Todo dia era dia de povo originário

O revisionismo de palavras que se faz hoje em dia com base no linguajar politicamente correto, nas pautas identitárias e na política de inclusão social não raro comete equívocos e estigmatiza termos inocentes, tachando-os de uma conotação preconceituosa que eles, na verdade, não têm.

Atualmente, vários historiadores e professores de História vêm se referindo ao Descobrimento do Brasil (ou achamento, como disse Pero Vaz de Caminha em sua famosa carta) como invasão. Para isso, alegam que por aqui já existiam habitantes — os indígenas ou povos originários, termo que preferem ao mais usual índios — constituídos em nações, as quais foram invadidas pelos portugueses a partir de 1500.

Assim, quero em primeiro lugar analisar a ideologia por trás das palavras achamento, descobrimento e invasão. Quanto a achamento, palavra que não se usa mais há séculos, é o mesmo que descobrimento e pressupõe o ponto de vista do europeu que encontra uma terra nova, desconhecida para ele. Nesse sentido se fala também no descobrimento da Austrália, no descobrimento da Antártida, e assim por diante. É claro que, do ponto de vista dos indígenas brasileiros ou australianos, o que houve foi uma invasão. Mas a questão é: da perspectiva da maioria dos brasileiros atuais, que não são nem indígenas nem portugueses (muitos são, por sinal, mestiços de ambos), a chegada dos europeus às Américas não foi nem um descobrimento nem uma invasão. No entanto, como o Brasil é um país eminentemente ocidental, de cultura predominantemente europeia, apesar das valiosas contribuições culturais de ameríndios, africanos, árabes, judeus e japoneses, tendemos a falar no Descobrimento do Brasil, assumindo assim o ponto de vista europeu — e a meu ver não há nada de errado nisso. Quem prefere o termo invasão tem legítimo direito a escolher tal denominação, mas, a meu ver, esse revisionismo terminológico tem uma forte carga ideológica de movimentos identitários, que infelizmente, na maioria das vezes, pecam pelo extremismo. O ser humano chegou à Lua em 1969; na época falava-se em “conquista da Lua”, e conquista pode ser entendido tanto como uma conquista da ciência (portanto, um avanço científico) quanto uma conquista política, imperialista dos americanos, que tomaram para si um novo território. Deveríamos então falar da “invasão da Lua pelos terráqueos”? Se os selenitas existissem, talvez eles vissem a chegada de Neil Armstrong como uma invasão, assim como os pataxós teriam o direito de ver a chegada de Cabral (parece que não viram assim, pois foram cordiais com os novos visitantes).

Outra pergunta: os vikings que chegaram à América do Norte no século IX e os fenícios que supostamente aqui estiveram ainda na Antiguidade também devem ser tratados como invasores? Há registros de que os primeiros se estabeleceram no Canadá por quase um século e interagiram com os povos locais, inclusive levando objetos da cultura indígena para a Escandinávia. Sobre os fenícios, alguns arqueólogos afirmam ter encontrado vestígios de uma estadia duradoura deles por aqui.

Quanto ao termo indígenas, atualmente recomendado no lugar de índios, cito aqui um trecho da matéria de Gilvana Giombelli que saiu hoje no portal G1:

A data era chamada de “dia do índio”. Porém, a Lei 14.402, de julho de 2022, mudou a nomenclatura [para Dia dos Povos Indígenas]. Defensores das causas indígenas argumentam que a mudança foi de um termo genérico para uma expressão que considera a diversidade dos povos indígenas que vivem no Brasil.
Para Márcio Kókoj Werá Popyguá, líder espiritual da Terra Indígena Mangueirinha, no Paraná, a mudança reflete numa nova visão sobre os indígenas e retira o tom pejorativo da palavra “índio”, atribuída aos povos originários por quem, segundo ele, invadiu terras latino-americanas desde o século XV.

Agora, as minhas considerações. Se índio é um termo genérico, ao passo que indígena contempla a diversidade dos povos que aqui habitavam antes da chegada dos europeus, então o termo negro em relação aos inúmeros povos e etnias africanas subsaarianas também é genérico e deveria ser mudado, não? E o termo branco em relação aos europeus e habitantes do Oriente Médio? Também seria genérico e colocaria no mesmo balaio populações tão diferentes como portugueses, suecos, russos, árabes e persas?

Quanto a índio ser termo pejorativo, tenho sérias dúvidas. Um amigo meu, o Prof. Fernando Pestana, fez uma estatística do número de vezes que a palavra índio é empregada em textos escritos e constatou que a esmagadora maioria a utiliza de forma neutra, como mera denominação dos povos originários da América, e não negativa. Fala-se sobre a raça índia como se fala em raça branca, negra ou amarela: como uma classificação fenotípica e não genotípica desses povos, que corresponde também a uma classificação étnico-cultural. Nesse sentido, índios é simplesmente a designação de pessoas cujo fenótipo, isto é, aparência física, corresponde ao dos povos originários das Américas, assim como brancos corresponde ao fenótipo de europeus e parte dos asiáticos, amarelo corresponde ao dos nativos do Extremo Oriente, e assim por diante.

Estou falando aqui em fenótipo, pois genotipicamente, ou seja, em termos genéticos, não há raças humanas, apenas a espécie humana, o que não impede que reconheçamos diferentes grupos humanos, distintos entre si tanto por sua cultura quanto por sua aparência.

Como sustento no vídeo O que é ser preto, negro, pardo ou afrodescendente no Brasil?, do meu canal do YouTube Planeta Língua, as palavras que melhor designam a etnia dos habitantes pré-colombianos da América são justamente índio e ameríndio, pois indígena é que é genérico, significando apenas “nativo da terra”, do latim indi-, “dentro”, e -gena, “nascido”, portanto “nascido dentro (da terra)”. Como mostro nesse vídeo, os europeus são tão indígenas na Europa como os africanos são indígenas na África (notem que, mais acima, falei em “indígenas brasileiros e australianos”, isto é, os chamados aborígines australianos também são indígenas, assim como os índios brasileiros também são aborígines).

Não me oponho a que se busquem termos mais adequados para expressar certas realidades, e a língua evolui exatamente por causa disso, mas tenho certa reserva a mudanças impostas de cima para baixo, por reivindicação de movimentos políticos, assim como percebo nessas propostas de alteração um certo rancor, uma pitada de vingança contra aqueles que são vistos como “os inimigos”. Só que os inimigos, no caso, já morreram há muitos séculos, e quem acaba pagando a conta são seus descendentes, que nada têm a ver com isso.

Ortografia é lei?

Toda lei estabelece deveres e proibições, bem como sanções a quem a transgride. A ortografia oficial da língua portuguesa é uma lei, votada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo, mas que não prevê punições ao seu descumprimento. Por que obedecer a ela então?

Se um comerciante afixar um cartaz com erros ortográficos na fachada de sua loja (existem muitos casos assim, alguns até hilários), estará ele sujeito a multa? (Só para lembrar: uma lei que previa multas para placas e cartazes com erros de português, inclusive de gramática, entrou em vigor em São Paulo há alguns anos, mas nunca “pegou”, provavelmente por falta de fiscais qualificados.)

Se um escrivão de polícia transcrever com erros de grafia o depoimento de uma testemunha, pode o advogado da outra parte pedir a anulação desse depoimento? Se um jornal, livro ou revista sair com erro ortográfico — o que não é incomum —, pode o leitor exigir o seu dinheiro de volta e mesmo acionar o Procon?

Evidentemente, a resposta a todas essas perguntas é não. Então que lei é essa que não precisa ser cumprida, exceto por medo de uma sanção social (ser tachado de ignorante)? A rigor, a única situação em que um erro ortográfico implica punição juridicamente inquestionável são os concursos públicos. Parece então que a grafia “correta” das palavras é muito mais uma questão de hábito do que de legislação. Tanto que muitas línguas sequer têm uma ortografia oficial, o que há são hábitos de escrita arraigados, que todos seguem apenas para facilitar a comunicação. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, implantado no Brasil em 2009, que tanta celeuma levantou, sobretudo em Portugal, procura unificar por força de lei a grafia do português quando o inglês, idioma bem mais influente e difundido do que o nosso, tem duas grafias tradicionais (a britânica e a norte-americana) e nenhuma oficial. Isso parece coisa da nossa cultura legiferante.

Os direitos sagrados dos trabalhadores

Vocês lembram da presidAntA Dilma Rousseff, a “mulher sapiens”, inventora do dilmês, língua na qual é possível estocar vento, dobrar uma meta sem saber qual é, aquela em que o Sol é inútil porque brilha durante o dia quando tudo está claro?

Pois é, num certo pronunciamento no Dia Internacional da Mulher, abafado na ocasião por um dos muitos panelaços, a mulher que saudou a mandioca comprometeu-se a não tocar nos “direitos sagrados dos trabalhadores”, ao mesmo tempo em que defendeu mudanças nas regras de acesso a benefícios trabalhistas. Trocando em miúdos, Dilma tentou explicar como pretendia tocar naquilo que ela própria considerava intocável.

Sim, intocável! Pois é exatamente este o significado da palavra sagrado. Segundo o dicionário Michaelis, “diz-se de uma coisa em que não se deve mexer ou tocar”. E tanto esse dicionário quanto o Houaiss definem sagrado como algo “que não se deve infringir, inviolável”.

Sagrado é o particípio passado do verbo sagrar, do latim sacrare, derivado de sacer, sacra, sacrum, “que não pode ser tocado, sem ser manchado ou sem manchar” (Dicionário Latino-Português, de Francisco Torrinha). Esse adjetivo remonta à raiz indo-europeia *sak‑, “santificar”, que, além de sacer, deu em latim sancire, “sancionar, santificar”, sanctus, “santo”, sacerdos, “sacerdote, aquele que torna sacro”, sacrificare, “sacrificar, tornar sacro, oferecer aos deuses”, e muitas outras palavras.

Na teogonia indo-europeia, essa raiz sempre caminhou junto com outra, *n̥-tag‑, “não tocado”, que nos legou íntegro, inteiro, intacto. Portanto, o que é sagrado, ou santo, deve permanecer íntegro, inteiro, e por isso não pode ser tocado. Diversas religiões, aliás, consideram o contato do corpo humano — especialmente das mãos — com objetos sagrados uma forma de conspurcação.

Nesse sentido, mexer nos direitos “sagrados” dos trabalhadores é uma contradição lógica e etimológica. Talvez apenas mais uma das tantas contradições daquele tão contraditório governo.

Homofobia, antipatias, idiossincrasias

Tempos atrás, no artigo O estigma das palavras, toquei na questão da ideologia e da lógica (ou falta dela) por trás de certos termos técnicos ou do domínio dos discursos ditos “cultos” (a polêmica entre homossexualismo e homossexualidade seria um exemplo disso). Argumentei que, se levássemos a ferro e fogo o sentido etimológico desses termos, todos eles teriam de ser mudados: a astrologia deveria chamar-se astromancia, a neurociência passaria a ser neurologia, a neurologia neuriatria, a tecnologia logotecnia, e assim por diante.

Pois uma dessas palavras cujo real significado pode causar embaraços e mesmo pendências jurídicas é homofobia. Neste momento em que se adotam leis que punem atitudes homofóbicas, é oportuno entender o que se compreende sob esse rótulo. Aliás, as considerações que faço a seguir valem igualmente para outros comportamentos sociais, alguns deles já criminalizados, também denominados por palavras terminadas em ‑fobia, como xenofobia, gordofobia, transfobia, islamofobia, russofobia, etc.

A palavra homofobia foi cunhada a partir do pseudorradical homo- (na verdade, truncamento de homossexual, pois o verdadeiro radical grego homo quer dizer “igual”), e fobia, que significa “medo, repulsa, aversão”. Portanto, etimologicamente, homofobia seria a aversão aos homossexuais. Ora, repulsa, aversão, amor, ódio, apreço, medo, situam-se na esfera dos sentimentos e paixões humanas, portanto dizem respeito à ética privada de cada um, ao chamado foro íntimo. Logo, salvo melhor juízo, não são nem podem ser objeto de qualquer legislação, muito menos no âmbito criminal.

Não gosto de bife de fígado, de futebol nem de funk (o das favelas brasileiras, bem entendido; o americano eu adoro). Sou passível de punição por causa disso? Todo mundo tem suas preferências, simpatias, antipatias, idiossincrasias. Há quem prefira as louras às morenas (ou vice-versa), há quem goste mais de roupa esportiva do que de terno e gravata. O que a lei tem a dizer sobre isso? Nada. No máximo, pode definir locais em que o uso de roupa casual é proibido ou não recomendado.

Agredir os torcedores do time adversário é crime, odiar o time adversário não. Insultar alguém por sua fé religiosa também é crime, deplorar a religião do outro também não é.

Na verdade, o que os legisladores visam punir, e com justa razão, sob a denominação de conduta homofóbica é a violência, física ou moral, e o cerceamento dos direitos civis dos homossexuais, o que inclui insultos, xingamentos, chacota, agressão, negação de acesso a locais públicos ou a cargos profissionais e outras formas de desrespeito e discriminação. Ou seja, a simples reprovação do estilo de vida ou do comportamento gay, bem como a expressão pública dessa reprovação, não pode constituir crime porque está assegurada pelo princípio constitucional da liberdade de consciência e de expressão do pensamento. Gostar ou não gostar de alguém pelo modo como age, fala, gesticula, se veste ou pelas posições que defende, assim como manifestar essa opinião, é algo legítimo e jamais passível de punição, ao menos num estado democrático de direito — o que tenho dúvidas se o Brasil é de fato.

Alguns poderão dizer que se trata de preconceito. Certamente, mas, a rigor, toda opinião é preconceito, afinal ninguém é dono da verdade, e opiniões são justamente isso: opiniões. Há uma distância enorme entre a opinião e o fato objetivo, concreto, e por vezes nem a ciência é capaz de compreender a realidade para além dos filtros de seus próprios preconceitos, chamados pomposamente de teorias. Portanto, exigir que simples mortais emitam opiniões “verdadeiras”, despojadas de qualquer prejulgamento, é esperar de nós mesmos uma postura sobre-humana, divina talvez.

A questão é que, preconcebida ou não, fundada ou não em argumentos lógicos ou evidências científicas, a visão que temos do outro é algo que lei alguma pode mudar. Em regimes totalitários, pode-se proibir a expressão, mas não o pensamento. Nos regimes democráticos, nem isso. Logo, se entendermos a homofobia etimologicamente como a aversão pura e simples aos gays e seu comportamento, chegaremos à conclusão de que qualquer lei contra ela é inconstitucional. O que se passa é que as condutas e práticas que a legislação pretende coibir vão muito além da simples aversão, e estas sim são passiveis de repressão e punição. Só que, se quisermos ser rigorosos em termos linguísticos, essas atitudes não podem ser classificadas como homofobia. Seria preciso então cunhar outro termo para designar o crime motivado por sentimento homofóbico, que se distingue do sentimento propriamente dito e mesmo de sua expressão verbal  (uma sugestão — mas acho que não pegaria — seria cinaidobia, do grego kínaidos, “homossexual”, e bía, “violência”). Isso porque há sempre o risco de que alguém, por ignorância ou oportunismo, invoque a lei diante de um simples comentário adverso ou olhar atravessado. Em tempos de caça às bruxas, convém cercar-se de todas as garantias, pois, para alguns, até pensar constitui crime.

A vela e a vela

Todos sabem que o português tem diversas palavras homônimas, como manga (fruta) e manga (de camisa), lima (fruta) e lima (ferramenta), como (do verbo comer) e como (conjunção). Palavras homônimas são aquelas que têm a mesma grafia e a mesma pronúncia, mas origens diferentes. Nos casos citados, a manga de camisa veio do latim manica, a parte da roupa que cobre a mão (manus em latim), e a fruta veio do malaiala (língua da Índia) mangâ (e temos ainda manga do verbo mangar, “zombar”); a lima de limar veio do latim lima; já a lima de chupar veio do árabe lîmâ; como de comer provém do latim comedo, ao passo que a conjunção como provém do latim quomodo.

Do mesmo modo, temos a vela de acender e a vela de velejar. Esta última proveio do latim vela, cognato de velum, “véu”, portanto um termo que designa genericamente um tecido, seja o das velas do navio, seja o véu que cobre a cabeça. Já a vela de acender é uma derivação regressiva do verbo velar, do latim vigilare, “ficar acordado, vigiar”, que nos deu também vigília, vigia, vigiar e vigilante. É que antigamente se velavam os defuntos segurando velas durante a noite toda (ainda não havia luz elétrica). As pessoas passavam a noite acordadas ao lado do morto para enterrá-lo no dia seguinte. Por isso mesmo essa vigília se chama velório. E assim as candeias (do latim candela, que nos deu candelabro, candelária e candeeiro) passaram a chamar-se velas.

Uma curiosidade: a razão de velar o morto ao longo da noite para só enterrá-lo na manhã seguinte é a catalepsia, doença que faz a pessoa parecer morta quando, na verdade, continua viva. Como muitos catalépticos foram enterrados vivos, o medo de que isso acontecesse levou a que se aguardassem várias horas antes do sepultamento; se, durante esse tempo, o “morto” não ressuscitasse, então ele poderia ser enterrado sem susto. O problema é que algumas pessoas permanecem em estado cataléptico por mais de 12 horas, logo o risco de enterrarmos um defunto vivo ainda permanece.

A (nada nobre) origem dos sobrenomes

Na semana passada, mostrei que, originalmente, o sobrenome do ex-atleta paraolímpico Oscar Pistorius designava a profissão de padeiro. Esse fato não é incomum: muitos sobrenomes se originam de profissões, apelidos (incluindo referências a características físicas ou morais), nomes geográficos, aumentativos ou diminutivos de prenomes, etc. Mas por que isso é assim?

Primitivamente, as pessoas não tinham sobrenomes, apenas um nome que as diferenciava das demais. É fácil imaginar que, numa comunidade de no máximo uma centena de pessoas, como uma tribo de índios, os nomes não teriam por que se repetir. No entanto, à medida que as próprias tribos cresciam, começou a ser necessário utilizar nomes compostos. Por isso, agora já não bastava nomear uma menina como Lua, era preciso especificar: Lua Branca, Lua Azul, Lua Crescente…

Sabe-se que os chineses usam sobrenomes (antepostos aos nomes) desde a mais remota antiguidade. Já os povos pré-romanos da Europa, com exceção talvez dos etruscos, não os usavam, mas seus nomes eram compostos (por exemplo, o grego Demócrito, “escolhido do povo”, Filipe, “o amante dos cavalos”, e por aí vai). Mesmo assim, chegou um momento em que certos epítetos tiveram de ser acrescidos a esses nomes, sobretudo para diferenciar pessoas célebres, como Dionísio de Trácia e Dionísio de Halicarnasso. Esses epítetos geralmente remetiam ao local de origem do portador do nome.

A partir do século I a.C., os romanos adotaram um sistema de três nomes, ou tria nomina: praenomen (nome próprio), nomen (gentílico) e cognomen.

Na Idade Média, voltou-se ao costume, também usado no Oriente Médio, de portar um nome triplo, formado pelo nome de batismo (por exemplo, João) seguido de um patronímico (Fernandes, isto é, filho de Fernando) e de um toponímico (de Guimarães, nome de uma cidade de Portugal). Esse sistema, com poucas modificações, é usado até hoje na Islândia. Gunnar Eriksson significa “Gunnar, filho de Erik”; seu filho, de nome Olaf, será Olaf Gunnarsson, e assim por diante. As mulheres têm sobrenomes terminados em dóttir (filha) no lugar de son (filho).

Com o tempo, esses epítetos passaram a ser transmitidos hereditariamente. Quem primeiro fez isso foram os nobres, cujos sobrenomes se referiam à denominação das terras que possuíam (Monte-Branco, Villa Verde, Gouveia, etc.). Depois, os plebeus também passaram a herdar nomes de família. Como a origem desses nomes era por vezes uma alcunha, surgiram sobrenomes decorrentes de profissões (João dos Santos, o que fabrica imagens sacras; Antônio Pimentel, o que planta pimentas; Taylor, “alfaiate”, Schuhmacher, “sapateiro”, Boulanger, “padeiro”, Fabbri, “ferreiro”, etc.), cidades (Lisboa, Barcelos, Cintra), diminutivos (Andreotti, “Andrezinho”), aumentativos (Andreoni, “Andrezão”), características físicas (Branco, Longo, Torto, Velho, Calvo) ou morais (Bom, Feliz), além de referências religiosas, como Nascimento, Cruz e Natal, dentre outros. Por sinal, os próprios epítetos dos santos passaram a funcionar como sobrenomes em Portugal: Assis (Francisco de Assis), Batista (João Batista), Paula (Francisco de Paula), das Graças (Maria das Graças). Em Portugal, também se tornaram comuns sobrenomes de animais (Pombo, Coelho, Lobo, Leão, Carneiro) ou plantas (Arruda, Rosa, Pereira, Oliveira, Carvalho). É que seus portadores originais deviam ter alguma característica desses seres vivos — ou então trabalhar com eles. Quando os judeus da Península Ibérica foram obrigados a converter-se ao cristianismo, adotaram sobrenomes que os pudessem identificar como cristãos-novos; muitos deles eram traduções de nomes hebraicos, enquanto outros recorriam aos padrões animal ou vegetal. Os judeus ricos podiam comprar sobrenomes mais distintos (como ouro ou prata, o que explica por que tantos sobrenomes alemães de origem judaica contêm Gold ou Silber), ao passo que os muito pobres tinham de contentar-se às vezes com nomes vexatórios (por exemplo, Schmutzig quer dizer “sujo” em alemão).

Como revelam esses exemplos, a maioria dos sobrenomes que carregamos hoje em dia tem uma origem não muito nobre. Felizmente, boa parte deles teve essa origem obscurecida pelo tempo. Mas a ciência chamada Onomástica pode, por meio de pesquisa histórica e etimológica, desvendar quem eram e o que faziam nossos antepassados.

O que significam no Brasil as palavras “negro” e “pardo”?

Esta semana foi agitada pela polêmica de alguns estudantes barrados pelo sistema de admissão por cotas raciais às universidades brasileiras mesmo tendo-se declarado pardos porque, segundo os critérios da banca examinadora, eles não teriam um fenótipo, isto é, aparência física, típico de descendentes de africanos e por isso não estariam sujeitos ao preconceito racial.

Em primeiro lugar, no meu humilde entendimento, a política afirmativa de cotas raciais nas universidades públicas e também em algumas privadas visa a incluir no espectro universitário uma parcela considerável, se não majoritária, da nossa população que se encontra sub-representada no ambiente acadêmico. Visa sobretudo a incluir pessoas que não teriam condições de frequentar uma faculdade se tivessem de disputar vagas com estudantes mais bem preparados, em geral brancos de classe média a alta, egressos de bons colégios particulares.

