, do novo arcabouço fiscal, da linguagem neutra de gênero ou qualquer outra. Como sempre digo, teríamos o melhor dos mundos se todas as pessoas fossem racionais, bem educadas, bem informadas, emocionalmente equilibradas, bem intencionadas e, mais, altruístas, generosas, empáticas, simpáticas e sobretudo pragmáticas em vez de ideológicas, mas isso é utopia demais para a nossa comezinha humanidade, não é? Por isso, pragmatismo é mercadoria escassa no mercado. Abundantes mesmo são as crenças cegas e fanáticas e seus decorrentes atos de violência contra os defensores de outras ideologias ou do pragmatismo, atos esses sempre justificáveis por quem os pratica, já que estes são os detentores e conhecedores únicos da Verdade absoluta.

Ainda sobre a norma-padrão e o ensino de gramática

Não sou gramático nem professor de português, tampouco faço pesquisas na área chamada Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, mas acho que os exatos 40 anos em que venho me dedicando à linguística e mais o estudo de línguas que empreendo desde a adolescência, somados ao meu posicionamento sempre ponderado diante de assuntos polêmicos, me conferem alguma autoridade para opinar sobre uma questão envolvendo nossa língua e nosso ensino que já tratei aqui algumas vezes e que volta e meia ressurge tanto no meio acadêmico quanto na sociedade: a adequação ou não de nossa atual norma-padrão, ditada pela chamada gramática normativa, e o consequente ensino dessa gramática em nossas escolas.

Quem acompanha minhas publicações, tanto aqui no blog quanto em meu canal de vídeos Planeta Língua, do YouTube, sabe que tenho críticas fundamentadas tanto ao excessivo conservadorismo da norma atual, especialmente em face das simplificações e racionalizações operadas nas gramáticas das demais línguas românicas no último século, quanto a propostas e posturas de alguns colegas linguistas que criticam essa norma de um ponto de vista muito mais ideológico do que científico, por vezes lançando mão até de inverdades e falsas acusações aos gramáticos, e propõem em seu lugar uma norma baseada na modalidade falada do português brasileiro, com total desconsideração em primeiro lugar do uso que efetivamente se faz da língua nos textos escritos formais da atualidade, em segundo lugar de toda a nossa tradição escrita, que seria subitamente rompida, e, em terceiro, de nossos laços com as demais nações de língua portuguesa. Por sinal, meu mais recente vídeo no supracitado canal trata exatamente disso.

Pois agora me chega às mãos um excelente artigo do Prof. Ricardo Cavaliere, da Universidade Federal Fluminense e da Academia Brasileira de Filologia, além de mais recente membro da Academia Brasileira de Letras, que aborda essa questão de forma magistral, tocando em todos os pontos correntemente em debate.

Como o artigo é longo e redigido em linguagem acadêmica, portanto nem sempre acessível ao leitor leigo, tomo aqui a liberdade de fazer um resumo do texto, ressaltando seus principais argumentos.

De início, o Prof. Cavaliere distingue duas competências que por vezes são confundidas: a competência linguística (saber falar a própria língua) e a competência discursiva (saber adequar seu discurso, portanto, seu vocabulário e sua gramática, às diversas situações de comunicação). Diz ele:

O indivíduo que se refere ao interlocutor com um “Você está de sacanagem!”, seja no ambiente de trabalho, numa conversa distensa ou numa cerimônia de colação de grau, revela que domina as estruturas linguísticas da língua para expressar-se em português, isto é, tem competência linguística, mas não detém competência discursiva, pois é incapaz de discernir sobre a adequação dos usos linguísticos nas distintas situações em que se constroem os atos de fala. Em outras palavras, para ele não importa a variabilidade dos fatores extralinguísticos do discurso, pois seu texto (aqui entendido no sentido estrito) está moldurado numa espécie de engessamento linguístico. É o homem de um texto só.

E prossegue:

A questão está em que o processo de aprendizagem que nos confere esta especial competência discursiva não se adstringe à aula de português. […] Não obstante, creio que se tivesse que eleger, por algum motivo, um único profissional dentro da sociedade contemporânea para cuidar dessa delicada questão da língua em uso e das variáveis do uso, decerto que elegeria o professor de língua materna. Assim, percebe-se uma definitiva mudança no perfil desse profissional no seio da sociedade contemporânea: antes, julgavam-no responsável pelo aprimoramento da competência linguística; hoje, julgamo-lo responsável pelo aprimoramento da competência discursiva.

O autor assinala que a controvérsia sobre o ensino de língua surgiu por culpa de um entendimento maniqueísta da questão, que situa o ensino da gramática normativa “como um atentado à liberdade de expressão, não raro qualificado como uma institucionalização do preconceito linguístico na escola”.

De fato, a partir da década de 1970, muitos intelectuais brasileiros estimularam um confronto entre a norma gramatical e a liberdade de expressão, acusando a primeira de representar um instrumento de censura e exclusão social. Convém lembrar que estávamos então sob a ditadura militar, o que muito contribuiu para uma radicalização de posições em que, do mesmo modo como se combatia a opressão e o arbítrio do regime, atacava-se o cânone gramatical ao ponto de se confundir incorreção gramatical com democracia linguística. Era como se respeitar a gramática fosse sinônimo de compactuar com a ditadura!

Por outro lado, uma certa visão deturpada do papel da linguística, que, como ciência, não faz juízos de valor de certo e errado, mas analisa os fatos como eles são, levou, de um lado, certos linguistas a legitimar o chamado “erro de português”, estigmatizando os gramáticos e filólogos, e, de outro, induziu estes últimos a deplorar a linguística como uma disciplina permissiva, uma verdadeira ameaça ao nosso vernáculo. Infelizmente, essa visão permanece em muitas mentes até os dias de hoje.

É nesse contexto de radicalização política e entendimento equivocado dos papéis da linguística e da gramática que surge a bandeira do chamado “vale-tudo linguístico”. Como diz Cavaliere:

Na ilusória empreitada de desagrilhoar a palavra política, muitos defenderam a nivelação do discurso escrito com o oral, rezando pela cartilha-chavão do vox populi vox dei e do “é proibido proibir”, esquecidos de que o aprimoramento do discurso escrito transcende as fronteiras da opinião política, podendo até ser simplesmente um mero exercício do prazer de escrever bem. E o que  se percebe é que tais juízos tiveram origem em cérebros absolutamente laicos em assuntos linguísticos, vindo a encontrar conveniente amparo em outros totalmente carentes de saber gramatical. (grifo meu)

Ele complementa: “Admitir que a norma oral deva servir de parâmetro para uma norma escrita é negar uma diferença de comportamento que não está propriamente nem no discurso nem na língua, mas no próprio homem social”. E ainda: “no seio da sociedade brasileira permeiam duas modalidades bem distintas de uso linguístico: a oral e a escrita. Também sabemos que a norma oral é em muitos pontos colidente com a escrita, a ponto de uma tornar-se intolerável quando invade o espaço da outra”. Como diria Evanildo Bechara, não se vai à praia de fraque nem de chinelos ao Municipal.

Alguns gramáticos mais puristas costumam dizer que “eu vi ela” e “vamos se encontrar” sequer é português, como se só a norma-padrão representasse o idioma. Numa crítica a esses gramáticos, alguns linguistas, como Mário Perini, afirmam que há duas línguas distintas: a que se escreve, chamada português, e a que se fala, que nem nome tem. A esse respeito, diz Cavaliere: “A rigor, não existe uma língua que se escreve e outra que se fala, mas uma língua em que há estruturas que se usam somente quando se escreve e outras que se usam apenas quando se fala. […] Em outros termos, tanto ‘eu o vi ontem’ quanto ‘eu vi ele ontem’ são produtos da mesma gramática da mesma língua”.

Outro importante ponto destacado pelo autor do artigo é o fato de que o que entendemos por modalidade oral, ou língua falada, é uma pluralidade de manifestações, correspondentes a diferentes localidades e classes sociais, de modo que não há uma única linguagem oral, mas várias. Há entre os falantes diferenças regionais e sobretudo de escolaridade que fazem com que um cidadão bem escolarizado se permita dizer “Tem um filme legal passando no cinema” ou “eu assisti ele ontem”, mas não “nós foi no cinema junto”.

Portanto, quando se prega adotar a modalidade oral como parâmetro para constituir uma nova norma-padrão, que oralidade se toma como modelo? Algumas construções típicas do discurso oral já aparecem na escrita formal e são até toleradas; outras ainda não. Quem deve estabelecer esses critérios ou fazer essas escolhas? Segundo Cavaliere, “[é] esta avaliação subjetiva que nos afasta do consenso e provoca tantas opiniões radicalizadas sobre o assunto. Como quem se ocupa de descrever e abonar as estruturas prestigiadas para uso em texto escrito é o gramático, no fim sobre ele recai o ônus do anacronismo e do preconceito linguístico”.

Só que os gramáticos, especialmente os contemporâneos, têm métodos objetivos para determinar o que deve ou não ser abonado. Eles fundamentalmente abonam aquilo que já está no uso dos redatores de prestígio, sejam eles grandes escritores, juristas, acadêmicos, jornalistas de peso, etc. E estes, por sua vez, sendo dotados de grande cultura, seguem, ao escrever, os preceitos ditados pelas gramáticas — com exceção talvez de alguns ficcionistas que se permitem transgredir a norma em prol da literariedade, a chamada “licença poética”.

Em outros termos, tem-se um círculo vicioso: o gramático abona estruturas já consagradas e rejeita usos que, embora correntes na linguagem oral, incidem apenas marginalmente no texto escrito, ao passo que os redatores de textos formais que servem de base à abonação gramatical — inclusive os linguistas que pregam o rompimento com a gramática tradicional, assim como seus discípulos — não inovam em seus textos, mas repetem apenas as estruturas já consagradas.

Outra crítica feita pelos linguistas “modernosos” ao ensino de gramática, especialmente da norma em vigor, é que o importante é que o aluno aprenda a ler, escrever e falar bem. Com efeito, desde o advento na linguística do chamado pós-estruturalismo na década de 1970, passou-se a valorizar mais o texto e o discurso do que a língua que os produz. Se até então a tônica dos estudos linguísticos estava no processo, passou-se a praticamente ignorá-lo em detrimento de seu produto. Com isso, enfatiza-se muito hoje a leitura e a produção de textos, relegando a análise sintática a um segundo plano. Na verdade, os radicais sustentam mesmo que seu ensino seja abolido. Ouçamos mais uma vez Cavaliere:

Sabemos desde pelo menos 1915, quando Otoniel Mota publicou a primeira edição de suas Lições de português, que saber analisar sintaticamente uma sentença não garante boa redação a ninguém, mas daí a dizer que fazer análise sintática é algo absolutamente inútil implica avaliar restritivamente a validez dos conteúdos programáticos em língua materna.

Os que hoje trabalham com descrição linguística […] não conseguiriam decerto fazê-lo em nível avançado se em sua formação escolar básica se lhes tivesse sonegado o saber científico sobre a sintaxe e a morfologia da língua […].

Em parte, a culpa é do próprio modo como a gramática tem sido ensinada em nossas escolas, como se fosse um fim em si mesmo e não como um meio para a produção de bons textos. É isso o que municia os mais radicais ao exigir o fim de seu ensino. Na verdade, o que precisamos é repensar esse ensino com vistas ao aprimoramento da competência do aluno tanto linguística quanto discursiva e não sua abolição pura e simples e sua substituição pelo vale-tudo ou por uma norma calcada na oralidade: “a leitura diversificada revela-nos que no texto escrito não se pode contar com as inferências, nem se conformar com as lacunas típicas do texto oral. A leitura, a rigor, demonstra que a arquitetura do texto escrito, se pautada nas técnicas da oralidade, resulta na incoerência e na obscuridade”.

O bom ensino de língua portuguesa é o que dá ao estudante acesso a todas as variedades de uso do idioma, especialmente as que ele ainda não conhece ou domina. Este sim é o verdadeiro ensino democrático e inclusivo e não aquele proposto por indivíduos tão radicais em matéria de língua quanto de política e que impropriamente fazem da ciência uma seara para disseminar suas ideologias e sua militância política. Como conclui Cavaliere, “[n]ão há democracia mais deliciosa do que a do livre acesso às fontes do saber”.

Espera, expectativa e esperança

O verbo esperar tem vários significados em português. Pode-se esperar um ônibus, uma promoção no emprego ou um milagre. A cada um dos significados desse verbo corresponde um substantivo diferente. No caso do ônibus, temos espera; no da promoção, expectativa; no do milagre, esperança.

O verbo esperar proveio do latim sperare, derivado de spes, “esperança”, e teve como derivados espera e esperança. Já expectativa veio do latim expectare ou exspectare, formado de ex‑, “para fora”, e spectare, “assistir, olhar” (daí, os nossos espectador e espetáculo). Significava “olhar de longe, de fora”, mas podia significar também “olhar para fora”, como quando se olha pela janela à espera de alguém.

De fato, o latim fazia distinção entre sperare, “ter esperança”, e exspectare, “ter expectativa” ou mesmo “aguardar”. Essa distinção se conservou em algumas línguas irmãs do português, como o francês espérer x attendre e o italiano sperare x aspettare. As línguas germânicas também fazem tal distinção: por exemplo, o inglês to wait x to expect x to hope.

A diferença entre espera, expectativa e esperança é o grau de certeza que temos de que algo aconteça. A espera se dá por algo ou alguém que temos certeza de que virá, como o ônibus, por exemplo. A expectativa se refere a algo provável, mas não totalmente certo, como a promoção no emprego. Finalmente, a esperança recai sobre algo bastante improvável, como um milagre ou o fim da corrupção e da impunidade no Brasil.

Em muitas línguas, os verbos referentes a “esperar” estão semanticamente ligados ao ato de olhar, como em exspectare, derivado de spectare. O nosso aguardar provém de um verbo germânico *wardon, que queria dizer justamente “olhar, vigiar”. Tanto que “olhar” é regarder em francês e guardare em italiano. E, em português, guardar algo é manter sob vigilância (provavelmente para que não suma ou não roubem). Por essa mesma razão, o policial que vigia as ruas é chamado de guarda.

Por que o nome do signo de aquário está errado

Aquário, um dos signos do zodíaco, que supostamente rege as pessoas nascidas entre 21 de janeiro e 19 de fevereiro, tem a origem de seu nome no latim aquarius, que, como adjetivo, significa “relativo a água, aquático” e, como substantivo masculino, quer dizer “aguadeiro, escravo incumbido de abastecer de água as casas” e também “vendedor de água”. Por outro lado, o latim tinha o substantivo neutro aquarium, “aquário de peixes” e também “bebedouro do gado”.

O signo do zodíaco em latim era Aquarius e não Aquarium, tanto que, segundo os místicos, já estamos em plena era de aquário, uma era de paz e prosperidade, o que motivou aquela famosa canção Aquarius do musical Hair, cuja letra diz: “When the moon is in the Seventh House / And Jupiter aligns with Mars / Then peace will guide the planets / And love will steer the stars” (Quando a lua estiver na Sétima Casa / E Júpiter se alinhar com Marte / Então a paz guiará os planetas / E o amor guiará as estrelas). Parece que nada disso aconteceu ainda, e eu particularmente duvido que um dia aconteça, mas o fato que quero tratar aqui é que em português esse signo não deveria chamar-se Aquário e sim Aguadeiro.

Esse equívoco de tradução também é cometido pelo espanhol Acuario e pelo italiano Acquario, idiomas em que as palavras para “aguadeiro” são respectivamente aguador e acquaiolo. Já em francês, o signo se chama Verseau e em alemão, Wassermann, que corretamente significam “aguadeiro”. O inglês manteve o nome do signo em latim, Aquarius, fugindo, assim, do risco de cometer tal erro de tradução.

A autoajuda e a etimologia

Os gurus da autoajuda, dentre os quais até médicos, psicólogos, especialistas em gestão, etc., costumam apresentar argumentos retirados das mais diversas fontes para embasar seus ensinamentos. E aí entra ciência, pseudociência, filosofia, religião, misticismo, astrologia… Por exemplo, esses gurus adoram usar física quântica em suas argumentações: para eles, tudo pode ser explicado pelos quanta! O problema é que nenhum físico quântico de verdade endossa as afirmações desses mentores da autoajuda.

Mas um conhecimento que eles adoram invocar para sustentar suas teses é a etimologia. Só que a de araque, não a etimologia séria, científica. Ouço frequentemente na boca de palestrantes motivacionais que a palavra crise é da mesma origem de crescimento e que, portanto, toda crise por que passamos é uma oportunidade para nosso crescimento pessoal, profissional e mesmo espiritual. Belo ensinamento, sem dúvida, com a única ressalva de que a origem comum de crise e crescimento é uma fake news: crise, do grego krísis, vem de uma raiz indo-europeia que significa “separar” (um cognato é o latim cernere, que nos deu discernir), ao passo que crescimento, do latim crescere, vem de outra raiz, igualmente indo-europeia, que significa “crescer, florescer, brotar”.

Também já ouvi um palestrante de autoajuda associar a palavra coluna, referindo-se à coluna vertebral, ao latim cum luna, “com a lua”, e costela a cum stella, “com a estrela”. A partir daí, ele estabeleceu relações mirabolantes entre dores nas costas e a influência dos astros.

Outra pérola que ouvi numa palestra de autoajuda (antes que me perguntem, não, não costumo frequentar esse tipo de evento, mas já fui a alguns) foi a associação feita entre as palavras livro e livre. Como resultado, o palestrante proclamou uma verdade — que a leitura de bons livros liberta a alma —, só que com base em outra fake news etimológica. Livro vem do latim lĭbĕr, lĭbrī, que significa “casca de árvore” e, por metonímia, “livro”, já que esse material era usado para escrever antes da descoberta do papiro. Já livre vem de lībĕr, lībĕră, lībĕrŭm, adjetivo latino que, pela própria grafia e flexão, revela ser de outra origem.

O fato é que, em matéria de língua, todo mundo se acha doutor, que dirá esses gurus que cobram fortunas por suas palestras! Logo, consultar um dicionário etimológico ao preparar suas preleções não faz parte da rotina desses profissionais. Aliás, desconfio de que muitos até sabem que suas informações linguísticas estão erradas, mas as veiculam mesmo assim porque causam impacto positivo — e é isso que eles visam em primeiro lugar.

A origem dos pontos cardeais

Todos os povos do mundo utilizam os chamados pontos cardeais para localizar-se no território, especialmente aqueles que vivem em selvas, desertos ou na tundra gelada, onde não há ruas, avenidas ou placas de orientação. E esses pontos são sempre baseados no movimento aparente do Sol no céu. Os dois pontos básicos são os locais onde o Sol nasce e onde se põe. Por decorrência lógica, os dois demais se obtêm traçando uma linha perpendicular à formada pelos dois primeiros pontos.

Por essa razão, em praticamente todas as línguas os pontos cardeais fazem referência ao nascer e ao pôr do sol, que ocorrem por volta das seis horas da manhã e seis da tarde, respectivamente. Por conseguinte, os dois outros pontos são chamados de “meio-dia” e “meia-noite”.

Em latim, o local do nascer do sol era chamado de oriens, “nascente, levante”, do verbo orior, “subir, levantar-se”. O poente, palavra que em português deriva de pôr-se, era occidens, do verbo occido, “cair, tombar”, formado de ob, “para frente”, e cado, “cair”. Como se pode notar, essas palavras deram em nossa língua oriente e ocidente.

Já o sul era chamado pelos romanos de meridies, “meio-dia”, porque é nessa metade da abóbada celeste que o Sol se encontra ao meio-dia, especialmente no inverno, quando visto do Hemisfério Norte. Pelo mesmo motivo, a região sul da França é chamada de Midi, e o sul da Itália de Mezzogiorno, ambos significando “meio-dia”.

Já o norte em Roma era chamado de septentriones, de septem, “sete”, mais triones, “bois de arrasto”, em referência às sete estrelas da constelação Ursa Menor, que inclui a Estrela Polar, aquela que mais se alinha com o Polo Norte celeste. Daí surgiram os nossos termos meridional e setentrional.

Mas também é comum utilizarmos nomes de pontos cardeais originados das línguas germânicas. Com efeito, norte, sul, leste e oeste provêm do inglês North, South, East e West por meio do francês Nord, Sud, Est e Ouest. Mas qual a origem desses nomes?

East veio do antigo germânico *austaz, parente das nossas palavras austral e aurora, por sua vez provindo da raiz indo-europeia *aus-, “brilho”. É uma referência ao local onde o Sol começa a brilhar.

West, do germânico *westaz, é cognato do latim vesper, “fim de tarde, crepúsculo”, que nos deu véspera e vespertino, além da estrela vésper, uma óbvia referência ao pôr do sol. A origem é o indo-europeu *wes-, “crepúsculo”.

North vem de *nurthaz, “esquerdo” em germânico, por sua vez do indo-europeu *ner-, de mesmo significado, referindo-se ao lado do nosso corpo quando estamos de frente para o nascente. É que os antigos sempre tomavam o levante como o principal ponto cardeal; daí surgiu o verbo orientar no sentido de “guiar”. Depois da invenção da bússola, cuja agulha aponta sempre para o norte, também adotaram esse ponto cardeal como referência; daí o verbo nortear.

Finalmente, South é oriundo de *sunthaz, “o lado do Sol” (de *Sunnon, “Sol”), pois, como disse, este é o lado do céu em que o Sol transita visto do Norte.

Não sou versado em línguas de povos originários do Hemisfério Sul, como os africanos, polinésios e ameríndios, mas suponho que, por sua posição geográfica, as denominações de suas línguas para “norte” e “sul” sejam o inverso das dos povos da Europa e Ásia.

Como a nossa língua soa aos estrangeiros

É muito comum aos falantes de uma determinada língua, qualquer que seja, a ideia de que eles não têm sotaque, quem tem são os falantes das outras línguas. É que estamos tão acostumados com os sons do nosso idioma que eles não nos causam nenhuma estranheza. Também pudera, nós os ouvimos desde que nascemos, então nossos ouvidos e nossa mente estão condicionados a eles. Mais do que isso, estamos condicionados não só aos sons da nossa língua, mas aos sons da nossa variedade linguística regional. Assim, um paulistano não estranha a pronúncia de outro paulistano, mas estranha a pronúncia de um carioca ou de um nordestino.

Ao mesmo tempo, reconhecemos de imediato certas línguas estrangeiras mesmo que não saibamos falá-las simplesmente pela sua sonoridade. Quem, mesmo sem saber falar francês, não é capaz de ouvir alguém falando essa língua e matar imediatamente a charada: isso aí é francês! Pois é, só que não temos a mesma percepção em relação ao nosso próprio idioma por uma razão óbvia: porque, sendo falantes nativos que, portanto, compreendem cem por cento do que está sendo dito, prestamos mais atenção ao significado do que ao som das palavras.

Só que agora a inteligência artificial está permitindo que ouçamos a nossa língua abstraindo completamente o sentido dos enunciados e focando nossa atenção apenas nos sons. Como? Produzindo enunciados sem nenhum sentido, formado apenas de palavras que não existem, mas que obedecem à fonética e à fonologia do português. Uma fala sintetizada por computador que utiliza os sons do português e os combina na mesma ordem em que eles costumam aparecer em palavras reais, isto é, formando sílabas que seguem o padrão estrutural do português — excluindo, portanto, encontros consonantais que não seriam possíveis em nosso idioma.

O resultado desse experimento pode ser apreciado no seguinte link: www.tiktok.com/@iabotsinger/video/7228998392431545605. Como vocês poderão perceber, a sonoridade do áudio corresponde mais especificamente ao português da região central do Brasil, especialmente Sudeste e Centro-Oeste (eu até apostaria que o “sotaque” utilizado pelo algoritmo foi o paulista). De fato, o áudio não soa “chiado” como seria a pronúncia carioca ou nortista nem nasalado como seria a nordestina. Tampouco soa cantada como a de certas regiões do Sul do país ou como o paulistano do bairro da Mooca (o famoso “mooquês”) nem arrastado como o “caipirês”.

Por outro lado, se o experimento fosse feito com base no português lusitano, teríamos um resultado bastante diferente: muitos chiados, muitos encontros consonantais resultantes de vogais que simplesmente não se pronunciam, um ritmo bem mais rápido que o nosso. Tanto que o escritor português Eça de Queiroz disse certa vez que nós brasileiros falamos português com açúcar.

A ciência é apenas mais uma ideologia?

Tornou-se muito frequente nos últimos tempos a crítica, oriunda sobretudo de filósofos e cientistas sociais, de que a ciência é uma atividade tão ideológica quanto qualquer outra prática discursiva humana e que, portanto, a suposta neutralidade e imparcialidade da ciência, garantidas pelo chamado método científico, não passam de um mito. E mais: que esse mito estaria a serviço de certos interesses políticos e econômicos contrários aos valores de igualdade e justiça social, bem como aos direitos humanos. Noutras palavras, a ciência estaria a serviço de um projeto capitalista opressor e exploratório espertamente encoberto por um jargão incompreensível aos leigos, criado para passar a falsa impressão de isenção e assepsia.

Mais do que isso, argumenta-se que a ciência procura revestir-se de uma aura de infalibilidade e de certeza quando, na verdade, ela é apenas uma ideologia, no sentido de “crença que temos sobre a realidade, distinta da própria realidade”, como qualquer outra: como a política, a religião, o jornalismo, a arte, a publicidade… Mais além, alguns até empregam o termo ideologia aplicado à ciência em seu sentido marxista de “acobertamento proposital da realidade”.