No entanto, diferentemente do que ocorre nos EUA, por exemplo, em que vale o critério da ancestralidade (basta ter antepassados negros para ser considerado negro), no Brasil, em que sempre houve muita miscigenação, adotou-se o critério da autodeclaração: se o indivíduo se declara negro, ele é negro. O problema é que começaram a acontecer fraudes, com candidatos brancos autodeclarando-se pardos para entrar na universidade com mais facilidade. Para evitar isso, certas universidades, como a USP, instituíram uma comissão de heteroidentificação que avalia, caso a caso, se o postulante é de fato negro/pardo ou não. Só que esse julgamento é às vezes extremamente subjetivo: um indivíduo de pele clara e cabelos lisos que tenha apenas nariz e boca ligeiramente de formato africano é branco ou pardo? Ele pode até ser considerado pardo em São Paulo e branco na Bahia. Esse imbróglio não raro acaba na barra dos tribunais, como aconteceu esta semana nos casos supracitados.

A alegação das universidades é que os candidatos reclamantes, embora fenotipicamente pardos, não são “lidos” pela sociedade como negros, logo não estariam sujeitos à discriminação racial e por isso não precisariam das cotas para ingressar na universidade.

O problema todo decorre de duas interpretações equivocadas que fazem as bancas de heteroidentificação das universidades: a interpretação do espírito da política de cotas e a interpretação do significado dos termos negro e pardo.

Comecemos pela primeira. Se, como eu disse acima, a intenção original do sistema de admissão por cotas raciais é incluir negros nas universidades a partir da constatação de que, por serem em sua maioria pobres e, por conseguinte, sem acesso a educação de qualidade, eles têm pouca chance de entrar pelo critério do mérito acadêmico, o que deveria nortear a seleção por cotas é o critério socioeconômico e não simplesmente o racial. O mais justo (supondo-se que haja alguma justiça em facilitar a entrada no curso superior de estudantes academicamente menos preparados apenas porque são negros ou estudaram em escola pública) seria contemplar alunos de baixa renda, não importa de que cor ou raça sejam, porque, além de não terem condições financeiras de cursar uma faculdade privada, os negros seriam automaticamente incluídos, visto que a maior parte dos pobres é negra, e vice-versa.

A meu ver, a razão de ser da política de cotas é fazer justiça social, dando acesso ao ensino superior àqueles que não o teriam por outros meios, e não privilegiar somente aqueles que estão sujeitos ao racismo, até porque o vestibular tradicional não tem nada de racista: ele avalia a capacidade intelectual do candidato e não a cor da sua pele, que os avaliadores por sinal desconhecem. Assim, o que deveria importar numa avaliação pela banca de heteroidentificação é se o indivíduo pertence ou não a uma classe social que dispõe de menos recursos para estudar, mesmo porque dar a negros diploma de nível superior, ainda mais pelo sistema discriminatório das cotas, não vai reduzir o racismo a que eles estarão sujeitos no mercado de trabalho e na vida em geral — talvez até o acentue.

O segundo ponto é a interpretação confusa que se faz no Brasil dos termos negro e pardo, inclusive pelo IBGE, que deveria definir com mais clareza essas categorias ao recensear a população, proporcionando assim um retrato mais apurado da realidade étnica do nosso país.

Historicamente — embora a noção de raça venha sendo questionada tanto por estudos genéticos quanto sociológicos e antropológicos —, consideram-se como raças humanas a branca, a preta, a amarela ou oriental e a índia, outrora também chamada de “raça vermelha”. Os demais tipos seriam o resultado do cruzamento dessas raças.

Pois, segundo o IBGE, negros são a soma dos pretos e dos pardos. Pretos são os afrodescendentes puros, sem mistura ou miscigenação com outras raças. Pardos são os mestiços em geral, e aqui começa o problema. No Brasil, temos mulatos, isto é, mestiços de branco e preto, caboclos ou mamelucos (mestiços de branco e índio), cafuzos (preto com índio) e ainda os mestiços de branco e amarelo, de preto e amarelo, de índio e amarelo, além, é claro, dos mestiços de todos os anteriores. Para o IBGE, são todos pardos e, portanto, negros. Decorre dessa definição que Lula e Flávio Dino são respectivamente o primeiro presidente e o primeiro ministro do STF negros do Brasil, já que este último é visivelmente caboclo, e o primeiro, nordestino do sertão, traz em si a mistura de todos os povos que habitaram o Nordeste nos últimos 500 anos, mesmo que sua pele seja branca. Isso faz algum sentido?

Além disso, as palavras preto e negro são muitas vezes empregadas pela população em geral e até pela imprensa como sinônimas. Desse modo, tanto o preto retinto, sem mistura (coisa relativamente rara de se encontrar no Brasil) quanto o mulato escuro e o cafuzo são chamados de negros. Já o mulato claro, assim como o caboclo, em geral passam por brancos, especialmente porque a população legitimamente branca, cem por cento descendente de europeus, de árabes ou de judeus, é consideravelmente pequena no Brasil.

Quem está mais exposto ao racismo são evidentemente os pretos, os mulatos de pele escura e os cafuzos, em geral também escuros, especialmente os mais pobres. Somente estes deveriam ser chamados de negros. Ao mesmo tempo, deveríamos abolir a expressão pardo, que nada significa objetivamente, até porque não há 50 tons de marrom em que possamos classificar os seres humanos. Sem falar no constrangimento em si que é ter sua aparência física avaliada por uma comissão julgadora para ter direito a cursar uma universidade.

O crime do padeiro

Anos atrás, o mundo ficou chocado com a história do campeão paraolímpico (ou paralímpico, se preferirem) Oscar Pistorius, acusado pelo assassinato da própria esposa, a modelo Reeva Steenkamp. Dentre as perguntas que esse caso suscitou, havia uma de natureza linguística: se Pistorius é sul-africano, assim como Reeva, por que o seu sobrenome é uma palavra latina que significa “padeiro”?

Para responder, temos de retroceder até a Renascença, época em que a Europa foi fortemente influenciada pela redescoberta da cultura greco-romana. Naquele período, era comum latinizar sobrenomes, especialmente o de pessoas célebres, pois, como grande parte dos livros ainda era escrita em latim, procurava-se harmonizar os nomes próprios com as demais palavras do idioma. Assim, Paris se grafava “Parisii”, Florença “Florentia”, etc. Pela mesma razão, Martin Luther se tornou Martinus Lutherus (que deu Martinho Lutero em português), Mikolaj Kopernik virou Nicolaus Copernicus (Copérnico), Thomas More converteu-se em Thomas Morus, Komensky em Comenius, e assim por diante. Da mesma forma, sobrenomes mais comuns, como os italianos D’Amico, Di Lorenzo e Sanzi, passaram respectivamente a De Amicis, De Laurentiis e De Sanctis.

Já na Alemanha e países nórdicos, o costume era não só latinizar, mas também verter para o latim sobrenomes germânicos. Foi assim que Bauer se transformou em Agricola, Kauffmann e Kremer em Mercator (nome de um famoso cartógrafo flamengo, criador da projeção que leva seu nome), Fischer em Piscator, Schmidt em Faber (é daí que vem o nome dos lápis Johann Faber), Richter em Praetorius e Becker em… Pistorius. Ou seja, os antepassados holandeses ou alemães do atleta suspeito de homicídio provavelmente tinham como nome de família o designativo da profissão do patriarca da linhagem, um padeiro.

Mais raramente, nomes vulgares também eram vertidos para o grego. Por exemplo, o reformador religioso alemão Philipp Schwarzerdt, cujo sobrenome quer dizer “terra preta”, passou à história como Melanchthon, que tem o mesmo significado em grego.

O mais famoso caso de sobrenome português latinizado (mas não nos países de língua portuguesa) é o do navegador Fernão de Magalhães, no Renascimento conhecido como Ferdinandus Magellanus e atualmente chamado na língua inglesa de Ferdinand Magellan. Por sinal, Magellan é o nome de uma sonda espacial americana, homenagem da Nasa ao primeiro homem a circunavegar a Terra.

O dengo e a dengue

Ainda nem bem terminou a pandemia de covid-19, e o Brasil já vê explodirem os casos de dengue, mal que nos assola quase todos os anos dada a dificuldade no combate ao seu transmissor, o mosquito Aedes aegyptii, em parte por descaso de parcela da população, que deixa água acumulada em vasos, latas, pneus, piscinas não tratadas e outros repositórios de água parada que servem de criadouro ao inseto.

Mas de onde veio a palavra que nomeia essa doença? Há uma controvérsia sobre isso. Alguns dicionários trazem dois verbetes distintos com a denominação dengue, o que configuraria um caso de homonímia. Temos então dengue1, proveniente do quimbundo ndenge, cuja forma paralela é dengo, que significa “birra, melindre, faceirice, requebro”. É aquele charminho que as crianças — e também certos adultos, especialmente mulheres — fazem, donde chamá-los de dengosos. E temos também dengue2, de origem castelhana, referente à doença contagiosa propriamente dita.

Só que o dicionário etimológico Corominas da língua espanhola só registra uma entrada para dengue e a ela atribui tanto o significado de “melindre” quanto o de “doença epidêmica”. Segundo essa obra, por sinal um dos melhores dicionários etimológicos que existem, tal palavra seria de origem expressiva na primeira acepção e relacionada a outras, como dingolondango, “mimo”, tenguedengue, “melindre, afetação”, e tenguerengue, “a ponto de cair”. Portanto, justamente aquela acepção que em português se atribui ao quimbundo, língua africana falada em Angola, parece ser tão castelhana quanto a segunda, a de doença.

No entanto, como a palavra data em espanhol de 1732, época em que os colonizadores ibéricos já traficavam escravos da África, não é impossível que a língua espanhola tenha tomado o vocábulo do quimbundo. Quanto aos supostos cognatos dingolondango, tenguedengue e tenguerengue, tudo pode não passar de mera coincidência. Esses impasses deixam louco qualquer etimólogo.

Pelo menos, no Brasil fazemos a distinção entre o dengo, isto é, a qualidade de quem é dengoso, e a dengue, enfermidade que mata pessoas todo ano, de modo que, qualquer que seja a origem da palavra — ou das palavras, caso sejam de fato homônimas —, jamais associamos os sintomas da infecção com uma possível frescura do doente.

A origem da palavra “Carnaval”

Já que estamos em pleno Carnaval, é sobre ele que vamos falar hoje.

A etimologia da palavra Carnaval é uma das mais controversas que existem. Assim como a origem dessa festividade remonta à Pré-História e a ritos pagãos da fertilidade, em que se comemorava o início do ano agrícola e pedia-se aos deuses uma boa safra, a origem da palavra também se perde na escuridão do passado. Alguns autores, como Körting (Lateinisches-Romanisches Wörterbuch, “Dicionário Latino-Românico”), sustentam que teria vindo do latim carrus navalis, barco ornamentado que entre os romanos abria desfiles alegóricos como os das Saturnalia e das Bacchanalia, festas em celebração da chegada da primavera e do vinho.

Outros, porém, como Antenor Nascentes, na esteira de vários estudiosos, apontam a origem em carnem levare, “suspender a carne”, isto é, suprimir o consumo desse alimento durante a Quaresma, portanto já no período cristão do Império Romano. Wilhelm Meyer-Lübke, no seu Romanisches Etymologisches Wörterbuch (Dicionário Etimológico Românico), dá essa origem para o francês e o provençal. Policarpo Petrocchi apresenta o baixo latim carnelevamen, depois modificado para carnelevare, como étimo do antigo pisano carnelevare, do napolitano carnolevare, do calabrês carnalevare, do siciliano carnilivari, do vicentino carlavare e do veneziano carlevar. A forma primitiva carnelevare teria sido depois mudada para carnelevale em milanês (1130) e, por etimologia popular, em carne, vale!, isto é, “adeus, carne!”. Essa etimologia é confirmada por Corominas em seu Breve Diccionario Etimológico de la Lengua Castellana. Já o Duden – Das Herkunftswörterbuch, o principal dicionário etimológico do alemão, apresenta ambas as hipóteses, dando, no entanto, mais crédito à segunda.

Em espanhol, a forma paralela carnal teria sido a responsável pela mudança da vogal, de carneval para carnaval. A ideia básica de suspensão do consumo de carne é reforçada por formas paralelas como o espanhol carnestolendas, o catalão carnestoltes (ambas do latim tollere, “retirar”) e o italiano carnelasciare e carnasciare, assim como o romeno lăsatul de carne, todas do latim laxare, “deixar, abandonar”. O próprio latim já apresentava carneprivium, “privação da carne”, o que dá alguma convicção a essa etimologia. De certo, somente que o antecessor do termo em todas as línguas modernas é o italiano carnevale, especialmente em face da grande fama dos carnavais italianos (o de Veneza, principalmente) durante a Renascença.

Mentiras “linguísticas” reveladas

Hoje reproduzo um artigo magistral do meu amigo, o gramático, linguista e professor Fernando Pestana, que desmascara a falsa ciência que vem sendo feita por certos colegas linguistas em nome de uma pauta ideológica, que desvirtua métodos, falsifica dados, ignora fatos para fazer triunfar dentro das universidades uma agenda política. Eis o artigo.

Há três frases — atribuídas aos escritores Millôr Fernandes, Anaïn Nis e Bertolt Brecht — que me marcaram profundamente:

1. Jamais diga uma mentira que não possa provar. (MF)
2. A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós próprios e que desejamos impor aos outros. (AN)
3. Quem conhece a verdade e a chama de mentira é um criminoso. (BB)

No artigo do linguista Marcos Bagno intitulado “Norma linguística, hibridismo e tradução” (2012), lê-se o seguinte:

Aqueles que, por outro lado, usam a expressão “norma culta” como um conceito, como um termo técnico, agem exatamente ao contrário: primeiro investigam a atividade linguística dos falantes em suas interações sociais, para depois dizer o que é essa atividade, por meio de instrumental teórico consistente. Com base nessa investigação e nessa análise é que os linguistas podem AFIRMAR, por exemplo, que o PRONOME ‘CUJO’ DESAPARECEU DA LÍNGUA FALADA NO BRASIL, inclusive da língua falada pelos BRASILEIROS CLASSIFICADOS DE CULTOS; que o FUTURO SIMPLES DO INDICATIVO (eu cantarei) também SOBREVIVE APENAS na escrita mais formal… (p. 24; grifos meus)

Sim. Foi exatamente isso que você leu. Em outras palavras, frases como “Moramos num país CUJA população é pouco letrada” e “Só INICIAREI a palestra daqui a pouco” só sobreviveriam na escrita mais formal do brasileiro culto, e não em sua fala. Será?

[Mas o que é um brasileiro culto? De acordo com a opinião de muitos linguistas brasileiros influentes, os falantes CULTOS são “definidos por dois critérios de base: escolaridade superior completa e antecedentes biográfico-culturais urbanos” (Bagno, 2012:24). Basta preencher esses dois critérios e, num passe de mágica, você se torna uma pessoa culta.]

Segundo esse linguista, sem apresentar nenhuma fonte comprobatória, as pesquisas científicas do português brasileiro falado comprovam que o pronome relativo “cujo” DESAPARECEU (puf!) na fala dos brasileiros (inclusive cultos); além disso, de acordo com Bagno, os brasileiros cultos NEM SEQUER usam na sua fala as formas verbais simples de futuro do presente do indicativo.

Note que o estudioso generaliza, pondo no mesmo balaio todos os cientistas, como se a sua palavra fosse a batida do martelo em nome da ciência, a respeito desse pleno sumiço do pronome “cujo” e do “futuro simples” da fala dos brasileiros: “Com base nessa investigação e nessa análise é que OS LINGUISTAS podem afirmar…”. Olha o maroto artigo definido aí.

Ora, é verdade que todos os linguistas pensam assim? Espero que se manifestem os linguistas que me leem.

Será que os brasileiros cultos realmente não usam mais o “cujo” e as formas verbais no futuro do presente simples em sua fala? Aguardo os comentários de vocês, leitores brasileiros.

Será que esses dois fatos linguísticos estão mortos e enterrados na fala do brasileiro, conforme ensinado por Bagno e outros que com ele concordam?

Ainda que se defenda a ideia de que o pronome relativo “cujo” não faz parte da gramática internalizada do falante contemporâneo (em geral), faz parte da gramática adjacente. Afinal, nem todas as formas linguísticas são internalizadas, e sim adquiridas no ambiente escolar e/ou a partir do letramento eficiente — e que bom! É desse modo que nos valemos de novas formas da língua, como certas conjugações verbais, certos empregos e colocações pronominais, certas regências, certas concordâncias, etc. para podermos transmitir, de modo mais pleno e diversificado possível, os nossos pensamentos. Logo, tais formas adjacentemente naturais existem, do contrário não seriam produtos humanos de ordem linguístico-cultural.

Diremos, então, que essas formas adquiridas e produzidas por meio do contato com a norma culta INEXISTEM na fala do brasileiro? Não faz o menor sentido.

O fato de umas serem, na fala de brasileiros cultos, mais (ou menos) frequentemente usadas do que outras não as torna necessariamente arcaísmos ou fósseis linguísticos, como obviamente é o caso destes sepultados anacronismos (na fala): a apossínclise, o haver existencial antecedido de sujeito, muitas formas da 2ª pessoa do plural, certas locuções verbais, certas regências, certos gêneros de substantivos, certas formas verbais abundantes, certas contrações pronominais, etc.

Importante: nossa religião, como cientistas da linguagem, deve ser a busca pela verdade para que ela nos liberte das mentiras. Para isso, é preciso HONESTIDADE INTELECTUAL. Não diga amém a tudo que você lê no ambiente acadêmico. Faça o que deve ser feito: conteste, questione, busque os fatos e o rigor do método, sempre!

Foi o que fiz. Convidei 10 alunos meus (professores de Português) para analisarmos a linguagem falada pelos brasileiros — sobretudo os considerados “cultos” — durante todo o mês de janeiro de 2024: foram 31 dias ouvindo brasileiros falando, a fim de rastrear esses únicos dois fatos linguísticos ditos inexistentes (!) da norma brasileira falada.

Pois bem… Chegou a hora. Eis a metodologia usada e os resultados:

1. Abrimos o YouTube.

2. Assistimos aos vídeos de canais, programas, podcasts, debates e afins cujos convidados são, segundo os critérios atuais dentro da Linguística brasileira, cidadãos brasileiros enquadrados como cultos — jornalistas, políticos, comentaristas políticos, professores, juristas, teólogos, linguistas, filósofos, historiadores, empresários…

3. Procedemos à pesquisa durante todos os dias do mês de janeiro. Os vídeos foram quase todos desses últimos anos, sobretudo de 2023. Tomamos o cuidado de não repetir os vídeos analisados; no entanto, caso tenha havido alguma repetição, não foi intencional.

4. Observamos, com calma e atenção, a fala espontânea dessas pessoas, nas situações mais formais de comunicação, em geral. Importante: só buscamos avaliar o discurso falado delas; portanto, citações de terceiros e leituras de texto escrito não foram computadas em nossa pesquisa — caso tenha havido algum equívoco pontual nesse sentido, não foi intencional.

5. Foram anotadas todas as ocorrências das duas estruturas gramaticais ditas inexistentes no português brasileiro (o pronome relativo “cujo” e as formas verbais simples do “futuro do presente do indicativo”), neste esquema:

a) o link do vídeo;
b) o nome do canal;
c) a data;
d) o título do vídeo;
e) o nome completo de cada indivíduo e sua profissão (alvo das anotações); e
f) a minutagem exata de cada ocorrência das duas estruturas gramaticais a ser analisadas.

6. Como resultado, chegamos (I) ao seguinte número de horas analisadas, (II) ao grupo de falantes diferentes (considerados “cultos”, segundo os critérios atuais) e (III) à quantidade de ocorrências do futuro do presente simples e do pronome relativo “cujo”:

I. 134 horas, 29 minutos e 6 segundos;
II. 103 falantes diferentes;
III. Futuro do presente simples: 251 ocorrências; pronome relativo “cujo”: 16 ocorrências.

[Importante: aos 45 do segundo tempo, no apagar das luzes, um amigo me indicou um site que rastreia o uso de palavras e expressões faladas em vídeos no Youtube. Como encontramos poucas ocorrências do pronome relativo “cujo” nessa peneira tradicional durante 31 dias de investigação, o que já seria suficiente para derrubar a falsa narrativa de que esse pronome não existe mais na fala do brasileiro, como advoga Marcos Bagno no já citado artigo, decidi sozinho ir atrás dos dados de fala nesse site. Resultado: o “cujo” (e suas flexões) foi empregado CENTENAS de vezes. Eis o site, já com o link engatilhado, para você conferir com os seus próprios olhos e ouvidos: https://pt.youglish.com/pronounce/Cujo/portuguese]

Resumo da ópera: será que “os linguistas podem afirmar, por exemplo, que o pronome ‘cujo’ desapareceu da língua falada no Brasil, inclusive da língua falada pelos brasileiros classificados de cultos; que o futuro simples do indicativo (eu cantarei) também sobrevive apenas na escrita mais formal”, como assevera o linguista Marcos Bagno?

Os dados mostram que a afirmação dele está comprovadamente EQUIVOCADA e, por isso, em respeito à ciência da linguagem, deve ser ignorada — afinal, tanto o “cujo” quanto o “futuro do presente simples” existem inequivocamente na norma linguística brasileira.

………………….

Agora faça um exercício imaginativo intelectualmente honesto: já pensou se essa mesma pesquisa (realizada tão somente em 31 dias) fosse realizada durante longos 365 dias? Pois é… Os dados seriam MUITO maiores do que os demonstrados em nossa investigação, o que corroboraria ainda mais a existência das duas formas linguísticas no português brasileiro falado.

Encerro com um antigo provérbio judaico: “A punição do mentiroso é não se crer nele”.

Por isso, convido você a duvidar dos fatos acima. Faça você mesmo a sua pesquisa. Comprove se os dados da nossa investigação são verdadeiros ou falsos. Em ciência, não se pode ter compromisso com a fraude. Desse modo, busque a verdade e o rigor do método, porque fatos não se importam com opiniões.

Só assim é que se deve fazer Ciência.

Fim de férias!

Pois é, as férias estão acabando, é hora de juntar o material escolar e voltar às aulas. Mas por que as férias se chamam férias? E aula, de onde veio?

Você já deve ter percebido a relação entre féria (remuneração que o trabalhador recebe por dia de serviço), férias (período de descanso, em geral de um mês) e feriado (dia de descanso). Aliás, já falei sobre isso em outra postagem. Todas essas palavras provêm do latim feriae, que quer dizer “repouso em louvor dos deuses”. Ou seja, um feriado é um dia sagrado, pois, antigamente, a única razão para cessar o trabalho era de natureza religiosa (os direitos trabalhistas surgiram bem depois). Isso fica claro no inglês holiday, formado de holy, “sagrado, santo”, e day, “dia”. As férias são então uma longa sequência de feriados. Daí por que o inglês diz holidays, no plural.

A palavra latina para o feriado provém da raiz indo-europeia *dhes, que quer dizer “sagrado”. Dessa raiz saiu, por exemplo, o grego theós, “deus”, de teologia e ateu. Da mesma origem são as palavras festa (pois só se faziam festas em honra às divindades), infesto (e seus derivados infestar e infestação) e nefasto. Também dessa raiz vem a palavra latina fanum, “templo”, que deu, profano, profanar e fanático.

Além disso, faziam-se feiras em frente aos templos (feira também provém de feriae), e o lucro que os comerciantes obtinham ao final do dia passou a chamar-se féria (fazer a feira = ganhar o dia). A relação entre feira e religião aparece nas quermesses promovidas pelas igrejas. É que feira é Messe (literalmente, “missa”) em alemão, de onde veio quermesse.

Quanto à aula, sua origem é o latim aula, “pátio, corte, palácio”. Daí porque o poeta áulico assim se chama: era o poeta da corte, artista encarregado de entreter os nobres com canções acompanhadas pela lira (por isso a poesia lírica tem esse nome). De pátio, aula passou a significar salão, o local das festas da corte, e deste, por metonímia, o palácio e a própria corte. Mas a aula era também o salão ou auditório em que os mestres ensinavam. Com isso, aula passou em latim a significar também “sala de aula”. Por outro lado, a aula propriamente dita, isto é, a exposição oral que um professor faz aos alunos, chamava-se classis. Assim, o que chamamos em português de aula se diz classe em francês e italiano, class em inglês, Klasse em alemão, clase em espanhol… (esquisitices da língua portuguesa). Ao mesmo tempo, aula quer dizer sala de aula em espanhol e italiano. Enquanto isso, classe em português passou a significar “sala de aula”. Em resumo, o que os espanhóis e italianos chamam de classe nós chamamos de aula, e o que eles chamam de aula nós chamamos de classe. Que confusão!

Bom, é isso aí. Para quem estuda, bom final de férias e uma feliz volta às aulas!

Qual o certo: castanha-do-pará ou castanha-do-brasil?

Nestas festas de fim de ano, estarão mais uma vez presentes nas mesas dos brasileiros as frutas secas, dentre as quais a brasileiríssima castanha-do-pará. Nesse período, diversos chefs têm veiculado na TV e internet receitas com essa semente. Só que, em grande parte delas, designada como castanha-do-brasil.

É um fato ainda a ser investigado com rigor científico, mas desde já fico com a impressão de que esta segunda denominação vem aumentando de frequência nos últimos anos. Alguns indícios desse fato:

  • a edição de 1998 do dicionário Michaelis traz o verbete “castanha-do-pará”, mas não “castanha-do-brasil”; já a edição de 2010 do Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz ambos os verbetes, embora “castanha-do-brasil” seja uma remissão a “castanha-do-pará”;
  • o corretor ortográfico do Microsoft Word®, versão 2003, reconhece “castanha-do-pará”, mas não “castanha-do-brasil”;
  • uma busca no Google por esses dois vocábulos retorna mais de 468 mil ocorrências para “castanha-do-brasil” contra cerca de 446 mil para “castanha-do-pará”.

A questão é que, embora dicionarizada, a forma “castanha-do-brasil” não é a mais corrente entre os brasileiros, como se pode comprovar por meio dos anúncios publicitários dos supermercados ou mesmo da fala das ruas. De onde vem então essa onda que tende a substituir “Pará” por “Brasil”?

Uma hipótese plausível é a influência inglesa. Afinal, em inglês nossa castanha é chamada de Brazil nut — o que faz certo sentido: falantes do inglês mal sabem onde fica o Brasil, que dirá o Pará?

Mas seria essa nossa tendência à troca de denominação resultado apenas da força do colonialismo linguístico anglofalante? Como se chama essa castanha em Portugal? (Minhas pesquisas a respeito resultaram inconclusivas.)

Na Região Norte do país, onde é produzida, a castanha também é chamada de tocari e tururi, nomes indígenas nativos. A denominação que faz referência ao Brasil, ao lado da forma equivalente a “noz amazônica”, prevalece em outros idiomas, como o francês e o italiano; o espanhol e o alemão admitem as três referências (Brasil, Pará e Amazônia).

O mais curioso de tudo é que o maior exportador dessa semente não é o Brasil e sim a Bolívia, onde é chamada de almendra, “amêndoa”.

Boas Festas a todos!

A plaga e a praia

Nesse verão dos infernos, que ainda nem começou, todo mundo sonha em estar numa praia, afinal o calor excessivo provocado pelas mudanças climáticas é uma praga, né? Mas o que praga tem a ver com praia, além da semelhança fonética? Na verdade, nada, a não ser uma proximidade etimológica fortuita. É que praga, assim como chaga, veio do latim plāga (com a longo), que quer dizer “golpe, pancada” e, por metonímia, “ferida causada por um golpe”. Já praia, bem como plaga, vem de plaga (com a breve), que significava originalmente uma extensão de terra ou mesmo qualquer superfície estendida, como uma rede de pesca (aliás, esta era uma das acepções de plaga em latim).

Uma plaga é um lugar, que pode ser desde um terreno até um país (quem já não ouviu a expressão “estas plagas” para referir-se ao nosso Brasil?). Mas a linguagem poética destinou esse termo sobretudo aos lugares aprazíveis, tanto que, na língua occitana ou provençal, falada no sul da França, o cognato plaia passou a designar especificamente a extensão de areia junto ao mar, isto é, a praia. Nossa palavra, por sinal, veio diretamente do provençal, assim como o francês plage e o espanhol playa.

Enquanto a praga destrói as plantações e a chaga é uma ferida aberta e dolorosa, a praia é uma plaga deveras agradável, especialmente em dias de calor. E tanto a palavra praga quanto chaga podem ser usadas em linguagem figurada, para denotar um infortúnio, como fiz com a primeira na frase inicial deste artigo. Por sinal, eu poderia ter dito que esse calor anormal é uma chaga, infelizmente produzida por nós mesmos, seres humanos.

Então, já que o estrago está feito e parece não haver vontade política de consertá-lo, o jeito é fazer o que diz o refrão daquela velha canção: “Vamos a la playa, oh oh oh oh oh”.

O que calma tem a ver com calor?

Nesse calorão que anda fazendo, é preciso beber muita água e manter a calma. Mas o que a calma tem a ver com o calor? Ao contrário do que possa parecer, tem muito a ver.

Tudo começa com o grego kaûma, “calor”, parente de palavras que deram em português cáustico, cautério e cauterizar, portanto termos que remetem à ideia de “fogo, queimar”. Kaûma passou ao italiano como calma, em que o u foi trocado pelo l por analogia com as palavras caldo, “quente”, e calore, “calor” — ocorreu aí a famosa pseudoetimologia, do mesmo modo como o nosso redemoindo virou rodamoinho por se acreditar que tenha algo a ver com rodar (afinal os redemoinhos são ventos que rodam).

Pois bem, o italiano calma significava originalmente o mesmo que o grego kaûma: calor. Mas, por uma metonímia do tipo “efeito pela causa”, passou a designar a pasmaceira provocada pelo calor, e daí quietude, falta de movimento, de agitação. Essa calma era especialmente a ausência de ventos no mar, a calmaria que impedia os navios de navegar ou os obrigava a utilizar remos. Daí para o sentido de tranquilidade enquanto ausência de tensão nervosa foi um pulinho. E daí também surgiram o adjetivo calmo e o verbo acalmar. Posteriormente apareceu o medicamento contra ansiedade chamado calmante.

Pois é, nestas noites quentes, abrasadoras, cáusticas, tem gente até tomando calmante para conseguir dormir.

Féria, feira, férias e feriado: o que essas palavras têm a ver?

Em novembro temos dois feriados próximos, a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra, sendo que, este ano, o segundo será um feriadão prolongado, e as pessoas já se preparam para viajar e curtir um pouco a vida fora das grandes cidades, em seus refúgios na praia ou no campo. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado — e consequentemente da palavra — era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”. E, por sinal, holiday é a contração de holy day, “dia santo”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

E a féria era originalmente o dinheiro arrecadado pelos comerciantes em um dia de feira. Daí que féria passou a significar o ganho diário de um profissional, a quantia ganha por ele durante uma diária de trabalho.

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs- (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com prudência nas estradas e moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto. E até a volta!

Uma correção e um brinde

Duas semanas atrás, apresentei aqui uma etimologia que depois constatei estar incorreta; por isso, hoje faço a retificação. Trata-se da expressão “não ter eira nem beira”, isto é, ser muito pobre. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que eira, do latim area, que também deu o português área, era uma espécie de roçado que os mais ricos tinham em suas casas e os pobres não. E beira era o beiral que supostamente cobria a eira. Supostamente porque é pouco crível que um pequeno beiral pudesse cobrir uma eira. O mais provável é que a palavra beira tenha entrado na expressão apenas para rimar com eira. Em resumo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente morava em péssimas condições.

A versão que apresentei no artigo anterior é bastante corrente entre os guias turísticos de cidades históricas brasileiras ao referirem-se às casas coloniais, mas infelizmente não corresponde à realidade. E o problema é que falsas etimologias às vezes enganam até os especialistas.

Mas vamos ao brinde: saber alguma coisa de cor é saber de memória, certo? Mas de onde vem a palavra cor, que só ocorre na expressão “de cor”? Em português medieval, cor, com o aberto, significava “coração”, do latim cor, cordis, donde o nosso cordial. Posteriormente, essa palavra foi suplantada pelo derivado coração, cujo sufixo ‑ção ainda não está bem explicado: alguns etimólogos o atribuem ao latim ‑tionem, sufixo que indica ação; outros veem aí um aumentativo de cor.

Mas por que saber algo de memória teria a ver com o coração se é no cérebro que armazenamos nossas memórias? É que os antigos não sabiam disso (não havia neurociência na época) e acreditavam que a sede dos pensamentos e sentimentos era o coração, afinal é ele que bate mais forte quando estamos emocionados.

Da expressão “saber de cor” saiu a mais extensa “saber de cor e salteado”, isto é, pulando partes, sem seguir a ordem em que as informações foram memorizadas.

A potência e o ato

Antes que algum engraçadinho faça piada, já aviso que o título deste artigo não tem nada a ver com sexo. O que quero tratar aqui são as palavras gregas érgon e enérgeia, utilizadas por Aristóteles para resolver uma questão sobre a perenidade ou mutabilidade do Ser, colocada por outro filósofo grego, Parmênides, e que admitem várias traduções em português moderno dependendo da área do conhecimento em que se esteja. Potência e ato produzem, por exemplo, os derivados potencial e atual (no sentido de “efetivo”, não no de “contemporâneo”).

Em áreas como a administração de empresas e a engenharia, é comum distinguir entre a produtividade e o produto. Aliás, aí costuma aparecer um terceiro termo, intermediário entre eles, a produção. Logo, produtividade é a quantificação da capacidade de realizar a produção; esta é o processo de geração de produtos, sejam eles materiais (bens) ou imateriais (serviços); e o produto é o bem em si, objeto de valor econômico.

Na física, distinguem-se os conceitos de energia e trabalho. Realizar um trabalho é aplicar uma força sobre um corpo de modo a provocar seu movimento. Para realizar esse trabalho, é preciso que haja energia: um motor elétrico só se movimenta e executa um trabalho (como mover um portão automático) se houver energia elétrica passando em seu interior.

Como já deve ter dado para perceber, enérgeia deriva de érgon por parassíntese (parassíntese é o resultado da prefixação e sufixação simultâneas), mediante o prefixo en‑ e o sufixo ‑eia. E érgon, “trabalho”, que aparece em termos do português como ergonomia e teste ergométrico, vem da raiz indo-europeia *werg-, que também produziu o inglês work, igualmente “trabalho”.

A ideia central de Aristóteles ao introduzir esses termos em sua filosofia era distinguir entre algo real, palpável, que ocorreu ou está ocorrendo, e algo apenas possível ou provável, que pode ocorrer ou não. Para isso, ele de certa forma retoma os conceitos platônicos de mundo real e mundo ideal: o real é o ideal realizado.

O já citado Parmênides argumentava que, se o ser é e o não ser não é (logo o Nada não existe), a mudança seria uma ilusão, já que implicava a transformação do ser em não ser e vice-versa — para que algo mude, é preciso que algo que não era passe a ser.

Aristóteles responde que a árvore já existe potencialmente na semente que será plantada, logo não há surgimento nem desaparecimento, apenas transformação, o que reforça o pensamento de outro filósofo, Heráclito, segundo o qual pánta rheí, “tudo flui” em grego, isto é, tudo muda o tempo todo, de modo a ser impossível entrar duas vezes no mesmo rio: a cada vez, tanto nós quanto o rio já mudamos.

Em suma, potência remete ao poder (ou não) ocorrer, e ato, ao efetivo ocorrer. A potência dá origem à noção filosófica e também linguística da modalidade e, por conseguinte, dos verbos modais (querer, dever, saber, poder). Por sinal, para quem tiver interesse, em meu mais recente livro, O universo da linguagem, há um capítulo falando sobre a questão da modalidade.

Uma curiosidade: em inglês, actual não significa “atual, contemporâneo” e sim “efetivo”. Essa língua preservou o sentido original da palavra latina actualis, “relativo ao ato”.

Pensando bem, este artigo até poderia ser também sobre sexo. Afinal, a potência sexual significa a capacidade de realizar o ato sexual, e o ato propriamente dito é o sexo efetivamente realizado.

Mais algumas palavras que se usam numa única expressão

Duas semanas atrás, publiquei uma lista de palavras da língua portuguesa que só ocorrem numa única expressão, isto é, estão fossilizadas numa fórmula pronta e jamais ocorrem fora dessa fórmula. Só que alguns leitores reclamaram da falta de certas expressões; por isso, estou elencando mais algumas. São elas “a esmo”, “às avessas”, “sem eira nem beira”, “ao deus-dará”, “de chofre”, “de enfiada” e “ao bel-prazer”.

“A esmo”, que significa “ao acaso” e é expressão equivalente à anteriormente citada “à toa”, contém o termo esmo, “cálculo aproximado, estimativa grosseira”, derivado de esmar, do latim aestimare, “estimar”. E aestimare contém o elemento aes, que quer dizer “bronze, metal precioso” e, consequentemente, “dinheiro”. Logo, estimar era primeiramente avaliar o preço de uma mercadoria.

“Às avessas” contém a palavra avessas, a qual tem a ver com avesso, do latim adversus, que também nos deu por via culta adverso. A ideia por trás dessa expressão é bem transparente: “às avessas” significa “de forma contrária ao usual ou ao que recomenda o bom senso”.

“Não ter eira nem beira”, como se sabe, é o mesmo que “não ter um tostão furado” ou “não ter onde cair morto”. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que, até o século XIX, eira e beira eram os nomes do térreo e do primeiro andar dos sobrados. Os ricos moravam em casas de dois andares; os pobres, em casas térreas. Logo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente não tinha onde morar, era morador de rua ou indigente.

“Viver ao deus-dará” é viver sem recursos, sujeito às vicissitudes da sorte, abandonado ao próprio destino. É que antigamente, diante de tantas adversidades, os desvalidos, geralmente muito religiosos, costumavam dizer num tom misto de conformismo e esperança que na hora do aperto Deus lhes proveria. Perguntados como iriam se virar, respondiam: “Deus dará”.

“De chofre” e “de enfiada” são expressões um tanto antiquadas, mas cuja menção vale a pena. Chofre, palavra onomatopaica, quer dizer “choque repentino” e também “tiro ao pombo”, prática abjeta que alguns idiotas chamam de esporte, além de “tacada de bilhar”. Portanto, “de chofre” significa “repentinamente”.

Enfiada é uma fileira de coisas, especialmente objetos atravessados por uma mesma linha, como as contas de um colar. Logo, “de enfiada” remete a uma grande quantidade de coisas entrouxadas de uma só vez, como um amontoado de informações que se dá a alguém sem que haja tempo de o cérebro processá-las. Antigamente se dizia, por exemplo, que fulano havia dito uma enfiada de disparates.

Finalmente, “fazer algo ao seu bel-prazer” contém a palavra composta bel-prazer, junção de bel, forma apocopada de belo, e prazer, cujo significado é “arbítrio, vontade própria”.

Não é curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes?

Qual a diferença entre “judeu”, “hebreu”, “israelense” e “israelita”?

A onda migratória que tem invadido a Europa nos últimos anos, formada em dado momento sobretudo por refugiados sírios e africanos, nos faz lembrar que o Brasil sempre foi um país aberto à imigração. De fato, muito do nosso progresso devemos a povos que para cá vieram e com o seu trabalho ajudaram a construir esta nação, dentre os quais se destacam portugueses, espanhóis, italianos, alemães, suíços, poloneses, japoneses, árabes e judeus.

Estes dois últimos povos não constituem propriamente nacionalidades e sim etnias, pois ninguém tem nacionalidade árabe (quem nasce na Arábia Saudita é de nacionalidade saudita e não árabe), mas o que chamamos de árabes eram, na verdade, imigrantes na sua maioria sírios ou libaneses, cuja língua nativa é o árabe. Portanto, árabes são todos os povos cujo idioma pátrio é o árabe. Árabe é, pois, um termo étnico e linguístico.

Bem mais difícil é definir o que seja judeu. Para complicar, muitos usam as palavras judeu, hebreu, israelita e mesmo israelense como sinônimos, o que dá margem a uma grande confusão — e a muitos preconceitos também, diga-se de passagem.

Comecemos então por definir o mais simples: israelense é o termo jurídico que define o cidadão nascido no Estado de Israel ou que possua a cidadania desse Estado, qualquer que seja a sua etnia ou religião. Tanto que há árabes muçulmanos nascidos em Israel e, portanto, detentores da cidadania israelense, o que lhes dá direito a utilizar os serviços públicos daquele Estado. Grande parte do conflito entre judeus e palestinos se dá exatamente por causa da disputa de ambos os povos pelo mesmo território.

israelita, hebreu e judeu são nomes que originalmente designavam um povo de língua semítica que habitava a região do Oriente Próximo chamada Judeia. Lá constituíram um reino chamado Israel (não confundir com o atual Estado de Israel), daí serem chamados de israelitas (isto é, filhos de Israel). Mas como os hebreus eram praticantes de uma religião monoteísta por eles mesmos criada e que veio a ser chamada de judaísmo, o termo judeu passou ao mesmo tempo a designar o povo hebreu e sua religião. Enquanto todos os praticantes do judaísmo eram hebreus e todos os hebreus praticavam essa religião (ou seja, as duas comunidades coincidiam totalmente), hebreu, judeu e israelita eram sinônimos perfeitos, tanto para denominar a etnia quanto a religião. (A única diferença, se podemos mencionar alguma, é que hebreu era o habitante de Hebron, judeu o habitante do reino de Judá, e israelita o habitante do reino de Israel. Na prática, todos os três um mesmo povo.)

As coisas começaram a se complicar quando ocorreu a Grande Diáspora judaica, que levou o povo hebreu a se espalhar por vários territórios ao redor do mundo e a assumir várias nacionalidades. Os descendentes dos habitantes da Judeia continuaram a professar o judaísmo e a se sentir pertencentes ao povo de Israel, daí continuarem a se autodenominar judeus. Mas, como uma pessoa pode converter-se ao judaísmo sem ser de etnia hebraica, assim como um descendente de hebreus emigrados pela Diáspora pode ter qualquer nacionalidade, além de poder converter-se a qualquer religião — ou mesmo renunciar a toda fé, como muitos judeus que se declaram ateus —, o termo judeu começa a comportar uma ambiguidade que não permite saber se estamos falando de raça, etnia, nacionalidade ou religião.

Para tornar mais claro o raciocínio, vou adotar termos alternativos para distinguir todos esses conceitos. Em primeiro lugar, convencionemos que o praticante da religião judaica, qualquer que seja sua origem étnica, seja chamado de judaísta. Reservaremos então o termo hebreu para designar os antigos habitantes de Hebron e da Judeia, que por volta do século XIII a.C. criaram o judaísmo e constituíram o reino de Israel.

Por conseguinte, chamaremos de hebreodescendentes aos descendentes dos antigos hebreus, quer tenham nascido em Israel ou em qualquer outro país, quer sejam judaístas ou praticantes de qualquer outra religião (ou de nenhuma). O resultado é que costumamos chamar de judeus tanto aos judaístas quanto aos hebreodescendentes. E é talvez aí que nasce o preconceito que persegue os judeus.

Vou fazer uma analogia para que o leitor entenda melhor. Sou brasileiro, neto de italianos, e venho de uma família católica, embora eu mesmo seja ateu. Os italianos, como se sabe, têm como pátria a Itália e são descendentes, assim como os franceses, espanhóis, portugueses, romenos, etc., dos antigos romanos, povo que viveu na Antiguidade num grande império chamado Roma.

Portanto, sou brasileiro, mas, por ser neto de italianos, tenho direito à cidadania italiana, o que quer dizer que posso morar na Itália e lá usufruir todos os serviços públicos a que os cidadãos italianos têm direito. No entanto, jamais digo que sou italiano, até porque isso seria uma impropriedade (não fui criado na Itália, não sou falante nativo do idioma italiano nem compartilho a maioria das características culturais do povo italiano; além disso, não me naturalizei italiano). Nesse sentido, sou 100% brasileiro e me orgulho disso apesar de todas as mazelas do nosso país. Além disso, poderia dizer de mim mesmo que sou um romanodescendente, já que meus ancestrais há 2 mil anos eram romanos, mas, sinceramente, não vejo muito sentido em proclamar isso. (Os romanodescendentes são o que se costuma chamar simplesmente de latinos, mas tampouco saio por aí dizendo que sou um latino.) Em suma, sou apenas um brasileiro.

No entanto, tenho um amigo que se diz judeu. Assim como eu, ele é nascido e criado no Brasil, portanto sua nacionalidade é oficialmente brasileira, embora ele também goze de cidadania israelense. Seus pais são igualmente brasileiros; seus avós vieram da Alemanha, Polônia e Ucrânia; seus bisavós, da Hungria, Ucrânia e Rússia; e se prosseguirmos nessa viagem ao passado de sua genealogia, encontraremos pessoas do Leste europeu pelo menos nas 20 últimas gerações, de modo que seu mais recente antepassado a viver na Palestina deve tê-lo feito por volta do século X ou XI da era cristã.

Esse meu amigo nasceu numa família em que todos praticam o judaísmo, mas ele, que cedo se interessou pelas ciências naturais, tornou-se cético, agnóstico e enfim ateu. Hoje é professor de física numa importante universidade. Ele não é judaísta nem hebreu (nem poderia, já que os hebreus, segundo a minha nomenclatura, bem entendido, não existem mais), é apenas um hebreodescendente bem distante. Entretanto, ele se diz judeu e assim a ele se referem os outros.

Eu e ele temos situações análogas. Somos ambos nascidos e criados no Brasil, filhos de brasileiros, descendentes de europeus até onde a árvore genealógica de nossas famílias alcança, além de não praticarmos nenhuma religião. No entanto, ele se considera pertencente a um povo que não é o brasileiro, nem o alemão nem o polonês nem o ucraniano: ele é integrante do povo judeu.

O que vocês achariam se eu eventualmente dissesse que faço parte do povo católico? Ou do povo romano? Algumas seitas cristãs até costumam denominar seus fiéis de “povo de Deus”, mas a palavra povo aí não tem qualquer conotação étnica como tem no caso dos judeus; além disso, quem me conhece e sabe do meu anticlericalismo, daria risada do meu suposto catolicismo.