Com o propósito de provar essa tese, invocam-se grandes pensadores do fazer científico, como Thomas Kuhn, Robert Merton, Karl Popper, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e outros, todos, com exceção de Kuhn, humanistas e não cientistas, portanto intelectuais que discutiram a ciência teoricamente, mas nunca a exerceram, logo nunca experimentaram na prática o que é fazer ciência.

Diante dessas críticas, convém primeiro esclarecer do que estamos falando. Desde o século XVII, convencionou-se que ciência é um conjunto de práticas de busca da verdade e de construção permanente do conhecimento por meio do raciocínio lógico, da razão e sobretudo do chamado método científico, ou método experimental, que consiste em formular hipóteses acerca de um fenômeno (natural ou social) e testá-las por meio da observação e experimentação (atenção aos meus grifos). Se a hipótese resiste ao teste da experiência, torna-se uma teoria e passa a ensejar novas hipóteses, igualmente sujeitas à testagem empírica. Logo, trata-se de um processo contínuo e infinito. Nele, por vezes teorias são modificadas ou simplesmente abandonadas quando os dados da experiência as contradizem. É o chamado mecanismo de autocorreção da ciência.

Mas a ciência é uma construção permanente do conhecimento, o que significa que, ao contrário das ideologias, que são conhecimentos prontos e imutáveis, o conhecimento científico está em permanente construção, como uma parede a que se acrescenta um tijolo de cada vez. E esse conhecimento é construído a partir do que é lógico, racional, do que faz sentido, do que é plausível e não de explicações mágicas, sobrenaturais ou de argumentos de autoridade e opiniões pessoais e idiossincráticas. A ciência opera com hipóteses e não com dogmas ou opiniões. A diferença é que uma hipótese é uma espécie de “verdade provisória” a ser testada e eventualmente descartada. Já dogmas e opiniões não estão sujeitos a testes e refutações: ou você aceita o dogma ou é excomungado; eu tenho uma opinião sobre algo e só abdico dela se quiser. E a maioria das pessoas carrega consigo suas opiniões e seus preconceitos até morrer.

Como resultado, a ciência é, em primeiro lugar, um processo de busca da verdade e não a própria Verdade. Diferentemente da religião, que sustenta verdades absolutas e inquestionáveis, embora nunca provadas nem comprováveis (e que não raro são desmentidas pela experiência prática), a ciência faz uma aproximação permanente da verdade sem jamais alcançá-la. Nunca saberemos tudo, mas sabemos cada vez mais. A prova de que o conhecimento científico, mesmo incompleto e imperfeito, funciona são as tecnologias que usamos no dia a dia, todas decorrentes da aplicação dos saberes produzidos pela ciência.

Embora ela seja um conhecimento aproximado, reducionista, conseguimos prever com absoluta precisão a que distância da Terra passará um meteoro e tomar as devidas providências para que ele não nos atinja. Quando o meteoro passa, constatamos aliviados que nossa previsão estava correta. Já ideologias e doutrinas fazem previsões que nunca se cumprem: quantas vezes profetas e religiosos previram o fim do mundo para determinada data, e, no entanto, ainda estamos aqui, vivos? A doutrina marxista, por exemplo, previu um regime político e um sistema econômico que produziriam sociedades absolutamente justas, igualitárias e felizes, e, entretanto, o que vemos é que todas as sociedades governadas por regimes marxistas são profundamente injustas, infelizes e cruéis.

Na verdade, a crítica que se faz à ciência deveria ser dirigida aos cientistas, que, como seres humanos, são falhos, portadores de fraquezas, emoções, desejos e vaidades, e, como tal, corrompíveis pelos valores do capitalismo e do mercado. Há uma grande diferença entre a ciência e os cientistas, assim como há entre a política e os políticos. Deveríamos então rejeitar a política só porque há políticos corruptos?

Leio numa postagem do filósofo brasileiro Gustavo Bertoche exatamente essa crítica. Ele diz:

Foi Rubem Alves quem, no livro “Filosofia da Ciência”, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.

Nada mais verdadeiro. Mas observem que sua crítica se dirige aos cientistas — e nem todos são assim; na verdade, a maioria não é — e não à ciência, embora ele diga em outro trecho que

[a] ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas. […] a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. […] Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

O que parece um defeito da ciência, que retiraria sua credibilidade e a colocaria na posição de mera ideologia — ou, antes, de embate de ideologias conflitantes — é na verdade sua grande qualidade. Se não sabemos a verdade e, para tentar nos aproximar dela, precisamos formular hipóteses, é óbvio que diferentes hipóteses precisarão ser testadas. É óbvio também que há diferentes métodos de testar essas hipóteses. É daí que surgem os embates entre os cientistas, cada qual sustentando sua hipótese e defendendo sua corrente de pensamento até que um experimento (ou muitos) determine qual hipótese é válida é merece tornar-se uma teoria — lembrando que teorias também são constantemente testadas e que o papel do cientista não é tentar comprovar uma teoria e sim derrubá-la; logo, teorias são apenas hipóteses que passaram num primeiro teste. Por conseguinte, a controvérsia entre os pesquisadores, longe de revelar a fraqueza da ciência em chegar à verdade, é o que conduz a comunidade científica a aproximar-se cada vez mais dela.

Citando mais uma vez Bertoche, “[s]e um cientista torna-se um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e posicionou-se no campo da ideologia”. Por sinal, é contra esse dogmatismo de certas alas da academia, especialmente na linguística, que eu venho me batendo. Sobretudo nas ciências sociais, ainda muito impregnadas pelo pensamento filosófico, em que a argumentação e a retórica valem mais do que os dados empíricos, há muita ideologia, muito dogmatismo e pouca cientificidade.

Mas o dogmatismo existe em todas as áreas científicas porque, mais uma vez, a ciência é feita por cientistas, que são humanos. Nesse sentido, há na academia pessoas que, em vez de impulsionar o avanço do conhecimento, representam um verdadeiro obstáculo a ele. Felizmente, elas cedo ou tarde acabam substituídas por outras, com novas ideias (ou talvez novos dogmas), e vida que segue.

Porém, o grande problema em equiparar ciência e ideologia sob o argumento de que “todo discurso é ideológico” ou de que “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”, palavras de ordem repetidas à exaustão na área de Ciências Humanas e de Humanidades, é pôr no mesmo balaio fatos e opiniões, dando a um preconceito o mesmo peso argumentativo de uma afirmação comprovada e comprovável. Nesta era da pós-verdade que estamos vivendo, instituiu-se que o que vale não é o que efetivamente é verdade e sim o que eu penso que seja verdade. Se acho que determinado termo tem conotação racista, então ele deve ser banido dos dicionários mesmo que todas as evidências etimológicas e semânticas comprovem que ele não tem nem nunca teve qualquer conexão com o conceito de raça, muito menos depreciativamente. Se a opinião vale tanto ou mais do que o fato e se o conhecimento científico é relativo e ideológico, então afirmações como a de que a Terra é redonda, de que vacinas previnem doenças ou de que a água ferve a 100 graus Celsius são meras crenças propagadas por cientistas com segundas intenções inconfessáveis e financiados por poderosas corporações que querem acabar com a humanidade. Está então aberto o caminho para as fake news, para os negacionistas, os terraplanistas, os antivacinistas, os criacionistas, os teóricos da conspiração e, pior, os fascistas, os supremacistas brancos e os terroristas de toda espécie.

Existe empobrecimento na língua e na cultura?

Um amigo meu, que está concluindo sua dissertação de mestrado, me pergunta se é possível falar em empobrecimento da cultura ou da língua e, mais, se é possível medir esse empobrecimento, caso ele exista.

Trata-se de um tema espinhoso, pois o próprio conceito de empobrecimento é relativo: pode-se argumentar que o que realmente ocorre é uma mudança de paradigmas, que a cultura e a língua são dinâmicas, portanto a ideia de que algo está se perdendo é mera perspectiva saudosista, já que algo novo está sempre surgindo em seu lugar.

No entanto, muitos intelectuais de respeito apontam o fato de que está efetivamente havendo uma perda em termos tanto quantitativos quanto qualitativos; Gilles Lapouge, por exemplo, fala disso em vários de seus escritos.

Em minha visão, esse empobrecimento tem a ver com a decadência da educação e também com as novas tecnologias, fenômeno mundial, embora mais perceptível em nações como o Brasil, em que o sistema educacional e a condição social da população são mais frágeis. Antigamente, a cultura era transmitida basicamente pelos livros, e ler tanto literatura quanto ciência e filosofia era um hábito entre as famílias da elite, mas também uma imposição da escola. E liam-se os clássicos da literatura, cujo linguajar era muito rico, os grandes pensadores de todos os tempos, desde os gregos até os mais modernos e mesmo jornais e revistas, que naquela época eram muito bem escritos.

Então veio o rádio, a seguir a televisão, depois os sites de internet e, mais recentemente, as redes sociais. Sobretudo os mais jovens passaram a valorizar mais a informação midiática do que a literária, talvez por seu apelo audiovisual e seu marketing. Mas também porque a linguagem desses meios se aproximava mais do coloquial desses jovens. Até mesmo os filmes e as telenovelas foram pouco a pouco incorporando um linguajar mais despojado, mais próximo do dia a dia: a fala impostada e teatral dos anos 1940 e ’50 cedeu às gírias e expressões cotidianas. Também os temas mudaram: as antigas telenovelas, que adaptavam para a TV grandes romances do passado ou eram ambientadas numa Europa longínqua e medieval passaram a abordar a vida presente das cidades brasileiras, com seus dramas e contradições — drogas, violência, choque de gerações, racismo, machismo, homofobia. Mesmo as poucas novelas de época que temos hoje procuram adaptar-se à ideologia presente, lançando uma visão crítica à escravidão que certamente não constava na maioria das obras clássicas.

Como disse no início, pode ser que estejamos apenas substituindo uma cultura por outra: saem os mitos gregos, entram os super-heróis norte-americanos. Mas a educação atual privilegia sem dúvida o conhecimento tecnológico em detrimento da cultura clássica, afinal nossa sociedade capitalista espera que a escola forme mão de obra qualificada para as empresas, e dominar tecnologia da informação é mais importante hoje em dia do que saber latim ou ser versado em literatura grega.

Quanto à língua, é possível mensurar objetivamente se há ou não um empobrecimento, mas essa mensuração terá de restringir-se aos registros que temos, isto é, aos textos escritos de hoje em dia e do passado. Na verdade, não temos como saber se a fala informal das pessoas comuns da atualidade é mais ou menos rica que a de nossos antepassados, pois não há registros daquelas falas a não ser episodicamente na reprodução que algum escritor fez da fala popular ao retratar um personagem.

Mas há pistas. Por exemplo, minha falecida mãe me legou a cartilha em que estudara as primeiras letras. E é possível ver nos textos desse livro didático dirigido a crianças de seis, sete anos uma riqueza vocabular que deixa embaraçados hoje em dia até estudantes universitários. A comparação entre textos escritos de décadas ou séculos passados e atuais permite avaliar, dentre outras coisas, a complexidade das estruturas gramaticais, a já mencionada riqueza vocabular, o uso de figuras de linguagem, a elaboração estilística e mesmo a variedade e a erudição das referências temáticas (filosofia, mitologia, alta literatura). Mesmo a extensão dos textos pode nos revelar algo: parece que hoje, até pela falta de tempo imposta por nossa vida corrida, os textos costumam ser mais curtos, concisos e objetivos — às vezes até lacônicos. E um texto mais curto é também mais pobre linguisticamente.

A análise comparativa de textos antigos e atuais nos aspectos linguísticos acima mencionados pode ser feita por meio de softwares especializados que devolvem dados quantitativos e estatísticas sobre a frequência de uso de palavras, expressões, construções sintáticas, etc., classificados por gênero textual, por época, por autor, e assim por diante. Os linguistas estatísticos e computacionais, assim como os especialistas em linguística de corpus, têm bastante familiaridade com esses programas.

Em resposta ao meu amigo, não posso dizer assim de chofre se a cultura e a língua estão empobrecendo, pois seria preciso empreender o estudo que acima mencionei para ter dados concretos em que pudéssemos apoiar nossas afirmações. Do contrário, eu estaria apenas emitindo uma opinião pessoal e, como cientista, sei mais do que ninguém que, em ciência, opiniões pessoais não valem nada. Mas, se me permitem um palpite — afinal este texto não é um artigo científico —, acho que nossa educação indigente, somada à pouca importância que uma parcela significativa de nossa população dá a ela, tem contribuído muito para a derrocada da qualidade dos textos que se produzem hoje, pelo menos no Brasil. Mas é possível que a progressiva substituição de Chico Buarque e Elis Regina por Anitta, a de Machado de Assis por Paulo Coelho, a de Beatles e Burt Bacharach por Rihanna, a de Ernest Hemingway por Harold Robbins estejam de fato assinalando um empobrecimento cultural, com seu inevitável corolário linguístico.

Uma última consideração: a história é feita de ciclos. A eras de apogeu cultural sucedem-se eras de decadência e trevas para novamente ressurgir o esplendor da cultura, e assim sucessivamente. Talvez estejamos de fato vivenciando uma época de obscuridade; tomara seja apenas um interregno a anunciar um futuro novo boom de cultura.

As “fake news” na linguística

Como tenho comentado aqui neste espaço, existe uma cruzada por parte de alguns colegas linguistas em prol de uma agenda muito mais ideológica do que científica, que, embora até bem-intencionada, já que visa à inclusão social por meio da linguagem, peca por falta de cientificidade, falseia fatos, distorce a realidade, propõe uma utopia irrealizável e sobretudo se equivoca ao querer nivelar a educação por baixo em vez de proporcionar aos mais carentes acesso ao verdadeiro ensino de qualidade.

Num artigo intitulado “Quando se fala de linguagem neutra, não é de linguagem neutra que se fala”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a linguista Jana Viscardi lança mão de mais uma fake news para sustentar um ponto de vista ideológico. Tentando provar que a língua é machista por fazer a concordância no plural pelo gênero masculino (o famoso “bom dia a todos”, que supostamente excluiria as mulheres), ela diz:

Um dos argumentos “linguísticos” mais comuns para recriminar o uso das novas formas e manter exclusivamente o uso das já conhecidas (a saber, o feminino e o masculino) é “todos já inclui todo mundo”. Eis aí o conceito de ‘masculino genérico’, regra que faz parte de uma convenção na língua portuguesa (mas não só nela) em que, para se referir a um grupo de homens e mulheres, usa-se o masculino representando todo o conjunto. Assim, diz-se “bem-vindos”e estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa.

Assim, costuma-se aceitar o masculino genérico e assumir que “a língua é assim naturalmente”. Pois eu terei que desapontar você: pesquisas conduzidas ainda nas décadas de 70/80 revelam que o uso do masculino genérico não tem nada de natural. Ann Bodine, por exemplo, nos revela, ao analisar gramáticas antigas, a incômoda realidade de que gramáticos dos séculos XVII e XVIII justificavam o uso de formas linguísticas masculinas (em distintas circunstâncias) pela relevância que o homem teria na sociedade. Observe, com isso, que a regra nada teria de “natural”. Ao invés disso, a definição dessa regra tinha a ver com a maneira como a presença das mulheres e dos homens era lida pela sociedade da época (e por aqueles que escreviam as gramáticas).

Esse exemplo ilustra algo fundamental para a discussão em torno da questão da neolinguagem: aquilo que muitos entendem como ‘natural’ na língua pode ser uma convenção, como no caso do masculino genérico. E essa convenção se estabeleceu a partir do entendimento de sociedade que se tinha na época e, mais do que isso, o entendimento do papel da mulher nessa mesma sociedade, como apontei anteriormente. Desde a década de 70 questiona-se, então, o uso do masculino genérico e são propostas outras formas possíveis – pasmem, nas línguas do mundo há diferentes maneiras de se dizer a mesma coisa.

Segundo a autora, a concordância no masculino não é natural, mas fruto de uma convenção estabelecida nos séculos XVII e XVIII por gramáticos homens (ela não disse brancos, heterossexuais, cisgênero e conservadores, mas está subentendido) com base no entendimento de que as mulheres tinham menos valor na sociedade da época do que os homens.

Não há dúvida de que esse entendimento era verdadeiro, tanto que até o filósofo Baruch Spinoza, apesar de toda a sua racionalidade, considerava que a filosofia não devia ser praticada por mulheres pelo fato de elas serem mais emocionais que os homens. Mas Ann Bodine, citada por Viscardi, apenas afirma que esse argumento era utilizado pelos gramáticos da época para justificar a concordância no masculino; em nenhum momento ela diz que essa concordância foi uma escolha desses gramáticos. Na verdade, essa escolha nunca ocorreu. Vamos explicar por quê.

Como se sabe, a língua portuguesa só admite dois gêneros gramaticais, o masculino e o feminino. Portanto, se a concordância no plural não fosse feita no masculino, teria de ser feita no feminino, já que não temos um terceiro gênero — teríamos então de dizer “bom dia a todas”. Nesse caso, teríamos um sexismo reverso: os homens é que estariam excluídos.

Mas a questão é que a concordância no plural se dá no masculino em português desde muito antes do século XVII; na verdade, desde os primórdios da língua — ou ainda antes, no latim, que fazia a concordância para pessoas no masculino — multi vocati sunt, pauci vero electi, “muitos são chamados, poucos os escolhidos” (Mateus 22:14) — e para coisas no neutro — multa me dehortantur a vobis, “muitas coisas me desanimam em vós” (Salústio, Bellum Iugurthinum). Só que o latim herdou essa concordância do indo-europeu, que já a fazia 6 mil anos atrás. E este provavelmente a herdou do nostrático, língua-mãe do indo-europeu, falado há cerca de 10 a 15 mil anos. Se formos retroceder no tempo até achar a origem dessa concordância, descobriremos que os Homo erectus, primeiros hominídeos a desenvolver a fala, já tinham uma língua “machista”. E isso é assim por razões que têm a ver com nossa própria biologia. Na maioria das espécies animais, há uma prevalência física do macho sobre a fêmea; por exemplo, são os machos que disputam as fêmeas, e não o inverso. Isso obviamente se refletiu na linguagem desde que o homem começou a falar e foi passando de língua-mãe a língua-filha desde então. Como a evolução linguística é fortuita e não controlada por nossos desejos, essa situação nunca mudou, e não vejo como ela poderia ser mudada agora por decreto ou por força de uma militância política.

O fato é que, como expliquei em um capítulo do meu livro O universo da linguagem chamado “O gênero da natureza” e também no vídeo Linguagem neutre de gênere? do meu canal do YouTube, o gênero que subsume masculino e feminino, neutralizando-os, chama-se gênero complexo. Portanto, o latim multi não é propriamente masculino e sim complexo.

O que ocorreu na verdade, como já expus várias vezes, é que o latim tinha três gêneros, masculino, feminino e neutro. E podia, eventualmente, fazer a concordância plural no gênero neutro. Só que, por razões meramente fonéticas, o gênero neutro e o masculino se fundiram no latim vulgar ainda antes da passagem do latim ao português. Portanto, o gênero masculino assumiu as funções que antes eram do neutro. Esse processo não teve nada de ideológico, nunca pressupôs uma superioridade dos homens sobre as mulheres, mas tão somente decorreu de uma mutação fonética: a perda da consoante final que distinguia entre o gênero masculino e o neutro. Logo, a concordância no plural pelo masculino sempre foi uma injunção morfológica da língua portuguesa e jamais fruto de uma escolha dos falantes, muito menos dos gramáticos do século XVII.

Mesmo línguas como o inglês e o alemão, que neutralizam a oposição de gêneros no plural (o inglês all e o alemão alle significam indiferentemente “todos” ou “todas”), não fazem isso por razões de inclusão social, mas igualmente em decorrência da evolução fonética fortuita. Aliás, segundo a citada Ann Bodine, o inglês sempre utilizou o pronome pessoal plural supragenérico they no singular para neutralizar masculino e feminino (o tal gênero complexo); apenas por um período sua gramática normativa substituiu esse uso pelo masculino he (entre os séculos XVII e XIX) e em seguida passou a usar he or she, ou mesmo o feioso (s)he, para, mais recentemente, retornar ao uso de they. A solução encontrada pelo inglês evidentemente não funcionaria em português, em que teríamos de optar entre eles e elas, portanto o dilema continuaria.

Os defensores da tese de que o português é machista podem argumentar que, desde o início, os falantes poderiam dizer “bom dia a todos e todas” (“todes” seria impensável na Idade Média, quando o português surgiu: esse linguajar certamente terminaria na fogueira da Santa Inquisição). Só que, mais uma vez, há dois problemas nesse raciocínio. Primeiro, a questão da economia linguística, que também atende pelo nome de concisão: “todos” é mais simples que “todos e todas”. Segundo, se dizemos “todos e todas”, estamos colocando os homens em primeiro lugar, logo o machismo persiste. Se, ao contrário, dizemos “todas e todos”, estamos privilegiando as mulheres e aí caímos no já citado sexismo reverso. O mesmo vale se dizemos simplesmente “todas”.

Em suma, a concordância no plural pelo gênero masculino atendeu em primeiro lugar à evolução fonética natural da língua e em segundo ao princípio da economia linguística; a ideia de que isso é assim porque os homens são superiores às mulheres foi apenas um argumento oportunista usado pelos homens do passado para justificar sem base científica alguma, num tempo em que, por sinal, nem se sonhava com a existência de uma ciência da linguagem, um fato puramente gramatical.

Não sei se Jana Viscardi conhece esses fatos (deveria conhecer, já que é linguista) nem se defende seu ponto de vista equivocado por pura ignorância da história da língua ou se o faz por deliberada má-fé com o intuito de sustentar uma posição ideológica muito bem-vista no meio acadêmico de Letras, embora nem um pouco científica. Mas a realidade é que, nas chamadas ciências humanas (que, por vezes, e graças a essas mazelas, têm pouco de ciências), o uso de fake news como instrumento de argumentação é fato corrente. E, como os leitores de veículos como o Le Monde Diplomatique são na maioria leigos no assunto, essas fake news passam como verdades. Ainda mais quando quem assina o artigo detém um título de doutora em linguística.

P.S.: Jana Viscardi escreve: “estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa”. Se ela não quer ser sexista, deveria escrever: “estaríamos todas, todos e todes incluídas, incluídos e incluídes na conversa”. Linguagem inclusiva e superconcisa, não?

Os peixe

Hoje quero reproduzir aqui neste espaço um excelente artigo de meu amigo e colega José Horta Manzano publicado originalmente no Correio Braziliense em 2011. A questão aqui abordada continua mais atual do que nunca. Vamos ao artigo.

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo “os menino pega os peixe”como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central — imperial primeiro, republicana em seguida — usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos — afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de “falar errado”. Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não “falam errado”. Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, “os menino pode pegar tudo os peixe”. Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

O ser humano é realmente um animal racional?

Dando continuidade à minha “filosofice” do artigo anterior, publico agora outro artigo, redigido muito tempo antes daquele, mas que de certa forma funciona como complemento e continuação da minha reflexão sobre a inteligência, a racionalidade e a sabedoria (ou não) da humanidade. Então vamos lá.

Por que o BBB faz tanto sucesso? Por que música brega é tão popular? Por que tanta gente aposta em loterias? Por que tanta gente acredita no sobrenatural? Por que políticos corruptos são (re)eleitos?

Cientistas sociais se debruçam sobre essas questões e produzem teses e mais teses acadêmicas quando a resposta é simples: o bom gosto é irmão do bom senso. E a maioria das pessoas não tem nem bom gosto nem bom senso. Aliás, o bom gosto é a manifestação estética do bom senso. E o bom senso deriva da racionalidade. Só que, embora a racionalidade seja o mais humano dos atributos (“o homem é um ser racional”), ela é um atributo “recessivo”, isto é, a maior parte das pessoas não tem o gene da racionalidade como dominante. É por isso que pessoas guiadas pela razão são minoria no planeta.

A razão foi importante na evolução da espécie humana, mas o fator preponderante da nossa evolução foi de natureza não racional. A superstição e o julgamento pela emoção parecem ter contribuído mais para a sobrevivência dos nossos antepassados do que a razão. Racionalidade é bom na hora de planejar uma caçada, mas isso um dos membros da tribo — o mais racional — pode planejar sozinho. Já a sobrevivência individual dependeu mais de decisões rápidas e não racionais.

Embora se desenvolva com o estudo, a racionalidade só aparece como traço dominante numa pequena parcela da população. É por isso que a religião e a superstição são mais populares que a ciência, e o mau gosto supera o bom senso estético.

A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

Ainda sobre Marcos Bagno e sua gramática

ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.

Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.

A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.

Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.

A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.

Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.

O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.

Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou  não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.

Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.

Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.

Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?

Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?

Também  se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.

Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.

Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…

Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.

 Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.

Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.

É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.

Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.

Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.

Quem é o calhorda?

Desde o início do ano, o Prof. Fernando Pestana, meu colega colunista na página Língua e Tradição, vem publicando nessa página uma série de artigos comentando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do linguista Marcos Bagno, sobretudo apontando os erros metodológicos e as incoerências entre o que o autor prega e o que ele mesmo e os autores em que se apoia fazem em matéria de uso da chamada norma-padrão da língua portuguesa.

Antes de mais nada, convém situar o leitor sobre do que trata essa gramática. Nela, Bagno advoga que a atual norma culta do português brasileiro, isto é, o modo como os brasileiros altamente escolarizados falam e escrevem, está bastante distante da norma-padrão, aquela preconizada pela gramática normativa e ensinada nas escolas, a qual estaria, portanto, desatualizada e se teria tornado anacrônica, além de refletir mais o português lusitano do que o brasileiro. Como resultado, o autor propõe não só que se adote uma nova norma-padrão, que abone construções típicas do falar brasileiro, como também que se passe a ensinar essa nova norma nas escolas. É daí que vem o epíteto “pedagógica” do título da obra.

Bagno afirma, dentre outras coisas, que os pronomes demonstrativos este/esta/estes/estas não existem mais no português brasileiro, substituídos que foram por esse/essa/esses/essas em todos os casos. No entanto, o próprio autor emprega diversas vezes este/esta/estes/estas em sua obra, numa contradição com sua própria lição.

Ele também defende que construções como “eu a vi” quase não se usam mais e, portanto, deve-se a partir de agora abonar construções como “eu vi ela”. Seu argumento, coerente com o militante de esquerda que é, é o de que a norma-padrão vigente é elitista e excludente e que, para empoderar os menos favorecidos, é preciso chancelar o modo como eles se expressam.

Esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro, a verdadeira emancipação dos mais pobres e menos escolarizados se dá justamente pela educação, portanto pelo acesso dessa população a um ensino de qualidade, que a torne proficiente naquela norma que vai lhe abrir as portas do mercado de trabalho qualificado, e não pelo rebaixamento da norma-padrão ao linguajar das pessoas menos escolarizadas. Essa proposta seria como se, em vez de lutar pela saúde bucal da população, tornando o tratamento dentário acessível a todos, se instituísse a boca banguela como padrão de normalidade.

O segundo problema é que a norma-padrão de uma língua se baseia no uso formal que as pessoas cultas fazem na modalidade ESCRITA. Embora a maioria de nós brasileiros use de fato esse no lugar de este mesmo referindo-se a um objeto próximo de quem fala, o uso do pronome este ainda está muito vivo em nossa escrita formal. Da mesma forma, todos nós dizemos “eu vi ela” quando falamos informalmente, mas nenhuma pessoa bem escolarizada, que é a que redige textos formais, escreveria dessa maneira num documento profissional, trabalho escolar ou na prova do Enem. Logo, o argumento de que nossa norma-padrão é uma peça de ficção, um retrato do português escrito de séculos atrás, como sustenta Bagno, não se sustenta.

É bem verdade que muitos profissionais de nível superior já não respeitam rigorosamente certas regras da gramática normativa quando escrevem, como, por exemplo, quando utilizam a próclise (anteposição do pronome oblíquo ao verbo) em contextos em que deveriam usar a ênclise (posposição do pronome ao verbo). Nesse sentido, a norma-padrão poderia, sim, ser flexibilizada, e creio que o será nos próximos anos, como é da dinâmica natural das gramáticas. Mas, se as pessoas cultas já escrevem assim — eu mesmo faço isso e, aliás, o fiz aqui neste texto — e essas construções são aceitas pacificamente, por que precisaríamos reformular radicalmente a norma-padrão? Não bastariam alguns pequenos ajustes? Por outro lado, que sentido há em institucionalizar uma construção como “eu vi ela” se nenhum redator culto a emprega em textos formais?

Nesse sentido, as críticas do Prof. Pestana à obra de Bagno são plenamente razoáveis e pertinentes. Além disso, a gramática em questão se baseia muito mais nas percepções pessoais do próprio autor sobre o português brasileiro do que num levantamento sistemático, segundo o método científico, de textos escritos formais do Brasil atual, ainda que ele afirme ter feito tal levantamento. Na prática, o que Bagno faz é tomar o português oral informal como padrão a ser adotado na escrita formal, algo que ainda está muito longe de acontecer e de ser aceito socialmente.

Mas o motivo deste meu artigo é que o linguista Marcos Bagno postou recentemente um texto no Facebook com o título “A calhordice do ‘ele não escreve como manda os outros escreverem’”. Embora não especifique a quem dirige sua ira, fica claro que o alvo é justamente o Prof. Pestana, primeiro porque, num trocadilho de gosto duvidoso, Bagno impreca a certa altura: “Vá queimar pestana, calhorda (…)”. E, em segundo lugar, porque as críticas que tenta rebater em sua postagem são exatamente aquelas feitas por Pestana.

A primeira coisa a observar é que Bagno não contra-argumenta, em nenhum momento afirma que os apontamentos de Pestana são inverdades, mas limita-se apenas a dizer que

a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia.

Só que, em sua gramática, Bagno não sustenta que se use indiferentemente quer a forma tradicional quer a inovadora, ele aconselha os professores a ensinar apenas esta segunda. Diz ele: “é perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença entre esse e este, que não existe na língua e que não é rigorosamente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos mais monitorados”.

Como não tem argumentos para negar que as críticas de Pestana têm fundamento, Bagno recorre ao argumentum ad hominem da retórica de Aristóteles e chama seu crítico de calhorda. Não podendo atacar o argumento, ataca o argumentador, numa atitude infantil de descontrole emocional de quem sabe que não tem razão. Ao contrário, Pestana critica Bagno com espírito científico, como é praxe no debate acadêmico, jamais em nível pessoal, jamais resvalando para a ofensa ou o insulto. Em outras palavras, ataca as ideias, não a pessoa.

Em outro momento, Bagno dá uma “carteirada” em Pestana, um típico “você sabe com quem está falando?”, ao dizer:

escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

Arrogante como sempre e detentor de uma postura de dono da verdade, como o são todos os extremistas, radicais e dogmáticos, Bagno se gaba de ter escrito uma gramática de mil páginas, o que, supostamente, Pestana não seria capaz de fazer. Ora, primeiramente, um livro grande não é necessariamente um grande livro, ou “tamanho não é documento”. Em segundo lugar, Pestana é autor d’A Gramática para Concursos Públicos, por sinal, a gramática mais vendida e a mais lida por concurseiros e vestibulandos, mas não só por eles.

A certa altura, Bagno coloca o pronome pessoal oblíquo antes do advérbio de negação (“…como se fosse possível algum trabalho que o não seja…”) e, pretensioso, desafia seu opositor como quem quer ensinar o padre-nosso ao vigário: “já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!”.

Bagno também afirma em sua postagem que sua gramática “descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas”. Será? “Eu vi ela” já está enraizado no uso ESCRITO das pessoas cultas? Diz também que “descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita”. No entanto, sua gramática se diz pedagógica justamente porque quer ensinar as pessoas a usar essas formas em sua escrita. Gramáticas descritivas descrevem a língua tal como é falada e escrita, tanto pelos mais cultos quanto pelos iletrados; já gramáticas normativas e pedagógicas normatizam a linguagem formal, isto é, estabelecem normas de como se deve ou não se deve escrever textos formais. A gramática de Bagno é pedagógica até no título, e seu conteúdo não é meramente descritivo, com fins unicamente científicos, é prescritivo e estimula os professores a ensinar a seus alunos um padrão que praticamente só o próprio Bagno utiliza. Afinal, quem mais no meio acadêmico ou profissional escreve “leia tudo o que tive de ler para escrever ELA”?

Em outra passagem de seu texto, Bagno se vangloria de ter escrito um romance em que não usou nenhuma vez a palavra cujo. Enquanto os grandes escritores se esmeram em produzir obras linguisticamente ricas, Bagno se orgulha de sua pobreza vocabular. E ainda assim se considera um literato!

Por fim, usando da falsa humildade característica dos cínicos, Bagno afirma: “aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito criticas e observações — mas calhordice, aceito não”. Coerência teórica?! Aceita críticas e observações?! Só se forem aquelas que não exponham sua incoerência ou a fragilidade de suas postulações. Do contrário, o crítico é calhorda, mesmo que todas as suas críticas estejam fundamentadas e apoiadas em dados colhidos por metodologia científica, como o fez o Prof. Pestana.

Mas, a certa altura de seu texto, Bagno também confessa: “na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese”. Pergunta que eu também me faço. O fato é que Marcos Bagno diz o tempo todo fazer ciência ao mesmo tempo em que confessa que todo o seu trabalho é eivado de ideologia (marxista, no caso), e que não é possível fazer ciência não ideológica. Na verdade, todo trabalho científico estritamente descritivo e explicativo que seja bem feito e metodologicamente correto, seja nas ciências naturais ou nas humanas, é não ideológico, já que se atém à realidade dos dados coletados, sem emitir opiniões ou juízos de valor. No entanto, Bagno advoga o tempo todo em favor de uma agenda política, como quando diz em sua postagem:

[o argumento] (é) calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc.

Em resumo, Bagno não faz ciência, faz política travestida de ciência. Como todo extremista, não se pauta por fatos objetivos e sim por dogmas. Como todo radical, é raivoso contra quem discorde de suas ideias. Como todo hipócrita, finge-se de democrata quando só dá ouvidos a quem lhe faz coro. Como todo aquele que se sabe medíocre (porque quem é bom de fato não precisa provar nada a ninguém), vomita o tempo todo seu currículo acadêmico e desqualifica seus adversários. Como militante político barulhento e rebelde sem causa, desprestigia os verdadeiros linguistas, aqueles que fazem ciência de verdade com seriedade e responsabilidade, que não misturam fatos com opiniões, que não falseiam dados para provar suas teses, que não atacam a honra de seus críticos ou adversários e que, além de tudo, escrevem num português que, mesmo não seguindo religiosamente a norma-padrão, é perfeitamente aceitável entre as pessoas de cultura. O que não é o caso do Sr. Marcos Bagno.

Novas palavras a ser proibidas por serem politicamente incorretas

DISCLAIMER AOS DESAVISADOS: Este texto tem fortes doses de ironia.

Como vocês sabem, a língua portuguesa, como de resto todas as línguas, é machista, racista, classista, homofóbica, transfóbica, aporofóbica, etc. etc. Portanto, precisamos urgentemente banir do nosso vernáculo todas as palavras e expressões que firam a suscetibilidade e os direitos das minorias. Aqui vai minha humilde contribuição a essa justa causa, apontando algumas palavras que até agora passaram despercebidas, mas que contêm uma grande carga de preconceito e desrespeito.

Comecemos pela palavra virtude. Sim, amigos, amigas e amigues, essa palavrinha aparentemente tão inocente e mesmo nobre veio do latim virtus, derivada de vir, “homem, ser humano do sexo masculino”, logo significa “qualidade de quem é homem, aquela que só o homem tem”. Como podem ver, é uma palavra pra lá de machista, visto que considera que só os machos da espécie têm a qualidade da virtude. Pelos mesmos motivos, devemos banir também viril, virilidade, varonil e másculo, pois todos esses termos remetem ao sexo masculino de forma positiva e elogiosa, desmerecendo as mulheres. Aliás, também é urgente proscrevermos hombridade (do espanhol hombre, “homem”) e homenagem (alguém até já propôs mulheragem em seu lugar, mas eu fico me perguntando se aí também não teríamos sexismo, só que em sentido oposto).

E por falar em mulheres, a própria palavra mulher é discriminatória, pois provém do latim mulier, “mulher casada, esposa”, como se só as casadas fossem mulheres de verdade. E o que dizer de senhor então? Essa palavra nos chegou do latim senior, que quer dizer “mais velho”, logo é um termo altamente ageísta. E jamais devemos dizer que um erro é crasso, pois crassus em latim é “gordo”, e nós evidentemente não somos gordofóbicos, né?

Por fim, jamais use a palavra atroz, que vem de ater, “negro” em latim, pois você estará associando a ideia nefasta de atrocidade às pessoas afrodescendentes. E tampouco use a palavra alvo no sentido de meta a ser atingida, já que esse vocábulo significa “branco”, e assim você estará elevando a raça branca ao status de superioridade, perfeição, de objetivo a que todos devem aspirar.

Bem, acho que por hoje já dei minha contribuição para tornar nosso idioma mais inclusivo e menos discriminatório. Em todo caso, se encontrar mais termos preconceituosos, darei prosseguimento ao meu index verborum prohibitorum, ok?

Inflação, carestia, preços altos… Mas de onde vêm as palavras “caro”, “preço” e “inflação”?

Hoje em dia, tudo está muito caro, efeito nefasto da inflação, que corrói nossa renda e afeta sobretudo os mais pobres. Mas qual a origem da palavra caro? Em latim, carus, de onde veio a palavra portuguesa, significava em primeiro lugar “querido, amado”. É daí que vêm os nossos “caro(a) amigo(a)” e “meu/minha caro(a)”, com que nos dirigimos a pessoas queridas. Daí também vêm caridade, carícia e acariciar, estes dois últimos por via do italiano. O termo latino se originou de uma raiz indo-europeia *kā‑, que significava “gostar, amar, desejar”. Ela está presente, por exemplo, no sânscrito kama, “amor”, que aparece no título do Kama Sutra, literalmente “Livro do Amor” (sutra, “livro” em sânscrito, é da mesma raiz de sutura, pois os livros eram feitos de folhas de pergaminho costuradas umas às outras).

Mas, como aquilo ou aqueles que amamos têm alto valor para nós, o latim carus também passou a significar “de alto valor ou preço”, como os gêneros de primeira necessidade atualmente no Brasil. Assim, caro hoje se refere não só ao valor moral ou afetivo que damos às coisas e pessoas como também ao custo monetário delas (das coisas, não das pessoas — se bem que há pessoas que também nos custam caro).

E se caro tem a ver com “valor, preço”, é por isso que temos apreço pelo que nos é caro, isto é, precioso. Em latim, pretium era o preço que se pagava por algo. Assim, pretiosus era “precioso” não só no sentido de “valioso”, mas também no de “dispendioso”. Hoje diríamos que o arroz e o feijão são muito preciosos, né? Consequentemente, appretiare, não era “apreciar”, mas “apreçar, avaliar, estabelecer o preço”. Mais uma vez, como tudo que tem valor tem alto preço (pelo menos entre os bens materiais), passou-se a usar os termos relativos a preço com sentido moral: apreciar uma comida, ter uma amizade preciosa, ter apreço por alguém, e assim por diante.

Mas começamos falando de inflação. Essa palavra, do latim inflatio, deriva de inflare, “inflar, inchar”, formado do prefixo in‑, “dentro”, e do verbo flare, “soprar”, que também ocorre em sufflare, que deu em português soprar e insuflar, e em afflare, “exalar”, que deu o nosso achar. Inflare significa “soprar dentro”, como se faz ao encher de ar uma bexiga de borracha soprando dentro dela.

Em resumo, inflação é um inchaço, no caso, dos preços. Trata-se de um termo cunhado pelos economistas. Mas também existe a inflação cósmica, expressão proposta pelo astrofísico e cosmólogo americano Alan Guth para denominar uma expansão exponencial que o Universo teria sofrido nos primeiros tempos de sua existência.

Tenho muito apreço por assuntos como cosmologia, mas a inflação dos preços não me é nada cara.

A origem da palavra “dinheiro”

A Páscoa passou, e nessa data os cristãos rememoram a traição de Judas, a prisão de Jesus, seu julgamento e execução na cruz, além de sua suposta ressurreição. Uma das informações sempre veiculadas na narrativa sobre os últimos dias do Cristo é que ele foi traído pela quantia de 30 dinheiros, o que causa certa estranheza a algumas pessoas, visto que dinheiro não é unidade monetária, mas a própria moeda. Se perguntássemos qual era o dinheiro em circulação na Roma antiga e alguém respondesse “dinheiro”, acharíamos que a pessoa não entendeu a pergunta ou está de gozação, mas é isso mesmo: o dinheiro em circulação em Roma era o dinheiro — ou melhor, o denário.

Na verdade, a unidade monetária romana era o asse (em latim as, genitivo assis). Por sinal, é daí que vem o nosso ás do baralho. Esse sistema monetário tinha base duodecimal, e cada parte ou fração se chamava uncia, origem da nossa onça (não o felino selvagem, bem entendido, mas a unidade de medida ainda utilizada nos países anglo-saxônicos). Uncia deriva de unus, “um” em latim.

Mas e o denário? Em Roma, denarius (subentendido numus, “dinheiro, numerário”) era uma moeda de dez asses. É que denarius provém de decem, “dez” em latim. Portanto, Judas Iscariotes delatou Jesus Cristo por 30 denários ou 300 asses. Só não me perguntem se essa quantia era muito ou pouco dinheiro; não faço a menor ideia do poder de compra de um asse romano, e acho que nenhum economista seria capaz de fazer a conversão desse valor para o nosso real brasileiro atual.

De todo modo, os apóstolos eram pobres, e certamente uma soma como 30 dinheiros, mesmo que valesse apenas uns 300 reais, já era muito, especialmente para um apóstolo ambicioso e inescrupuloso, capaz de trair seu mestre por dinheiro.

Pelo menos, no final Judas se arrependeu de sua vileza e se suicidou de remorso.

Uma curiosidade é que a palavra denarius produziu uma unidade monetária, o dinar, muito usado em vários países, como Argélia, Iraque, Jordânia, Líbia, Tunísia e Sérvia. O nome dinar saiu do latim e passou pelo siríaco dinara, depois pelo árabe دينار (dinar), até chegar ao português. E denarius também resultou no espanhol dinero e no italiano denaro, além do antigo francês denier, hoje substituído por argent, literalmente “prata”.

A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?

A educação para a arte

Um dos papéis da educação é estimular nos indivíduos o gosto pela arte de qualidade. Para isso, ela parte do princípio de que é preciso “educar” os olhos e os ouvidos. Caso contrário, as pessoas só apreciariam obras vulgares e de pouco conteúdo. Não há nessa proposta algo de preconceituoso ou de elitista?

As crianças adoram certos alimentos, enquanto outros elas só comem obrigadas. Adultos acham gostosos certos alimentos porque foram acostumados desde pequenos a consumi-los. É por isso que em alguns lugares do mundo se come peixe cru, insetos, etc.

Uma piada que precisa ser explicada é realmente engraçada?

Em resumo, há certas obras que nos agradam naturalmente, sem que tenhamos de aprender a gostar delas; outras só são apreciadas por quem foi “condicionado” a gostar delas. Não é que estas não deem prazer, mas se trata de um prazer “oculto”, não óbvio, um prazer “iniciático”, que só alguns conseguem sentir.

Isso põe a questão: será que uma obra é intrinsecamente boa (por exemplo, quando produz prazer de modo instintivo, em mentes não treinadas) ou tudo não passa de condicionamento?

É função da escola “educar” o olhar e o ouvido no sentido de condicioná-lo a um padrão estético arbitrariamente estabelecido como de bom gosto por uma elite cultural ou econômica?

O que ocorre é que a escola tenta fazer — sem muito sucesso, devido aos seus métodos repressivos — o que a mídia deveria fazer, mas não faz: apresentar ao público a maior diversidade possível de gêneros artísticos para que cada um possa escolher do que gosta mais. O problema é que os meios de comunicação sempre oferecem mais do mesmo — e trata-se de obras que não primam pelo conteúdo, mas por serem vendáveis. Fica aí a questão: não serão elas vendáveis justamente porque coincidem com nosso modelo “instintivo” de prazer? Ou seja, não serão populares essas obras exatamente porque ativam as zonas de prazer do cérebro de pessoas não treinadas? Será então que a “educação do olhar” feita pela escola não é uma ação contrária à natureza? Mas ser o contrário da natureza não é exatamente a definição de cultura?

Fica aqui a reflexão.

Relembrando e refletindo sobre Belchior e seu legado

Nos últimos dias, acabei casualmente voltando a ter alguns contatos com a música de Belchior, que eu não ouvia há muito tempo. Primeiro, me deparei com um documentário na TV por assinatura sobre sua vida e obra; depois, um programa no rádio dedicado a ele; e mais algumas canções suas que tocaram no rádio do carro enquanto eu dirigia (“Dentro do carro / Sobre o trevo / A cem por hora, ó, meu amor”). Isso me fez refletir um pouco sobre esse ícone da música popular brasileira desaparecido há quase seis anos, em 30 de abril de 2017.

Por sinal, sua morte me pregou uma peça: alguns dias antes, eu havia participado de uma matéria para o Fantástico, da Rede Globo, sobre o Dia da Língua Portuguesa, que é comemorado em 5 de maio. Essa matéria iria ao ar exatamente em 30 de abril, mas, na hora agá, a morte do artista “derrubou”, como se diz no jargão jornalístico, a matéria de que eu participava. No domingo seguinte, o Dia da Língua já havia passado, e a reportagem jamais foi ao ar.

Mas não guardo mágoa de Belchior por ele ter roubado minha cena: sem dúvida, sua morte foi um fato muito mais relevante do que as minhas considerações sobre a língua portuguesa. Aliás, ele foi um grande cultor do idioma: suas letras são poemas impecáveis, de um vernáculo esmerado e burilado, e ele próprio se dizia um artesão da palavra, alguém que passava horas tentando melhorar um verso que já estava ótimo.

Antônio Carlos Belchior, que também se autodenominava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, portanto, como ele próprio jocosamente dizia, um dos maiores nomes da MPB, surgiu no cenário da música brasileira no âmbito de um movimento de artistas cearenses chamado “Pessoal do Ceará”, que também revelaria Fagner, Ednardo e Amelinha, dentre outros. No entanto, diferentemente destes, Belchior é um artista que eu tenho dificuldade em classificar como de MPB, pois sua música transitava entre o rock, o blues e as baladas românticas. Não que outros nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Jorge Ben Jor não tenham flertado com o pop-rock: após os Beatles, a Jovem Guarda e a Tropicália, praticamente todos eles fizeram isso em algum momento. Mas, no caso de Belchior, sua música revela algumas contradições.

Em primeiro lugar, seus versos eloquentes repisavam certos temas recorrentes: o desalento pelo fim do sonho hippie (The dream is over, lembram?), a juventude perdida, a inadequação do rapaz sertanejo na cidade grande, o sentimento de pertença latino-americana. Belchior era alguém que, já nos anos 1970 era um saudosista dos anos ’60. E isso com apenas 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Como ele próprio diz na canção A Palo Seco, aquele seu desespero era moda em 73. O problema é que essa temática do fim da contracultura foi ficando datado, mesmo a canção tendo sido reeditada três anos depois com a letra alterada para “76”. A década de ’70 passou, e com ela o sucesso de Belchior. Tanto que, nos anos ’80, ele basicamente lançou inúmeras regravações de seus sucessos da década anterior. O desespero de Belchior havia saído de moda.

Como apenas um rapaz latino-americano que era, ele afirmava, também nessa mesma canção, que “Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues”. Só que, contraditoriamente, a canção em questão é exatamente um blues. Por sinal, Belchior falava muito do sertão de onde saíra, mas sua música jamais teve um acento nordestino; ao contrário, era muito urbana e muito anglo-saxônica. Suas referências sempre foram John Lennon (“a felicidade é uma arma quente”), James Dean e outros símbolos da cultura pop internacional. Por isso, acho difícil enquadrar Belchior na mesma MPB de Edu Lobo, Chico Buarque, Dori Caymmi, Ivan Lins, Gonzaguinha, João Bosco, nossa recém-falecida Sueli Costa, e mesmo de nomes nordestinos como os já citados Caetano, Gil, Fagner, Djavan, além de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e outros mais fincados na herança da Bossa Nova e dos ritmos nacionais.

Ao mesmo tempo, não vejo Belchior como integrante do cenário roqueiro dos anos ’70, ao lado de Rita Lee, Sérgio Hinds, Arnaldo Batista, Raul Seixas, Erasmo Carlos…

Talvez essa dificuldade de se enquadrar em qualquer gênero dentro da música popular brasileira, embora revelasse a grande qualidade de ser único e revolucionário — além de sua figura exótica, com seu enorme bigode, que mais o aproximava dos cantores hispano-americanos ou talvez do country americano, além de sua voz rouca e fanhosa —, acabou por relegá-lo a um certo ostracismo. Com efeito, a partir dos anos 1990, ele vai aos poucos desaparecendo de cena até literalmente sumir. Especulações à época diziam que ele teria abandonado a carreira musical e fugido de seus credores. Belchior acumulou dívidas impagáveis — não no sentido do riso e da hilaridade, bem entendido, mas no da insolvência financeira —, abandonou bens, foi morar de favor até no Uruguai, tentou manter oculta sua identidade (se bem que isso era quase impossível em se tratando de uma figura como ele), foi descoberto por fãs e pela imprensa, voltou à obscuridade e finalmente morreu aos 70 anos, ofuscando minha estreia na televisão.

Lembro que a mãe de um colega meu de classe no colégio era muito fã de Belchior, tinha todos os discos dele, sabia de cor e cantava todas as suas canções, e eu, que na época curtia o pop internacional e a disco music, ou no máximo uma MPB mais ortodoxa, tipo Chico e Milton, achava estranho aquele gosto por um cantor bigodudo que eu, equivocadamente, equiparava aos bregas da época: Waldick Soriano, Odair José, Reginaldo Rossi, Altemar Dutra, Nelson Ned, y otros más. Demorei algum tempo para compreender a verdadeira dimensão da obra de Belchior, que, embora não seja dos meus artistas favoritos, é inegavelmente um dos gigantes da nossa música, além de um grande poeta.