Mais estranho ainda seria se eu reivindicasse para mim a etnia romana, já que sou descendente do “povo de Roma”, que um dia também se dispersou, se miscigenou e virou italiano, francês, português, etc. Como tenho senso de ridículo, digo que sou brasileiro e, se quiserem saber mais, explico que sou neto de italianos. Ponto final.

A questão é que nós, descendentes de italianos, em geral não nos consideramos um povo à parte dentro de outro povo: não somos uma nação dentro do Brasil, como são os povos indígenas. Tampouco os italodescendentes espalhados pelo mundo agem como se fossem uma entidade transnacional, uma nação sem território que está em todos os territórios. (A bem da verdade, uns poucos, bem poucos mesmo, até fazem isso.)

É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. Mas não nos esqueçamos de que a Itália também só passou a existir como Estado em 1861: antes disso era, no dizer de Metternich, “uma mera expressão geográfica”.

Outro argumento que se pode lançar é que, durante séculos, independentemente de sua origem geográfica, os judeus foram discriminados no Ocidente pela Igreja Católica, o que fez com que todos eles fossem vistos como um único povo e, ao mesmo tempo, um povo distinto dos europeus. Mas é preciso lembrar que, durante a Idade Média, em que essa perseguição foi mais sistemática, não só os judeus eram vistos como uma nação: a própria cristandade constituía uma nação que transcendia territórios e Estados. Portanto, se em tempos medievais havia apenas duas nacionalidades — judeus e cristãos —, hoje as coisas não são mais assim: os cristãos deixaram há muito de ser uma nação transestatal; hoje a nacionalidade política se sobrepõe amplamente à identidade religiosa. O mesmo poderia valer em relação aos judeus.

O fato é que o apego de meu amigo às suas longínquas origens hebreias, a ponto de ele se identificar com uma nação que tecnicamente não existe, é o que atrai para si uma certa suspeita. Como ele mesmo me relatou, já foi algumas vezes vítima de preconceito racial por ser judeu. Mesmo veladamente, alguns colegas deixam transparecer alguma desconfiança, pois o veem como um “agente infiltrado”. Certamente não é o caso do meu amigo, mas muitos judeus tomam atitudes que contribuem para essa imagem de “jogo duplo”: ricos empresários judeus nascidos e criados no Brasil que enviam dinheiro para ajudar Israel na guerra contra os palestinos; judeus nascidos e criados no Brasil que pedem em testamento para ser enterrados em Israel; muitos que se organizam em comunidades e clubes em que a entrada de não judeus é vista com muita estranheza, e assim por diante.

Neste momento em que se afigura uma guerra entre Israel e o Hamas que tende a ser longa e sangrenta, alguns fatos me chamam a atenção. Outro dia, uma “brasileira” (aparentemente carioca, a julgar pelo sotaque) que vive em Israel e tem sobrenome eslavo declarou na televisão que vai alistar-se no exército israelense e combater ao lado do namorado, que é soldado e já está na linha de frente da batalha. Ela tranquiliza sua família, que vive no Brasil, e afirma que é preciso lutar por Israel, segundo ela, o único lugar em que os judeus podem viver. A julgar por sua fala, sua pátria é Israel e não o Brasil, e ela não vê nosso país como um lugar onde judeus possam viver, embora ela própria tenha nascido e por muito tempo vivido no Brasil, e sua família ainda esteja aqui e em segurança.

Outra jovem nascida e criada no Brasil, desta vez com sotaque paulista, no aeroporto já de partida para Israel, declarou à reportagem que está indo lutar na guerra para defender a sua pátria.

De modo geral, a tendência de os judeus se considerarem uma nação à parte dentro de qualquer outra nação que habitem, somada ao fato de não se misturarem com facilidade a outras etnias (casamentos entre judeus e não judeus são pouco frequentes e nem sempre bem vistos), faz com que, apesar de serem vítimas históricas do racismo, sejam muitas vezes injustamente tachados de racistas.

Em resumo, brasileiros filhos de brasileiros, netos de alemães, bisnetos de poloneses e tataranetos de ucranianos são muitas vezes vistos — especialmente pelos menos informados — como se fossem estrangeiros, não importa quão patrioticamente brasileiros eles sejam. Essa ambiguidade no significado da palavra judeu tem, a meu ver, grande peso nessa visão preconceituosa que cerca os judeus.

Enfim, judeus ou israelitas eram em primeiro lugar os hebreus da Antiguidade. Da Idade Média em diante, passaram a ser os judaístas e os hebreodescendentes, sendo que, até certo ponto, todos os judaístas eram hebreodescendentes e vice-versa. Hoje há judaístas que não são hebreodescendentes (como a cantora Aracy de Almeida no fim da vida), há hebreodescendentes que não são judaístas (como Bob Dylan, que se tornou cristão, ou Woody Allen, que é ateu), e nenhum deles é israelense, no sentido de “nascido em Israel”, embora possam usufruir essa cidadania. E, numa grosseira simplificação de linguagem, chamamos a todos eles de judeus.

Enquanto isso, eu, um legítimo romanodescendente, membro da nação cristã (embora ateu), sou apenas um brasileiro. E já acho bastante.

*-*-*

No quadro comparativo abaixo, procuro fazer uma grosseira analogia entre a comunidade judaica e a latina ou romanodescendente.

Quadro comparativo judeus x romanos e seus descendentes

Hebron, Judeia, Judá, reino de IsraelImpério Romano, Itália romana
Estado de Israel (fundado em 1948)República Italiana (fundada em 1861)
judeus, hebreusromanos
hebreodescendenteslatinos
judaístascatólicos

Dor de cabeça e dor na cabeça

Tempos atrás, surgiu um debate dentro do grupo de Whatsapp dos colaboradores da página do Facebook Língua e Tradição (www.facebook.com/linguaetradicao), da qual faço parte, em torno de uma postagem cuja imagem aqui reproduzo.

A pergunta da autora do post é: por que dizemos “dor de cabeça”, “dor de barriga”, mas “dor NO braço” e não “dor DE braço”. Na ocasião, apresentei a teoria de que “dor DE” se refere a dores internas, sobretudo as provocadas por disfunção orgânica, ao passo que “dor NO” se refere a dor externa, provocada por contusão ou mau jeito. Por exemplo, “dor de cabeça” é a chamada cefalalgia; já “dor na cabeça” pode ser fruto de uma pancada. A dor de cabeça em geral é uma dor no cérebro, assim como a dor de barriga é uma dor no intestino. Já uma dor na cabeça ou na barriga afeta os músculos ou os ossos imediatamente abaixo da pele.

Meu colega e amigo Chico Viana complementou: “Parece que a preposição ‘de’ introduz um determinante que alude a algo conhecido, consensual. Ouvir de alguém próximo que está com ‘dor de cabeça’ não preocupa tanto quanto dele ouvir que está com uma ‘dor na cabeça’. Esta última pode ser um sinal de algo mais grave. O mesmo se aplica, por exemplo, a ‘dor de barriga’ e ‘dor na barriga’. A preposição ‘em’ acena ao desconhecido e sugere a necessidade de procurar logo um médico”.

E nosso outro colega e amigo, Rafael Rigolon, acrescentou: “Temos ainda o caso fantástico da ‘dor de cotovelo’ (o despeito amoroso) e a ‘dor no cotovelo’. A primeira é terrível. Só não é pior do que a ‘dor de olvido’ (Millôr)”.

Em resumo, “dor DE” é uma dor conhecida, como a dor de cabeça, de barriga ou de cotovelo, cujas causas são rotineiramente as mesmas. Já “dor EM” é uma dor cuja causa pode ser conhecida ou não, mas nunca é a usual. Por isso, o filhinho de três anos da Carina, autora da postagem, que ainda não é proficiente nessas sutilezas da língua portuguesa, falou em “dor de braço” por analogia com essas dores mais comuns que sentimos cujo nome começa com “dor de”. Toda língua tem essas nuances sutis que só dominamos à medida que vamos nos tornando falantes fluentes. E que um falante não nativo às vezes nunca chega a dominar.

A título de exemplo, o inglês também distingue entre uma dor corriqueira, de causa rotineira, como a dor de cabeça, e uma dor de causa diferente, pouco comum, como uma dor na cabeça: a primeira se chama headache; a segunda, pain in the head.

Palavras que se usam numa única expressão

Vocês já devem ter notado que o português tem várias palavras ou expressões que se usam num único contexto e por isso mesmo estão dicionarizadas junto a esse contexto, não é?

Palavras como tona, toa, léu, dentre outras, só ocorrem em expressões como “vir à tona”, “estar à toa”, “andar ao léu”… Além dessas, temos “à queima-roupa”, “por um triz”, “em riste” (referindo-se unicamente a “dedo”), “breca” (só nas expressões “com a breca”, hoje desusada, e “levado da breca”), “caramba” (só em “pra caramba” e na exclamação “Caramba!”), “de soslaio”, “às pressas”, “de esguelha”, “de supetão”, “às arrascas”, “tintim por tintim”, além dos antiquados “à socapa”, “à sorrelfa”, “sem tir-te nem guar-te”, “de truz”, “à mancheia” e “aos borbotões”.

Muitas dessas palavras eram de uso corrente no passado (por exemplo, truz significa “ruído de queda, estrondo”), mas caíram em desuso, ficando cristalizadas apenas em expressões que usamos no dia a dia, as mais das vezes sem sequer suspeitar de seu significado ou sua origem.

Tona é a superfície da água, logo “vir à tona” é emergir até a superfície. Só que (quase) ninguém diz: “Tenho medo de me afogar, por isso não mergulho, só fico boiando na tona da piscina”. Uma curiosidade: tona, do latim tunna, significava originalmente “casca de árvore, pele fina”; foi daí que surgiu a metáfora de designar a superfície da água de tona.

Do mesmo modo, toa, do inglês tow, era a corda que amarrava um navio a outro; hoje, “andar à toa” é “andar a esmo, sem destino”. Quem está à toa na vida, como na canção de Chico Buarque, está sem fazer nada, sem propósito; quem diz coisas à toa é porque não tem o que dizer.

E léu? Vinda do occitano, língua do sul da França que foi muito importante na Idade Média e legou muitos vocábulos ao português, essa palavra quer dizer “ócio”. “Estar ou andar ao léu” é não ter nada para fazer (quem me dera!).

Queima-roupa, palavra composta que só ocorre em “atirar à queima-roupa” e, metaforicamente, em “dizer ou perguntar à queima-roupa”, é autoexplicativo: quando se atira em alguém de muito perto, a pólvora da bala queima a roupa da vítima. Logo, “à queima-roupa” é usado em diversas situações em que se age agressivamente e sem rodeios.

E por falar em atirar, quando se diz que “a bala passou por um triz” ou que “Fulano escapou por um triz”, a ideia é que faltou muito pouco para que algo muito ruim acontecesse. Triz, do grego thrix, “fio de cabelo”, é um quase nada. Um fio de cabelo é a distância entre a trajetória da bala e o corpo do alvo.

Já que falamos em triz, vamos ao truz. Como disse mais acima, trata-se de uma onomatopeia para ruído de golpe ou queda. Só que “pessoa de truz” é pessoa notável, distinta, de valor. Será que pessoas assim fazem esse ruído?

Na Idade Média, riste, do espanhol ristre, era o suporte em que os cavaleiros repousavam a lança em posição horizontal. Daí o “dedo em riste”, uma analogia com a posição horizontal da lança e seu formato retilíneo e agudo. Hoje, quando não há mais cavaleiros nem justas medievais em que se usam lanças, o significado original de riste se perdeu.

Breca, “cãibra”, passou a ser uma das denominações do Diabo (como cão, tinhoso, cramulhão, etc.). Daí que a exclamação “Com a breca!” é equivalente a “Com os diabos!” e subentende a imprecação “Vá com os diabos, vá para o Inferno!”. Pela mesma razão, uma criança “levada da breca” é um pimpolho cuja alma foi levada pelo Diabo, portanto uma criança endiabrada.

Caramba, de origem sânscrita, mas que nos chegou pelo espanhol, denota admiração, mas passou a ser usado como eufemismo para um termo chulo de sonoridade parecida, o qual originalmente era apenas uma estaca ou mastro de navio, que, por sua forma ereta, se tornou metáfora para “pênis”.

Também  do espanhol, soslaio é “posição oblíqua”, donde “olhar de soslaio” é “olhar de esguelha”, outra palavra de pouco e restrito uso.

A expressão “de supetão” contém a palavra de uso único supetão, corruptela de subitâneo, derivado de súbito; por sinal, paralelamente a súbito, temos em português os adjetivos  populares súpeto e súpito.

Arrascas, da expressão “às arrascas”, vem do verbo espanhol arrascar, forma popular de rascar, “raspar” (daí falar-se de uma voz rascante). Fazer algo às arrascas é fazer à força, como que raspando.

Tintim é onomatopaico e representa o ruído de copos de vidro colidindo — é por isso que, ao brindarmos, dizemos “Tintim!”. Mas “tintim por tintim” é “nos mínimos detalhes”; nesse caso, tintim é sinônimo de detalhe, pormenor.

Bem, faltou falar daquelas expressões que hoje não se usam mais, mas com as quais nos deparamos ao ler os clássicos. “À socapa” significa “às escondidas” (por sinal, escondidas só se usa nessa expressão, assim como pressas em “às pressas”, cujo termo usual é pressa). Sua origem é a expressão sob capa, isto é, oculto sob uma capa. Já “à sorrelfa” remete a sorrelfa, “disfarce para enganar”, portanto o sentido é o mesmo de socapa.

“Sem tir-te nem guar-te” quer dizer “sem cerimônia, repentinamente, sem aviso prévio”. Trata-se de uma corruptela da antiga expressão “sem tira-te nem guarda-te”, isto é, sem que a pessoa pudesse tirar-se ou guardar-se, logo proteger-se de algum ataque.

Mancheia vem de “mão cheia, punhado”. Quem lembra destes versos de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia livros, / livros à mancheia. / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar.”? Talvez poucos lembrem, já que livros hoje em dia têm tido pouca chance de germinar palmas e, por conseguinte, fazer pensar, não é?

Mas “livros à mancheia” é o mesmo que “livros aos borbotões”. E borbotão é um forte jorro d’água, como o de uma grande cascata. A metáfora com a ideia de “grande quantidade” é óbvia, não? É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas).

Que tal uma linguagem neutra de número?

Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:

Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.

E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.

Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.

Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)

Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:

  • Ar duar salar estão ocupadar.
  • Minhar mãor estão sujar.
  • Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
  • Meur doir filhor vão se formar médicor.
  • Comprei um par de sapator.
  • Ambar ar respostar estão corretar.

Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?

É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?

Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.

Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!

Brasileiro fala errado?

Já ouvi diversas vezes a afirmação, feita em tom de reprovação e mesmo de desprezo, principalmente por nossos irmãos lusitanos (mas também por muitos brasileiros), de que “brasileiro não sabe falar português” ou então de que “brasileiro fala português errado”. Ao que os linguistas contestam afirmando que nenhum povo fala errado a própria língua, já que é falante nativo dela. O que essas críticas querem dizer é que o modo como falamos no dia a dia se afasta muito do que prescreve a gramática normativa. Portanto, se falar certo uma língua é afastar-se o menos possível do padrão culto, então de fato falamos errado. Mas por que falamos assim? Para compreender, é preciso visitar a história do português falado no Brasil.

Como se sabe, nosso país surgiu de alguns colonos portugueses que aqui vieram a partir do século XVI, muitos não com a intenção de fincar raízes, mas sim de “fazer a América”, isto é, ganhar o máximo possível de dinheiro e então retornar a Portugal. Aqueles que aqui ficaram tornaram-se proprietários de terras e escravizaram índios e posteriormente negros. Portanto, durante o período colonial, havia uma minoria de brancos (portugueses ou seus descendentes) e uma maioria de indígenas e africanos que, obviamente, não eram falantes nativos de português. Tanto que, até meados do século XVIII, a principal língua falada em nosso território foi a chamada língua geral, uma espécie de tupi modificado: o português só se consolidou como língua oficial do país a partir da proibição do uso da língua geral pelo Marquês de Pombal.

Como consequência, o português foi, até poucos séculos atrás, uma língua “estrangeira” no Brasil, e os negros e índios só falavam português quando tinham de comunicar-se com os brancos. Não sendo falantes nativos, é natural que falassem com uma pronúncia estranha ao português; por exemplo, o r “caipira”, especialmente em substituição ao l (pranta, arface, etc.) viria da pronúncia dos índios, que não tinham o fonema l em sua língua. Mas também é natural que falassem com uma gramática simplificada, como ocorre em geral com as chamadas línguas crioulas (cruzamento da língua dos colonizadores com as línguas dos colonizados). É daí que surge o “nós foi”, “a gente somos”, “eu ponhei”, etc. O mesmo fenômeno se registra em todos os lugares em que um idioma estrangeiro se impôs a uma população que já tinha sua própria língua, especialmente se essa população não era escolarizada, como foi o caso dos nossos negros e índios.

Portanto, o português brasileiro que falamos hoje é o resultado da disseminação a toda a população, inclusive a mais culta, de uma língua que nasceu crioula, resultado da tentativa de estrangeiros não alfabetizados, bem como sujeitos a condições precaríssimas de vida, de falar português. Quando nos estabelecemos como nação, no século XIX, o português padrão era a língua de cultura das elites, mas mesmo estas, quando se dirigiam aos subalternos (escravos, serviçais, comerciantes, ambulantes, mendigos), usavam o linguajar popular, e foi esse o que se generalizou. Com a decadência progressiva da nossa educação, hoje até as elites altamente escolarizadas falam um português que os mais críticos poderiam chamar de “estropiado”.

Vejam um exemplo. Transcrevo abaixo a fala de uma nutricionista e professora universitária (portanto, uma pessoa com formação superior) a um programa de TV. Trata-se evidentemente de um exemplo isolado, mas creio que não difira muito do modo como a maioria dos brasileiros, inclusive os mais escolarizados, fala.

Então, nós precisamos ter em mente que a gente, pra ter saúde, precisa se alimentar direito. […] Você precisa comer aquilo que te faz bem e não só o que é gostoso. […] As pessoas deveriam se alimentar de três em três horas e não só comerem no café da manhã, almoço e jantar. […] O nosso organismo ele é uma máquina muito complexa e precisa ser bem cuidada pra funcionar bem. […] A pessoa que ela se alimenta mal vai ter uma má qualidade de vida, já as pessoas melhores nutridas vão viver muito mais. […] A gente também precisa ter em mente de que quantidade não é qualidade. […] Se eu pôr no prato muito carboidrato e pouca proteína, vou gerar muita massa gorda e pouca massa magra. […] Nós podemos comer tudo que a gente quiser, desde que com bom senso. […] Nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só se alimentar de comida processada. […] Olha, eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante: não acreditem nessas dietas milagrosas. […] A comida, a gente tem que ter muito respeito por ela. […] A finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente. […] Não adianta perder muito peso com uma dieta muito restritiva se, depois de alguns meses, esse peso não se manter. […]

Nesse pequeno excerto, podemos constatar uma série de características (não vou dizer “erros” para não cometer o famigerado “preconceito linguístico”) típicas da fala brasileira, que vou enumerar a seguir.

  1. nós precisamos ter em mente que a gente…” — mistura de nós e a gente no mesmo período;
  2. você precisa comer aquilo que te faz bem” — mistura de você e tu no mesmo período;
  3. “as pessoas deveriam se alimentar […] e não só comerem” — deveriam se alimentar x deveriam comerem (mau uso do infinitivo pessoal);
  4. “o nosso organismo ele é…” — o organismo ele (duplicação do sujeito);
  5. “precisa ser bem cuidada” — verbo transitivo indireto na voz passiva;
  6. “a pessoa que ela se alimenta” — novamente duplicação do sujeito, desta vez com a redundância do pronome relativo que;
  7. “as pessoas melhores nutridas” — flexão indevida do advérbio melhor; aliás, o mais adequado aí seria “as pessoas mais bem nutridas”;
  8. “…precisa ter em mente de que…” — o famoso dequeísmo, ou uso de de que com verbos ou nomes que não demandam a preposição de;
  9. “se eu pôr…” — o uso comuníssimo do infinitivo como futuro do subjuntivo (o certo é “se eu puser…”);
  10. nós podemos comer tudo que a gente quiser” — novamente mistura de nós com a gente;
  11. nós deveríamos ingerir […] e não só se alimentar…” — uso do pronome reflexivo se em lugar de nos: “nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só nos alimentar…”;
  12. “eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante” — além de usar o verbo falar no sentido de dizer, temos a preposição para (pra) no lugar de a: “eu vou dizer a vocês”, ou, o que seria melhor ainda, “eu vou lhes dizer”;
  13. a comida, a gente tem que ter muito respeito por ela” — aqui temos a chamada topicalização: em vez de uma oração com sujeito e predicado, apresenta-se um tópico isolado (a comida) e a seguir se faz uma declaração sobre ela cujo sujeito é outro (no caso, a gente); essa construção sintática é típica de idiomas como o chinês e o japonês, não de línguas europeias;
  14. “a finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente” — aqui temos dois problemas: primeiro, orientar elas em vez de orientá-las; segundo, proibir de comerem, orientar a comerem (mau emprego do infinitivo pessoal);
  15. “se […] esse peso não se manter” — mais uma vez o uso do infinitivo pelo futuro do subjuntivo; o correto seria “se esse peso não se mantiver”.

Falo vários idiomas e tenho facilidade em entender o que os falantes desses idiomas dizem. Como passatempo e também para treinar meu ouvido, costumo assistir a canais de TV estrangeiros e percebo que o modo como as pessoas entrevistadas, mesmo as não tão letradas, falam seus idiomas se distancia relativamente pouco da norma-padrão. É claro que em nenhuma língua as pessoas falam informalmente do mesmo modo como escrevem formalmente. Um falante do inglês, por exemplo, dirá descontraidamente I ain’t got no money, mas redigirá I do not have any money. Isso é natural e não tem nada de errado. No entanto, quando estudamos inglês numa escola de idiomas e aprendemos a gramática “oficial” da língua de Shakespeare e depois ouvimos um falante nativo do inglês, não percebemos tanta diferença entre o que estudamos e o que estamos ouvindo: a flexão dos verbos e nomes, a colocação pronominal, a ordem das palavras na frase, tudo parece bater. Mesmo os portugueses parecem falar de forma mais próxima à gramática normativa. Alguns dirão que é porque a gramática normativa é elaborada com base no português lusitano, o que é pura bobagem. O que se espera de qualquer língua de cultura é que ela tenha uma única gramática e que seja seguida em todos os países que a falam. Quando estudo inglês, a gramática que aprendo na escola se aplica igualmente aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha, à Irlanda, à Austrália, e assim por diante. O mesmo vale para o espanhol, o francês, o alemão…

Quando se pensa na língua portuguesa, é no português padrão ou em algo bem próximo dele que se pensa, não em coisas como essas misturas de tu e você, nós e a gente, duplicação de sujeito, falta de concordância, etc. Das línguas que conheço, fenômenos sintáticos como os que assinalei na transcrição acima só tenho encontrado em português brasileiro.