Entrevista com Sérgio Cabral

Depois de ser posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro último, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-presidiário Sérgio Cabral decidiu dar sua primeira entrevista como cidadão livre e ficha-limpa (todos são inocentes até que se prove a sua culpa, após trânsito em julgado na última das infinitas instâncias do Poder Judiciário).

O repórter da televisão designado para entrevistar o ilustre político e mão-leve começa a entrevista perguntando:

— Senhor governador, como o senhor se sente depois de ter passado seis anos preso, condenado a mais de 400 anos de prisão, e agora em liberdade?

— Olha, rapaz, quando eu decidi partir pra corrupção, avaliei que era um bom negócio, no Brasil tudo é movido a propina, os mecanismos de fiscalização são falhos, superfaturar uma obra é muito fácil e ninguém percebe, e, mesmo quando há denúncias, a gente sempre diz que é intriga da oposição. No final, as investigações levam anos e não dão em nada; esses crimes nunca são julgados mesmo, né? E ainda tem o foro privilegiado. Além disso, a vida de nababo que eu e meus companheiros levávamos compensava plenamente o risco.

Só que, quando eu fui preso na Operação Lava-Jato, obrigado a confessar os meus crimes e a devolver parte do dinheiro desviado e, ainda por cima, fui condenado a centenas de anos de prisão, confesso que bateu um arrependimento: ir pra cadeia depois de ser um político de prestígio, que sonhava até ser presidente da república, foi duro.

Mas fiquei preso só seis anos, tive regalias na cadeia, como TV com DVD e caviar no jantar, e ainda pude curtir a companhia de alguns parças, como o meu brother Pezão, por exemplo. Ou seja, esses seis anos passaram depressa. Logo em seguida, fui pra prisão domiciliar, que de domiciliar só tem o nome, pois eu podia sair na rua à hora que quisesse, só não podia sair do país sem autorização judicial. E domicílio de rico é outra coisa, né?

Então, diante disso, eu comecei a reavaliar a situação e a achar que tinha valido a pena tudo que eu fiz. Afinal, ainda tenho muito tempo pela frente pra curtir a grana que eu desviei e que não tive que devolver aos cofres públicos. Até eu ser julgado e condenado na última instância, esses processos todos já terão caducado — ou eu estarei velho demais pra ir pra cadeia. Quem sabe role até um indulto presidencial ou uma graça, né?

— Mas, governador — interpela o repórter —, o senhor não acha um escárnio com o povo brasileiro o senhor estar por aí livre, leve e solto, gastando o dinheiro roubado dos contribuintes, mesmo tendo sido condenado a quatro séculos de prisão?

— Olha, garoto, em primeiro lugar, “dinheiro roubado” não, “desviado”, ok? Em segundo lugar, se tem alguém escarnecendo do povo, não sou eu, é o Poder Judiciário, eu só estou cumprindo ordens judiciais. Ou seja, eu estou rigorosamente dentro da lei. O problema não sou eu, é a lei. Só que eu, sinceramente, não tenho do que me queixar dessa lei, pra mim ela é muito boa. Aliás, pra você ver como são as coisas, o juiz que me condenou e mandou me prender está sendo investigado e pode até ser punido com a aposentadoria compulsória, isto é, ficar pelo resto da vida recebendo salário sem trabalhar — se bem que uma punição assim até eu queria, né?

— O senhor quer deixar uma última mensagem para os nossos telespectadores?

— Olha só, na minha concepção, o Brasil não é, como dizem, o país da corrupção, pois corrupção tem no mundo inteiro; no Oriente Médio, por exemplo, a coisa é bem pior do que aqui. O Brasil é, sim, o país da impunidade, e é a impunidade que alimenta a corrupção. Eu não teria feito tudo o que fiz se não tivesse a certeza de que, no final, ia me dar bem, como de fato me dei. As nossas leis são feitas pra não punir ninguém — a não ser, claro, os três P’s: preto, pobre e puta. Afinal, grande parte daqueles que fazem as leis, nossos ilustres legisladores, também têm problemas com a Justiça — e não sem razão! Então eles fazem leis pra si próprios, pensando que um dia também poderão ser beneficiados por elas. Minha mensagem é: meus amigos, no Brasil, o crime compensa! Muito obrigado pela oportunidade e um abraço a todos os telespectadores.

Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.

Luiz Felipe Pondé e a pauta dos animais

Recentemente, o filósofo Luiz Felipe Pondé publicou um vídeo em seu canal do YouTube respondendo à pergunta “Por que não me preocupo com a pauta dos animais?”. Admiro muito Pondé por sua sensatez e equilíbrio na análise das mais diversas questões, desde as existenciais até as políticas, mas no vídeo em questão sou obrigado a dizer que o pensador tratou a questão de forma rasa e pouco sensível.

Logo de início, ele argumenta que a natureza é uma máquina de sofrimento e que, embora ninguém em sã consciência seja a favor do sofrimento, animais se alimentam de animais e que se deveria perguntar a um leão se ele é a favor do sofrimento. Mais adiante, ele questiona o que farão os veganos se um dia descobrirem que os vegetais também têm sentimentos: comerão o próprio corpo como única saída possível?

Todos sabemos que seres vivos se alimentam de outros seres vivos, sejam eles animais ou vegetais. Nisso a natureza é sábia, pois, se nos alimentássemos de minerais, que são recursos não renováveis, estaríamos devorando nosso próprio planeta. Portanto, até por ser uma lei da natureza, alimentar-se de animais não seria, em princípio, um problema ético. A questão é como o ser humano trata os animais que come.

O leão tem no antílope (eu ia dizer “veado”, mas algum militante LGBTQIAXYZ pode se sentir ofendido) seu alimento, mas, para comê-lo, ele precisa caçá-lo, e aí temos uma luta de igual para igual. Um dia é da caça, o outro do caçador, logo às vezes o leão mata e come o antílope, às vezes o antílope consegue fugir e sobreviver — para azar do leão.

Os índios (ou indígenas, ou povos originários) brasileiros costumam caçar para comer e até usam um meio um tanto desleal em relação aos bichos que caçam chamado arco e flecha; sim, com esse artefato tecnológico, levam certa vantagem sobre a presa, o que não aconteceria se caçassem só com as próprias mãos. Mesmo assim, jamais caçam além do que precisam para o seu consumo imediato, e algumas tribos ainda realizam cerimônias religiosas em memória dos animais que abatem, encomendando sua alma aos deuses num ato de gratidão.

Já nossa moderna civilização transformou os animais em mercadoria. Quando o dinheiro fala, qualquer princípio ético ou moral se cala — ou é calado. Nas fazendas de gado, tanto de corte quanto leiteiro, bem como nas granjas e avícolas, as condições de vida dos animais são absolutamente miseráveis e desumanas. As técnicas utilizadas no  abate de animais são de fazer inveja a qualquer administrador do campo de concentração de Auschwitz. A pesca predatória nos oceanos elimina muito mais peixes, moluscos e crustáceos do que aqueles que vão ser efetivamente comercializados e consumidos — o que já não seria pouco diante de uma humanidade de 8 bilhões de bocas ávidas de comida. Como resultado, temos a progressiva extinção de um grande número de espécies, o que vem causando um desequilíbrio ambiental irreversível.

Mas a pauta animal não se restringe ao veganismo: quem compra um cãozinho de raça está alimentando uma máfia de criadores inescrupulosos, para quem cachorro é dinheiro, e por trás de todo filhote fofinho há uma mãe (eles chamam desumanizadamente de “matriz”) maltratada, totalmente carente de cuidados, que dirá de carinho, cujo único propósito na vida é parir, e um pai (eles chamam de “reprodutor”) igualmente tratado como mera máquina de copular fêmeas. Quando não servem mais a esses propósitos capitalistas, são simplesmente descartados (mortos é uma palavra muito forte, né?).

Outro grande equívoco do Sr. Pondé em seu vídeo é associar a pauta animal a um modismo de comportamento. É mais ou menos o que faz a direita que enriquece vendendo armas e agrotóxicos ao dizer escarnecendo que “isso é coisa de esquerdista”. Nesse caso, a caridade, o pacifismo, o ambientalismo, a luta por justiça social e, mais ainda, a ética, a solidariedade, a gentileza, o amor ao próximo, tudo isso são pautas de esquerda, “coisa de comunista”. Sei que Pondé não é exatamente um direitista burro; suas posições políticas estão mais ao centro do que à direita, e burro é algo que ele definitivamente não é. Entretanto, sua crítica aos modismos de comportamento, à qual eu também faço coro (por exemplo, só nesta postagem zombei duas vezes da excrescência chamada linguagem politicamente correta), o levou desta vez a tecer um comentário raso onde ele poderia ser profundo, mesmo que seu vídeo ficasse um pouco mais longo. Talvez a pressa de produzir conteúdo toda semana para manter o famigerado engajamento (e a consequente monetização) o tenha levado à pouca reflexão, o que não é típico dele. Mas pode ser também que ele seja de fato um insensível, alguém a quem o excesso de leitura de filosofia, de gnósticos, estoicos até os cínicos, tenha embrutecido. Afinal, segundo a racionalidade fria da filosofia, a natureza é uma máquina de sofrimento, não é mesmo? E máquinas não têm sentimento. Por enquanto.

Voltando de férias com um desagravo

Estive sumido aqui do blog neste mês de janeiro, em parte porque, como todo filho de Deus — embora ateu —, eu também tenho direito a umas merecidas férias. Mas em parte também porque passei por uma experiência que, durante semanas, me tirou totalmente a vontade de escrever.

Logo nos primeiros dias do ano, assistimos ao funeral do eterno Pelé, um dos meus grandes ídolos, que tive a sorte de ver jogar. A morte do Rei e a oportunidade de rever, nos inúmeros documentários que a televisão exibiu, seus incríveis lances provoaram em mim uma emoção só comparável a outra que também vivenciara pouco antes: a despedida dos palcos de Milton Nascimento, meu ídolo maior, em show no Mineirão, na minha amada Belo Horizonte, ao qual estive presente em novembro último. Isso me inspirou a escrever um artigo traçando um paralelo entre esses dois brasileiros geniais. O título seria Dois reis negros, dois brasileiros geniais. O texto se iniciava assim:

Dois negros. Dois brasileiros. Dois mineiros. Um, de Três Corações. O outro, de Três Pontas. Um, nascido a 23 de outubro de 1940. O outro, a 26 de outubro de 1942. Signo de escorpião. Um, nascido no Rio, mas criado em Minas. O outro, nascido em Minas, mas radicado em Santos. Dois gênios em suas profissões. Dois homens que emocionaram e emocionam o público. Dois cidadãos do mundo. Ambos de sobrenome Nascimento. O primeiro, de nome Edison (depois alterado por ele mesmo para Edson). O segundo, de nome Milton. Ambos nomes ingleses: o do inventor da lâmpada elétrica e o do autor do Paraíso Perdido.

E o artigo seguia falando sobre o imortal legado de Pelé, deus do futebol, e sobre a maravilhosa obra musical do Bituca, como Milton Nascimento gosta de ser chamado, e sua contribuição para a MPB, para o Brasil, para o mundo. Nesse texto, eu falava sobre a minha emoção diante do apoteótico show a que assisti, num Mineirão mais lotado que num Cruzeiro x Atlético. Eu terminava agradecendo por ter tido a sorte de ser contemporâneo desses dois gênios, de ter nascido no mesmo país e planeta que eles.

Todas as semanas, publico neste blog textos que escrevo da melhor forma que consigo, tentando falar às vezes de assuntos difíceis como linguística numa linguagem que atinja o maior número possível de leitores, especialmente os não iniciados no assunto. Graças a um dom natural, tenho prazer e facilidade em escrever e, modestamente, acho que faço isso bem. Por isso mesmo, a tarefa de escrever todas as semanas não me é pesada; pelo contrário, minha escrita flui com facilidade. Mas, quando escrevo sobre a língua, ou sobre a política nacional, ou sobre as mazelas do nosso país e do nosso tempo, escrevo com a cabeça. Já quando escrevi a crônica sobre Pelé e Bituca, o fiz com o coração, tomado de profunda emoção e rara inspiração. Tanto que mal podia esperar para que chegasse segunda-feira, dia 9 de janeiro, para publicá-lo. Seria um dos melhores artigos que já produzira na vida. De quebra, no dia anterior, havíamos perdido Roberto Dinamite, outro grande craque do nosso futebol, e eu aproveitaria o ensejo para também lhe prestar uma homenagem. Por último, eu pretendia finalizar com um comentário sucinto deplorando em palavras irônicas a barbárie ocorrida em Brasília na véspera, o fatídico 8 de janeiro.

Pois qual não foi minha surpresa e choque naquela segunda-feira ao abrir o arquivo Word em que estava o meu artigo e constatar que, com exceção do primeiro parágrafo (esse que transcrevi acima), o resto do texto havia sumido. Como? Teria eu por acidente apertado alguma tecla e deletado o restante do texto e a seguir salvado o arquivo? Possivelmente foi o que ocorreu. Como faço backup dos meus arquivos num HD externo ao meu laptop, fui até lá e, para minha decepção, o arquivo em backup também estava mutilado. A partir desse momento, comecei a entrar em pânico. Pesquisando na internet, descobri que o Windows salva versões anteriores dos arquivos, só que essa função precisa ser habilitada e, não se sabe por que cargas d’água, ela não vem habilitada de fábrica. Ou seja, o senhor Bill Gates, nerd que sempre foi, deve achar que todos os usuários dos seus produtos são formados em ciência da computação. Pois bem, descobri tarde demais que não havia versão anterior salva do meu pobre arquivo. Passei o dia baixando softwares de recuperação de arquivos deletados e até encontrei uma versão de 2017 do meu arquivo — ou seja, uma versão absolutamente inútil.

Conclusão: perdi meu texto para sempre, sem que ele tenha tido a chance de ser lido por uma alma sequer — mesmo eu jamais o lerei de novo, e tudo que me resta dele são alguns flashes na memória. Reescrevê-lo é impossível: a emoção e a inspiração que eu tive jamais se repetirão. Além disso, o momento de sua publicação passou; como dizem, perdi o timing.

Meus leitores podem achar bobagem, mais vivenciei um verdadeiro sentimento de luto nesses dias, comparável à perda de um ente querido. Com a diferença de que, quando perdi meus pais, sofri por um tempo, mas guardei comigo a lembrança de todos os anos de vida em que pude desfrutar de sua companhia. E desse artigo que perdi, que era como um filho (sim, amigos, os livros e artigos que escrevo são como meus filhos), o que vou guardar?

Isso tudo só fez reforçar minha ojeriza pela tecnologia. Ojeriza que começou ainda nos anos 90, quando eu finalizava minha tese de doutorado num computador XT, daqueles de telinha verde (os mais jovens nem fazem ideia do que seja isso). Pois, em certo momento, o “bicho” travou, o que fez minha tese, produto de seis anos de insano trabalho, simplesmente sumir. E na época não havia dispositivos de autorrecuperação como os do Windows de hoje em dia — na época sequer havia Windows! Felizmente, após algumas manobras e muito desespero, consegui salvar uma versão tosca do meu trabalho. Passei dias reformatando parágrafo por parágrafo, negrito por negrito, itálico por itálico, refazendo tabelas, redesenhando figuras, reescrevendo o último capítulo, que não havia sido salvo. Mas pelo menos consegui recuperar o conteúdo do arquivo. Esse episódio, somado ao assédio moral que sofria do meu orientador, explica o surto depressivo que tive à época e que me custou anos de tratamento psiquiátrico.

Sou do tempo da máquina de escrever, e os textos que datilografava quando era adolescente ainda estão comigo. Livros impressos ou escritos à mão, alguns com mil anos ou mais, ainda resistem nas grandes bibliotecas do mundo. Mas arquivos “virtuais”, estejam eles num HD ou na nuvem, podem sumir a qualquer momento. E estamos inconsequentemente digitalizando toda a nossa cultura, todo o nosso acervo de conhecimentos, eliminando o papel sob a desculpa de poupar o meio ambiente — como se fosse o papel o grande vilão da emergência climática que vivemos.

Queridos leitores e amigos, este texto é um desabafo e um desagravo. Posso estar ficando velho, mas ninguém me convence de que um videogame de futebol que joga sozinho é melhor que uma partida de futebol de botão. Que joguinhos de celular que se jogam com dois polegares são mais divertidos do que uma bola de futebol, um pião, uma bicicleta ou bolinhas de gude. Que brincar no playground do condomínio é mais bacana do que correr descalço na rua, sem medo de doença ou de bandido.

Volto à rotina da escrita, porque simplesmente não consigo viver sem isso, mas com profundo pesar e medo das próximas perdas. Até a semana que vem.

*-*-*

Ah, um adendo: na minha opinião, não é o colapso climático ou a guerra nuclear o que vai em breve destruir a humanidade; é a Inteligência Artificial.

Sobre Pelé e a genialidade

A recente morte de Pelé, ídolo dos ídolos, celebridade das celebridades, deus do futebol, o eterno Rei, o mais ilustre dos brasileiros, fez aumentar subitamente de frequência o uso da palavra gênio, e não sem justa razão. É bem verdade que essa palavra anda meio banalizada ultimamente, tendo virado elogio fácil a qualquer um que, na suspeita e duvidosa opinião de alguns, tenha realizado algum feito notável, ainda que trivial. Nesses nossos tempos, Anitta é um gênio por ter chegado ao topo do ranking do Spotify, Galvão Bueno é o gênio da narração esportiva, Steve Jobs foi o gênio da tecnologia por ter inventado o i-Phone, e por aí vai. Mas, apesar desse uso lisonjeiro e pouco autêntico do termo, existem e existiram os gênios verdadeiros, aqueles que revolucionaram com sua inteligência e habilidades ímpares as áreas em que atuaram. Se para nós Pelé se tornou, mais do que um nome próprio, um substantivo comum designativo do indivíduo que chegou ao mais alto nível de seu ofício, tornando-se insuperável, podemos dizer que muitos seres humanos merecem esse epíteto. Não é errado dizer que Ivo Pitanguy foi o Pelé da cirurgia plástica, que Oscar Niemeyer foi o Pelé da arquitetura, Ayrton Senna o Pelé do automobilismo, Michael Phelps o Pelé da natação, Muhammad Ali o Pelé do pugilismo, e assim por diante. Talvez até devêssemos grafar Pelé nesse sentido com inicial minúscula: “o deputado fulano de tal é o pelé da corrupção”.

Mas, ao assistir na TV nestes últimos dias aos feitos fantásticos, inigualáveis e, por que não?, sobre-humanos do nosso querido Rei, me vêm à mente os nomes de muitos pelés que admiro e tenho como guias e fontes de inspiração, cada um tendo sido um divisor de águas em sua profissão, repartindo-a em “antes” e “depois” dele; alguns, diferentemente, foram tão iluminados que fundaram a própria profissão; para estes, só existiu o “depois”.

Por exemplo, penso em Aristóteles, o maior filósofo de todos os tempos, capaz de fazer reflexões profundas e complexas sobre todas as áreas do conhecimento, um homem cujas ideias na maioria dos campos em que filosofou ainda são válidas nos dias de hoje e que fez isso numa época em que a filosofia ainda dava seus primeiros passos. O fato é que nenhum filósofo depois dele conseguiu realizar obra mais perene e monumental do que o famoso estagirita, como ficou conhecido.

E o que dizer de Isaac Newton, o sábio inglês que, ao ver, segundo dizem, cair uma maçã, enunciou as leis que regem nosso Universo e que explicam todos os fenômenos físicos, exceto os muito rápidos (próximos à velocidade da luz) e os muito pequenos (na escala subatômica)? Newton não só fundou a física moderna, especialmente nos domínios da mecânica e da óptica, e, de certa forma, toda a ciência moderna, mas também foi um dos mais brilhantes astrônomos e matemáticos de todos os tempos. E, como se não bastasse, ainda fazia estudos em teologia e ciências ocultas. Apenas um homem se igualou a ele, mas não o superou: foi Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade. Esses dois gênios resumem toda a física. No entanto, Newton prestou reverência a seus mestres, outros gênios um pouco menores mas sem os quais Newton não seria Newton: Copérnico, Galileu e Kepler. Do mesmo modo, Aristóteles não seria quem foi sem seus mestres Sócrates e Platão, e também Tales, Anaximandro, Parmênides, Leucipo, Demócrito…

Enquanto isso, Charles Darwin revolucionou a biologia e, de quebra, abalou nossas mais profundas crenças religiosas com a Teoria da Evolução das Espécies, uma ideia simples, como são todas as ideias geniais, e que hoje se aplica a animais, plantas, línguas, culturas, sociedades, sistemas planetários e o próprio Universo. Mais uma vez, Darwin deve tributo a predecessores menos festejados pela História como Lineu e Lamarck.

Saindo da ciência e indo para a arte, como não lembrar de Johann Sebastian Bach, o maior compositor de todos, o sujeito que não apenas produziu os maiores hits de todos os tempos (sim, se vivesse nos dias de hoje, Bach seria um hitmaker maior que Paul McCartney ou Burt Bacharach, certamente ganhador de todos os Grammys) como simplesmente definiu a estrutura da música ocidental. Tudo o que Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, os Beatles, Michael Jackson, Tom Jobim, etc., fizeram só foi possível porque Bach fez primeiro. E sua música sublime é conhecida nos quatro cantos do mundo; não há ninguém que nunca tenha ouvido alguma de suas melodias, nem que seja num comercial de televisão. Aliás, conta-se que um certo crítico musical, quando perguntado quem em sua opinião era o rei da música, respondeu: “Beethoven”. Sua resposta causou surpresa e certa indignação ao indagador, que arguiu: “E Bach?”. Ao que o crítico esclareceu: “Beethoven é o rei da música, já Bach é o deus da música”.

E Lavoisier, o homem que inventou a química e tornou possíveis todos os infinitos produtos industriais que temos hoje? E Thomas Edison, o maior inventor da História? E Sigmund Freud, o médico que desvendou a mente humana? E Leonardo da Vinci, o grande polímata, considerado por muitos o maior de todos os gênios, um craque (poderíamos dizer “um Pelé”) na pintura, escultura, arquitetura, música, poesia, engenharia, anatomia, botânica, aeronáutica, precursor de grande parte dos inventos que só surgiriam oficialmente séculos depois dele, sobretudo o “inventor” do Renascimento e, por consequência, do mundo moderno?

E temos ainda alguns gênios menos difundidos, mas não menos brilhantes: Michael Faraday, o autodidata que destrinçou a eletricidade e tornou possível toda a moderna tecnologia; Alfred Wegener, o geofísico alemão que percebeu a complementaridade entre as formas dos continentes e criou a teoria da Pangeia, segundo a qual todos os atuais continentes um dia formaram uma única massa, que se partiu graças ao movimento das placas tectônicas; Gian Lorenzo Bernini, o mais magistral dos escultores, cujas estátuas parecem ter vida; William Jones, o jurista britânico que, percebendo as semelhanças entre várias línguas da Europa e da Ásia, postulou sua ancestralidade comum num idioma pré-histórico, o indo-europeu, e, com isso, inaugurou a linguística; e, depois dele, Ferdinand de Saussure, o linguista suíço que deitou as bases dessa ciência a partir de uma meia dúzia de dicotomias, das quais já falei diversas vezes em meus escritos. Enfim, há tantos “pelés” a quem devemos o melhor de nossa ciência, arte, tecnologia, esporte, cultura. E o mais incrível é que a maioria deles partiu de ideias absolutamente simples, só que ninguém as teve antes deles, e que se mostraram revolucionárias, além de terem trabalhado às vezes com os recursos mais rudimentares, como a bola de meia com que Pelé aprendeu a jogar futebol. Como diz um provérbio chinês antigo — e mineiro moderno —, inteligente é quem descobre o óbvio. O que nosso Pelé fez com a bola nos pés é no fundo muito simples, mas que outro jogador seria capaz de fazê-lo? Na verdade, muitos craques, como Zico, Maradona, Ronaldo, Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, fizeram em algum momento algo que Pelé fez, mas o Rei fez primeiro; e fez, sozinho, o que todos os outros craques fazem juntos. Ou seja, seria preciso somar o talento de todos eles para produzir Pelé. E esse gênio, um dos maiores da galeria que elenquei aqui, era negro, pobre e brasileiro, para nosso orgulho. Pelé morreu. Viva Pelé!

Palavra do ano: democracia

Mais um ano se finda, e é chegada a hora de elegermos a palavra do ano, o vocábulo mais utilizado e repetido nos últimos doze meses ou o que melhor sintetiza o espírito desse período. E, a meu ver, esse vocábulo é democracia. Certas palavras só se tornam importantes quando aquilo que elas representam se torna escasso: ninguém fala o tempo todo sobre o ar que respiramos a não ser que ele comece a faltar. Assim foi com a democracia. Deveria ser um termo banal, designativo de algo onipresente como o ar, mas, se tanto falamos dela neste 2022, é porque tivemos o medo real de perdê-la. Mais do que isso, tivemos a consciência do quanto ela esteve e ainda está sob ameaça.

Em pleno século XXI, a democracia idealizada pelos filósofos iluministas do século XVIII ainda é exceção e não regra; a maior parte dos seres humanos vive sob regimes que nem de longe se parecem democráticos. A brutalidade do poder que oprime e se legitima pela violência e pelo terror ainda domina a maioria das sociedades e estados. Por ser tão rara, a democracia é tão preciosa, como uma flor frágil que precisa ser regada e adubada diariamente para que não feneça. E há muitos que querem matá-la, que preferem a tirania porque acreditam ingenuamente que levarão vantagem em estar ao lado dos tiranos, esquecendo-se de que tiranos não têm amigos, apenas se utilizam de seus aliados enquanto estes lhes servem; quando não mais, os descartam impiedosamente.

Democracia, palavra de origem grega formada de dêmos, “povo”, e krátos, “poder, governo”, é o governo do povo, para o povo e pelo povo. É bem verdade que em nenhum lugar do mundo é o povo quem governa. Mesmo na antiga Atenas, berço do termo e do sistema, exerciam o poder todos os cidadãos, que no caso não chegavam a um quinto da população da cidade-estado, já que mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram considerados cidadãos. Nas sociedades modernas, muito mais complexas que a pólis ateniense, a democracia só pode ser representativa ou, no máximo, participativa. Em ambos os casos, os cidadãos elegem representantes, que são quem vai legislar e apoiar — ou não — o governo eleito. E, como a democracia não raro degenera em demagogia, como já alertava Aristóteles, isso num tempo em que ainda nem havia marketing político, os “representantes do povo” não representam o povo e sim os lobbies que os elegeram: grandes corporações, grandes latifundiários, igrejas proselitistas e altamente capitalistas, poderosos sindicatos, até organizações criminosas. Isso quando não representam a si mesmos, isto é, defendem seus próprios interesses particulares, legislando em causa própria.

Apesar de tudo isso, a democracia é, como dizem, o pior dos regimes, com exceção de todos os demais. Estejamos, pois, vigilantes; como disse John Philpot Curran em 1790, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Feliz Ano Novo!

Sotaque de novela

Todo falante (com exceção, talvez, dos estudiosos da linguagem) tem uma visão idealizada da língua que fala, e das outras também. Desde crenças infundadas sobre a “pureza” deste ou daquele idioma até alegações, por vezes cercadas de uma aura cientificista, de que tal língua se presta melhor do que outras a determinados propósitos (comércio, poesia, filosofia, etc.). Essa mesma visão romântica — e por que não dizer chauvinista? — da língua é que leva o paulistano que pronuncia “inteindeindo” ou o carioca que diz “meijmo” a acharem que falam sem nenhum sotaque, que quem tem sotaque são os outros. E aí nascem os estereótipos linguísticos, sobejamente explorados pelos programas humorísticos da TV, nos quais o traço caricatural da fala regional, mais do que tolerado, é enfatizado, haja vista o efeito cômico que produz.

Mas o que dizer de telenovelas “sérias”, em que a imitação da pronúncia ou da sintaxe de determinada região (ou da fala de imigrantes estrangeiros) deveria causar no telespectador uma sensação de ambiência realista, como que a transportá-lo para o meio daquelas pessoas distantes, de fala igualmente tão distante da nossa? Via de regra, o que se vê em nossos folhetins televisivos é um arremedo, às vezes patético, do linguajar dos lugares e épocas retratados.

Atualmente, a Rede Globo (que, por sinal, passou a assinar-se novamente como TV Globo ou simplesmente Globo, conforme aparece na logomarca da empresa) exibe três telenovelas “regionais”: O Rei do Gado, Mar do Sertão e Travessia. Nas três, temos pronúncias caricatas, seja a do caipira (isto é, qualquer cidadão natural do meio rural, desde Rondônia até o Rio Grande do Sul), seja a do nordestino.

Nossa idealização “sulista” da fala deste último nos leva, em primeiro lugar, a achar que em todo o Nordeste se fala igual, portanto numa novela passada na Bahia e noutra em Pernambuco os atores falarão do mesmo jeito. Por sinal, um jeito no qual nenhum nordestino de verdade se reconhece. Nem o baiano nem o pernambucano.

Em segundo lugar, temos a vaga ideia de que no Nordeste o não vem sempre depois do verbo (“— Você quer? — Quero não.”) e mais substitui a preposição com (“Severino saiu mais Maria.”). Só falta explicar que o advérbio não não se pospõe simplesmente ao verbo. O que ocorre é o redobro do não, comum em todas as regiões do país (“Não quero, não”), seguido do apagamento do primeiro não (por preguiça dos baianos, dirão os maldosos). Portanto, é pouco provável ouvir um não posposto ao verbo que não esteja em posição final na oração. Uma frase como “hoje vou não à escola porque está chovendo” é bem improvável em qualquer lugar do Brasil, inclusive no Nordeste.

Em segundo lugar, mais de fato substitui com no sentido de companhia, mas não em outros sentidos. “Este ano a eleição coincide mais a Proclamação da República” ou “ele cortou o pão mais a faca” são construções impossíveis. A não ser nas novelas. (Em 2012, no remake de Gabriela, de Jorge Amado, ouviam-se frases como “Mundinho Falcão casa não mais Gerusa!”.)

E o que dizer do italiano macarrônico que volta e meia assalta nossa telinha, como no caso dos patriarcas das famílias Mezzenga e Berdinazzi de O Rei do Gado? Talvez preocupados em fazer com que um público mal escolarizado entenda o que os imigrantes da estória estão dizendo, o que se faz é pôr na boca dos atores um sotaque artificialmente “cantado”, acrescido de falsos cognatos, como, por exemplo, empregar allora no sentido de “agora” (allora significa “então” em italiano): “Io vó lá allora mesmo!”.

Finalmente, as novelas de época trazem janotas e donzelas do século XIX falando como surfistas: “eu vi ela saindo”, “eu queria muito que a gente ficasse juntos”, e por aí vai. Somem-se a isso cenários caríssimos reproduzindo o Rio de Janeiro dos tempos imperiais onde se leem placas com dizeres como farmácia e comércio, assim mesmo, com f no lugar do ph e m em vez de mm. Sem falar no acento agudo! (Parece que a televisão brasileira, ciosa do seu papel educativo e cultural, adota nas novelas de época a ortografia pós-Acordo Ortográfico de 2009.) Mais convincente do que isso só me lembro do Márcio Garcia fazendo papel de indiano na novela Caminho das Índias, de 2009.

O imbroxável e a parassíntese

Algum tempo atrás, publiquei neste espaço um artigo comentando o neologismo imbroxável, da lavra do nosso futuro ex-presidente (ufa!). Na ocasião, a polêmica era se essa palavra deveria ser grafada com x ou ch. Mas uma outra polêmica surgiu à época, a qual não tive então a oportunidade de abordar e o faço agora. Trata-se da questão de se o termo em questão é ou não uma formação por derivação parassintética.

Para quem não sabe, parassíntese é o processo de derivação em que ocorrem simultaneamente prefixação e sufixação, como em noiteanoitecer, por exemplo. No entanto, as gramáticas tradicionais costumam fazer uma distinção entre a prefixação e sufixação simultâneas e a parassíntese, afirmando que esta última só ocorre quando a palavra não existe só com o prefixo ou só com o sufixo. Nesse sentido, teríamos prefixação e sufixação simultâneas em infelizmente porque também temos infeliz e felizmente. Já em anoitecer, teríamos parassíntese porque não existe *anoite nem *noitecer. Essas gramáticas nos dão uma série de exemplos: abençoar, amanhecer, entardecer, envelhecer, envernizar, enrijecer, entristecer, emagrecer, engaiolar, avistar, resfriar, desalmado, ensurdecer, etc. Notem que a maioria dos exemplos é de verbos, e boa parte deles termina com o sufixo ‑ecer.

Essa definição é problemática. Em primeiro lugar, não existe prefixação e sufixação simultâneas a não ser na parassíntese. O exemplo de infelizmente não é de prefixação e sufixação simultâneas porque podemos perfeitamente pensar que infelizmente resulta de felizmente por prefixação ou de infeliz por sufixação. Logo, a prefixação e a sufixação não são simultâneas. Por outro lado, afirmar que anoitecer é parassíntese porque não existem *anoite ou *noitecer é arriscado. Essas palavras não existem, mas poderiam perfeitamente existir. Na língua, nada é impossível, portanto quem pode garantir que essas palavras não venham a ser criadas futuramente? A partir do adjetivo fresco criou-se refrescar por suposta parassíntese. Só que, tempos depois, surgiu por derivação regressiva o substantivo refresco. Se não soubermos quem surgiu primeiro, podemos perfeitamente considerar que refrescar deriva de refresco por sufixação e não de fresco por parassíntese.

Se o argumento em favor da parassíntese for o de que anoitecer surgiu primeiro que um suposto futuro *noitecer, então teremos que datar a criação de cada palavra na língua para saber quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

Talvez os gramáticos pensem na parassíntese como uma prefixação e sufixação simultâneas em que somente a prefixação ou somente a sufixação são impossíveis. Mas será que existem casos assim? Como eu disse, na língua nada é impossível.

No meu entender, só há duas saídas: ou se considera que parassíntese é a criação de uma palavra por prefixação e sufixação simultâneas quando não existem (ainda) os termos derivados só com prefixo ou só com sufixo (essa definição de parassíntese salvaria casos como o de anoitecer) ou então se considera que a parassíntese simplesmente não existe.

A questão levantada sobre o imbroxável foi que aí, contrariamente ao que eu havia afirmado naquele artigo, não haveria parassíntese porque é perfeitamente possível a existência do adjetivo *broxável, derivado do verbo efetivamente existente broxar. A questão é: *broxável é possível, mas não existe. Portanto, quando o ilustre futuro ex-presidente criou o vocábulo, juntou prefixo e sufixo simultaneamente ao verbo broxar. Se *broxável vier a ser criado, teremos uma situação idêntica à de refresco em face de refrescar.

Esse critério adotado pelas gramáticas da inexistência da palavra só com o prefixo ou só com o sufixo é, como se vê, sujeita a críticas. Afinal, *noitecer, *rijecer, *magrecer ou *gaiolar não existem, mas poderiam existir, uma vez que de amarelo se fez amarelecer, sem prefixo.

O gramático mais arguto poderia objetar que são casos diferentes, pois todo adjetivo iniciado pelo prefixo in‑ ou suas variantes im‑ e i‑ pressupõe um adjetivo primitivo sem o prefixo: infelizfeliz, impossívelpossível, imortalmortal. Logo, imbroxável pressupõe *broxável. Mas voltamos à questão: *broxável poderia existir, mas não existe, assim como *noitecer poderia existir, mas tampouco existe. Então por que temos parassíntese num caso e não no outro?

Se, toda vez que aplicássemos o sufixo ‑ecer a um adjetivo, fôssemos obrigados a aplicar também um prefixo, isso não seria parassíntese e sim circunfixação. Circunfixo, figura desconhecida da maioria dos gramáticos, é um tipo de afixo que se aglutina tanto antes quanto depois do radical. Por exemplo, em alemão o particípio passado dos verbos se faz com o circunfixo ge‑…‑t. Por exemplo, o particípio de tanzen, “dançar”, é getanzt, “dançado”, o de machen, “fazer”, é gemacht, “feito”, e assim por diante. Somente na circunfixação é que o prefixo e o sufixo são agregados simultânea e indissociavelmente ao radical. Por via de consequência, casos como o de anoitecer ou imbroxável não são circunfixações. Então, pelo critério gramatical, devemos concluir que a parassíntese não existe, pois ou temos circunfixação (que não é parassíntese) ou temos prefixação e sufixação simultâneas, mas que poderiam não ser simultâneas, já que a forma só com prefixo ou só com sufixo não existe, mas poderia muito bem existir — e pode vir a existir a qualquer momento, especialmente em Minas Gerais: “O cumpade gaiolô o passarim, depois sortô ele bunitim na mata”. (Brincadeirinha —mineiros, eu amo vocês!)

Resumo da ópera: imbroxável é, sim, uma parassíntese. Se um dia surgir *broxável, será uma derivação regressiva de imbroxável.

Um grande linguista falando sobre a linguagem

Hoje gostaria de citar as palavras de um dos linguistas mais importantes da história da ciência da linguagem, o dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965), sobre o seu (nosso) objeto de estudo: a língua. A citação foi extraída do prefácio da edição brasileira de seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem (São Paulo: Editora Perspectiva, 1975, p. 1-2). Apreciem!

Linguagem – a fala humana – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ele é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pais para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade.

Uma nova modalidade esportiva?

Em tempos de Copa do Mundo, meu leitor Paulo Gilberto sugere uma nova modalidade esportiva, tipicamente brasileira. Vejamos o que ele diz:

Bom dia, Mestre,

O Brasil é um país cheio de excentricidades.
Deve ser, por exemplo, a única nação em que se “corre atrás do prejuízo”, modalidade esportiva não inserida, ainda, nos jogos olímpicos mundiais.
Caso veja alguma importância nisso, gostaria de conhecer sua opinião, preferentemente em comentário a postar no DIÁRIO DE UM LINGUISTA.

Fraterno abraço do admirador do seu trabalho.

Paulo Gilberto Morais dos Santos

Pois é, não é só o Paulo que reclama dessa modalidade esportiva esquisita, “correr atrás do prejuízo”: o famoso Prof. Pasquale Cipro Neto já havia apontado para essa suposta incoerência, argumentando que o que tem lógica fazer em caso de prejuízo é “correr atrás do lucro”.

Na verdade, quem está no “preju” precisa primeiro saldar o rombo em sua contabilidade, zerar o saldo negativo para só depois pensar em lucrar. E é aí que se pode intuir a origem dessa expressão. O indivíduo devedor precisa “correr atrás”, isto é, trabalhar, batalhar, se esforçar para quitar a dívida e assim livrar-se do prejuízo. Nesse sentido, até é plausível compreender a motivação de quem cunhou essa expressão.

Expressões idiomáticas e gírias nem sempre têm muita lógica, mas o fato é que “pegam”, ou seja, caem no gosto dos falantes, que passam a replicá-los como vírus sem muito critério: ninguém pára para pensar se essa ou aquela expressão tem lógica; o que importa é que ela dá conta do recado, vale dizer, expressa bem o que se quer dizer.

Muitos sabichões tentam “corrigir” certos provérbios e expressões idiomáticas, alegando que eles não têm lógica. Alguns casos, de tanto serem reproduzidos na mídia, acabaram famosos. Como exemplos temos “Quem tem boca vai a Roma”, que os sabichões corrigem para “Quem tem boca vaia Roma”. Ora, qual o sentido de vaiar Roma? Talvez os judeus dos tempos em que a Palestina estava ocupada pelos romanos tivessem algum motivo para vaiar as tropas romanas que desfilavam por seu território, mas qual ensinamento tiraríamos desse provérbio hoje?

Ao contrário, “Quem tem boca vai a Roma” nos ensina que, se estamos perdidos, basta usar a boca para pedir informações e assim chegar sem erro ao nosso destino.

Outro caso de correção de provérbio é “Quem não tem cão caça com gato”, “corrigido” para “Quem não tem cão caça como gato”, isto é, sozinho (supostamente, os gatos caçam sozinhos, mas, que se saiba, a maioria dos animais faz o mesmo). Só que a expressividade – e o efeito humorístico – do dito popular está justamente na substituição do cão pelo gato, que não é o animal mais indicado para levar numa caçada. Em resumo, o que o ditado quer dizer é: se você não tem os recursos mais adequados para realizar uma ação, utilize qualquer outro disponível.

Outro dia, minha esposa me repreendeu quando proferi o adágio “A raposa perde o pelo, mas não perde o vício”, dizendo que o correto é A raposa perde o pelo, mas não perde o viço”. Ora, nessa versão “corrigida”, o que se tem é um elogio à estética da raposa: mesmo pelada, ela continua viçosa. Só que o sentido do provérbio é outro: por mais que seja punido, o indivíduo de mau caráter sempre reincide em seus malfeitos. Trata-se da constatação desalentada de que o instinto maléfico ou criminoso é incorrigível.

O Prof. Pasquale também questionou a expressão “risco de vida”, alegando que o mais sensato é dizer “risco de morte”, já que se trata de um alerta para situação perigosa em que o indivíduo descuidado corre o risco de morrer. Ok, nada contra “risco de morte”, mas a expressão “risco de vida” foi cunhada pensando-se no risco que a vida corre em situação de perigo; trata-se, pois, do risco de perder a vida. Portanto, a meu ver, ambas as formas fazem sentido.

Há ainda aquela polêmica sobre se “cuspido e escarrado” não seria, na verdade, uma corruptela de “esculpido em carrara”: “Fulano é seu pai esculpido em carrara” (subentendido que carrara é o mármore proveniente da cidade italiana de Carrara). O problema é que essa expressão existe também em diversas outras línguas, inclusive em italiano, idioma do país onde fica Carrara. E em todas essas línguas, o que há são palavras equivalentes a “cuspido” ou “escarrado” e nenhuma menção ao mármore ou a escultura.

Enfim, a sabichonice por vezes é mais realista do que o rei e quer ensinar o padre-nosso ao vigário. Nuns poucos casos ela acerta, como na expressão “ter bicho carpinteiro”, que, muito provavelmente, é corruptela de “ter bicho no corpo inteiro”.

Quanto a “correr atrás do prejuízo”, nada impede que os inconformados com essa nova modalidade olímpica usem em seu lugar “correr atrás do lucro”. Mas o fato é que, lógicas ou não, as expressões idiomáticas se consolidam e sobrevivem por mais que se as combata. Ou seja, cada um corre atrás do que quiser.

Sobre farmácias e botequins

O que há de comum entre um botequim, uma farmácia e uma loja de roupas? Aparentemente nada, a não ser o fato de que se trata de estabelecimentos comerciais. No entanto, há mais entre eles do que supõe nossa vã filosofia – ou melhor, nossa vã etimologia. Basta recuarmos até o antigo grego ἀποθήκη (apothéke), que passou ao latim apotheca e quer dizer “celeiro, armazém”. Essa palavra deu em português adega (lugar em que se guardam bebidas), bodega (bar de segunda categoria), boteco, botequim, botica (farmácia de manipulação), boticão (alicate usado pelos dentistas para extrair dentes), butique ou boutique (do francês boutique, “loja”). Daí saíram também os derivados bodegueiro (dono de bodega), boticário (farmacêutico), e outros.

O francês tem apothicaire (boticário) e boutique, e o italiano tem bottega (bodega) e botteghino (botequim). Por sinal, as palavras portuguesas butique e botequim vieram respectivamente do francês e do italiano. Do provençal, língua falada no sul da França, veio botica, e do espanhol, bodega. Em alemão, até hoje “drogaria” se chama Apotheke.

Como se pode perceber, o antigo armazém dos gregos se transformou nos mais diversos locais de estocagem e venda de produtos, especialmente líquidos, como as bebidas e os medicamentos, que antigamente eram basicamente poções. E ainda hoje muitas pessoas, depois de se embriagar no botequim, precisam ir à botica, isto é, à farmácia, para curar seu porre.

Cabelo tem a ver com pelo?

A pergunta do título admite duas respostas. Do ponto de vista biológico, a resposta evidentemente é sim: cabelos nada mais são do que os pelos que recobrem a cabeça, mais precisamente o couro cabeludo. Já do ponto de vista etimológico, há controvérsias. Há quem defenda que o latim capillus, “cabelo”, é o resultado da composição (com truncamento) de caput, “cabeça”, e pilus, “pelo”. Ou seja, cabelos nada mais seriam do que os pelos da cabeça. Mas estudos etimológicos mais rigorosos parecem desmentir essa hipótese tão intuitiva.

Em primeiro lugar, é difícil explicar porque capillus tem dois ll enquanto pilus tem um só. É bem verdade que o latim também tinha a palavra pilleus (com dois ll), que designava um barrete (espécie de boina) feito de lã de ovelha não tosquiada (portanto peluda) e que é da mesma origem de pilus. Ocorre que pilus provém da raiz indo-europeia primitiva *pil-, ao passo que pilleus vem da raiz derivada *pils- (com sufixo ‑s – o encontro consonantal ls passava a ll em latim). Então capillus teria a ver com pilleus em vez de pilus? Não parece ser o caso. Além disso, a composição entre caput e pilus daria algo como *capitipilus e não capillus.

Em segundo lugar, a raiz indo-europeia que originou caput em latim, a saber, *kap-ut, admitia também formas com l: *kap-(e)lo-. Desta segunda provêm, dentre outros, o sânscrito kapála, “tigela, panela, crânio”, e o antigo inglês hafola, “cabeça”.

Em face disso, muitos etimólogos e indo-europeístas acreditam que capillus é uma derivação da raiz *kap-(e)lo-, representando um antigo adjetivo referente a “cabeça” que depois passou a ser usado como substantivo. Então capillus significaria originalmente apenas “capilar” (subentendido “pelo”), nada tendo a ver com pilus.

Curiosamente, o espanhol até hoje denomina “cabelo” mais frequentemente por pelo, embora também disponha da palavra cabello. E nas línguas germânicas, o mesmo vocábulo denomina “pelo” e “cabelo”, como vemos, por exemplo, no inglês hair.

Em resumo, a semelhança entre pilus e capillus em latim pode ser apenas fortuita, uma dessas coincidências que dão pano para a manga em matéria de pesquisa linguística e, portanto, mais uma peça que a evolução cega das línguas nos prega.

O ocaso da civilização?

Nestas duas primeiras décadas do século XXI, temos visto o mundo passar por várias mudanças – a meu ver para pior. Como todos aqueles que têm um pouco mais de idade (no meu caso, nem tanta assim rs), sinto saudade dos meus tempos de infância e adolescência. Na verdade, acho que todo mundo já sentiu, sente ou sentirá saudade desses tempos de despreocupação com o futuro, algo ainda tão distante, e de quase nenhum passado a recordar, quando só o presente importa. E aí temos a tendência a achar que esses tempos foram os melhores não só para nós, mas para todas as pessoas. Olhamos para trás e achamos que nunca, nem antes nem depois, o mundo foi tão bom como naquela época em que éramos mais jovens. Não consultei muitas outras pessoas sobre isso, mas tenho para mim que essa sensação deve ser universal – exceto, é claro, para quem teve uma infância horrível, de privação e violência, por exemplo.

Todavia, no meu caso – e perdoem-me se estou sendo chauvinista –, fico achando que o tempo em que fui criança ou adolescente coincidiu de fato com a melhor época da humanidade, pelo menos nesta parte do planeta que convencionamos chamar de Ocidente.

Se fizermos um retrospecto do que foi a história da espécie humana e em particular a história de nossa civilização, talvez os amigos leitores concordem comigo. Comecemos pela Antiguidade clássica. A civilização greco-romana nos legou um inestimável patrimônio de cultura, arte, filosofia, ciência, fundamentos de ética e moral, mas era, ao mesmo tempo, uma sociedade escravagista, patriarcal, belicosa, xenófoba e dominada por tiranos – mesmo a chamada democracia ateniense não era assim tão democrática, já que excluía a maior parte da população. Portanto, foi uma época de muito arbítrio e pouca liberdade.

Então vieram os mil anos da Idade Média com seu obscurantismo, fanatismo religioso, guerras, fome, peste, falta de higiene, caça às bruxas, ódio a todo conhecimento que não estivesse de acordo com a Bíblia, fogueira aos hereges e nenhuma liberdade de pensamento.

As coisas parecem melhorar com o Renascimento e sua cultura do homem, mas a Santa Inquisição continua a postos, e ainda surgem os monarcas absolutistas. Há uma Revolução Científica acontecendo no século XVII, mas cientistas e pensadores ainda são condenados à prisão ou à morte (Galileu Galilei e Giordano Bruno que o digam). Há também um movimento chamado Iluminismo no século XVIII pregando o estado laico, a separação entre os poderes e o sistema democrático representativo. Mas ainda durante todo o século XIX pouco se pode falar de democracia. Mesmo os regimes republicanos que começam a surgir no Novo Mundo com a independência das antigas colônias europeias têm pouco de democráticos ou representativos. Talvez um pequeno respiro nessa sucessão de tragédias tenha sido a Belle Époque, breve intervalo entre guerras, de 1870 a 1914, em que floresceram as artes e as ciências, e o Ocidente respirou alguma liberdade.

Aí vem o primeiro grande abalo planetário com a Primeira Grande Guerra e seus milhões de mortos, seguida da epidemia conhecida como Gripe Espanhola. Esse conflito descortinou um período sombrio de crise econômica, com a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a subsequente recessão-depressão dos anos ’30, e de crise política, com a ascensão do fascismo e do nazismo, culminando numa convulsão global ainda maior, a Segunda Guerra Mundial.