No entanto, aqui no Brasil temos linguistas que defendem a chamada “língua brasileira”, algo distinto do português, a qual teria sua própria gramática. Por sinal, esses linguistas lutam para tornar oficial essa gramática em contraposição àquela que até hoje temos estudado nas escolas. Tenho falado muito sobre isso aqui neste espaço e apontado a insensatez dessa proposta. Entretanto, não há como negar que o modo como falamos é muito peculiar até aos falantes de português de outros países lusófonos — e não se trata apenas de falarmos de modo diferente: falamos com uma gramática cheia de fenômenos estranhos às demais línguas europeias, como pudemos ver na transcrição da fala mais acima.

O fenômeno da crioulização linguística não é exclusivo do Brasil, pois ocorreu em praticamente todos os países que foram colonizados pelos europeus. Assim, também há nos Estados Unidos o chamado Black English, um inglês fortemente influenciado pelas línguas africanas dos escravos para lá levados, mas esse dialeto (sim, trata-se de um dialeto) até o momento está restrito aos falantes negros de classe baixa; só pouco a pouco ele começa a penetrar algumas letras de canções feitas por brancos ou a fala de alguns jovens brancos que querem “se enturmar” com os negros.

Do mesmo modo, o espanhol platino tem algumas peculiaridades, como o pronome vos no lugar de ou usted, bem como o uso de uma segunda pessoa do plural terminada em ‑ás ou ‑és em lugar do canônico ‑áis ou ‑éis (por exemplo, hablás e hacés por habláis e hacéis). Mas as divergências em relação ao espanhol padrão não vão muito além disso.

Acima de tudo, o que percebo (mas posso estar equivocado, é claro) é que, enquanto em outros idiomas esses desvios, que chegam em alguns casos a configurar dialetos ou etnoletos (falares de grupos étnicos específicos), estão restritos a certos grupos, especialmente de raça ou classe social, no Brasil estão generalizados por toda a população, inclusive a mais escolarizada.

Certamente, o modo como falamos decorre da própria história do português brasileiro e do modo como a língua portuguesa foi implantada no Brasil, mas, sem dúvida, tem a ver também com nossa escolarização cada vez mais indigente, somada a uma certa ideologia de que esse modo de falar é um patrimônio cultural imaterial que deveríamos preservar, pois revela o “jeitinho brasileiro” de falar, espelho de nosso “jeitinho” de ser (sobre esse “jeitinho”, já falei em outra postagem). De fato, o modo como falamos revela, sim, muito do que somos. Resta saber se o que somos é realmente motivo de orgulho.

A História como ciência

Há uma frase muito conhecida e propalada tanto no meio político quanto no acadêmico dizendo que a História é sempre contada pelos vencedores. Certo, fico imaginando como seria a história da Segunda Guerra Mundial contada pelos nazistas. Mas, de fato, essa frase tem um certo fundamento porque, durante muito tempo, a História não passou de uma narrativa feita sob encomenda dos poderosos para louvar seus feitos. As crônicas medievais, por exemplo, eram narrativas redigidas pelos chamados cronistas, escritores a serviço do rei incumbidos de enaltecer os feitos heroicos do soberano, às vezes até exagerando um pouco nas tintas — e omitindo seus fracassos e defeitos morais, é claro.

Atualmente, em tempos de politicamente correto e lugar de fala, tornou-se comum reivindicar que a História também seja contada do ponto de vista dos derrotados, isto é, das minorias oprimidas, como mulheres, negros, índios, homossexuais, etc. Até aí nenhum problema, parece uma reivindicação mais do que justa. Mas o ponto que quero destacar é: desde pelo menos o século XIX, a História se tornou uma ciência, com objeto bem definido e método próprio (o chamado método histórico), que consiste em procurar reconstituir o passado de uma sociedade da forma mais fidedigna possível com base no maior número de documentos a que se possa ter acesso. Portanto, se a História é de fato uma ciência e, como tal, fiel à realidade dos fatos e a seu objeto, então não há uma História contada pelos vencedores e outra contada pelos vencidos, há apenas História.

Afinal, se um suposto pesquisador homem, branco e heterossexual omitir em sua pesquisa todos os dados positivos em relação às mulheres, aos não brancos e aos gays, ressaltando apenas os pontos negativos desses grupos, esse indivíduo não é um historiador, é um mistificador, um embusteiro — numa palavra, um picareta.

Tenho notícia de alguns livros escolares de História, por sinal aprovados pelo Ministério da Educação, que retratam certos períodos históricos de forma maniqueísta, misturando fatos com juízos de natureza pessoal e ideológica e tomando partido por um lado ou por outro, portanto contando a História do ponto de vista ou do vitorioso ou do derrotado. Isso não é História, no sentido científico do termo, é doutrinação dos estudantes. Um historiador sério deve narrar os fatos tal qual eles ocorreram ou, pelo menos, tal qual se pode inferir que tenham ocorrido a partir dos registros de que dispomos. Como em qualquer ciência, onde é preciso manter a objetividade e a imparcialidade, não cabe ao historiador eleger mocinhos e vilões ou enaltecer os feitos de determinados governos e denegrir a imagem de outros segundo sua preferência político-ideológica. Não lhe cabe fazer juízos de valor, assim como não lhe cabe ressaltar os aspectos louváveis de determinada figura histórica e omitir seu lado obscuro ou vice-versa. Enfim, não cabe ao historiador que se preze e que faça História com perspectiva científica tomar o partido nem dos vencedores nem dos vencidos. Até porque, se a História é de fato uma prática científica, então não pode valer outra frase muito popular que é “a verdade não existe, o que existe são versões”.

Index Verborum Prohibitorum Parte 2 — A Missão

DISCLAIMER: Este texto contém ironia.

Eu não disse que voltava? Pois é, voltei! Dando prosseguimento à minha lista de palavras e expressões que devem ser banidas da língua portuguesa ou reformuladas por serem politicamente incorretas e ofensivas a grupos sociais minoritários, trago hoje as seguintes:

• “ameríndios”: se não há índios e sim indígenas ou povos originários, por coerência os ameríndios terão de ser agora chamados de “amerindígenas” ou “ameroriginários”;
• “bolo nega maluca” e “Samba do Crioulo Doido”: diante do desrespeito tanto a uma etnia quanto a uma condição de saúde, o confeito deve passar agora a ser denominado “bolo mulher afrodescendente com distúrbios cognitivos” e o famoso samba composto pelo cronista e humorista Estanislau Ponte Preta deve ser rebatizado para “Samba do Afrodescendente com Problemas Psiquiátricos”;
• “rainha da cocada preta”: com base nos exemplos anteriores, deixo aos leitores a tarefa de deduzir a nova versão dessa expressão racista;
• “pneu careca”: em respeito aos calvos, será chamado de “pneu com deficiência capilar”;
• “olho gordo”: para evitar gordofobia, o chamado mau-olhado passaria agora a ser conhecido como “olho portador de obesidade” (ou “de sobrepeso”, se preferirem).
• “Terça-Feira Gorda”: pelo mesmo motivo da expressão anterior, passa a ser agora “Terça-Feira Plus Size”;
• “Branca de Neve e os Sete Anões”: já que anão passou a ser termo depreciativo, teremos “Branca de Neve e as Sete Pessoas com Nanismo”;
• “matar as bichas”: além de homofóbica, essa expressão incita à violência contra os homossexuais; portanto, não pode sequer ser substituída, deve ser banida mesmo;
• “gesto nobre”: será que só os portadores de título de nobreza é que têm bom coração? Isso é uma discriminação contra quem não tem sangue azul. Portanto, a expressão agora será “gesto plebeu”.

Também alguns nomes próprios terão de ser alterados, em alguns casos até em respeito póstumo aos seus portadores. É o caso do escultor mineiro Aleijadinho, que a partir de agora figurará nos livros de história como Pessoinha com Deficiência ou então Portadorzinho de Necessidades Especiais. Do mesmo modo, o Negrinho do Pastoreio passará obviamente a ser o Afrodescendentezinho do Pastoreio. Igualmente, o Rio Negro, no estado do Amazonas, será agora o Rio Afrodescendente (essa mudança incluiria o nome artístico daquele famoso cantor sertanejo que faz dupla com o Solimões). O Rio das Velhas, em Minas Gerais, se tornará o Rio das Senhoras Idosas ou então o Rio das Senhoras da Terceira Idade. Já a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas, terá seu nome mudado para Palmeira dos Povos Originários. Finalmente, o Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, terá de receber outra denominação para que não pensem que o nome é uma alusão racista aos moradores do referido morro.

Aproveitando a oportunidade, também sugiro as seguintes alterações em expressões correntemente usadas no dia a dia, as quais ninguém até agora percebeu que são sexistas:

• “o pai ou responsável pela criança” → “o pai, a mãe (ou “e pãe”, no caso de pessoa não binária) ou responsável pela criança”;
• “o dinheiro do contribuinte” → “o dinheiro do contribuinte e da contribuinta”;
• “Dia dos Namorados” → “Dia dos Namorados, Namoradas e Namorades”;
• “título de eleitor” → “título de eleitor, eleitora e eleitore”.

Só assim teremos um Brasil mais justo e inclusivo.

A decadência da Academia Brasileira de Letras

Todas as grandes línguas de cultura têm academias de Letras. As primeiras, como a Academia Francesa e a Real Academia Espanhola, surgiram ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as línguas nacionais começavam a se firmar como idiomas de prestígio e a fazer frente ao até então todo-poderoso latim. A nossa Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1897 por iniciativa do grande mestre Machado de Assis e de Lucio de Mendonça, e seu lema é Ad Immortalitatem, “Para a Imortalidade”, donde seus membros serem conhecidos como “imortais”.

Desde sua fundação, a Academia tem sido reconhecida de maneira inconteste como a guardiã da língua portuguesa no Brasil e de sua literatura. Embora seja uma instituição de cunho privado, ao contrário de outras academias do gênero, sua influência penetra na esfera estatal, como, por exemplo, por ocasião das reformas ortográficas de 1943 e 1990, que se transformaram em leis. Na esteira da legislação sobre a ortografia, coisa que a maioria das grandes línguas do mundo não tem, a ABL publica também o VOLP — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Ilustres literatos e pensadores brasileiros, bem como grandes cultores do idioma pertencentes a outras áreas do saber, como médicos, professores, juristas e jornalistas, pertenceram às suas fileiras, tais como Ruy Barbosa, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, Oswaldo Cruz, Clovis Bevilacqua, Silvio Romero, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, Aloysio Azevedo, Euclydes da Cunha, Laudelino Freire, Vianna Moog, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, e muitos outros.

No entanto, de tempos para cá, a Academia passou a acentuar uma prática que já era algo costumeira desde seus primórdios: eleger membros que pouco ou nada contribuíram para o enriquecimento do idioma e de sua literatura, mas apenas exerciam influência política ou popular. Basta dizer que até Getulio Vargas e Ivo Pitanguy foram imortais.

A eleição de figuras pouco representativas em termos de língua vem desde as origens: os fundadores da ABL decidiram escolher patronos para suas cadeiras, coisa que não existia em outras academias mais antigas, e, como apontou ainda em 1923 o acadêmico Afranio Peixoto num discurso na própria Academia, muitos desses fundadores escolheram como seus patronos nomes de qualidade literária duvidosa, como Adelino Fontoura e Pardal Mallet.

Mais recentemente, a ABL elegeu os ex-presidentes da república José Sarney, autor de Marimbondos de fogo, grande monumento de nossas letras (atenção: aqui há ironia), e Fernando Henrique Cardoso, autor da grande obra literária chamada Plano Real (ironia novamente). A indicação de Sarney deveu-se a Josué Montello, seu conterrâneo, que quis privilegiar — ou garantir uma reserva de mercado — ao Estado do Maranhão. Já FHC escreveu muitos textos acadêmicos (os quais ele posteriormente pediu que fossem esquecidos), mas, a meu ver, nenhum que tenha lustro em termos de apuro linguístico ou qualidade literária.

A seguir, veio o controverso letrista, escritor, místico e ex-hippie Paulo Coelho, aquele que não permite que os revisores corrijam seus (muitos) erros gramaticais e ortográficos porque, segundo sua visão místico-mercadológica, “Deus pode estar num erro de português”.

Então, seguindo o (mau) exemplo da Academia Sueca, que resolveu conceder o prêmio Nobel de literatura ao cantor e compositor americano Bob Dylan, a ABL admitiu mais recentemente os letristas de MPB Geraldo Carneiro, Antônio Cícero e Gilberto Gil, e também a atriz Fernanda Montenegro, o cineasta Cacá Diegues e o jornalista e comentarista “global” Merval Pereira, atual presidente da casa, que, à época de sua eleição, tinha apenas dois livros publicados (hoje tem três), sendo um deles uma coletânea de artigos e o outro uma série de reportagens feitas em coautoria.

Não nego o talento de alguns desses nomes ou o valor artístico de suas obras. No entanto, é preciso fazer algumas considerações. Primeiramente, se a Academia visa a contemplar perfis que muito contribuem ou contribuíram para o engrandecimento do idioma e de sua produção literária, então ela deveria agraciar os produtores de textos e não os simples reprodutores, como é o caso da atriz Fernanda Montenegro, que nunca escreveu uma linha em termos literários (seu único livro é uma autobiografia) e apenas reproduziu oralmente nos palcos e estúdios os textos de outrem.

O segundo ponto é que a ABL é uma academia de Letras, portanto voltada à linguagem verbal, sobretudo à escrita. Então, que sentido tem admitir produtores de discursos musicais ou audiovisuais, em que a linguagem verbal tem aspecto secundário e, por vezes, pouco importante? Em que pese a qualidade dos versos de Gil, seu registro escrito se encontra basicamente nos encartes de seus LPs e CDs (hoje em dia, com as plataformas de streaming, as letras das canções sequer têm versão escrita). Já Antônio Cícero teria sido eleito por versos como os de Fullgas? E por que Chico Buarque, nosso maior letrista e quem sabe maior poeta, vencedor do prêmio Camões, não está na Academia? Por que Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meirelles, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Mario Quintana nunca estiveram?

Este ano, o cartunista Mauricio de Sousa quase se tornou imortal; seria mais um criador cujo foco não é a língua e sim uma linguagem visual (o desenho) e cujos textos, voltados às crianças e vendidos em bancas de jornais, são propositalmente simplórios (ou “simplólios”, como diria o Cebolinha). Com todo o respeito ao brilhante cartunista, um de nossos orgulhos nacionais, em boa hora a Academia preferiu Ricardo Cavaliere, este sim um literato, estudioso e cultor do idioma, autor de relevantes contribuições à língua portuguesa.

Se o lema da Academia faz alusão à imortalidade, e se essa imortalidade é sobretudo da obra e não de seu autor, por que se privilegiam autores de obras descartáveis, como canções populares, filmes já datados ou romances soníferos?

Não há nenhum problema em que autores não ficcionistas, como cientistas, filósofos, filólogos, linguistas, gramáticos, juristas e jornalistas, façam parte da Academia, mas é preciso que tenham produzido obras de relevo em termos linguísticos e/ou culturais, que tenham dado contribuição significativa ao idioma. Entretanto, quer me parecer que o atual critério de escolha dos novos membros é mais político ou mercadológico do que de mérito acadêmico-cultural.

Com isso, a Academia Brasileira de Letras reproduz o que é o próprio Brasil: um país de privilégios, de pessoas “cordiais” (no sentido dado por Sergio Buarque de Holanda), em que amizade e compadrio valem mais do que conquistas pessoais e profissionais, enfim, um país pas sérieux. A ABL é hoje uma triste sombra do que um dia foi — se é que foi.

Que tipo de país queremos?

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para se referir à realidade brasileira, um misto de Bélgica e Índia, um país com leis e impostos de Primeiro Mundo e com serviços e realidade social de Terceiro. A seguir, esse conceito foi estendido para dar conta de um Brasil contraditório, cuja sociedade tem ao mesmo tempo aspectos de Primeiro e Terceiro Mundos: de um lado, uma elite rica e culta, megacidades com infraestrutura de países desenvolvidos, grande parque industrial, importantes universidades produzindo pesquisa de ponta, recordes de produção agrícola, recordes em número de helicópteros e de cirurgias plásticas per capita, produção artística tipo exportação, e, de outro, fome, miséria, analfabetismo, doenças endêmicas, latifúndios improdutivos, muita corrupção, péssimos serviços públicos, comunidades ilhadas no meio de florestas, aonde só se chega de barco, e assim por diante.

Talvez hoje o termo Belíndia já não seja mais tão adequado, visto que a Índia, embora continue a ser um país com população majoritariamente pobre, é uma das nações emergentes e a quinta maior economia global, que também já conta com ilhas de excelência em vários campos, estando, por sinal, em alguns deles mais adiantada que o Brasil. Noutros termos, a própria Índia é hoje uma Belíndia. Por isso, penso que hoje o termo mais adequado para definir o Brasil e a Índia seja Beláfrica. Afinal, o continente africano segue sendo o mais atrasado do planeta em termos políticos, econômicos, sociais e educacionais. É lá que ainda estão os problemas mais graves da humanidade em termos de fome, miséria, superpopulação, educação precária, péssimas condições de saúde e higiene, pouquíssimo desenvolvimento industrial, infraestrutura deficiente, costumes retrógrados, fanatismo religioso, ditadores tirânicos e corruptos, guerras tribais intermináveis, etc. É claro que lá também há bons exemplos de progresso material e cultural, logo nem tudo é pobreza na África. No entanto, em termos gerais de desenvolvimento, especialmente aquele medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano —, a África permanece em último lugar na média dos continentes.

Portanto, se somos uma Beláfrica e não queremos permanecer nesse estado, temos dois caminhos a seguir: ou nos aproximamos da Europa, onde estão os países mais desenvolvidos do mundo, ou nos aproximamos da África, onde estão os mais atrasados. Deveria ser consenso que o modelo a ser seguido é o europeu, com sociedades altamente industrializadas, democracias sólidas e a maior parte da população situada na classe média ou alta e portadora de escolaridade superior. No entanto, certos grupos ideológicos parecem querer que o Brasil rume na direção oposta. Embora façam um discurso aparentemente bem-intencionado (“lacrador” eu diria), polvilhado de um bom-mocismo que soa bem a muitos (especialmente aos que fazem parte de sua “bolha”), o que eles pregam é uma divisão do país em que uma das partes precisa aniquilar a outra. Trata-se da famosa oposição “nós x eles”, que dividiu e polarizou o Brasil.

Somos uma nação plural, somatório de muitas culturas, e essa é nossa grande vantagem estratégica. Nossa diversidade cultural é nosso grande capital, que, somado ao nosso potencial natural (imenso e rico território, riquezas minerais e vegetais, clima favorável, ausência de cataclismos), pode fazer de nós uma potência mundial. No entanto, para esses grupos ideológicos, a cultura brasileira dominante é fundamentalmente branca e europeia e, portanto, exclui a maior parte da população, de origem africana e/ou indígena. Na visão desses grupos, para incluir socialmente essa maioria preta ou parda e sobretudo pobre, é preciso mudar radicalmente nossos paradigmas culturais, não propriamente somando à cultura branca europeia as valiosas contribuições dos indígenas e afrodescendentes, mas erradicando aquela cultura e substituindo-a por esta.

Tenho falado muito aqui sobre o absurdo que é a proposta de alguns linguistas de substituir nossa norma-padrão supradialetal e fundada em longa tradição escrita e literária pelos usos do português brasileiro contemporâneo falado informal, isto é, o linguajar coloquial das ruas. Segundo esses linguistas, a gramática normativa do português é elitista, excludente, opressora, elaborada por homens brancos, burgueses, conservadores, heterossexuais e misóginos, logo precisa ser destruída, num ato revolucionário análogo talvez à Revolução Bolchevique ou à Revolução Cultural chinesa. Vejam o que diz, por exemplo, o livro Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores, organizado por Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (p. 41): “Assim, a emergência de um novo paradigma de gramatização exige a destruição em larga escala do paradigma tradicional e grandes alterações nos problemas e técnicas arraigados historicamente no nosso fazer gramatical, algo próprio do caráter revolucionário” (grifos meus).

Sem dúvida, a linguística pode contribuir e muito para o fazer gramatical, e eu mesmo tenho sempre reiterado que o modelo de análise da língua baseado na gramática grega de Dionísio o Trácio precisa ser superado. Mas a elaboração de gramáticas normativas tem sua lógica própria, que esses linguistas aparentemente desconhecem. Eles criticam aquilo que nem sequer entendem. E elaborar novas gramáticas utilizando o ferramental da linguística é uma coisa, já substituir arbitrariamente um padrão linguístico estável e estabelecido por outro que só é usado na fala descontraída sob o pretexto da inclusão social dos menos favorecidos é pura demagogia. Em vez de levar educação de qualidade aos mais pobres, opta-se por mantê-los na situação em que estão, normalizando sua pobreza material e intelectual. Aos pobres, uma educação igualmente pobre.

Sem dúvida, a norma-padrão que utilizamos baseia-se numa variedade de português calcada no falar das elites culturais da “corte” — seja a Lisboa monárquica seja o Rio de Janeiro imperial. Mas isso é assim em qualquer idioma de cultura: o francês padrão nada mais é do que a língua falada pelos reis e nobres franceses de antanho; o italiano padrão é o dialeto da antiga corte de Florença, e assim por diante. É natural que a classe dominante de uma sociedade imponha a ela seus costumes e também sua língua. Assim como é natural nas sociedades complexas (isto é, as que passaram do estágio tribal ao civilizado) que haja hierarquia, classes sociais distintas e disputas de poder entre elas. No entanto, o que se vê historicamente é que, quando uma classe oprimida depõe o grupo dominante e toma o poder, é ela que passa a ser a classe opressora. Até costumo dizer que, se os europeus tivessem se mantido tribais e os africanos tivessem desenvolvido uma civilização altamente tecnológica, teriam sido os negros a escravizar os brancos. Afinal, o homem é o lobo do homem.

Se, como pregam alguns de meus colegas linguistas que não conseguem analisar o fenômeno “língua” sem projetar nele suas ideologias políticas pessoais, a gramática normativa em vigor é opressiva e reforça o preconceito linguístico, fazendo com que a população menos favorecida sinta que fala “errado”, substituí-la por uma nova gramática, baseada em outra variedade do português (a preferência desses linguistas é pelo padrão das pessoas pouco ou nada letradas) vai apenas trocar uma opressão por outra. Pois, se a gramática é normativa, portanto seu uso é uma injunção em textos formais, qualquer que seja ela, desrespeitá-la configurará erro, que estará decerto sujeito ao preconceito linguístico (mais uma vez, “o homem é o lobo do homem”).

Sob o pretexto de que nossa cultura e nosso padrão linguístico são eminentemente brancos e europeus, o que se propõe não é acrescentar ao estudo da história das civilizações da Europa e Ásia o estudo da história da África (por sinal, eminentemente oral, uma mistura de fatos e mitos), como, aliás, já vem sendo feito, e sim substituir uma pela outra. Em vez de filosofia grega, estudaremos os orixás africanos (a pergunta que faço é: ser versado em história e cultura africanas abre as portas do mercado de trabalho mais qualificado a alguém?). Em vez de permitirmos que jovens pretos e pardos das periferias tenham acesso à cultura letrada por meio do domínio da norma supradialetal, oficializaremos “eu vi ela” e “vamos se encontrar” como padrão culto.