A partir daí, apesar do início da chamada Guerra Fria e das tensões políticas dela advindas, a Europa ocidental, reconstruída pelo Plano Marshall, e a América vitoriosa começam a viver um período de paz, democracia, mobilidade social, secularismo, liberdade sexual, de costumes e de expressão e florescimento cultural nunca antes vistos: é a era da cultura pop, dos Beatles, de Woodstock, da televisão, da social-democracia e seu estado de bem-estar social. A Europa ainda é atormentada de vez em quando por alguns atentados terroristas de inspiração comunista, mas o clima em geral é de tranquilidade e de efervescência intelectual e artística. Além disso, é a época do conforto: da refrigeração, do aquecimento central elétrico, do chuveiro elétrico, dos eletrodomésticos…

A queda do muro de Berlim em fins dos anos ’80 e o consequente fim da Guerra Fria, aliados ao surgimento da globalização, parecem apontar o início de uma nova era de prosperidade e paz. Só parece. O atentado do 11 de Setembro de 2001 substitui o terrorismo de esquerda pelo terrorismo islâmico. Novos inimigos surgem no horizonte: o Estado Islâmico, a China, ditadura que desponta como a segunda maior potência econômica mundial, a Rússia de Putin e seu desejo de ser o novo imperador do mundo e de nos pôr à beira da Terceira Guerra Mundial. Paralelamente, democracias até então sólidas começam a periclitar: Orban na Hungria, Salvini e Meloni na Itália, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil… A guinada à direita já se esboçava nos anos ’80 com Thatcher, Kohl, Reagan e João Paulo II, ladeada pelo retorno triunfante das religiões e do misticismo na virada do milênio e a progressiva derrocada do laicismo e ascensão de fantasmas como negacionismo, pós-verdade, fake news e outros venenos do esclarecimento.

Como cereja do bolo, chegam as modernas tecnologias, como a inteligência artificial, trazendo o emburrecimento das mentes e a robotização do ser humano, e o aquecimento global, causador das mudanças climáticas, querendo indicar que nosso modelo de civilização globalizado e consumista está chegando aos estertores.

Enfim, o ciclo de paz, prosperidade e resplendor cultural que se estendeu de aproximadamente 1950 a 2000 parece que terminou. Curiosamente, esse período histórico coincide com o reinado da recém-finada rainha Elizabeth, o que de fato sinaliza o fim de uma era.

Pareço muito pessimista? Talvez. Mas creio que o pessimismo é a melhor forma de realismo. Certa vez disseram ao mestre José Saramago que ele parecia um profeta, tal era o grau de acerto de suas previsões sobre o futuro da humanidade. Ao que ele respondeu que é fácil ser profeta: basta prever o pior cenário possível; certamente será este o que se verificará.

Carta ao presidente Lula

Prezado senhor presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, antes de mais nada, quero esclarecer que, no primeiro turno da eleição deste ano, não votei nem no senhor – ou melhor, em Vossa Excelência – nem no seu arquiadversário (ou deveria eu dizer “arqui-inimigo”?) porque não simpatizo com populistas nem de esquerda nem de direita. Por outro lado, neste segundo turno me vi obrigado a votar em V.Ex.ª, mesmo tendo de tapar o nariz para o odor fétido exalado do Mensalão, do Petrolão do triplex no Guarujá, do sítio de Atibaia e das inúmeras confissões de delatores e outras provas de corrupção pelo simples motivo de que, dos dois candidatos que chegaram ao segundo turno, V.Ex.ª era o “menos pior” e o fato é que nem toda a corrupção dos governos do PT se compara ao mal que Bolsonaro fez e continua fazendo ao Brasil. Em todo caso, parece que temos sempre de nos contentar com o menos ruim, já que o bom e o ótimo nunca estão ao nosso alcance.

Ainda assim, quero dar-lhe os parabéns pela vitória e desejar-lhe muita sorte em seu governo, esperando sobretudo que V.Ex.ª e não o Centrão ou os sindicalistas do PT governem este país.

Mas quero acima de tudo lhe fazer um pedido: cuide com especial carinho da educação de nosso país. Por favor, durante seu mandato, ofereça a todos os cidadãos a tão sonhada e necessária educação pública e gratuita de qualidade, pois só com ela, com bons e bem remunerados professores e boa infraestrutura escolar, conseguiremos sair de nossa triste condição de gigante eternamente adormecido, deitado em berço esplêndido, que assiste a outras nações emergentes, com muito menos riquezas e potencial do que a nossa, passarem à nossa frente enquanto permanecemos este país que não deu certo, esta eterna republiqueta bananeira disfarçada de grande nação.

Sim, Sr. Presidente, porque a educação é a solução para todos os nossos problemas. Não adianta falar em gerar empregos – claro, gerar empregos é importante para o país crescer, mas, mesmo com toda a crise econômica, não há falta de empregos, há empregos sobrando; o que falta é mão de obra qualificada para preencher essas vagas. Ou seja, falta educação, falta qualificação profissional. De nada adianta gerar subemprego, trabalho braçal com salário mínimo que jamais tirará o trabalhador da pobreza.

A única solução para acabarmos com essa vergonha que é nossa monstruosa desigualdade social é a educação de qualidade. Quando as crianças e adolescentes da periferia puderem estudar em tempo integral em escolas com três refeições diárias, banheiros limpos e decentes, biblioteca, brinquedoteca, laboratórios, quadra e ginásio de esportes bem equipados, consultório médico, dentário e psicológico, estiverem livres de violência (interna e externa) e puderem seguir assim até o fim do ensino médio, sem precisar interromper seus estudos para trabalhar ou para fugir de tiroteios, esses estudantes poderão entrar nas melhores universidades sem precisar de cotas sociais ou raciais – e poderão pleitear bons empregos. E, com bons empregos, poderão finalmente deixar a periferia.

Com isso, a própria periferia deixará de ser lugar de criminalidade, e os bandidos não terão mais onde se esconder nem como usar a população pobre como escudo humano contra a polícia. Com melhor educação, a pobreza e a violência diminuirão muito, e precisaremos gastar menos com assistência social e segurança pública.

Com melhor educação, e consequentemente melhor renda, as pessoas se alimentarão melhor e terão melhores condições de higiene; logo, precisaremos gastar menos com saúde pública.

Mais bem educadas e com melhor nível de vida, as pessoas precisarão recorrer menos a igrejas caça-níqueis que vendem falsas esperanças em troca dos suados dízimos. Com isso, nossa TV aberta e nossas rádios AM (e também algumas FMs) deixarão de ser dominadas por essas igrejas e seus pastores mercenários. Aliás, um povo bem educado é sempre um povo mais racional e secularista e menos propenso ao fanatismo religioso. Assim, sacerdotes picaretas deixarão de ter o poder que têm hoje de manipular multidões em seu próprio proveito e de amealhar fortunas em mansões e fazendas, canais de rádio e televisão, jatinhos particulares e contas milionárias no exterior. Consequentemente, também deixarão de ter o poder de eleger gigantescas bancadas nos legislativos que tentam impor a toda a população suas crenças e seu modo de vida como se o Brasil fosse uma teocracia.

Com mais e melhor educação, as pessoas não deixarão por certo de dar muita importância ao futebol, às telenovelas e ao Carnaval, paixões de nosso povo, mas compreenderão melhor o valor da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da cultura e da arte de qualidade e não deixarão que essas áreas fiquem à míngua para que projetos eleitoreiros de ocasião sejam priorizados. Com mais e melhor educação, certamente deixaremos de ser este país brega que somos – e que no passado não éramos.

Numa nação mais bem educada e, portanto, mais desenvolvida, haverá menos feminicídios, menos homofobia, menos racismo, menos destruição do meio ambiente e menos tudo o que hoje nos envergonha perante as nações desenvolvidas.

Mas não é só isso: com mais educação, as pessoas saberão votar com mais consciência e escolher melhor seus governantes e representantes. Desse modo, os políticos fisiológicos do Centrão, os coronéis latifundiários do Nordeste, a bancada da bala, a bancada ruralista, a bancada da Bíblia, tudo isso será reduzido a seu devido tamanho, e os parlamentos (federal, estaduais e municipais) refletirão de fato a composição do povo brasileiro em gênero, cor, etnia e idoneidade.

Sr. Presidente, V.Ex.ª não pode errar desta vez como errou no passado, deixando o poder subir-lhe à cabeça e sentindo-se acima do bem e do mal, senão todos sabemos quem poderá voltar ao poder. Tudo é uma questão de como V.Ex.ª deseja passar à História: como o estadista que fez a grande revolução que nosso país precisa ou como mais um político que apenas passou pelo poder enquanto o Brasil permanece o país do futuro – que talvez nunca chegue.

Bruxismo tem a ver com bruxa?

Neste Dia das Bruxas, como não poderia deixar de ser, vou falar de bruxas. Só que não! Na verdade, vou falar de bruxismo. O que será isso: um movimento em favor das bruxas? Nada disso. Esse velho conhecido dos dentistas é o hábito que algumas pessoas – especialmente as nervosas – têm de ranger os dentes de maneira insistente, a ponto de ficarem doloridos e até gastos. Quando eu ainda não era etimólogo, achava que o nome dessa patologia (sim, é uma patologia!) derivava da palavra bruxa, já que o rangido dos dentes lembra os ruídos das casas mal-assombradas dos filmes de terror. E bruxa tem tudo a ver com terror, né? Só que não é nada disso. O termo bruxismo foi formado a partir do verbo grego βρύχειν (brúkhein), significando “ranger os dentes”, e embora todos, inclusive os dentistas, o pronunciem como /bruchismo/, a pronúncia correta é /brucsismo/. Aliás, também existe a forma briquismo, da mesma origem grega.

Já a palavra bruxa é de origem pré-romana, isto é, já era usada pelos povos que habitavam a Península Ibérica antes da chegada dos romanos. Por isso, também se encontra em galego (bruxa), catalão (bruixa) e espanhol (bruja). A bruxa devia ser uma espécie de feiticeira e curandeira das tribos pré-romanas da Ibéria. Essa palavra certamente permaneceu no uso popular mesmo após a adoção do latim pelos ibéricos porque a língua dos romanos não tinha um vocábulo específico para “feiticeiro(a)”, já que não havia esse tipo de “profissional” em Roma. O termo aproximado em latim é lamia, nome de uma criatura que supostamente chupava o sangue das crianças e que deu origem ao nosso bicho-papão.

Feliz Dia das Bruxas!

Negacionismo científico e negacionismo político

Semanas atrás, recebi um comentário a um vídeo do meu canal do YouTube Planeta Língua intitulado “A palavra é… negacionismo”. Nesse vídeo, explico a origem e o significado da palavra, que se tornou tão corrente desde a eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. O comentário em questão afirmava que negacionismo é um termo pejorativo criado pela esquerda para depreciar, humilhar e intimidar a direita. Em outras palavras, o que o comentador do vídeo, indisfarçavelmente de direita, sustenta é que negacionismo não existe, trata-se de uma acusação vazia, o que implica que as posições que os supostos negacionistas defendem são legítimas.

Vamos então primeiramente falar sobre a origem do termo e do porquê de sua criação. A palavra negacionismo foi cunhada em francês (négationnisme) pelo historiador Henry Rousso em seu livro de 1987 A síndrome de Vichy, em que ele o aplica à atitude política de certos membros da direita francesa de negar a existência do Holocausto. Portanto, o termo negacionismo nasceu no âmbito da história e, por isso mesmo, é por vezes chamado de negacionismo histórico.

Na década de 1990, por ocasião dos debates sobre as mudanças climáticas, surgiram os negadores dessas mudanças, os chamados “ambientalistas céticos”. A partir daí, a comunidade científica, especialmente nos EUA, passou a empregar o termo negacionismo (em inglês negationism) em relação a esses céticos. Surgia o negacionismo científico.

Portanto, negacionismo é a postura de negar a realidade e, em especial, fatos cientificamente comprovados como forma de fugir de uma verdade incômoda.
É o triunfo da opinião sobre o fato. O negacionismo se distingue da simples negação porque rejeita uma tese mesmo que ela seja empiricamente comprovável e mesmo já esteja provada um sem-número de vezes. De certa forma, o negacionismo é primo-irmão das teorias conspiratórias. Os adeptos dessas teorias, chamados de conspiracionistas, sustentam que a comunidade científica internacional, denominada depreciativamente por eles mainstream científico, é fechada a novas ideias e rejeita sistematicamente teorias alternativas, como a de que a espécie humana é descendente de extraterrestres ou então teses criacionistas como o design inteligente, por exemplo. Na opinião desses conspiracionistas, a comunidade científica não seria nada mais do que uma máfia.

A questão é que o que eles chamam de mainstream é, na verdade, o conjunto majoritário de pesquisadores do mundo todo que baseiam seus conhecimentos no método científico, isto é, nos dados resultantes de experimentos nos quais uma hipótese é posta à prova e, se contradita pela experiência, é descartada. Essa comunidade de pesquisadores é responsável por estudos minuciosos, rigorosamente planejados e controlados, e sobretudo tão neutros e imparciais quanto possível, o que significa que nenhum resultado é privilegiado a priori, mas as teorias têm de se dobrar ante os fatos, e, se uma teoria entra em contradição com a realidade mostrada pelos resultados empíricos, errada está a teoria, não a realidade.

O ambiente científico é tão controlado que qualquer publicação séria tem de passar primeiro pelo crivo de pareceristas contratados pelo periódico ao qual o artigo é submetido, pareceristas estes de alta reputação científica, que fazem uma análise duplo-cego: nem o parecerista sabe o nome do autor do artigo nem vice-versa. Se aprovado e publicado, o artigo passa agora pelo crivo de toda a comunidade científica; o experimento ali descrito pode ser replicado por qualquer um, e os resultados obtidos devem ser os mesmos relatados no artigo. Se não forem, algo está errado. Logo, uma fraude científica cedo ou tarde é desmascarada. Este é o verdadeiro mainstream da ciência.

Por sinal, é a ele que devemos toda a evolução tecnológica do mundo atual, desde medicamentos para as mais diversas doenças até os modernos meios de transporte e comunicação, dentre tantas outras inovações. Ou seja, se as teorias científicas vigentes estivessem erradas e as “alternativas” é que fossem corretas, certamente ainda estaríamos na Idade Média. O grande problema dessas teorias alternativas, que, a rigor, nem teorias são, mas meras hipóteses, é que elas não têm suporte em dados empíricos, o que equivale a dizer que elas não apresentam provas de sua veracidade, são meros argumentos que podem convencer os mais ingênuos, mas não resistem a um teste mais rigoroso.

Em resumo, ao contrário do que afirma o comentador do meu vídeo, negacionismo não é uma pecha injusta criada pela esquerda política para depreciar direitistas, é uma acusação feita pelas pessoas de bom senso, que aceitam verdades sobejamente provadas, contra as que não as aceitam. O negacionismo é, pois, uma vertente do obscurantismo.

Mas o negacionismo não existe só na ciência, como na história (negação do Holocausto), na biologia (negação da evolução das espécies), na ecologia (negação do aquecimento global) ou na medicina (negação das vacinas); ele existe também na política. A atitude de negar os resultados de pesquisas eleitorais feitas por institutos sérios, com metodologia científica, apenas porque o candidato de sua preferência não está na liderança dessas pesquisas ou, pior, negar o resultado de eleições limpas e seguras, altamente monitoradas até por organismos internacionais, alegando fraude, jamais comprovada, apenas porque seu candidato não venceu, é uma forma de negacionismo político. Por conseguinte, o negacionismo político anda de mãos dadas com o golpismo. Aliás, todos os golpistas partem de uma mentira que eles sustentam como verdade para justificar seu golpe. A alegação de Putin de que o governo ucraniano é neonazista serviu de justificativa para a invasão da Ucrânia. Desde então, o governo russo nega verdades amplamente documentadas pela imprensa como a de que os mísseis russos miram alvos civis ao mesmo tempo que sustenta inverdades como a de que não há uma guerra e sim uma operação militar especial, o que quer que isso signifique.

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Antes que algum bolsonarista me acuse de ser esquerdista, comunista ou “mortadela”, quero esclarecer que sou politicamente de centro e no primeiro turno não votei nem em Lula nem em Bolsonaro. Logo, minhas considerações não têm nenhum caráter sectário ou ideológico, mas são na verdade a mera constatação de uma patologia social de nosso tempo chamada extremismo.

Cultura é artigo de consumo?

Outro dia, em sua coluna Sala de Música, na rádio CBN, o produtor musical João Marcello Bôscoli explicou que a palavra cultura veio do latim colere, que significa “cuidar, cultivar”, e que consumir veio de consumere, que quer dizer “consumir, gastar, destruir”. A partir daí, defendeu a tese de que não se deveria dizer “consumir cultura”, já que isso implicaria a ideia de destruição. Em vez de “consumir música” ou “consumir teatro”, ele sustenta que deveríamos voltar a dizer, como antigamente, “ouvir música”, “assistir ao teatro”, e assim por diante.

As informações etimológicas passadas por ele estão corretas, mas palavras ganham novos significados ao longo de sua história. Assim, se na Roma antiga consumir tinha o sentido exclusivo de gastar e destruir (por exemplo, “as chamas consumiram completamente o edifício”), com o tempo passou-se a empregar o termo referindo-se ao consumo de alimentos, que não deixa de ser uma destruição: destruímos os alimentos ao comê-los para nos mantermos vivos e saudáveis. Mas já que, para comê-los, é preciso primeiro comprá-los – a menos que tenhamos uma propriedade rural que nos forneça todos os recursos alimentícios de que precisamos –, consumir tornou-se sinônimo de comprar, adquirir. E, na sociedade de consumo em que vivemos, em que tudo, inclusive a cultura, virou produto, não é estranho pensar-se em consumir música, teatro, dança, livros, etc.

Aliás, a cultura não deixa de ser uma espécie de alimento – para o espírito, no caso. Assim como devoramos uma fruta, e ela, além de nos alimentar e nutrir, nos dá prazer com seu sabor e suculência, a cultura é algo que devoramos (quem nunca “devorou” um livro ou um disco?) e que nutre nosso espírito, ampliando nossos horizontes mentais. Uma vez comida, a fruta se transforma inexoravelmente em excremento, mas suas vitaminas alimentam nossas células e garantem nossa vida. Uma vez lido, um livro pode até virar calço de mesa, mas seu conteúdo nutriu nossos neurônios e fez mesmo nascerem novos.

Concordo com Marcello que, em tempos em que o consumismo domina as relações sociais e em que também há forte reação contra ele por parte de setores mais esclarecidos da sociedade, falar em consumir cultura pode soar mercantilista ou, no mínimo, fútil. Quem consome não frui, e a cultura deveria ser antes de tudo fruição. Então me lembro de que meu pai, ao ouvir na TV certos roqueiros dizerem que faziam um som, retrucava afirmando que antigamente se fazia música e que os “cabeludos” de hoje em dia (esse “hoje em dia” já faz algumas décadas) só fazem som, isto é, barulho. Pois o “som” que tanto incomodava meu pai atualmente é rock clássico. Imaginem, se ele fosse vivo hoje, o que diria do funk proibidão!

Por outro lado, também podemos despir o termo consumo de seu véu capitalista selvagem e vê-lo como algo que sempre existiu. Afinal, em todas as épocas os artistas tiveram de vender suas criações para sobreviver. Quer fossem sustentados por mecenas ou vendessem seus livros e quadros, bem como recitassem seus versos em praça pública, alguém pagava para lê-los, ouvi-los, assisti-los (assistir a eles, como manda a gramática normativa, é muito feio): a arte, assim como a filosofia e, mais tarde, a ciência, também era um produto vendido no mercado. Van Gogh, que vendeu um único quadro durante a vida, ficaria feliz de saber que suas pinturas hoje são comercializadas aos milhões de dólares. Mozart não desgostaria do fato de suas composições serem vendidas em lojas de CDs (as que ainda existem) ou baixadas em plataformas de streaming. Os poetas gregos cantavam seus poemas acompanhados da lira (o violão da época) na ágora ateniense em troca de moedas e do aplauso dos espectadores. O que há de errado nisso?

Por mais etéreas que sejam, ou pretendam ser, certas criações culturais, seus autores precisam comer, vestir-se, locomover-se, pagar contas… Logo, tudo é produto, tudo é consumível, devorável, digerível e tudo – alimentos ou livros – é nutriente de nossa vida.

Os evangélicos e as eleições

Nestas eleições, em que deveriam estar sendo discutidos os grandes temas nacionais, como a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a infraestrutura, o debate se perde em questões que não têm nada a ver com a administração do país, mas que são caras a grande parte da população, provavelmente por falta de uma cultura política, reflexo de nossa falta de cultura geral. Uma dessas questões é, infelizmente, a religião. Desde sempre, o povo brasileiro escolheu seus governantes e representantes muito em função de suas crenças religiosas. Para muitos brasileiros, mais importante do que se o candidato é honesto ou competente, é se ele acredita ou não em Deus, especialmente no Deus judaico-cristão. Historicamente, padres e pastores têm influenciado muitos fiéis, fazendo pregação política nos templos e por vezes ameaçando com o Inferno e a danação eterna aqueles que não votarem em determinado candidato, o que surte grande efeito nos mais ignorantes – por sinal, boa parte da população brasileira.

Mas desde que se discute religião nas campanhas políticas, o foco têm sido sempre os chamados “evangélicos”, na verdade, protestantes de linha pentecostal, como os membros da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, ou neopentecostal, como os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo. É que existem também os protestantes tradicionais, adeptos das igrejas que surgiram com a Reforma Protestante de Lutero em 1517: são os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, etc. Estes não costumam ser chamados de evangélicos porque seu comportamento em geral difere bastante daquele dos (neo)pentecostais. Portanto, é destes últimos que quero falar, já que são estes que estão no foco da discussão política atual.

O Brasil é um país majoritariamente religioso e sobretudo cristão, abarcando cidadãos das mais diversas fés e confissões, como católicos, protestantes, ortodoxos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, candomblecistas, além daqueles que creem em Deus mas não seguem nenhuma doutrina em particular.

No entanto, não se fala desses grupos religiosos como se fala dos evangélicos, nem o interesse dos políticos está voltado para essas outras comunidades como está para a evangélica. Por quê?

É fato que as denominações (neo)pentecostais são as que mais têm crescido no Brasil, apontando para a tendência de se tornarem majoritárias dentro em breve. Isso se deve a diversos fatores, mas principalmente ao apelo que essas igrejas têm na população mais carente, oferecendo-lhe a possibilidade de solução mais concreta e imediata de seus problemas do que outras religiões.

Mas, se não só os políticos como também a população em geral tende a considerar os evangélicos um grupo à parte em meio à massa dos religiosos em geral e, mais do que isso, um setor à parte da própria população brasileira, é porque esse grupo tem um comportamento que os diferencia, e muito, dos demais cidadãos, o que também é a causa do preconceito que sofrem.

Para o senso comum, o evangélico é um indivíduo que lê a Bíblia todos os dias, vai à igreja toda semana (às vezes mais de uma vez por semana) ouvir um pastor gritar histericamente, não bebe álcool, usa roupas sóbrias – no caso das mulheres, saias e cabelos compridos; algumas nem se depilam –, só ouve música gospel, só assiste a canais de TV de suas igrejas e sobretudo paga o dízimo à sua igreja “religiosamente” (desculpem o trocadilho).

Diferentemente de outros grupos religiosos, os evangélicos são proselitistas e tentam agregar cada vez mais fiéis às suas igrejas, o que representa cada vez mais dízimos e, portanto, mais poder financeiro, que se traduz em cada vez mais templos e mais canais de rádio e televisão – além, é claro, de uma vida cada vez mais rica e luxuosa para os comandantes dessas igrejas.

Nenhuma outra confissão religiosa tem uma bancada tão organizada no Congresso Nacional: não há uma bancada espírita, judaica ou islâmica, mas há uma poderosa e influente bancada evangélica, por sinal sempre fazendo parte da base de apoio ao governo – qualquer governo que seja. Nenhuma outra confissão tem tantas emissoras de rádio ou de TV. Nenhuma outra confissão é tão rica, com exceção, é claro, da Igreja Católica, mas a riqueza desta resulta de um patrimônio de séculos de hegemonia no Ocidente e não da arrecadação de dinheiro entre os fiéis.

Outro aspecto que chama a atenção aos evangélicos é seu conservadorismo em termos de costumes, o que faz a extrema direita sempre flertar com eles. Mais do que isso, o fundamentalismo e, por vezes, o literalismo das posturas de certos evangélicos os coloca como fanáticos religiosos, e daí vem o preconceito maior contra eles. Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra outros credos, especialmente os de matriz africana, chegando em alguns casos a pregar e a praticar a violência física contra “a religião do Diabo”, bem como sua censura ao homossexualismo, os faz serem vistos como racistas e homofóbicos, portanto cultores do ódio em vez do amor, base de todas as religiões.

Enfim, todos esses aspectos acabam por alimentar a desconfiança contra os evangélicos por parte dos que não seguem essa doutrina. E, pelo crescente tamanho dessa comunidade, nenhuma força política pode ignorá-la, já que, sem ela e seu apoio no Congresso, fica difícil governar. O temor da parcela mais progressista e esclarecida da população é que essa comunidade, vindo a tornar-se majoritária no Brasil, tente impor a toda a sociedade, incluindo os não cristãos e os não religiosos, uma teocracia, em que a “palavra de Deus”, isto é, a Bíblia em sua leitura literal e sobretudo a vontade dos pastores, se sobreponha à Constituição e às leis. Isso seria o fim da democracia, eis por que fanáticos religiosos e extremistas de direita têm tanto apreço uns pelos outros.

Do telefone celular ao besouro

Do telefone celular ao besouro

Aprendemos na escola que a célula é o elemento básico constitutivo de todos os seres vivos, o tijolo da construção da vida. Então por que o telefone celular tem esse nome? O que ele tem a ver com a célula?

Na verdade, em relação à célula sobre a qual aprendemos em biologia, nada. O que acontece é que, para que a telefonia móvel funcione, é preciso que o território seja coberto por um grande número de antenas que atingem com seu sinal uma determinada porção desse território à qual os engenheiros idealizadores da tecnologia deram o nome de célula. Portanto, em matéria de telefonia móvel, uma célula é uma região (por exemplo, um conjunto de ruas da cidade) atendida por uma antena. Quando nos deslocamos ao longo do território, vamos passando sucessivamente de uma célula a outra, o que quer dizer que deixamos de receber o sinal de uma antena e passamos imediatamente a receber o sinal de outra.

Mas por que cada uma dessas regiões cobertas por antenas se chama célula? Obviamente não perguntei aos criadores da tecnologia, nem tenho como, mas a ideia parece evidente: o mapa do território atendido por uma operadora desse tipo de serviço aparece dividido em um sem-número de pequenas áreas, que estão justapostas como as células de um organismo (outra metáfora possível seria a dos favos numa colmeia).

Agora vem a pergunta mais importante (pelo menos para um etimólogo como eu): por que a célula se chama célula? Esse vocábulo veio por via culta, mais precisamente pela linguagem da ciência, do latim cellula, diminutivo de cella, que quer dizer “cela”, lugar pequeno em que se oculta alguma coisa, pequeno esconderijo, e também despensa ou celeiro (note que este último termo deriva de cela). A cella latina também era o local recluso em que os monges dormiam – aliás o fazem até hoje. E, mais recentemente, cela passou também a significar o recinto em que ficam presos os detentos.

A palavra latina cella (anteriormente *celna) provém do verbo celare, “ocultar”, que também aparece na forma celere. Esta última tem um derivado ob- + celere = occulere, cujo particípio é justamente occultus, “oculto”. Todas essas formas radicam no indo-europeu *k̂el-, que significa “ocultar”, e aparece também no latim clam, “às escondidas”, que deu clandestino, bem como no grego calyptós, “oculto”, donde apocalipse, isto é, revelação (retirada da cobertura do que estava oculto).

Como já deu para perceber, a raiz indo-europeia *k̂el- tinha um significado primeiro de “cobrir”, do qual decorre o de “ocultar”. Nesse sentido de cobrir, saíram as palavras latinas color, “cor” (originalmente “tinta”), isto é, aquilo que cobre uma superfície, pintando-a, e cilium, “cílio” (o que cobre o olho). Dessa raiz também nos chegou a palavra de origem germânica elmo – para quem não sabe, o capacete da armadura medieval, ou seja, aquilo que cobre e protege a cabeça.

De lá saiu também o inglês hell, “inferno, lugar subterrâneo e escondido”, bem como hole, “buraco”. Por fim, daí veio o grego koleón ou koleós, “vagina” (acho que não é preciso explicar por quê), do qual nasceu o termo científico coleóptero, um tipo de inseto mais conhecido como besouro.

Quantos significados diferentes se ocultam nessa simples raiz, não? E tudo começou com o nome do telefone celular. Nome, aliás, que esse aparelho tem no Brasil. Em Portugal, chama-se telemóvel. Curiosamente, o nome americano do celular é cell phone, também fazendo referência à ideia de célula, ao passo que seu nome britânico é mobile phone, ou simplesmente mobile. Ou seja, enquanto brasileiros e americanos ressaltam a conexão do aparelho às acima explicadas células, portugueses e ingleses destacam o aspecto móvel dessa tecnologia.

O vocabulário da prisão

“Lugar de bandido é na cadeia!” Esse slogan tem sido muito repetido em campanhas eleitorais por candidatos a deputado ligados à segurança pública. Mas por que a cadeia tem esse nome? Nos dicionários, a primeira acepção de cadeia é “corrente”. Aliás, é daí que vem a expressão reação em cadeia, em que se faz alusão a uma corrente cujos elos estão todos interligados. Decorre dessa definição que o uso do termo cadeia no sentido de “prisão” remete aos tempos em que os prisioneiros ficavam acorrentados.

Por falar em prisioneiro, essa palavra deriva obviamente de prisão, mas sua introdução em português foi influenciada pelo francês prisonnier, tendo sido nessa língua que o vocábulo surgiu pela primeira vez, derivado de prison­, “prisão”. E prisão descende do latim prehensionem, do verbo prehendere, “prender”. Uma curiosidade: prehendere é formado do prefixo prae-, “antes”, e de um nunca documentado verbo latino *hendere, que no entanto sabemos ser cognato do inglês get, “pegar, obter”. Ambos radicam no indo-europeu *ghed-, “pegar”.

Observe que, diferentemente de um presidiário ou detento, um prisioneiro não é necessariamente um criminoso, mas qualquer um que se encontre preso, como, por exemplo, um soldado inimigo numa guerra ou a vítima de um sequestro.

E já que falei em presidiário e detento, o primeiro deriva de presídio, do latim praesidium, “guarnição, guarda”. E praesidiarius em latim era o soldado colocado em postos avançados. Portanto, um presídio era em princípio um lugar de segurança, vigiado por guardas, logo um bom lugar para manter prisioneiros. Já em alemão, Präsidium significa “presidência”.

Por outro lado, detento vem do particípio latino detentus do verbo detinere, “deter”. Então detento quer dizer “detido”. Curiosamente, na linguagem penal brasileira, deter é diferente de prender: uma pessoa pode ser detida para averiguação e, assim, permanecer algumas horas numa delegacia de polícia; já o preso será necessariamente encarcerado. Mas o detento é alguém que está preso e não apenas detido.

Outro dado interessante: ao passo que em português usamos o verbo prender, outras línguas utilizam no mesmo caso o verbo correspondente a arrestar (francês arrêter, inglês arrest, italiano arrestare, alemão arretieren). Enquanto isso, no Direito brasileiro arrestar significa sequestrar um bem, colocá-lo à disposição da Justiça.

E cárcere vem do latim carcer, cuja primeira acepção é “barreira que forma a pista por onde devem seguir os carros”, portanto uma espécie de murada ou alambrado nas laterais de uma estrada. Outra acepção latina é “recinto de onde partem os carros numa corrida”. Como se vê, carcer tem a ver com carrus, “carro” em latim. Mas dessas acepções de “muro” ou “recinto murado” saiu o sentido de “prisão”.

Por último, temos a expressão politicamente correta inventada para denominar os presos: pessoa privada de liberdade. Como toda expressão politicamente correta, ela se refere a pessoa, neutralizando os gêneros. E, em vez de fazer referência à condição de preso, ela remete ao conceito de liberdade, ainda que para negá-lo. É o mesmo processo que denomina o cego como não vidente, o surdo como não ouvinte e, quem sabe, um dia desses passará a designar os mortos como não vivos.

O estilo “Carluxo” de Bolsonaro

Leio num site de notícias que no debate de hoje à noite na Rede Globo Bolsonaro deverá adotar o “estilo Carluxo”, isto é, aquela atitude mais radical, raivosa e aguerrida que, por sinal, notabilizou o presidente desde sempre e que contrasta com a imagem “Bolsonarinho paz e amor” que às vezes seus marqueteiros tentam vender ao eleitorado.

Esse tipo de postura política ganhou o nome de Carluxo por referência ao filho do presidente, Carlos Bolsonaro, principal idealizador e incentivador dessa postura, e cujo apelido – não sei se usado por ele próprio ou se a ele impingido pela imprensa – é um diminutivo carinhoso de Carlos. O que chama aqui minha atenção é a grafia com x desse apelido, a meu ver inadequada. Se a alcunha é utilizada pelo próprio Carlos e por seus íntimos, resta saber se o próprio filho do presidente a grafa com x. Se o faz, é um direito seu. Mas, se não, ou seja, se o apelido lhe foi dado pela mídia, então temos aí um deslize ortográfico. É que ‑ucho é um sufixo diminutivo, por vezes afetuoso, que ocorre em palavras como gorducho, pequerrucho, capucho, fofucho e outras e cuja grafia correta é com ch e não com x (falei semana passada sobre a questão da grafia com x ou ch de imbroxável; este é mais um caso em que a língua portuguesa nos coloca em situação de insegurança).

Mas por que o sufixo ‑ucho é com ch e não com x? Mais uma vez, temos de recorrer à etimologia para explicar. Acontece que esse sufixo é um empréstimo do sufixo diminutivo italiano ‑uccio, por sinal muito frequente em nomes de pizzarias como Micheluccio, Freduccio, etc. (Atenção: isto não é merchandising de pizzarias, ok?) Em italiano, o cc seguido de i soa como /tch/, portanto a pronúncia desse sufixo é /utcho/. Quando aportou em terras portuguesas, lá pelo século XVI, formando os primeiros derivados, o ch português também tinha som de /tch/, logo a transcrição de ‑uccio por ‑ucho foi natural. Somente tempos depois foi que o ch português perdeu o som /tch/ e assumiu a pronúncia atual, que se confunde com a do x. Mas a ortografia manteve o ch mesmo assim, pois nosso sistema é parcialmente fonético (melhor seria dizer fonológico) e parcialmente etimológico. É por isso, por exemplo, que eliminamos o h dos dígrafos th, rh, ph, mas mantivemos o h de hora, hoje, etc.

Conclusão: o colérico filho de Bolsonaro deveria ser Carlucho e não Carluxo. A menos que o próprio, como disse acima, prefira a grafia com x. Aí é uma escolha dele, e ninguém tem nada com isso.

Bom debate hoje à noite!

A realeza da língua

Como pesquisador da história das línguas e, mais especificamente, de suas palavras, sempre me interessei pelo estudo da língua que deu origem à maior parte dos idiomas europeus, inclusive o português, e por isso volta e meia falo dela: o indo-europeu. Mais ainda, quando abordo a origem das palavras do português, sempre gosto de recuar no tempo até o Cáucaso de 6 mil anos atrás e trazer a origem primeira de nossas palavras, qual seja, a raiz indo-europeia que lhes serviu de berço.

Diante do falecimento da rainha Elizabeth e consequente ascensão ao trono de seu filho Charles III, quero falar sobre uma raiz que foi muito produtiva nas línguas da Europa e, sem dúvida, na nossa e que tem tudo a ver com reis. Trata-se da raiz *rēĝ- (na verdade, *h3rēĝ- nas reconstruções mais recentes do indo-europeu). É uma raiz verbal que significa “conduzir, reger, liderar”, mas produziu também o adjetivo (particípio) *h3reĝtós, que quer dizer “reto” (já deu para perceber o que isso tem a ver com o português, né?).

Pois é, essa raiz deu palavras em muitas línguas indo-europeias, como o sânscrito, o persa, o grego, o russo, o lituano, o gaélico, mas o que nos interessa aqui são os vocábulos que passaram ao latim e deste ao português. O primeiro deles é rex, genitivo regis, cujo significado é “rei” (literalmente, “condutor, líder”) e que tem como feminino regina, “rainha”. Um cognato germânico dessa palavra é *riks, que aparece nos nomes próprios Érico, Frederico, Henrique e Rodrigo, dentre outros. Por exemplo, Teodorico é “rei do povo”, de *theudo, “povo”, e *riks, “rei”. E o nome próprio português Régis vem do genitivo de rex e significa “do rei”.

De rex saíram regalis, “real”, regius, “régio”, e regnum, “reino”. De real brotaram realeza e realista (isto é, adepto do rei, da monarquia). E de reino vieram reinar, reinado, reinante.

Mas a raiz *h3rēĝ- também produziu o verbo latino regere, “reger”, e seus derivados dirigere, “dirigir”, erigere, “erigir, erguer”, e corrigere, “corrigir”. Em todos há a ideia de linha reta, de direção (para frente ou para cima). E reto se liga à ideia de “certo, justo”. Logo, corrigir é tornar certo (fala-se na vida reta como aquela sem vícios, uma vida certa, correta, justa, bem como se fala da retidão de caráter). A ideia de linha reta também aparece em régua, que permite desenhar linhas retas, e regra, aquilo que dirige uma atividade.

Mas dos verbos acima vieram outras tantas palavras em nosso idioma: direito, direto, direção, diretor, diretriz, diretiva, dirigente, endireitar, correção, corretor, correto, corregedor, corregedoria, escorreito, ereção, ereto, regente, regência, reitor, reitoria, retificar, retificação, e até mesmo termos insuspeitos como endereçar, endereço, adereçar e adereço.

No antigo germânico, *h3reĝtós resultou em *rehtaz, que é a origem do inglês right e do alemão recht, “direito, certo”. O alemão também tem richtig, de mesma origem e mesmo significado.

Em francês, o latim directus, particípio de dirigere, produziu droit, que aparece no lema da monarquia britânica Dieu et mon Droit, “Deus e meu Direito”, ao passo que indirectus gerou o substantivo endroit, “lugar, local” (originalmente, “endereço”).

Mas o latim vulgar não documentado *directiare passou ao francês dresser, “endireitar, arranjar”, que por sua vez chegou ao inglês como to dress, “arranjar, adornar” e, por conseguinte, “vestir”, donde o substantivo dress, “vestido”.

E de dresser o francês criou por prefixação adresser, “endereçar”, e seu derivado adresse, “endereço”, que, mais uma vez, foram dar em inglês o verbo e o substantivo address.

Em linha reta ou às vezes fazendo algumas curvas, a raiz indo-europeia chegou até nós e enriqueceu muito nosso vocabulário. Ah, e antes que eu me esqueça, enriquecer vem de rico, do germânico *rikjaz, “régio, digno de rei”. Como é rica a história das palavras, não?

Um esclarecimento sobre o “imbrochável”

Há alguns dias, publiquei um artigo sobre a correta grafia do neologismo bolsonarista imbroxável. Desde então, tenho recebido vários comentários, alguns dos quais mal-educados e agressivos, que nem me dou ao trabalho de responder, argumentando que certos dicionários abonam a grafia brocha (com ch) com significado de “pincel”. Nesse caso, segundo esses dicionários, broxa (com x) é somente “pincel”, mas brocha (com ch) pode ser “prego” ou “pincel”.

É preciso fazer algumas considerações sobre isso. Em primeiro lugar, até a reforma ortográfica de 2009, os dicionários registravam exclusivamente broxa, “pincel”, e brocha, “prego”. Num primeiro momento, imaginei que talvez essa tendência de considerar que brocha também pode ser “pincel” fosse uma inovação introduzida pelo Acordo Ortográfico de 1990, implantado no Brasil em 2009. Por isso, fui consultar o VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, no site https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario. Pesquisando por brocha, encontro: brocha s.f. “prego”, etc.; cf. broxa “pincel”. Já ao pesquisar por broxa, encontro: broxa adj. 2g. s.f. “pincel” s.m.; cf. brocha “prego”, etc.

Como podemos ver, o VOLP distingue claramente os significados de brocha, “prego” e de broxa, “pincel”. Mais ainda, indica que broxa é substantivo feminino (referente a “pincel”), bem como adjetivo de dois gêneros e substantivo masculino (referente ao indivíduo sexualmente impotente). No verbete brocha, temos cf. (isto é, “confira”) broxa “pincel”. E no verbete broxa, temos cf. brocha “prego”. Fica claro que as duas grafias correspondem a dois significados distintos. E que em cada verbete o VOLP remete ao outro verbete, de grafia e significado diferentes.

Portanto, quando edições pós-reforma ortográfica de dicionários estabelecem que brocha (com ch) significa tanto “prego” quanto “pincel” e põem ambas as acepções no mesmo verbete, ao mesmo tempo em que desaconselham a grafia broxa (com x), temos aí vários problemas.

O primeiro é que não cabe ao dicionário proscrever uma grafia: ou ela é válida porque reconhecida pelo VOLP ou é inexistente. Ora, a grafia broxa consta no Vocabulário Ortográfico, logo é válida e sua interdição pelos dicionários é indevida.

Em segundo lugar, temos o problema etimológico. Broxa vem do francês brosse, que quer dizer “pincel”. Já brocha vem do francês broche, que significa “broca, tacha, prego, fuso de tear” e também “broche” (tendo dado, por sinal, a palavra broche em português). Logo, a diferença de grafia se justifica, afinal o ch francês passa ao português também com ch (veja, por exemplo, chauffeur > chofer), ao passo que ss corresponde em português ora a ss mesmo ora a x (francês passer x português passar, francês caisse, coussin x português caixa, coxim).

Mesmo que a reforma ortográfica tivesse instituído a substituição da grafia broxa por brocha – o que, a meu juízo, não fez –, os vocábulos brocha, “pincel”, e brocha, “prego”, teriam de constituir dois verbetes separados. Dito de outro modo, não seriam duas acepções da mesma palavra e sim duas palavras homônimas. Portanto, os dicionários “moderninhos” erram também aí.

Por fim, se, por absurdo, admitíssemos que os dois significados do termo pertencem à mesma palavra, teríamos o único caso na língua portuguesa de palavra única com duas grafias possíveis e autorizadas. O que temos em nosso idioma e também em muitos outros são palavras homógrafas (mesma grafia e pronúncias diferentes), como leste (do verbo ler) e leste (ponto cardeal), palavras homófonas (mesma pronúncia e grafias diferentes), como concerto e conserto, palavras homônimas (mesma grafia e pronúncia, mas significados e etimologias distintas) como manga (fruta, do malaio) e manga (de camisa, do latim). Temos ainda os chamados alomorfes, palavras de grafia e pronúncia parcialmente diferente, mas com significado idêntico. É o caso de loiro e louro, catorze e quatorze. Aproveito aqui para alertar que alguns dicionários chamam a esses alomorfes de formas divergentes, o que é errado: formas divergentes, alótropos ou dobretes são palavras totalmente distintas, com mesma origem mas étimos (isto é, trajetórias de chegada à língua) diferentes. São formas divergentes aurícula e orelha; desígnio e desenho; prumo e chumbo; defensa, defesa e devesa; plano, porão, piano e chão, dentre outros.

Em resumo e como resposta aos leitores que me advertiram de que eu estaria errado – alguns, como disse, de modo rude e contrário aos princípios da civilidade –, reafirmo que broxa é pincel, brocha é prego e que imbroxável no sentido dado por nosso histriônico presidente é com x e apenas com x. E tenho dito!

Monarquia ou república?

Desde o falecimento da rainha Elizabeth II do Reino Unido e a consequente ascensão ao trono de seu filho, o agora rei Charles III, vem ganhando corpo naquele país o debate sobre o possível fim da monarquia britânica. Pesquisas mostram que cerca de 40% dos britânicos são republicanos, e hashtags como #notmyqueen e #notmyking pulularam nas redes sociais nestes últimos dias.

Sem dúvida, a república é um regime de governo mais moderno que a monarquia, tanto que a maior parte dos países do mundo foi monárquica até o século XIX e, desde então adotou o sistema republicano.

No entanto, gostaria de fazer algumas considerações sobre essa possível opção entre monarquia e república que a eventual impopularidade do novo soberano britânico pode quem sabe levar seus súditos a ter de fazer dentro de algum tempo.

Antes de mais nada, quero esclarecer que não sou monarquista e, apesar do clima romântico que a monarquia brasileira inspirou e que até hoje rende telenovelas de época de grande sucesso, penso que o Brasil teria se desenvolvido mais se tivesse sido uma república desde a Independência. Mas há alguns fatos a serem analisados e ponderados.

Em primeiro lugar, alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, como Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Japão, são monarquias, e não parece que os povos dessas nações estejam descontentes com seus soberanos. Nesses países, o índice de defensores da república é baixo, talvez porque o custo financeiro desses regimes seja menor que o da coroa britânica. De fato, a principal reclamação dos súditos de Charles III diz respeito ao fausto em que vive a família real sustentado pelo dinheiro dos contribuintes – embora há já algum tempo a realeza pague impostos. De todo modo, essas monarquias que citei estão entre os países mais ricos do mundo, perfeitamente capazes de custear esse regime sem prejuízo da qualidade dos serviços públicos. O fato é que, enquanto a pequena parcela mais rica e desenvolvida da humanidade é governada por reis, a imensa maioria dos países mais pobres do mundo é de repúblicas, muitas delas comandadas por ditadores.

Outro fato que talvez explique a antipatia de parcela do povo britânico pela sua monarquia são os escândalos em que volta e meia a família real se envolve. Mas escândalos não são exclusividade da realeza, é bom lembrar. Aliás, o Brasil republicano é pródigo neles.

Por outro lado, a monarquia britânica, com seus rituais de troca da guarda, passeios do monarca em carruagem dourada pela cidade, aparições públicas do soberano na sacada do Palácio de Buckingham, além da existência de palácios e castelos, soldados com fardas belíssimas, títulos de nobreza, etc., tudo isso atrai turistas do mundo inteiro e, por conseguinte, gera renda ao país. É bem verdade que parte dessa renda vai para a própria família real, que licencia produtos – canecas, chaveirinhos, camisetas e outros souvenirs – com a imagem da rainha ou o brasão real, mas, em vez de acabar com a monarquia, bastaria transferir para o estado essa arrecadação. Para se ter uma ideia, a realeza britânica é uma das marcas de maior valor agregado que existem. Se fosse uma empresa, seria uma das mais caras do mundo.

Outro aspecto a ser considerado e que explica a grande atração e fascínio que esse regime exerce é o próprio imaginário popular, muito ligado a reis, rainhas, príncipes e princesas. Aqui no Ocidente, fomos governados por monarcas por pelo menos 2 mil anos, desde o Império Romano, passando pelos reinos europeus medievais, com suas histórias de cavalaria, depois pelas monarquias absolutistas da Idade Moderna, representadas nos romances de capa-e-espada como Os Três Mosqueteiros, até chegarmos às monarquias nórdicas da atualidade. Esse sistema de governo e todo o estilo de vida a ele ligado ainda está tão impregnado em nós que até hoje ninguém chama a um filho pequeno de “meu presidentinho” ou “minha primeira-daminha”: ainda são os príncipes e princesas que nos fascinam e é como eles que as crianças gostam de se fantasiar nas festas infantis. E ainda são contos de fada com príncipes e princesas que contamos aos nossos filhos.

Há ainda a questão da estabilidade política que o regime monárquico proporciona. Em países governados por soberanos, é raro vermos crises institucionais, ameaças de golpe ou coisa parecida. É claro que há reinos e reinos. Uma coisa é a Grã-Bretanha, cujos 70 anos de reinado de uma rainha Elizabeth carismática e popular garantiram essa estabilidade, muito embora a última revolução ocorrida na Inglaterra tenha se dado no século XVII. Outra coisa são reinos como a Tunísia, a Arábia Saudita e a Tailândia. Mas o que pesa aí não é o regime em si, é o nível de desenvolvimento do país. Em outras palavras, nações subdesenvolvidas estão sujeitas a conviver com a instabilidade política qualquer que seja o sistema de governo. Ademais, o risco de corrupção num reinado é menor do que numa república: reis já são ricos e desfrutam dessa riqueza de forma vitalícia, portanto não precisam desviar dinheiro público.

Por sinal, a monarquia britânica tem sido até hoje a responsável por manter o Reino Unido unido, isto é, por impedir a desagregação do estado em face de separatismos como o escocês, por exemplo.

De todo modo, a troca constante de governantes, própria do regime republicano, gera sempre mais instabilidade, especialmente em países como o Brasil, em que é costume cada novo mandatário desfazer todas as realizações de seu antecessor, não necessariamente porque não fossem boas, mas por puro revanchismo político.

Em estados como o Reino Unido, cujo sistema de governo é parlamentarista, o papel do rei é puramente simbólico, assim como também o seria o de um presidente da república. Basta ver que em repúblicas parlamentaristas como Portugal, Itália e Alemanha o presidente pouco apita. Nesse caso, que diferença faria trocar o rei por um presidente? Aliás, grande parte da culpa que se atribui aos monarcas ingleses pelos desmandos do Império Britânico – exploração colonialista, escravidão, roubo de relíquias históricas das colônias – cabe na verdade aos primeiros-ministros do Império, os reais governantes a perpetrar essas barbaridades. Por sinal, a França, republicana desde 1870, cometeu os mesmos abusos em suas colônias.

Por fim, vale lembrar que, se a grande queixa dos republicanos britânicos é o alto custo da monarquia, repúblicas também custam caro. Basta ver os gastos do governo norte-americano com seu presidente em termos de segurança, mas também de cerimonial. Aliás, o estado republicano brasileiro é um dos mais caros do mundo – haja vista o quanto pagamos de impostos – a despeito da pobreza da maior parte de nossa população e dos péssimos serviços públicos oferecidos em troca. Fica aí uma questão para se pensar.

Rei Charles ou rei Carlos?

A recente ascensão do príncipe Charles, filho primogênito da falecida rainha Elizabeth II do Reino Unido, ao trono britânico, fez com que toda a imprensa brasileira passasse a chamá-lo de rei Charles III (houve dois outros monarcas ingleses com esse nome antes dele).

Em Portugal, o príncipe foi chamado de Carlos desde sempre, assim como a rainha era Isabel II, e os filhos de Charles, a saber, William e Harry, são Guilherme e Henrique. O mesmo princípio de tradução de nomes de soberanos vale para os países de língua espanhola, francesa, italiana e alemã.

Mesmo no Brasil é costume referir-se aos monarcas  e papas pelas traduções portuguesas de seus nomes originais. Assim, falamos do rei Luís XIV de França, de Henrique VIII de Inglaterra, do imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico, do papa João Paulo II, e assim por diante. Inclusive os dois supracitados reis ingleses homônimos de Charles são conhecidos no Brasil como Carlos I e Carlos II. Portanto, o mais lógico seria que desde já passássemos a nos referir ao novo rei da Grã-Bretanha como Carlos III e não como Charles III. Aliás, a expressão “rei Charles”, que tem sido veiculada na mídia falada (rádio, TV e podcasts), gera certa confusão com Ray Charles, o famoso cantor americano de rhythm’n’blues e soul.