A lógica desses grupos, que paradoxalmente incluem pessoas de alta cultura e muito bem informadas, é a de que só se combate uma sociedade patriarcal instituindo o matriarcado, que só se apaga a chaga do racismo contra os negros discriminando os brancos, e assim por diante. Numa palavra, o que eles propõem não é justiça social, é uma mera inversão de papéis, em que opressores se tornem oprimidos e oprimidos se tornem opressores. Era mais ou menos essa a lógica dos comunistas de 1917: o proletariado governando a burguesia. O que querem fazer com a língua é uma espécie de vingança dos iletrados sobre os que tiveram a chance de estudar.

Em suma, o que está em jogo é que tipo de país queremos ser: queremos ser como a Bélgica ou como a África? É bom lembrar que até o final do século XIX o Brasil era um país escravocrata, quase exclusivamente rural, sem indústrias, com uma população quase totalmente formada de africanos e indígenas e seus descendentes e governada por uma pequena elite latifundiária composta por descendentes dos primeiros portugueses que nos colonizaram. Foi com a chegada dos imigrantes europeus e asiáticos em fins do século XIX e princípios do XX, logo após o fim da escravidão, que começou nossa industrialização, surgiram as primeiras universidades e a sociedade brasileira foi progressivamente se urbanizando. É que esses imigrantes, mesmo aqueles que foram trabalhar na lavoura em substituição aos escravos, tinham uma cultura urbana e valores milenares de civilização, além de um espírito empreendedor e grande apreço pela educação. Tanto que, duas ou três gerações após sua chegada, seus descendentes, inclusive de muitos que eram analfabetos, já estavam na universidade. E vejam que esses imigrantes sofreram quase tanto racismo quanto os negros e os índios.

Vários de nossos intelectuais de esquerda criticam esse processo de “embranquecimento” da população brasileira promovido pela República Velha como se isso tivesse sido uma violência contra nossa nacionalidade quando, na verdade, esses imigrantes só vieram somar a essa nacionalidade. Não tivesse havido essa onda imigratória, seríamos provavelmente ainda hoje um país predominantemente agrícola e rural, dominado por oligarcas latifundiários, como éramos à época do Império. Mas parece que é exatamente isso que esses ideólogos gostariam que fôssemos.

Aliás, de maneira contraditória e incoerente, esses intelectuais críticos à política de imigração são eles próprios descendentes de imigrantes e certamente não estariam aqui no Brasil nem muito menos ocupando cargos nas universidades não fosse essa política que tanto criticam.

É evidente que a República Velha falhou em dar aos negros recém-libertos condições de emancipação econômica como cidadãos, o que os fez trocar a senzala pela favela. Mas, quase um século e meio após a Abolição, o que o Estado Novo, a República Nova, o regime militar e a Nova República fizeram por essas pessoas e seus descendentes? Já tivemos muito tempo para curar essas feridas, mas tudo que foi feito foram leis e políticas demagógicas, que nada resolvem. Tudo que se faz é um discurso hipócrita de inclusão social, entoado por uma elite acadêmica branca, eurodescendente e de classe média alta.

O fato é que se instalou em nosso meio intelectual, inclusive nas universidades, que deveriam primar pela racionalidade, pelo bom senso e pelo apego à verdade, uma ideologia iconoclasta, que vê tudo que é branco, europeu, ocidental, capitalista, judaico-cristão e, mais, masculino, heterossexual e cisgênero como negativo, opressor, excludente, elitista, quando não fascista. Temos, de fato, uma longa história de dominação de brancos sobre negros e índios, de europeus sobre africanos e outros povos aborígines, mas é preciso ter em mente que o Brasil está inserido no mundo ocidental, que é culturalmente oriundo da civilização europeia e cristã. Logo, apegarmo-nos a tradições africanas e indígenas em detrimento de conhecimentos científicos e filosóficos europeus não vai nos conduzir ao progresso que almejamos. Se queremos nos integrar cada vez mais ao mundo desenvolvido e incluir cada vez mais nossa população nas classes médias e altas da sociedade, não podemos renunciar ao patrimônio de cultura que nos foi legado desde a era greco-romana nem ao padrão linguístico que produziu todo o acervo literário de que dispomos.

Que se valorizem todas as culturas que formaram nosso país, que se acabe com o pernicioso racismo que nos assola, que se ajustem as contas com nosso passado escravista, que se respeitem as culturas nativas, que se estabeleça uma verdadeira justiça social em nosso país é o que todos queremos. Mas esse desideratum só se conquista somando e não subtraindo ou dividindo.

O “jeitinho brasileiro” de falar

Volta e meia, surgem na imprensa matérias sobre a “língua brasileira”, o nosso modo particular de falar português, em geral análises feitas por jornalistas (menos frequentemente por especialistas), além do depoimento de escritores e outros usuários privilegiados — embora não estudiosos — da língua. Com raras exceções, esses textos assumem um tom ufanista em relação ao português tupiniquim, exaltando a nossa criatividade linguística, um jeito malandro, próprio da identidade nacional, que se refletiria no idioma. Segundo esses analistas, o português brasileiro é a perfeita simbiose da mais bela das línguas com o mais versátil dos povos.

Esse tipo de avaliação, além de extremamente subjetivo e questionável pelo seu chauvinismo (já se disse até que só é possível poetar em português, assim como só é possível filosofar em alemão), peca por desconsiderar os fatos: aqueles que enaltecem o “jeitinho brasileiro” de falar nunca empreenderam um estudo sério e sistemático sobre o assunto. Se o fizessem, chegariam a conclusões bem diferentes.

Em primeiro lugar, o português é, das línguas da Europa ocidental (românicas e germânicas), uma das mais difíceis. Claro, os críticos dirão que todas as línguas têm suas complexidades, que nenhuma língua é fácil, etc. etc. Mas, comparando item a item cada um dos aspectos gramaticais (número de tempos verbais, colocação pronominal, flexão verbal e nominal…), veremos que o português é muito mais complexo que o espanhol, francês, italiano ou inglês, por exemplo. Em nível de dificuldade, nossa língua se equipara ao romeno e ao islandês. Mesmo o alemão, tido por muitos como uma língua complicada, é mais simples que o português. Isso porque nossa língua se apoia no binômio complexidade-irregularidade (isto é, muitas regras e muitíssimas exceções); já o alemão tem menos regras que o português, e estas têm poucas exceções.

É óbvio que nenhum povo fala exatamente como dita a norma-padrão, mas qualquer brasileiro que viaje ao exterior — inclusive a Portugal — e conheça outras línguas perceberá que a distância entre como se fala nas ruas e o que estudou nos cursos de idiomas é menor do que no Brasil. Exceção talvez seja o espanhol platino, mas mesmo nesse caso dados empíricos precisam ser examinados.

Em segundo lugar, o “jeitinho brasileiro” de falar é a tentativa de um povo etnicamente heterogêneo, com os mais variados substratos linguísticos, de baixa ou baixíssima escolaridade e espalhado por um território continental de falar uma língua complexa e cheia de irregularidades. Sem dúvida, o português popular tem o mérito de tentar simplificar um sistema que causa embaraço até aos eruditos. Mas as soluções encontradas pela fala do povo nem sempre são as melhores. Às vezes, troca-se uma regra ilógica por outra idem.

Há duas forças cegas atuando sobre a língua: a mutação, que rompe a regularidade, e a analogia, que tenta (mas nem sempre consegue) restabelecê-la. Se o português tem dois tipos de infinitivo (impessoal e pessoal) quando as demais línguas têm apenas um, há necessidade de uma regra disciplinando o uso de um e de outro. Como há uma infinidade de casos dúbios (“os alunos levam tempo para aprender” ou “para aprenderem”?), e, de quebra, existe uma pressão social para falar corretamente (isto é, segundo o padrão culto), os falantes acabam metendo os pés pelas mãos e misturando as formas de maneira pouco lógica e pouco prática (certa vez ouvi um porteiro de casa noturna dizer: “Vocês vão entrarem agora ou preferem esperarem mais um pouco?”).

Objetivamente falando, isto é, deixando de lado as paixões e atendo-nos estritamente aos dados observáveis, o português nada tem de belo ou perfeito. A rigor, nenhuma língua é intrinsecamente bela ou boa, a não ser do ponto de vista particular e tendencioso de quem a contempla. O mesmo sentimento ufanista que nutrimos por nossa língua os falantes de todos os idiomas também têm. É tão possível poetar em turcomeno quanto em português. Excetuando-se os dados objetivos, que o estudo comparado de línguas guiado pelo método científico produz, tudo o mais são fanfarronices patriotescas que em nada contribuem para a real compreensão da língua e de seus impasses.

Dito de outro modo, só podemos resolver problemas se tivermos consciência de que eles existem. A defesa apaixonada do “jeitinho brasileiro” de falar surte o mesmo efeito que a exaltação do jeitinho brasileiro de lidar com a lei, a política, a cidadania. Se quisermos ser de fato uma nação desenvolvida, precisamos ser menos autocondescendentes e parar de tratar o vício como virtude. Todas as línguas têm defeitos e qualidades, umas mais, outras menos; todos os povos têm seus pontos positivos e negativos, inclusive no trato com o idioma. O tal “jeitinho”, como já assinalado por inúmeros antropólogos, nada mais é do que a forma como tentamos contornar, às vezes de modo desonesto, as dificuldades oriundas de nossa própria formação moral e cultural deficiente: um estado oligárquico e profundamente burocrático, leis classistas, educação e saúde precárias, as exigências de um mundo globalizado e altamente tecnológico, e assim por diante. Um dos desafios que enfrentamos e para o qual não estamos bem preparados é justamente a língua portuguesa padrão, um sistema tão emperrado quanto os demais. Por isso, diante dos entraves do idioma, também temos de nos virar. E dá-lhe jeitinho!

Tudo bem, que estejamos conseguindo nos comunicar com eficiência e criatividade apesar de todos os pesares não deixa de ser louvável, mas daí a acharmos que nosso sistema de comunicação é nota dez vai uma grande distância. Talvez repetir o senso comum, praticar o bom-mocismo e engrossar o coro dos contentes (numa palavra, “lacrar”), dizendo o que todos querem ouvir, seja uma estratégia politicamente mais inteligente do que provocar polêmica pondo o dedo em certas feridas. Mas nunca sairemos do subdesenvolvimento enquanto ficarmos legitimando os nossos erros em vez de corrigi-los.

Qual é o correto: pulso ou punho?

Certa vez, tive uma dor no pulso, provavelmente causada pelo uso do computador, e procurei um ortopedista, que me corrigiu dizendo que eu não tinha dor no pulso e sim no punho, pois pulso é a pulsação cardíaca, que antigamente se media apalpando o punho (alguns médicos ainda fazem isso hoje).

Respeito muito a terminologia médica, embora ainda não tenha assimilado muito bem o porquê de certas mudanças, como a de rótula para patela ou de aparelho digestivo para sistema digestório, mas isso é outra conversa. Também compreendo que os médicos não queiram confundir o pulso, no sentido de pulsação, com o punho, parte do antebraço que se liga à mão. Mas o fato é que eu não estava errado ao chamar o punho de pulso, pois, primeiramente, os dicionários efetivamente registram no verbete pulso a acepção de “parte do antebraço”. Em segundo lugar, quase toda designação tem uma origem metafórica ou metonímica. Assim, o pulso enquanto parte do corpo tem esse nome justamente porque é nele que os médicos verificam a pulsação cardíaca. Logo, tomar o pulso passou a significar tanto “tomar, pegar o punho do paciente” quanto “tomar (isto é, examinar) a pulsação cardíaca”. Na verdade, faz-se o primeiro para fazer o segundo. Se devêssemos rejeitar a denominação pulso enquanto parte do corpo por ser uma metonímia, então também deveríamos rejeitar punho, já que vem do latim pugnus, que significa “soco” e deriva do verbo pungere, “bater”. Aliás, daí vêm os verbos impugnar, repugnar e propugnar, bem como pungir, pungente e punção. Por fim, teríamos de renomear o relógio de pulso para relógio de punho. Será que pegaria?

Sobre ideologia e pragmatismo

Pessoas que professam ideologias, sejam elas políticas, religiosas ou mesmo futebolísticas, tendem a achar que todos os seres humanos são igualmente ideológicos. Por sinal, uma frase frequentemente repetida pelos ideólogos de esquerda é “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”. Antes de mais nada, é preciso definir do que estou falando, já que essa palavra tem vários significados. Refiro-me à ideologia como crença numa doutrina, isto é, num conjunto de ideias e propostas que, para quem nelas crê, têm valor de verdade, portanto não são sentidas como crenças e sim como verdades absolutas. Pessoas assim não conseguem compreender a diferença entre crer e saber: para elas, tudo é objeto de crença, inclusive as afirmações embasadas em evidências concretas; logo, a própria ciência não passa de uma doutrina. Essas pessoas equiparam a eficácia de vacinas ou a esfericidade da Terra à virgindade de Maria ou a ressurreição de Jesus. E, obviamente, a ideologia em que acreditam é a verdadeira e as demais, falsas. Como, para elas, tudo é ideologia, elas não conseguem conceber uma postura filosófica e pessoal chamada pragmatismo, misto de ceticismo e bom senso, que consiste em não aceitar passivamente qualquer afirmação como verdade inquestionável e sempre preferir modelos de conduta e propostas de solução de problemas que já se tenham provado eficazes. Mas, sim, há pessoas pragmáticas, que não se deixam seduzir pelo canto da sereia de certas doutrinas e olham criticamente toda e qualquer afirmação ou proposta de solução. É verdade que são bem raras, até entre os chamados “intelectuais”, muitos deles também profundamente contaminados por ideologias, especialmente as políticas. E o mais irônico é que muitos desses intelectuais dizem ter uma visão “crítica” da realidade.

De fato, é bem difícil livrar-se das ideologias, primeiro porque, como disse acima, a maioria das pessoas não tem consciência de que é ideológica, mas pensa que sua crença é a própria Verdade; segundo porque somos doutrinados desde a infância por pais, professores, padres, pastores, lideranças políticas ou artísticas, influenciadores digitais, a mídia, etc.; terceiro porque, como humanos mortais que somos, padecemos de uma terrível fraqueza emocional que nos leva a nos agarrarmos desesperadamente a nossas próprias certezas, afinal a crítica pressupõe a dúvida, e temos aversão ao desconhecido, sobretudo ao desconhecido supremo que é a morte. Por isso, precisamos acreditar em divindades que nos protegem e salvam se formos devotados a elas, em vida após a morte e também em políticos salvadores da pátria, em sistemas políticos e econômicos que proporcionarão a felicidade e a paz eternas à humanidade, e assim por diante.

Só que as ideologias não são ideias isoladas, são conjuntos estruturados e coerentes de ideias e atitudes que são vendidos como um pacote completo. Se sou de direita, então tenho de ser contra o aborto, o casamento gay (e contra os gays de modo geral), as vacinas, a Teoria da Evolução e a favor da pena de morte, do armamento da população, do Estado mínimo, da privatização total e irrestrita de todos os serviços públicos, da inviolabilidade da propriedade privada, do garimpo na Amazônia, etc.

Já, se sou de esquerda, tenho de ser a favor do casamento gay, do ensino da ideologia de gênero nas escolas, da linguagem neutra de gênero, da liberação da maconha e das outras drogas, do controle estatal dos meios de comunicação, de um Estado forte e intervencionista, da estatização de todos os serviços públicos, do banimento dos dicionários de palavras que sejam consideradas politicamente incorretas, e por aí vai.

Quando se trata de ideologia, não há meio termo: ou se compra o pacote completo ou se é um traidor da causa, um alienado, um inocente útil, massa de manobra, um “isentão”, ou seja, alguém que, por ação ou omissão, serve à ideologia oposta. Não à toa, para os esquerdistas os isentões estão a serviço da direita, e vice-versa.

Só que a realidade é mais complexa do que sonha nossa vã filosofia — ou ideologia. Não há soluções mágicas para os problemas humanos, até porque somos criadores compulsivos de problemas. Nem o cristianismo, nem o islamismo, nem o marxismo, nem o neoliberalismo, nem a filosofia new age vão nos livrar de nós mesmos, embora os adeptos dessas doutrinas achem que sim.

Diante do cardápio de “soluções” oferecidas por essas ideologias, posso perfeitamente escolher aquelas que funcionam na prática, sejam elas de esquerda ou de direita, de modo frio e racional, portanto sem me deixar levar por paixões ou idiossincrasias. Posso concordar com a esquerda em certos pontos e discordar em outros, assim como posso fazer o mesmo com a direita. Mas, para que isso funcionasse na prática, seria preciso que todos fossem igualmente pragmáticos, o que está muito longe de acontecer.

Por exemplo, uma discussão como a que ocorre sobre a legalização do aborto em todos os casos e não só nos atualmente previstos na lei brasileira deveria dar-se com base em dados objetivos e não em dogmas religiosos. Primeiro, um embrião é um ser vivo e, mais, um ser humano ou só um projeto, um amontoado de células? Um embrião ou um feto pode ser considerado juridicamente um sujeito dotado de direitos? Ele tem consciência, é um ser senciente, ele sente dor, ele sabe que está vivo? A possível vida desse embrião vale mais do que a de um jovem negro morto pela polícia? Vale mais que a de um cão ou gato morto por maus tratos? Vale mais que a de uma galinha morta em ritual religioso? Vale mais que a dos insetos nos quais pisamos no dia a dia? E, se vale, com base em qual ética? Essa ética é universal? Tem amparo em evidências fáticas? Até qual fase da gestação o aborto deveria ser permitido, caso o fosse? As mulheres deveriam ser consultadas sobre algo que diz respeito a seus próprios corpos?

Indo além, a liberação do aborto melhoraria ou pioraria as condições de saúde pública? Aumentaria ou reduziria a criminalidade? Aumentaria ou diminuiria a mortalidade de mulheres jovens? Contribuiria ou não para a paternidade e maternidade responsáveis, para o planejamento familiar, para a erradicação da pobreza e da desigualdade social, para a superpopulação mundial? Como é a vida em países em que o aborto é legalizado e em países em que não é: melhor ou pior do que aqui?

Evidentemente, não tenho resposta a todas essas questões, embora saiba que especialistas no tema as têm para a maioria delas. Só que, nesse debate, o que prevalece não é o parecer técnico de quem estuda há décadas o problema, é a pressão de grupos ideológicos, tanto de um lado quanto de outro, os quais defendem suas posições apenas porque acreditam cegamente nelas — e acreditam porque foram condicionados desde muito cedo a acreditar. A ideologia é uma máscara que, de tanto ser usada, se cola de tal modo ao rosto de seu usuário que ele acaba por confundi-la com sua própria face.

Citei como exemplo a questão do aborto, mas poderia tratar igualmente da pena de morte, da redução da maioridade penal, do controle de natalidade, da descriminalização das drogas, das privatizações, da taxa de juros, do novo arcabouço fiscal, da linguagem neutra de gênero ou qualquer outra. Como sempre digo, teríamos o melhor dos mundos se todas as pessoas fossem racionais, bem educadas, bem informadas, emocionalmente equilibradas, bem intencionadas e, mais, altruístas, generosas, empáticas, simpáticas e sobretudo pragmáticas em vez de ideológicas, mas isso é utopia demais para a nossa comezinha humanidade, não é? Por isso, pragmatismo é mercadoria escassa no mercado. Abundantes mesmo são as crenças cegas e fanáticas e seus decorrentes atos de violência contra os defensores de outras ideologias ou do pragmatismo, atos esses sempre justificáveis por quem os pratica, já que estes são os detentores e conhecedores únicos da Verdade absoluta.

Ainda sobre a norma-padrão e o ensino de gramática

Não sou gramático nem professor de português, tampouco faço pesquisas na área chamada Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, mas acho que os exatos 40 anos em que venho me dedicando à linguística e mais o estudo de línguas que empreendo desde a adolescência, somados ao meu posicionamento sempre ponderado diante de assuntos polêmicos, me conferem alguma autoridade para opinar sobre uma questão envolvendo nossa língua e nosso ensino que já tratei aqui algumas vezes e que volta e meia ressurge tanto no meio acadêmico quanto na sociedade: a adequação ou não de nossa atual norma-padrão, ditada pela chamada gramática normativa, e o consequente ensino dessa gramática em nossas escolas.

Quem acompanha minhas publicações, tanto aqui no blog quanto em meu canal de vídeos Planeta Língua, do YouTube, sabe que tenho críticas fundamentadas tanto ao excessivo conservadorismo da norma atual, especialmente em face das simplificações e racionalizações operadas nas gramáticas das demais línguas românicas no último século, quanto a propostas e posturas de alguns colegas linguistas que criticam essa norma de um ponto de vista muito mais ideológico do que científico, por vezes lançando mão até de inverdades e falsas acusações aos gramáticos, e propõem em seu lugar uma norma baseada na modalidade falada do português brasileiro, com total desconsideração em primeiro lugar do uso que efetivamente se faz da língua nos textos escritos formais da atualidade, em segundo lugar de toda a nossa tradição escrita, que seria subitamente rompida, e, em terceiro, de nossos laços com as demais nações de língua portuguesa. Por sinal, meu mais recente vídeo no supracitado canal trata exatamente disso.

Pois agora me chega às mãos um excelente artigo do Prof. Ricardo Cavaliere, da Universidade Federal Fluminense e da Academia Brasileira de Filologia, além de mais recente membro da Academia Brasileira de Letras, que aborda essa questão de forma magistral, tocando em todos os pontos correntemente em debate.

Como o artigo é longo e redigido em linguagem acadêmica, portanto nem sempre acessível ao leitor leigo, tomo aqui a liberdade de fazer um resumo do texto, ressaltando seus principais argumentos.

De início, o Prof. Cavaliere distingue duas competências que por vezes são confundidas: a competência linguística (saber falar a própria língua) e a competência discursiva (saber adequar seu discurso, portanto, seu vocabulário e sua gramática, às diversas situações de comunicação). Diz ele:

O indivíduo que se refere ao interlocutor com um “Você está de sacanagem!”, seja no ambiente de trabalho, numa conversa distensa ou numa cerimônia de colação de grau, revela que domina as estruturas linguísticas da língua para expressar-se em português, isto é, tem competência linguística, mas não detém competência discursiva, pois é incapaz de discernir sobre a adequação dos usos linguísticos nas distintas situações em que se constroem os atos de fala. Em outras palavras, para ele não importa a variabilidade dos fatores extralinguísticos do discurso, pois seu texto (aqui entendido no sentido estrito) está moldurado numa espécie de engessamento linguístico. É o homem de um texto só.

E prossegue:

A questão está em que o processo de aprendizagem que nos confere esta especial competência discursiva não se adstringe à aula de português. […] Não obstante, creio que se tivesse que eleger, por algum motivo, um único profissional dentro da sociedade contemporânea para cuidar dessa delicada questão da língua em uso e das variáveis do uso, decerto que elegeria o professor de língua materna. Assim, percebe-se uma definitiva mudança no perfil desse profissional no seio da sociedade contemporânea: antes, julgavam-no responsável pelo aprimoramento da competência linguística; hoje, julgamo-lo responsável pelo aprimoramento da competência discursiva.