Quanto a Elizabeth, poderia ter sido aportuguesado para Elisabete, uma vez que o nome em inglês da rainha Isabel de Castela é Isabella e não Elizabeth, o que indica que se trata de dois nomes distintos, ainda que tenham a mesma origem hebraica. O mesmo ocorre com Diogo, Diego, Tiago, Iago, Jaime e Jacó, que são nomes diferentes (por exemplo, ninguém se refere a Santiago como São Jaime ou São Jacó), embora se originem todos do hebraico Ya’akov.

Imbrochável ou imbroxável?

O coro de apoiadores de Bolsonaro que, no último Sete de Setembro, entoou o grito “imbroxável, imbroxável” suscitou, além de perplexidade em muitas pessoas, algumas dúvidas linguísticas. Primeira: essa palavra existe? Segunda: qual a sua origem? Terceira: a grafia correta é imbrochável ou imbroxável?

Primeiramente, é preciso dizer que, ao contrário do que afirmam muitos gramáticos, uma palavra existe na língua a partir do momento em que é criada e passa a ser usada socialmente. Essa nova palavra, que ainda não consta nos dicionários, é chamada de neologismo. Nesse sentido, pode-se dizer que Bolsonaro e os bolsonaristas criaram um neologismo. Se ele sobreviverá a ponto de ser dicionarizado ou se desaparecerá após algum tempo como moda passageira, só a história dirá. Muitos neologismos são assim criados como termos da moda (vide as gírias dos jovens) e, meses depois, caem em desuso. É a lei da seleção natural agindo sobre as palavras como age sobre os seres vivos. Algumas sobrevivem e até deixam descendentes (palavras derivadas, por exemplo), outras morrem e por vezes nem deixam vestígio.

Quanto à origem da palavra imbroxável, é um derivado parassintético do verbo broxar (parassíntese é um processo de derivação que consiste em prefixar e sufixar a palavra primitiva ao mesmo tempo). Trata-se de um termo um tanto chulo para designar a perda da ereção do pênis durante a relação sexual. Logo, imbroxável é o indivíduo que supostamente (apenas supostamente) nunca broxa.

E broxar, de onde vem? Vem de broxa. E broxa, todos sabem, é aquele pincel graúdo que os pintores usam para pintar paredes, especialmente com tinta à base de cal. A relação entre a broxa de pintura e a disfunção erétil é bem sugestiva: quando o pintor mergulha a broxa na tinta e depois a retira da respectiva lata, os pelos do pincel arqueiam todos para baixo sob o peso da tinta impregnada neles.

Como o leitor deve ter percebido, até o momento utilizei broxa, broxar e imbroxável com x, mas também existe em português a brocha com ch, só que com outro significado. Brocha é um tipo de prego, ao passo que o pincel se grafa broxa. Essa é mais uma das pegadinhas do nosso idioma que podem representar uma casca de banana no caminho de vestibulandos e concurseiros. Brocha e broxa são denominadas palavras homófonas, isto é, que têm a mesma pronúncia, mas grafias diferentes.

Portanto, se imbroxável deriva de broxar, e este de broxa, a grafia correta do primeiro é com x e não com ch, como tem saído na imprensa.

Motociata ou motosseata?

Neste Sete de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez promoveu uma motociata – e mais uma vez sem usar capacete –, o que, por sinal, se tornou marca registrada de seu governo. Tanto que essa prática até plasmou a própria palavra motociata, uma passeata de motocicleta. Mas quem consolidou a grafia do termo foi a imprensa escrita. E de maneira errada.

Em primeiro lugar, voltemos à palavra passeata, a primeira da família que surgiu em nosso idioma, como empréstimo do italiano passeggiata, “passeio”, derivada do verbo passeggiare, que, como o nosso passear, remete ao primitivo vocábulo passo. Ou seja, trata-se de um percurso cumprido a pé, dando passos. O que o português fez foi aclimatar o termo italiano ao nosso idioma, substituindo o radical original do verbo passeggiare pelo do verbo vernáculo passear. Em ambas as línguas, a palavra passou em certo momento a designar um deslocamento coletivo, especialmente para protestar ou comemorar.

Quando essas passeatas de celebração ou protesto passaram a ser feitas de carro, cunhou-se o termo carreata utilizando o mesmo sufixo ‑ata de passeata. Agora que Bolsonaro introduziu o hábito de fazer passeatas de motocicleta, o lógico é que se fizesse um mix (chamado de palavra-valise) de moto e passeata, que resultaria na grafia motosseata e não motociata, como trazem a mídia impressa e a eletrônica.

Será que quem cunhou essa grafia motociata estava pensando em negociata, por exemplo? Não seria estranho em se tratando do governo Bolsonaro e seus aliados do Centrão ou da quantidade de imóveis que sua família comprou com dinheiro vivo. Mas não deve ter sido esse o caso. Acho mais provável creditar essa grafia esquisita à ignorância do jornalista que deu à luz o termo, seguida da ignorância dos jornalistas que o replicaram. O problema é que, uma vez consolidada uma grafia errada, leva tempo para consertá-la. Haja vista o tempo que demorou para que as pessoas entendessem que grafar mussarela com ss era errado e começassem a escrever muçarela corretamente com ç.

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Em tempo: como brasileiro, me sinto envergonhado pelo papel ridículo que fizemos mais uma vez perante o mundo na comemoração dos 200 anos da independência. “Imbrochável”, comparação machista entre primeiras-damas, uso da cerimônia para fazer campanha política em vez de saudar a importância da data, menosprezo ao convidado de honra da solenidade, o presidente de Portugal, posto no palanque em posição secundária enquanto a lateral do presidente Bolsonaro era ocupada por um Luciano Hang fantasiado de Zé Carioca… Enfim, nenhum respeito à liturgia e às responsabilidades do cargo de Presidente da República, ainda mais em data tão importante e que só se repetirá daqui a 100 anos. Que lástima!

Programas, shows e concertos

Uma das coisas mais interessantes que a linguística nos ensina é que cada língua, espelho de uma cultura, “recorta” a realidade de modo diferente, mesmo quando se trata de línguas muito próximas, que partilham em grande parte uma mesma visão de mundo, como é o caso das línguas europeias.

Um exemplo disso é o curioso caso das palavras programa, show e concerto. Para nós brasileiros, a primeira representa um espetáculo de televisão, seja um musical, uma série, um documentário, uma atração humorística ou “de auditório”, como se diz. Já a segunda é para nós essencialmente um espetáculo de música popular a que se assiste num teatro ou casa de espetáculos (mais raramente num ginásio ou estádio) e que pode eventualmente ser transmitido pela TV. Finalmente, a terceira é um espetáculo de música erudita – também chamada de música clássica, sinfônica ou de concerto –, seja ele presencial ou televisionado.

Em contraste, a língua inglesa raramente emprega program (ou programme) para programas de TV: o usual nesse caso é falar-se em TV show. Em compensação, o que aqui chamamos de show lá nos países de língua inglesa eles chamam de concert, isto é, “concerto”. Igualmente, os concertos de música erudita são concerts para os anglofalantes. O que, a meu ver, faz todo o sentido. Afinal, até o século XIX havia uma clara distinção entre a música erudita, que tinha esse nome justamente por ser consumida pela elite econômica e cultural da sociedade, e a música popular, essencialmente tocada e dançada nos folguedos e festas populares com instrumentos rústicos como pandeiro e banjo.

Naquela época, a música chamada erudita tinha nomes como “Concerto n.º 1 para piano e orquestra opus 31” e era executada em um teatro centenário, com acústica que dispensava microfones e amplificadores, por uma orquestra sinfônica composta de músicos trajando casaca e regida por um maestro que ficava de costas para a plateia. Enquanto isso, a música popular eram valsinhas e modinhas ou então aquilo que hoje chamamos de música folclórica (coco, caboclinho, maracatu, xote, catira, vanerão, fandango, polca, tarantela) e tinha nomes como “A primeira vez em que te vi”, “Não te apartes de mim, ó, linda dama”, e outras cousas do gênero.

O fato é que, a partir do século XX, quando a música sinfônica descamba para coisas como música estocástica e música eletroacústica, utilizando até utensílios como panelas, bigornas e folhas de zinco como instrumentos musicais, e a música popular se torna um conjunto de gêneros muito diferentes entre si, como jazz, tango, bolero, rumba, salsa, merengue, samba, MPB, rock, pop, soul, blues, rhythm’n’blues, funk, dance, house, lounge, K-pop, world music, etc., utilizando orquestras, instrumentos eletrônicos e produções milionárias, fica difícil dizer o que é erudito e o que é popular. Ou seja, atualmente existe apenas música, e a própria música sinfônica ou de concerto se tornou apenas mais um dentre os muitos gêneros que encontramos nas lojas de discos (as que ainda existem, evidentemente) e nas plataformas de streaming.

Hoje, temos o jazz moderno e a música instrumental em geral, além de música new age, jazz-rock, rock progressivo e rock sinfônico, que se aproximam muito da música erudita. Aliás, muitos arranjos do pop internacional e da MPB abusam de elementos sinfônicos, como naipe de cordas ou metais, piano, cravo, órgão, harpa, tímpanos, enquanto músicos sinfônicos compõem peças para sintetizadores, guitarra elétrica, violão, cavaquinho, etc. Isso sem falar de arranjos sinfônicos para canções populares, tipo The Royal Symphony Orchestra Plays Beatles. E sem falar também que compositores populares como Paul McCartney, Robin Gibb e Francis Hime já enveredaram pelos concertos e sinfonias.

Temos ainda as trilhas sonoras incidentais de filmes, compostas por mestres como John Williams, Ennio Morricone, Nino Rota, Michel Legrand e outros grandes nomes com formação erudita e tocadas por orquestras sinfônicas. Temas como os de Indiana Jones, E.T. e Superman são verdadeiras sinfonias.

Ao mesmo tempo, quão populares são Tom Jobim, Burt Bacharach ou Yanni? Dá para metê-los no mesmo balaio de Zeca Pagodinho, Anitta, Michel Teló e Bonde do Tigrão?

Ou seja, voltamos ao que a música era na Antiguidade e Idade Média: uma única forma de arte e uma única profissão, a de músico, que apenas se divide em gêneros por razões estéticas. Sempre haverá aquela música que agrada mais ao ouvido apurado do ouvinte culto e refinado e aquela que agita as multidões, o chamado “povão”. Mas também sempre haverá literatura, teatro, cinema, dança, teledramaturgia e artes visuais para todos os gostos. No entanto, Marcel Proust e cordel nordestino são apenas literatura e não literatura erudita e literatura popular. O mesmo se diga de Leonardo da Vinci e dos grafittis de rua (é bem verdade que, na dança, ainda há quem distinga entre balé clássico e balé moderno, mas as companhias de dança de hoje em dia sabiamente misturam as duas coisas, e as escolas de dança atualmente formam bailarinos versáteis).

Por isso, certos estão os ingleses e americanos, que chamam qualquer espetáculo de música, das sinfonias de Beethoven ao rap de Eminem, de concerto. Afinal, as palavras ganham novos significados conforme evolui a sociedade. Por exemplo, hoje um estúdio é um local onde se gravam discos, vídeos, filmes e novelas e também se fazem fotos e produtos gráficos enquanto, no passado, um estúdio era, como diz o próprio nome, o lugar onde se estuda – um misto de biblioteca e escritório. De uma década para cá, estúdio passou também a ser um nome chique para apartamento conjugado ou quitinete. O mundo muda, a língua muda junto. Simples assim.

Racionalidade, não racionalidade e irracionalidade

A semiótica, ou ciência da significação, é um poderoso instrumento de explicação e compreensão do sentido – tanto explícito quanto oculto – dos discursos. E para cumprir esse objetivo, uma das ferramentas da chamada semiótica greimasiana (proposta inicialmente pelo estudioso lituano Algirdas Julien Greimas) é o quadrado lógico-semiótico. Segundo sua teoria, todo discurso e, por extensão, toda ação humana (que para ele é discurso) se apoia na tensão dialética entre opostos. Seu quadrado semiótico baseia-se no quadrado lógico de Aristóteles, cujos vértices superiores representam dois conceitos contrários (por exemplo, vivo e morto), ao passo que cada um dos vértices inferiores representa o contraditório do atributo situado no vértice superior diametralmente oposto. Seriam eles, respectivamente, não morto e não vivo. Como é óbvio, um ser animado só pode estar num dos estados vivo ou morto. Já um ser inanimado, como uma caneta ou uma pedra, não está nem vivo nem morto.

Para compreender semioticamente a psique humana, vamos colocar nos vértices superiores do quadrado os contrários racionalidade e irracionalidade; teremos então quatro combinações possíveis de situações, conforme a figura abaixo.

Como podemos ver, a não racionalidade, contraditório da racionalidade, não é o mesmo que a irracionalidade. Quando dizemos que os animais são irracionais, na verdade queremos dizer que são não racionais, isto é, não agem segundo a razão, o raciocínio lógico (tenho sérias dúvidas disso); já irracional é toda atitude contrária à razão, como rasgar dinheiro, por exemplo.

A não irracionalidade é o estado de quem está, digamos assim, em seu juízo perfeito. É o que podemos chamar de sensatez ou equilíbrio mental. Já a não racionalidade envolve aqueles processos em que somos guiados por outras instâncias da mente, como a intuição e a emoção. Dito em outros termos, racionalidade é pensar com a cabeça, ao passo que não racionalidade é pensar com o coração. Todos nós fazemos ambas as coisas dependendo da situação. Ninguém responde a uma prova de matemática pensando com o coração: “Vou escolher a alternativa b) porque é a equação mais bonita” (até há alguns vestibulandos que fazem isso, mas não aconselho). Igualmente, ninguém é racional quando está apaixonado. Declarar seu amor ao ente amado com a cabeça em vez do coração certamente não funcionará.

Como resultado, quando somos racionais e não irracionais, portanto, sensatos, estamos no domínio da razão. Já quando não somos nem racionais nem irracionais, somos emocionais: estamos no domínio da emoção, do sentimento.

E quando alguém é ao mesmo tempo irracional e não racional? Essa pessoa está naquele estado que chamamos de loucura: só emoção, nenhuma razão, nenhuma sensatez. Essa loucura a que me refiro aqui não é só a condição patológica identificada pelos psiquiatras como psicose, aquilo que leva muitas pessoas a uma internação em clinicas psiquiátricas e manicômios (nos países em que ainda existem); trata-se na verdade de um estado em que todos nós podemos nos encontrar em determinados momentos da vida. Aquele indivíduo que vê seu bem mais precioso, que levou a vida inteira para conquistar, ser tomado por um assaltante e se atraca com o criminoso sem pensar que pode perder a vida se encontra nesse estado de loucura transitória. Aquele sujeito que, diante de uma situação banal como um arranhão em seu carro ou uma fechada no trânsito, parte para a agressão ou mesmo saca uma arma e mata também está nesse estado. Quem se encontra em depressão profunda e tenta o suicídio, idem. Quem frequenta um culto religioso cujo pastor grita histericamente durante vários minutos, onde se toca e canta música alta e repetitiva até que todos entrem em transe, costuma experimentar esse estado – sim, semioticamente falando, o transe é uma espécie de loucura, que, no caso em questão, leva facilmente o indivíduo a doar dez por cento de sua renda à igreja, dinheiro com o qual o pastor vai comprar sua mansão, seu jatinho particular, seu canal de televisão e vai formar sua bancada no Congresso Nacional. Ou seja, o fanatismo, quer religioso, quer político ou futebolístico, é uma forma perigosa de loucura.

Se razão é pensar com a cabeça e emoção é pensar com o coração, a loucura é o não pensar, o agir sem pensar, o agir por impulso, por instinto ou por perda das faculdades mentais.

Como se pode ver, a semiótica é um instrumento poderoso de explicação da realidade.

Latente e patente

Cada vez mais escuto dizer de algo muito evidente que “está latente”. Outro dia ouvi no rádio que a vitória de Lula nas próximas eleições é um fato latente. E também que é latente a constatação de que há corrupção no governo Bolsonaro. Só que, querendo dizer uma coisa, as pessoas estão dizendo exatamente o contrário. Na verdade, latente quer dizer “oculto, não manifesto, não evidente”. O que as gentes estão querendo dizer é que a vitória do petista e a corrupção no governo do “mito” são fatos patentes. Sim, patente é aquilo que está exposto para todos verem, escancarado mesmo, aquilo que até cego enxerga.

Por pura obra do acaso, o latim patens, particípio presente do verbo patere, “estar aberto, exposto”, que deu patente em português, rima com latens, particípio presente do verbo latere, “estar escondido”, origem do nosso latente.

Essas confusões entre palavras não são raras. Já presenciei muitas pessoas empregarem o adjetivo lívido, que quer dizer “escuro, da cor de chumbo, cinza-chumbo”, no sentido de pálido, isto é, “branco”. Talvez a confusão seja motivada por termos de sonoridade assemelhada como vívido e níveo, que normalmente se aplicam a coisas claras. Ou então seja efeito do chamado impressionismo linguístico, em que costumamos atribuir certos sentidos a palavras com certas sonoridades. Em geral, termos que denotam tristeza ou escuridão contêm vogais posteriores e fechadas como o e u. É o caso de turvo, túrbido, plúmbeo, lôbrego, lúgubre, tumba, túmulo, catacumba, soturno, macambúzio, fúnebre, etc. Ao contrário, palavras com a vogal anterior i costumam soar alegres e sugerir cores claras e sons agudos. É o caso dos citados vívido e níveo, e também de pífano, zinir, tinir, tilintar, clique, tuim, tiziu, sino, campainha, tamborim

A realidade é que certos fatos do nosso cotidiano estão é muito patentes e não latentes. Então, leitor, fique atento para não cometer essa gafe e depois ficar lívido – ou melhor, pálido – de vergonha.

Brasileiros e brasileiras

Foi o ex-presidente da república José Sarney quem eternizou a expressão “brasileiros e brasileiras”, com a qual iniciava seus discursos. Antes dele, o general-presidente João Figueiredo dizia apenas “meus amigos”. E Getúlio Vargas começava suas preleções com “trabalhadores do Brasil”.

Hoje, por influência da linguagem politicamente correta e das pautas identitárias, é cada vez mais comum ouvirmos “bom dia a todos e todas”, “Vossas Excelências senadoras e senadores”, e assim por diante. É bem verdade que a expressão “senhoras e senhores” é muito antiga e existe em todas as línguas – quem não conhece o famoso ladies and gentlemen? –, o que indica que a preocupação em abarcar na comunicação homens e mulheres (ou, antes, mulheres e homens) não é nova.

O problema é que, desde que se passou a disseminar a fake news de que o português é uma língua machista porque faz a concordância no plural pelo gênero masculino (por exemplo, brasileiros inclui homens e mulheres nascidos no Brasil), a distinção todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc., passou a ser sentida como uma necessidade e uma forma de deferência ao chamado “sexo frágil” – isto sim uma denominação machista, já que de frágil as mulheres não têm nada!

Tenho ressaltado muitas vezes que essa ideia de que línguas são machistas decorre da confusão que se tem feito entre quatro coisas diferentes: sexo biológico, gênero psicossocial, gênero semântico e gênero gramatical. Mas não custa esclarecer essa diferença mais uma vez.

Sexo biológico é uma característica que todos os seres vivos sexuados têm e é algo que herdamos “de fábrica”, ou seja, praticamente todo animal pluricelular, incluindo nós seres humanos, nasce macho ou fêmea – a única exceção são alguns animais hermafroditas, que são macho e fêmea ao mesmo tempo.

No entanto, o ser humano, por sua complexidade psíquica, desenvolveu paralelamente ao seu sexo biológico a característica de gênero psicossocial, a qual, por sinal, foi ignorada pela ciência durante muito tempo. Ocorre que muitos indivíduos têm uma orientação sexual distinta da majoritária heterossexualidade: são os homossexuais, os bissexuais e os assexuais (não confundir com assexuados, que são animais não dotados da distinção macho/fêmea). Além disso, independentemente de sua orientação sexual, muitas pessoas se reconhecem como transexuais ou transgênero (não recomendo a forma “transgêneras” e já comentei esse ponto em outra postagem), não binárias, gender-fluid e muitas outras denominações, o que tem feito a sigla LGBTQIA+ crescer cada vez mais (a despeito de o sinal + já abrir espaço para novos acréscimos).

Quanto ao gênero semântico, trata-se de como as línguas interpretam – ou interpretaram até hoje – a realidade dos sexos biológicos e dos gêneros psicossociais. Os gêneros semânticos são cinco:

  • masculino (seres animados do sexo masculino): pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);
  • feminino (seres animados do sexo feminino): mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);
  • neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos): caderno, felicidade (A ração dos cachorros acabou);
  • sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado): criança, testemunha, vítima (O animal que vi na rua estava ferido);
  • complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): ser humano, brasileiros, humanidade (O cão é um animal mamífero).

Esses cinco gêneros semânticos se manifestam nas diferentes línguas através dos gêneros gramaticais. Nesse sentido, há desde línguas com quatro gêneros gramaticais, como o sueco (masculino, feminino, neutro e comum) até línguas sem gênero, como o hopi, da América do Norte. O alemão e o inglês têm três gêneros, masculino, feminino e neutro, sendo que em alemão a distribuição dos seres entre esses gêneros é bastante arbitrária (por exemplo, Sonne, “Sol”, é feminino, Mond, “Lua”, é masculino, Mädchen, “menina”, é neutro). Já em inglês, seres com gênero semântico masculino ou feminino têm igualmente gênero gramatical masculino ou feminino (man é masculino e substituível pelo pronome pessoal he, woman é feminino e substituível por she); os demais entes são todos agrupados no gênero neutro. Os gêneros sobrecomum e complexo são frequentemente representados pelo pronome plural invariável they.

Por fim, o português e todas as línguas neolatinas com exceção do romeno têm dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, resultado da convergência entre o masculino e o neutro latinos num único gênero por força da evolução fonética fortuita.

Como resultado, o português subsume nos gêneros masculino e feminino conceitos portadores dos cinco gêneros semânticos e faz a concordância no plural pelo gênero gramatical masculino por uma simples questão de convenção decorrente da evolução histórica do idioma, desprovida de qualquer viés ideológico.

Aliás, justamente por não corresponderem exatamente a nenhum gênero semântico e menos ainda a gênero psicossocial ou sexo biológico, os gêneros gramaticais deveriam chamar-se gênero 1 e gênero 2 ou gênero marcado e gênero não marcado, como sugerem muitos linguistas. Isso acabaria de vez com essa ideia equivocada de que a língua é machista baseada na confusão irrefletida entre gramática, psicologia e biologia. Vou além: a própria denominação gênero dada a uma categoria gramatical deveria ser trocada por outra para não se confundir com a noção de gênero psicossocial. Fica aí a minha sugestão aos colegas linguistas e aos gramáticos.

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Em agosto de 1977, como reação à ditadura militar então vigente, o Prof. Goffredo da Silva Telles Junior leu diante das arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a famosa faculdade do Largo de São Francisco – a hoje histórica Carta aos Brasileiros, um libelo em favor da restauração do estado democrático de direito. Hoje, exatos 45 anos depois, quando nossa democracia volta a ser ameaçada, um novo manifesto é lido no mesmo local, com igual impacto social, desta vez batizado de Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Sinal dos tempos, a nova carta enfatiza a distinção de gênero e gentilmente coloca as mulheres em primeiro lugar. Pelo andar da carruagem, se dentro de mais algum tempo surgir nova ameaça à nossa democracia, terá de ser redigida uma Carta aos Brasileiros, Brasileiras e Brasileires.

Mentiras e inverdades

Boa tarde, Prof. Vejo os políticos se acusarem uns aos outros de estarem dizendo inverdades quando de fato estão é falando mentiras. Afinal qual a diferença entre uma mentira e uma inverdade? Obrigado,
Paulo César Lourenço

Caro Paulo, tanto a mentira quanto a inverdade correspondem a informações falsas, que não procedem, o que poderia nos levar a crer que são palavras sinônimas, mas não é bem assim.

Uma inverdade é apenas uma afirmação que não corresponde à realidade, o que pode ser fruto de equívoco ou ignorância. Já uma mentira tem sempre uma carga de intencionalidade, o desejo deliberado de enganar. Portanto, quem diz uma inverdade pode de fato acreditar no que está dizendo, ao passo que quem mente sempre sabe que está mentindo.

É claro que nem sempre dizemos uma mentira movidos de má-fé: às vezes mentimos até por compaixão, como, por exemplo, ao dizermos que está tudo bem quando não está apenas para não preocupar desnecessariamente nossos entes queridos.

Mas, no caso dos políticos, que se acusam mutuamente, alegar que o adversário está dizendo uma inverdade é apenas um eufemismo para acusá-lo de mentir. É que uma acusação direta requer provas, caso contrário configura calúnia. Mas todos sabemos que os políticos mentem descaradamente, e quem acusa o oponente de mentir com certeza também mente.

E se você também tem uma dúvida, mande-a para o e-mail de contato deste blog que responderei aqui neste espaço.