O autor assinala que a controvérsia sobre o ensino de língua surgiu por culpa de um entendimento maniqueísta da questão, que situa o ensino da gramática normativa “como um atentado à liberdade de expressão, não raro qualificado como uma institucionalização do preconceito linguístico na escola”.

De fato, a partir da década de 1970, muitos intelectuais brasileiros estimularam um confronto entre a norma gramatical e a liberdade de expressão, acusando a primeira de representar um instrumento de censura e exclusão social. Convém lembrar que estávamos então sob a ditadura militar, o que muito contribuiu para uma radicalização de posições em que, do mesmo modo como se combatia a opressão e o arbítrio do regime, atacava-se o cânone gramatical ao ponto de se confundir incorreção gramatical com democracia linguística. Era como se respeitar a gramática fosse sinônimo de compactuar com a ditadura!

Por outro lado, uma certa visão deturpada do papel da linguística, que, como ciência, não faz juízos de valor de certo e errado, mas analisa os fatos como eles são, levou, de um lado, certos linguistas a legitimar o chamado “erro de português”, estigmatizando os gramáticos e filólogos, e, de outro, induziu estes últimos a deplorar a linguística como uma disciplina permissiva, uma verdadeira ameaça ao nosso vernáculo. Infelizmente, essa visão permanece em muitas mentes até os dias de hoje.

É nesse contexto de radicalização política e entendimento equivocado dos papéis da linguística e da gramática que surge a bandeira do chamado “vale-tudo linguístico”. Como diz Cavaliere:

Na ilusória empreitada de desagrilhoar a palavra política, muitos defenderam a nivelação do discurso escrito com o oral, rezando pela cartilha-chavão do vox populi vox dei e do “é proibido proibir”, esquecidos de que o aprimoramento do discurso escrito transcende as fronteiras da opinião política, podendo até ser simplesmente um mero exercício do prazer de escrever bem. E o que  se percebe é que tais juízos tiveram origem em cérebros absolutamente laicos em assuntos linguísticos, vindo a encontrar conveniente amparo em outros totalmente carentes de saber gramatical. (grifo meu)

Ele complementa: “Admitir que a norma oral deva servir de parâmetro para uma norma escrita é negar uma diferença de comportamento que não está propriamente nem no discurso nem na língua, mas no próprio homem social”. E ainda: “no seio da sociedade brasileira permeiam duas modalidades bem distintas de uso linguístico: a oral e a escrita. Também sabemos que a norma oral é em muitos pontos colidente com a escrita, a ponto de uma tornar-se intolerável quando invade o espaço da outra”. Como diria Evanildo Bechara, não se vai à praia de fraque nem de chinelos ao Municipal.

Alguns gramáticos mais puristas costumam dizer que “eu vi ela” e “vamos se encontrar” sequer é português, como se só a norma-padrão representasse o idioma. Numa crítica a esses gramáticos, alguns linguistas, como Mário Perini, afirmam que há duas línguas distintas: a que se escreve, chamada português, e a que se fala, que nem nome tem. A esse respeito, diz Cavaliere: “A rigor, não existe uma língua que se escreve e outra que se fala, mas uma língua em que há estruturas que se usam somente quando se escreve e outras que se usam apenas quando se fala. […] Em outros termos, tanto ‘eu o vi ontem’ quanto ‘eu vi ele ontem’ são produtos da mesma gramática da mesma língua”.

Outro importante ponto destacado pelo autor do artigo é o fato de que o que entendemos por modalidade oral, ou língua falada, é uma pluralidade de manifestações, correspondentes a diferentes localidades e classes sociais, de modo que não há uma única linguagem oral, mas várias. Há entre os falantes diferenças regionais e sobretudo de escolaridade que fazem com que um cidadão bem escolarizado se permita dizer “Tem um filme legal passando no cinema” ou “eu assisti ele ontem”, mas não “nós foi no cinema junto”.

Portanto, quando se prega adotar a modalidade oral como parâmetro para constituir uma nova norma-padrão, que oralidade se toma como modelo? Algumas construções típicas do discurso oral já aparecem na escrita formal e são até toleradas; outras ainda não. Quem deve estabelecer esses critérios ou fazer essas escolhas? Segundo Cavaliere, “[é] esta avaliação subjetiva que nos afasta do consenso e provoca tantas opiniões radicalizadas sobre o assunto. Como quem se ocupa de descrever e abonar as estruturas prestigiadas para uso em texto escrito é o gramático, no fim sobre ele recai o ônus do anacronismo e do preconceito linguístico”.

Só que os gramáticos, especialmente os contemporâneos, têm métodos objetivos para determinar o que deve ou não ser abonado. Eles fundamentalmente abonam aquilo que já está no uso dos redatores de prestígio, sejam eles grandes escritores, juristas, acadêmicos, jornalistas de peso, etc. E estes, por sua vez, sendo dotados de grande cultura, seguem, ao escrever, os preceitos ditados pelas gramáticas — com exceção talvez de alguns ficcionistas que se permitem transgredir a norma em prol da literariedade, a chamada “licença poética”.

Em outros termos, tem-se um círculo vicioso: o gramático abona estruturas já consagradas e rejeita usos que, embora correntes na linguagem oral, incidem apenas marginalmente no texto escrito, ao passo que os redatores de textos formais que servem de base à abonação gramatical — inclusive os linguistas que pregam o rompimento com a gramática tradicional, assim como seus discípulos — não inovam em seus textos, mas repetem apenas as estruturas já consagradas.

Outra crítica feita pelos linguistas “modernosos” ao ensino de gramática, especialmente da norma em vigor, é que o importante é que o aluno aprenda a ler, escrever e falar bem. Com efeito, desde o advento na linguística do chamado pós-estruturalismo na década de 1970, passou-se a valorizar mais o texto e o discurso do que a língua que os produz. Se até então a tônica dos estudos linguísticos estava no processo, passou-se a praticamente ignorá-lo em detrimento de seu produto. Com isso, enfatiza-se muito hoje a leitura e a produção de textos, relegando a análise sintática a um segundo plano. Na verdade, os radicais sustentam mesmo que seu ensino seja abolido. Ouçamos mais uma vez Cavaliere:

Sabemos desde pelo menos 1915, quando Otoniel Mota publicou a primeira edição de suas Lições de português, que saber analisar sintaticamente uma sentença não garante boa redação a ninguém, mas daí a dizer que fazer análise sintática é algo absolutamente inútil implica avaliar restritivamente a validez dos conteúdos programáticos em língua materna.

Os que hoje trabalham com descrição linguística […] não conseguiriam decerto fazê-lo em nível avançado se em sua formação escolar básica se lhes tivesse sonegado o saber científico sobre a sintaxe e a morfologia da língua […].

Em parte, a culpa é do próprio modo como a gramática tem sido ensinada em nossas escolas, como se fosse um fim em si mesmo e não como um meio para a produção de bons textos. É isso o que municia os mais radicais ao exigir o fim de seu ensino. Na verdade, o que precisamos é repensar esse ensino com vistas ao aprimoramento da competência do aluno tanto linguística quanto discursiva e não sua abolição pura e simples e sua substituição pelo vale-tudo ou por uma norma calcada na oralidade: “a leitura diversificada revela-nos que no texto escrito não se pode contar com as inferências, nem se conformar com as lacunas típicas do texto oral. A leitura, a rigor, demonstra que a arquitetura do texto escrito, se pautada nas técnicas da oralidade, resulta na incoerência e na obscuridade”.

O bom ensino de língua portuguesa é o que dá ao estudante acesso a todas as variedades de uso do idioma, especialmente as que ele ainda não conhece ou domina. Este sim é o verdadeiro ensino democrático e inclusivo e não aquele proposto por indivíduos tão radicais em matéria de língua quanto de política e que impropriamente fazem da ciência uma seara para disseminar suas ideologias e sua militância política. Como conclui Cavaliere, “[n]ão há democracia mais deliciosa do que a do livre acesso às fontes do saber”.

Espera, expectativa e esperança

O verbo esperar tem vários significados em português. Pode-se esperar um ônibus, uma promoção no emprego ou um milagre. A cada um dos significados desse verbo corresponde um substantivo diferente. No caso do ônibus, temos espera; no da promoção, expectativa; no do milagre, esperança.

O verbo esperar proveio do latim sperare, derivado de spes, “esperança”, e teve como derivados espera e esperança. Já expectativa veio do latim expectare ou exspectare, formado de ex‑, “para fora”, e spectare, “assistir, olhar” (daí, os nossos espectador e espetáculo). Significava “olhar de longe, de fora”, mas podia significar também “olhar para fora”, como quando se olha pela janela à espera de alguém.

De fato, o latim fazia distinção entre sperare, “ter esperança”, e exspectare, “ter expectativa” ou mesmo “aguardar”. Essa distinção se conservou em algumas línguas irmãs do português, como o francês espérer x attendre e o italiano sperare x aspettare. As línguas germânicas também fazem tal distinção: por exemplo, o inglês to wait x to expect x to hope.

A diferença entre espera, expectativa e esperança é o grau de certeza que temos de que algo aconteça. A espera se dá por algo ou alguém que temos certeza de que virá, como o ônibus, por exemplo. A expectativa se refere a algo provável, mas não totalmente certo, como a promoção no emprego. Finalmente, a esperança recai sobre algo bastante improvável, como um milagre ou o fim da corrupção e da impunidade no Brasil.

Em muitas línguas, os verbos referentes a “esperar” estão semanticamente ligados ao ato de olhar, como em exspectare, derivado de spectare. O nosso aguardar provém de um verbo germânico *wardon, que queria dizer justamente “olhar, vigiar”. Tanto que “olhar” é regarder em francês e guardare em italiano. E, em português, guardar algo é manter sob vigilância (provavelmente para que não suma ou não roubem). Por essa mesma razão, o policial que vigia as ruas é chamado de guarda.

Por que o nome do signo de aquário está errado

Aquário, um dos signos do zodíaco, que supostamente rege as pessoas nascidas entre 21 de janeiro e 19 de fevereiro, tem a origem de seu nome no latim aquarius, que, como adjetivo, significa “relativo a água, aquático” e, como substantivo masculino, quer dizer “aguadeiro, escravo incumbido de abastecer de água as casas” e também “vendedor de água”. Por outro lado, o latim tinha o substantivo neutro aquarium, “aquário de peixes” e também “bebedouro do gado”.

O signo do zodíaco em latim era Aquarius e não Aquarium, tanto que, segundo os místicos, já estamos em plena era de aquário, uma era de paz e prosperidade, o que motivou aquela famosa canção Aquarius do musical Hair, cuja letra diz: “When the moon is in the Seventh House / And Jupiter aligns with Mars / Then peace will guide the planets / And love will steer the stars” (Quando a lua estiver na Sétima Casa / E Júpiter se alinhar com Marte / Então a paz guiará os planetas / E o amor guiará as estrelas). Parece que nada disso aconteceu ainda, e eu particularmente duvido que um dia aconteça, mas o fato que quero tratar aqui é que em português esse signo não deveria chamar-se Aquário e sim Aguadeiro.

Esse equívoco de tradução também é cometido pelo espanhol Acuario e pelo italiano Acquario, idiomas em que as palavras para “aguadeiro” são respectivamente aguador e acquaiolo. Já em francês, o signo se chama Verseau e em alemão, Wassermann, que corretamente significam “aguadeiro”. O inglês manteve o nome do signo em latim, Aquarius, fugindo, assim, do risco de cometer tal erro de tradução.

A autoajuda e a etimologia

Os gurus da autoajuda, dentre os quais até médicos, psicólogos, especialistas em gestão, etc., costumam apresentar argumentos retirados das mais diversas fontes para embasar seus ensinamentos. E aí entra ciência, pseudociência, filosofia, religião, misticismo, astrologia… Por exemplo, esses gurus adoram usar física quântica em suas argumentações: para eles, tudo pode ser explicado pelos quanta! O problema é que nenhum físico quântico de verdade endossa as afirmações desses mentores da autoajuda.

Mas um conhecimento que eles adoram invocar para sustentar suas teses é a etimologia. Só que a de araque, não a etimologia séria, científica. Ouço frequentemente na boca de palestrantes motivacionais que a palavra crise é da mesma origem de crescimento e que, portanto, toda crise por que passamos é uma oportunidade para nosso crescimento pessoal, profissional e mesmo espiritual. Belo ensinamento, sem dúvida, com a única ressalva de que a origem comum de crise e crescimento é uma fake news: crise, do grego krísis, vem de uma raiz indo-europeia que significa “separar” (um cognato é o latim cernere, que nos deu discernir), ao passo que crescimento, do latim crescere, vem de outra raiz, igualmente indo-europeia, que significa “crescer, florescer, brotar”.

Também já ouvi um palestrante de autoajuda associar a palavra coluna, referindo-se à coluna vertebral, ao latim cum luna, “com a lua”, e costela a cum stella, “com a estrela”. A partir daí, ele estabeleceu relações mirabolantes entre dores nas costas e a influência dos astros.

Outra pérola que ouvi numa palestra de autoajuda (antes que me perguntem, não, não costumo frequentar esse tipo de evento, mas já fui a alguns) foi a associação feita entre as palavras livro e livre. Como resultado, o palestrante proclamou uma verdade — que a leitura de bons livros liberta a alma —, só que com base em outra fake news etimológica. Livro vem do latim lĭbĕr, lĭbrī, que significa “casca de árvore” e, por metonímia, “livro”, já que esse material era usado para escrever antes da descoberta do papiro. Já livre vem de lībĕr, lībĕră, lībĕrŭm, adjetivo latino que, pela própria grafia e flexão, revela ser de outra origem.

O fato é que, em matéria de língua, todo mundo se acha doutor, que dirá esses gurus que cobram fortunas por suas palestras! Logo, consultar um dicionário etimológico ao preparar suas preleções não faz parte da rotina desses profissionais. Aliás, desconfio de que muitos até sabem que suas informações linguísticas estão erradas, mas as veiculam mesmo assim porque causam impacto positivo — e é isso que eles visam em primeiro lugar.

A origem dos pontos cardeais

Todos os povos do mundo utilizam os chamados pontos cardeais para localizar-se no território, especialmente aqueles que vivem em selvas, desertos ou na tundra gelada, onde não há ruas, avenidas ou placas de orientação. E esses pontos são sempre baseados no movimento aparente do Sol no céu. Os dois pontos básicos são os locais onde o Sol nasce e onde se põe. Por decorrência lógica, os dois demais se obtêm traçando uma linha perpendicular à formada pelos dois primeiros pontos.

Por essa razão, em praticamente todas as línguas os pontos cardeais fazem referência ao nascer e ao pôr do sol, que ocorrem por volta das seis horas da manhã e seis da tarde, respectivamente. Por conseguinte, os dois outros pontos são chamados de “meio-dia” e “meia-noite”.

Em latim, o local do nascer do sol era chamado de oriens, “nascente, levante”, do verbo orior, “subir, levantar-se”. O poente, palavra que em português deriva de pôr-se, era occidens, do verbo occido, “cair, tombar”, formado de ob, “para frente”, e cado, “cair”. Como se pode notar, essas palavras deram em nossa língua oriente e ocidente.

Já o sul era chamado pelos romanos de meridies, “meio-dia”, porque é nessa metade da abóbada celeste que o Sol se encontra ao meio-dia, especialmente no inverno, quando visto do Hemisfério Norte. Pelo mesmo motivo, a região sul da França é chamada de Midi, e o sul da Itália de Mezzogiorno, ambos significando “meio-dia”.

Já o norte em Roma era chamado de septentriones, de septem, “sete”, mais triones, “bois de arrasto”, em referência às sete estrelas da constelação Ursa Menor, que inclui a Estrela Polar, aquela que mais se alinha com o Polo Norte celeste. Daí surgiram os nossos termos meridional e setentrional.

Mas também é comum utilizarmos nomes de pontos cardeais originados das línguas germânicas. Com efeito, norte, sul, leste e oeste provêm do inglês North, South, East e West por meio do francês Nord, Sud, Est e Ouest. Mas qual a origem desses nomes?

East veio do antigo germânico *austaz, parente das nossas palavras austral e aurora, por sua vez provindo da raiz indo-europeia *aus-, “brilho”. É uma referência ao local onde o Sol começa a brilhar.

West, do germânico *westaz, é cognato do latim vesper, “fim de tarde, crepúsculo”, que nos deu véspera e vespertino, além da estrela vésper, uma óbvia referência ao pôr do sol. A origem é o indo-europeu *wes-, “crepúsculo”.

North vem de *nurthaz, “esquerdo” em germânico, por sua vez do indo-europeu *ner-, de mesmo significado, referindo-se ao lado do nosso corpo quando estamos de frente para o nascente. É que os antigos sempre tomavam o levante como o principal ponto cardeal; daí surgiu o verbo orientar no sentido de “guiar”. Depois da invenção da bússola, cuja agulha aponta sempre para o norte, também adotaram esse ponto cardeal como referência; daí o verbo nortear.

Finalmente, South é oriundo de *sunthaz, “o lado do Sol” (de *Sunnon, “Sol”), pois, como disse, este é o lado do céu em que o Sol transita visto do Norte.

Não sou versado em línguas de povos originários do Hemisfério Sul, como os africanos, polinésios e ameríndios, mas suponho que, por sua posição geográfica, as denominações de suas línguas para “norte” e “sul” sejam o inverso das dos povos da Europa e Ásia.

Como a nossa língua soa aos estrangeiros

É muito comum aos falantes de uma determinada língua, qualquer que seja, a ideia de que eles não têm sotaque, quem tem são os falantes das outras línguas. É que estamos tão acostumados com os sons do nosso idioma que eles não nos causam nenhuma estranheza. Também pudera, nós os ouvimos desde que nascemos, então nossos ouvidos e nossa mente estão condicionados a eles. Mais do que isso, estamos condicionados não só aos sons da nossa língua, mas aos sons da nossa variedade linguística regional. Assim, um paulistano não estranha a pronúncia de outro paulistano, mas estranha a pronúncia de um carioca ou de um nordestino.

Ao mesmo tempo, reconhecemos de imediato certas línguas estrangeiras mesmo que não saibamos falá-las simplesmente pela sua sonoridade. Quem, mesmo sem saber falar francês, não é capaz de ouvir alguém falando essa língua e matar imediatamente a charada: isso aí é francês! Pois é, só que não temos a mesma percepção em relação ao nosso próprio idioma por uma razão óbvia: porque, sendo falantes nativos que, portanto, compreendem cem por cento do que está sendo dito, prestamos mais atenção ao significado do que ao som das palavras.

Só que agora a inteligência artificial está permitindo que ouçamos a nossa língua abstraindo completamente o sentido dos enunciados e focando nossa atenção apenas nos sons. Como? Produzindo enunciados sem nenhum sentido, formado apenas de palavras que não existem, mas que obedecem à fonética e à fonologia do português. Uma fala sintetizada por computador que utiliza os sons do português e os combina na mesma ordem em que eles costumam aparecer em palavras reais, isto é, formando sílabas que seguem o padrão estrutural do português — excluindo, portanto, encontros consonantais que não seriam possíveis em nosso idioma.

O resultado desse experimento pode ser apreciado no seguinte link: www.tiktok.com/@iabotsinger/video/7228998392431545605. Como vocês poderão perceber, a sonoridade do áudio corresponde mais especificamente ao português da região central do Brasil, especialmente Sudeste e Centro-Oeste (eu até apostaria que o “sotaque” utilizado pelo algoritmo foi o paulista). De fato, o áudio não soa “chiado” como seria a pronúncia carioca ou nortista nem nasalado como seria a nordestina. Tampouco soa cantada como a de certas regiões do Sul do país ou como o paulistano do bairro da Mooca (o famoso “mooquês”) nem arrastado como o “caipirês”.

Por outro lado, se o experimento fosse feito com base no português lusitano, teríamos um resultado bastante diferente: muitos chiados, muitos encontros consonantais resultantes de vogais que simplesmente não se pronunciam, um ritmo bem mais rápido que o nosso. Tanto que o escritor português Eça de Queiroz disse certa vez que nós brasileiros falamos português com açúcar.

A ciência é apenas mais uma ideologia?

Tornou-se muito frequente nos últimos tempos a crítica, oriunda sobretudo de filósofos e cientistas sociais, de que a ciência é uma atividade tão ideológica quanto qualquer outra prática discursiva humana e que, portanto, a suposta neutralidade e imparcialidade da ciência, garantidas pelo chamado método científico, não passam de um mito. E mais: que esse mito estaria a serviço de certos interesses políticos e econômicos contrários aos valores de igualdade e justiça social, bem como aos direitos humanos. Noutras palavras, a ciência estaria a serviço de um projeto capitalista opressor e exploratório espertamente encoberto por um jargão incompreensível aos leigos, criado para passar a falsa impressão de isenção e assepsia.

Mais do que isso, argumenta-se que a ciência procura revestir-se de uma aura de infalibilidade e de certeza quando, na verdade, ela é apenas uma ideologia, no sentido de “crença que temos sobre a realidade, distinta da própria realidade”, como qualquer outra: como a política, a religião, o jornalismo, a arte, a publicidade… Mais além, alguns até empregam o termo ideologia aplicado à ciência em seu sentido marxista de “acobertamento proposital da realidade”.

Com o propósito de provar essa tese, invocam-se grandes pensadores do fazer científico, como Thomas Kuhn, Robert Merton, Karl Popper, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e outros, todos, com exceção de Kuhn, humanistas e não cientistas, portanto intelectuais que discutiram a ciência teoricamente, mas nunca a exerceram, logo nunca experimentaram na prática o que é fazer ciência.

Diante dessas críticas, convém primeiro esclarecer do que estamos falando. Desde o século XVII, convencionou-se que ciência é um conjunto de práticas de busca da verdade e de construção permanente do conhecimento por meio do raciocínio lógico, da razão e sobretudo do chamado método científico, ou método experimental, que consiste em formular hipóteses acerca de um fenômeno (natural ou social) e testá-las por meio da observação e experimentação (atenção aos meus grifos). Se a hipótese resiste ao teste da experiência, torna-se uma teoria e passa a ensejar novas hipóteses, igualmente sujeitas à testagem empírica. Logo, trata-se de um processo contínuo e infinito. Nele, por vezes teorias são modificadas ou simplesmente abandonadas quando os dados da experiência as contradizem. É o chamado mecanismo de autocorreção da ciência.

Mas a ciência é uma construção permanente do conhecimento, o que significa que, ao contrário das ideologias, que são conhecimentos prontos e imutáveis, o conhecimento científico está em permanente construção, como uma parede a que se acrescenta um tijolo de cada vez. E esse conhecimento é construído a partir do que é lógico, racional, do que faz sentido, do que é plausível e não de explicações mágicas, sobrenaturais ou de argumentos de autoridade e opiniões pessoais e idiossincráticas. A ciência opera com hipóteses e não com dogmas ou opiniões. A diferença é que uma hipótese é uma espécie de “verdade provisória” a ser testada e eventualmente descartada. Já dogmas e opiniões não estão sujeitos a testes e refutações: ou você aceita o dogma ou é excomungado; eu tenho uma opinião sobre algo e só abdico dela se quiser. E a maioria das pessoas carrega consigo suas opiniões e seus preconceitos até morrer.

Como resultado, a ciência é, em primeiro lugar, um processo de busca da verdade e não a própria Verdade. Diferentemente da religião, que sustenta verdades absolutas e inquestionáveis, embora nunca provadas nem comprováveis (e que não raro são desmentidas pela experiência prática), a ciência faz uma aproximação permanente da verdade sem jamais alcançá-la. Nunca saberemos tudo, mas sabemos cada vez mais. A prova de que o conhecimento científico, mesmo incompleto e imperfeito, funciona são as tecnologias que usamos no dia a dia, todas decorrentes da aplicação dos saberes produzidos pela ciência.

Embora ela seja um conhecimento aproximado, reducionista, conseguimos prever com absoluta precisão a que distância da Terra passará um meteoro e tomar as devidas providências para que ele não nos atinja. Quando o meteoro passa, constatamos aliviados que nossa previsão estava correta. Já ideologias e doutrinas fazem previsões que nunca se cumprem: quantas vezes profetas e religiosos previram o fim do mundo para determinada data, e, no entanto, ainda estamos aqui, vivos? A doutrina marxista, por exemplo, previu um regime político e um sistema econômico que produziriam sociedades absolutamente justas, igualitárias e felizes, e, entretanto, o que vemos é que todas as sociedades governadas por regimes marxistas são profundamente injustas, infelizes e cruéis.

Na verdade, a crítica que se faz à ciência deveria ser dirigida aos cientistas, que, como seres humanos, são falhos, portadores de fraquezas, emoções, desejos e vaidades, e, como tal, corrompíveis pelos valores do capitalismo e do mercado. Há uma grande diferença entre a ciência e os cientistas, assim como há entre a política e os políticos. Deveríamos então rejeitar a política só porque há políticos corruptos?

Leio numa postagem do filósofo brasileiro Gustavo Bertoche exatamente essa crítica. Ele diz:

Foi Rubem Alves quem, no livro “Filosofia da Ciência”, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.

Nada mais verdadeiro. Mas observem que sua crítica se dirige aos cientistas — e nem todos são assim; na verdade, a maioria não é — e não à ciência, embora ele diga em outro trecho que

[a] ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas. […] a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. […] Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

O que parece um defeito da ciência, que retiraria sua credibilidade e a colocaria na posição de mera ideologia — ou, antes, de embate de ideologias conflitantes — é na verdade sua grande qualidade. Se não sabemos a verdade e, para tentar nos aproximar dela, precisamos formular hipóteses, é óbvio que diferentes hipóteses precisarão ser testadas. É óbvio também que há diferentes métodos de testar essas hipóteses. É daí que surgem os embates entre os cientistas, cada qual sustentando sua hipótese e defendendo sua corrente de pensamento até que um experimento (ou muitos) determine qual hipótese é válida é merece tornar-se uma teoria — lembrando que teorias também são constantemente testadas e que o papel do cientista não é tentar comprovar uma teoria e sim derrubá-la; logo, teorias são apenas hipóteses que passaram num primeiro teste. Por conseguinte, a controvérsia entre os pesquisadores, longe de revelar a fraqueza da ciência em chegar à verdade, é o que conduz a comunidade científica a aproximar-se cada vez mais dela.

Citando mais uma vez Bertoche, “[s]e um cientista torna-se um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e posicionou-se no campo da ideologia”. Por sinal, é contra esse dogmatismo de certas alas da academia, especialmente na linguística, que eu venho me batendo. Sobretudo nas ciências sociais, ainda muito impregnadas pelo pensamento filosófico, em que a argumentação e a retórica valem mais do que os dados empíricos, há muita ideologia, muito dogmatismo e pouca cientificidade.

Mas o dogmatismo existe em todas as áreas científicas porque, mais uma vez, a ciência é feita por cientistas, que são humanos. Nesse sentido, há na academia pessoas que, em vez de impulsionar o avanço do conhecimento, representam um verdadeiro obstáculo a ele. Felizmente, elas cedo ou tarde acabam substituídas por outras, com novas ideias (ou talvez novos dogmas), e vida que segue.

Porém, o grande problema em equiparar ciência e ideologia sob o argumento de que “todo discurso é ideológico” ou de que “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”, palavras de ordem repetidas à exaustão na área de Ciências Humanas e de Humanidades, é pôr no mesmo balaio fatos e opiniões, dando a um preconceito o mesmo peso argumentativo de uma afirmação comprovada e comprovável. Nesta era da pós-verdade que estamos vivendo, instituiu-se que o que vale não é o que efetivamente é verdade e sim o que eu penso que seja verdade. Se acho que determinado termo tem conotação racista, então ele deve ser banido dos dicionários mesmo que todas as evidências etimológicas e semânticas comprovem que ele não tem nem nunca teve qualquer conexão com o conceito de raça, muito menos depreciativamente. Se a opinião vale tanto ou mais do que o fato e se o conhecimento científico é relativo e ideológico, então afirmações como a de que a Terra é redonda, de que vacinas previnem doenças ou de que a água ferve a 100 graus Celsius são meras crenças propagadas por cientistas com segundas intenções inconfessáveis e financiados por poderosas corporações que querem acabar com a humanidade. Está então aberto o caminho para as fake news, para os negacionistas, os terraplanistas, os antivacinistas, os criacionistas, os teóricos da conspiração e, pior, os fascistas, os supremacistas brancos e os terroristas de toda espécie.

Existe empobrecimento na língua e na cultura?

Um amigo meu, que está concluindo sua dissertação de mestrado, me pergunta se é possível falar em empobrecimento da cultura ou da língua e, mais, se é possível medir esse empobrecimento, caso ele exista.

Trata-se de um tema espinhoso, pois o próprio conceito de empobrecimento é relativo: pode-se argumentar que o que realmente ocorre é uma mudança de paradigmas, que a cultura e a língua são dinâmicas, portanto a ideia de que algo está se perdendo é mera perspectiva saudosista, já que algo novo está sempre surgindo em seu lugar.

No entanto, muitos intelectuais de respeito apontam o fato de que está efetivamente havendo uma perda em termos tanto quantitativos quanto qualitativos; Gilles Lapouge, por exemplo, fala disso em vários de seus escritos.

Em minha visão, esse empobrecimento tem a ver com a decadência da educação e também com as novas tecnologias, fenômeno mundial, embora mais perceptível em nações como o Brasil, em que o sistema educacional e a condição social da população são mais frágeis. Antigamente, a cultura era transmitida basicamente pelos livros, e ler tanto literatura quanto ciência e filosofia era um hábito entre as famílias da elite, mas também uma imposição da escola. E liam-se os clássicos da literatura, cujo linguajar era muito rico, os grandes pensadores de todos os tempos, desde os gregos até os mais modernos e mesmo jornais e revistas, que naquela época eram muito bem escritos.

Então veio o rádio, a seguir a televisão, depois os sites de internet e, mais recentemente, as redes sociais. Sobretudo os mais jovens passaram a valorizar mais a informação midiática do que a literária, talvez por seu apelo audiovisual e seu marketing. Mas também porque a linguagem desses meios se aproximava mais do coloquial desses jovens. Até mesmo os filmes e as telenovelas foram pouco a pouco incorporando um linguajar mais despojado, mais próximo do dia a dia: a fala impostada e teatral dos anos 1940 e ’50 cedeu às gírias e expressões cotidianas. Também os temas mudaram: as antigas telenovelas, que adaptavam para a TV grandes romances do passado ou eram ambientadas numa Europa longínqua e medieval passaram a abordar a vida presente das cidades brasileiras, com seus dramas e contradições — drogas, violência, choque de gerações, racismo, machismo, homofobia. Mesmo as poucas novelas de época que temos hoje procuram adaptar-se à ideologia presente, lançando uma visão crítica à escravidão que certamente não constava na maioria das obras clássicas.

Como disse no início, pode ser que estejamos apenas substituindo uma cultura por outra: saem os mitos gregos, entram os super-heróis norte-americanos. Mas a educação atual privilegia sem dúvida o conhecimento tecnológico em detrimento da cultura clássica, afinal nossa sociedade capitalista espera que a escola forme mão de obra qualificada para as empresas, e dominar tecnologia da informação é mais importante hoje em dia do que saber latim ou ser versado em literatura grega.

Quanto à língua, é possível mensurar objetivamente se há ou não um empobrecimento, mas essa mensuração terá de restringir-se aos registros que temos, isto é, aos textos escritos de hoje em dia e do passado. Na verdade, não temos como saber se a fala informal das pessoas comuns da atualidade é mais ou menos rica que a de nossos antepassados, pois não há registros daquelas falas a não ser episodicamente na reprodução que algum escritor fez da fala popular ao retratar um personagem.

Mas há pistas. Por exemplo, minha falecida mãe me legou a cartilha em que estudara as primeiras letras. E é possível ver nos textos desse livro didático dirigido a crianças de seis, sete anos uma riqueza vocabular que deixa embaraçados hoje em dia até estudantes universitários. A comparação entre textos escritos de décadas ou séculos passados e atuais permite avaliar, dentre outras coisas, a complexidade das estruturas gramaticais, a já mencionada riqueza vocabular, o uso de figuras de linguagem, a elaboração estilística e mesmo a variedade e a erudição das referências temáticas (filosofia, mitologia, alta literatura). Mesmo a extensão dos textos pode nos revelar algo: parece que hoje, até pela falta de tempo imposta por nossa vida corrida, os textos costumam ser mais curtos, concisos e objetivos — às vezes até lacônicos. E um texto mais curto é também mais pobre linguisticamente.

A análise comparativa de textos antigos e atuais nos aspectos linguísticos acima mencionados pode ser feita por meio de softwares especializados que devolvem dados quantitativos e estatísticas sobre a frequência de uso de palavras, expressões, construções sintáticas, etc., classificados por gênero textual, por época, por autor, e assim por diante. Os linguistas estatísticos e computacionais, assim como os especialistas em linguística de corpus, têm bastante familiaridade com esses programas.

Em resposta ao meu amigo, não posso dizer assim de chofre se a cultura e a língua estão empobrecendo, pois seria preciso empreender o estudo que acima mencionei para ter dados concretos em que pudéssemos apoiar nossas afirmações. Do contrário, eu estaria apenas emitindo uma opinião pessoal e, como cientista, sei mais do que ninguém que, em ciência, opiniões pessoais não valem nada. Mas, se me permitem um palpite — afinal este texto não é um artigo científico —, acho que nossa educação indigente, somada à pouca importância que uma parcela significativa de nossa população dá a ela, tem contribuído muito para a derrocada da qualidade dos textos que se produzem hoje, pelo menos no Brasil. Mas é possível que a progressiva substituição de Chico Buarque e Elis Regina por Anitta, a de Machado de Assis por Paulo Coelho, a de Beatles e Burt Bacharach por Rihanna, a de Ernest Hemingway por Harold Robbins estejam de fato assinalando um empobrecimento cultural, com seu inevitável corolário linguístico.

Uma última consideração: a história é feita de ciclos. A eras de apogeu cultural sucedem-se eras de decadência e trevas para novamente ressurgir o esplendor da cultura, e assim sucessivamente. Talvez estejamos de fato vivenciando uma época de obscuridade; tomara seja apenas um interregno a anunciar um futuro novo boom de cultura.

As “fake news” na linguística

Como tenho comentado aqui neste espaço, existe uma cruzada por parte de alguns colegas linguistas em prol de uma agenda muito mais ideológica do que científica, que, embora até bem-intencionada, já que visa à inclusão social por meio da linguagem, peca por falta de cientificidade, falseia fatos, distorce a realidade, propõe uma utopia irrealizável e sobretudo se equivoca ao querer nivelar a educação por baixo em vez de proporcionar aos mais carentes acesso ao verdadeiro ensino de qualidade.

Num artigo intitulado “Quando se fala de linguagem neutra, não é de linguagem neutra que se fala”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a linguista Jana Viscardi lança mão de mais uma fake news para sustentar um ponto de vista ideológico. Tentando provar que a língua é machista por fazer a concordância no plural pelo gênero masculino (o famoso “bom dia a todos”, que supostamente excluiria as mulheres), ela diz:

Um dos argumentos “linguísticos” mais comuns para recriminar o uso das novas formas e manter exclusivamente o uso das já conhecidas (a saber, o feminino e o masculino) é “todos já inclui todo mundo”. Eis aí o conceito de ‘masculino genérico’, regra que faz parte de uma convenção na língua portuguesa (mas não só nela) em que, para se referir a um grupo de homens e mulheres, usa-se o masculino representando todo o conjunto. Assim, diz-se “bem-vindos”e estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa.

Assim, costuma-se aceitar o masculino genérico e assumir que “a língua é assim naturalmente”. Pois eu terei que desapontar você: pesquisas conduzidas ainda nas décadas de 70/80 revelam que o uso do masculino genérico não tem nada de natural. Ann Bodine, por exemplo, nos revela, ao analisar gramáticas antigas, a incômoda realidade de que gramáticos dos séculos XVII e XVIII justificavam o uso de formas linguísticas masculinas (em distintas circunstâncias) pela relevância que o homem teria na sociedade. Observe, com isso, que a regra nada teria de “natural”. Ao invés disso, a definição dessa regra tinha a ver com a maneira como a presença das mulheres e dos homens era lida pela sociedade da época (e por aqueles que escreviam as gramáticas).

Esse exemplo ilustra algo fundamental para a discussão em torno da questão da neolinguagem: aquilo que muitos entendem como ‘natural’ na língua pode ser uma convenção, como no caso do masculino genérico. E essa convenção se estabeleceu a partir do entendimento de sociedade que se tinha na época e, mais do que isso, o entendimento do papel da mulher nessa mesma sociedade, como apontei anteriormente. Desde a década de 70 questiona-se, então, o uso do masculino genérico e são propostas outras formas possíveis – pasmem, nas línguas do mundo há diferentes maneiras de se dizer a mesma coisa.

Segundo a autora, a concordância no masculino não é natural, mas fruto de uma convenção estabelecida nos séculos XVII e XVIII por gramáticos homens (ela não disse brancos, heterossexuais, cisgênero e conservadores, mas está subentendido) com base no entendimento de que as mulheres tinham menos valor na sociedade da época do que os homens.

Não há dúvida de que esse entendimento era verdadeiro, tanto que até o filósofo Baruch Spinoza, apesar de toda a sua racionalidade, considerava que a filosofia não devia ser praticada por mulheres pelo fato de elas serem mais emocionais que os homens. Mas Ann Bodine, citada por Viscardi, apenas afirma que esse argumento era utilizado pelos gramáticos da época para justificar a concordância no masculino; em nenhum momento ela diz que essa concordância foi uma escolha desses gramáticos. Na verdade, essa escolha nunca ocorreu. Vamos explicar por quê.

Como se sabe, a língua portuguesa só admite dois gêneros gramaticais, o masculino e o feminino. Portanto, se a concordância no plural não fosse feita no masculino, teria de ser feita no feminino, já que não temos um terceiro gênero — teríamos então de dizer “bom dia a todas”. Nesse caso, teríamos um sexismo reverso: os homens é que estariam excluídos.

Mas a questão é que a concordância no plural se dá no masculino em português desde muito antes do século XVII; na verdade, desde os primórdios da língua — ou ainda antes, no latim, que fazia a concordância para pessoas no masculino — multi vocati sunt, pauci vero electi, “muitos são chamados, poucos os escolhidos” (Mateus 22:14) — e para coisas no neutro — multa me dehortantur a vobis, “muitas coisas me desanimam em vós” (Salústio, Bellum Iugurthinum). Só que o latim herdou essa concordância do indo-europeu, que já a fazia 6 mil anos atrás. E este provavelmente a herdou do nostrático, língua-mãe do indo-europeu, falado há cerca de 10 a 15 mil anos. Se formos retroceder no tempo até achar a origem dessa concordância, descobriremos que os Homo erectus, primeiros hominídeos a desenvolver a fala, já tinham uma língua “machista”. E isso é assim por razões que têm a ver com nossa própria biologia. Na maioria das espécies animais, há uma prevalência física do macho sobre a fêmea; por exemplo, são os machos que disputam as fêmeas, e não o inverso. Isso obviamente se refletiu na linguagem desde que o homem começou a falar e foi passando de língua-mãe a língua-filha desde então. Como a evolução linguística é fortuita e não controlada por nossos desejos, essa situação nunca mudou, e não vejo como ela poderia ser mudada agora por decreto ou por força de uma militância política.

O fato é que, como expliquei em um capítulo do meu livro O universo da linguagem chamado “O gênero da natureza” e também no vídeo Linguagem neutre de gênere? do meu canal do YouTube, o gênero que subsume masculino e feminino, neutralizando-os, chama-se gênero complexo. Portanto, o latim multi não é propriamente masculino e sim complexo.

O que ocorreu na verdade, como já expus várias vezes, é que o latim tinha três gêneros, masculino, feminino e neutro. E podia, eventualmente, fazer a concordância plural no gênero neutro. Só que, por razões meramente fonéticas, o gênero neutro e o masculino se fundiram no latim vulgar ainda antes da passagem do latim ao português. Portanto, o gênero masculino assumiu as funções que antes eram do neutro. Esse processo não teve nada de ideológico, nunca pressupôs uma superioridade dos homens sobre as mulheres, mas tão somente decorreu de uma mutação fonética: a perda da consoante final que distinguia entre o gênero masculino e o neutro. Logo, a concordância no plural pelo masculino sempre foi uma injunção morfológica da língua portuguesa e jamais fruto de uma escolha dos falantes, muito menos dos gramáticos do século XVII.

Mesmo línguas como o inglês e o alemão, que neutralizam a oposição de gêneros no plural (o inglês all e o alemão alle significam indiferentemente “todos” ou “todas”), não fazem isso por razões de inclusão social, mas igualmente em decorrência da evolução fonética fortuita. Aliás, segundo a citada Ann Bodine, o inglês sempre utilizou o pronome pessoal plural supragenérico they no singular para neutralizar masculino e feminino (o tal gênero complexo); apenas por um período sua gramática normativa substituiu esse uso pelo masculino he (entre os séculos XVII e XIX) e em seguida passou a usar he or she, ou mesmo o feioso (s)he, para, mais recentemente, retornar ao uso de they. A solução encontrada pelo inglês evidentemente não funcionaria em português, em que teríamos de optar entre eles e elas, portanto o dilema continuaria.

Os defensores da tese de que o português é machista podem argumentar que, desde o início, os falantes poderiam dizer “bom dia a todos e todas” (“todes” seria impensável na Idade Média, quando o português surgiu: esse linguajar certamente terminaria na fogueira da Santa Inquisição). Só que, mais uma vez, há dois problemas nesse raciocínio. Primeiro, a questão da economia linguística, que também atende pelo nome de concisão: “todos” é mais simples que “todos e todas”. Segundo, se dizemos “todos e todas”, estamos colocando os homens em primeiro lugar, logo o machismo persiste. Se, ao contrário, dizemos “todas e todos”, estamos privilegiando as mulheres e aí caímos no já citado sexismo reverso. O mesmo vale se dizemos simplesmente “todas”.

Em suma, a concordância no plural pelo gênero masculino atendeu em primeiro lugar à evolução fonética natural da língua e em segundo ao princípio da economia linguística; a ideia de que isso é assim porque os homens são superiores às mulheres foi apenas um argumento oportunista usado pelos homens do passado para justificar sem base científica alguma, num tempo em que, por sinal, nem se sonhava com a existência de uma ciência da linguagem, um fato puramente gramatical.

Não sei se Jana Viscardi conhece esses fatos (deveria conhecer, já que é linguista) nem se defende seu ponto de vista equivocado por pura ignorância da história da língua ou se o faz por deliberada má-fé com o intuito de sustentar uma posição ideológica muito bem-vista no meio acadêmico de Letras, embora nem um pouco científica. Mas a realidade é que, nas chamadas ciências humanas (que, por vezes, e graças a essas mazelas, têm pouco de ciências), o uso de fake news como instrumento de argumentação é fato corrente. E, como os leitores de veículos como o Le Monde Diplomatique são na maioria leigos no assunto, essas fake news passam como verdades. Ainda mais quando quem assina o artigo detém um título de doutora em linguística.

P.S.: Jana Viscardi escreve: “estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa”. Se ela não quer ser sexista, deveria escrever: “estaríamos todas, todos e todes incluídas, incluídos e incluídes na conversa”. Linguagem inclusiva e superconcisa, não?

Os peixe

Hoje quero reproduzir aqui neste espaço um excelente artigo de meu amigo e colega José Horta Manzano publicado originalmente no Correio Braziliense em 2011. A questão aqui abordada continua mais atual do que nunca. Vamos ao artigo.

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo “os menino pega os peixe”como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central — imperial primeiro, republicana em seguida — usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos — afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de “falar errado”. Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não “falam errado”. Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, “os menino pode pegar tudo os peixe”. Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

O ser humano é realmente um animal racional?

Dando continuidade à minha “filosofice” do artigo anterior, publico agora outro artigo, redigido muito tempo antes daquele, mas que de certa forma funciona como complemento e continuação da minha reflexão sobre a inteligência, a racionalidade e a sabedoria (ou não) da humanidade. Então vamos lá.

Por que o BBB faz tanto sucesso? Por que música brega é tão popular? Por que tanta gente aposta em loterias? Por que tanta gente acredita no sobrenatural? Por que políticos corruptos são (re)eleitos?

Cientistas sociais se debruçam sobre essas questões e produzem teses e mais teses acadêmicas quando a resposta é simples: o bom gosto é irmão do bom senso. E a maioria das pessoas não tem nem bom gosto nem bom senso. Aliás, o bom gosto é a manifestação estética do bom senso. E o bom senso deriva da racionalidade. Só que, embora a racionalidade seja o mais humano dos atributos (“o homem é um ser racional”), ela é um atributo “recessivo”, isto é, a maior parte das pessoas não tem o gene da racionalidade como dominante. É por isso que pessoas guiadas pela razão são minoria no planeta.

A razão foi importante na evolução da espécie humana, mas o fator preponderante da nossa evolução foi de natureza não racional. A superstição e o julgamento pela emoção parecem ter contribuído mais para a sobrevivência dos nossos antepassados do que a razão. Racionalidade é bom na hora de planejar uma caçada, mas isso um dos membros da tribo — o mais racional — pode planejar sozinho. Já a sobrevivência individual dependeu mais de decisões rápidas e não racionais.

Embora se desenvolva com o estudo, a racionalidade só aparece como traço dominante numa pequena parcela da população. É por isso que a religião e a superstição são mais populares que a ciência, e o mau gosto supera o bom senso estético.

A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

Ainda sobre Marcos Bagno e sua gramática

ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.

Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.

A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.

Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.

A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.

Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.

O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.

Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou  não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.

Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.

Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.

Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?

Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?

Também  se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.

Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.

Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…

Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.

 Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.

Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.

É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.

Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.

Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.

Quem é o calhorda?

Desde o início do ano, o Prof. Fernando Pestana, meu colega colunista na página Língua e Tradição, vem publicando nessa página uma série de artigos comentando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do linguista Marcos Bagno, sobretudo apontando os erros metodológicos e as incoerências entre o que o autor prega e o que ele mesmo e os autores em que se apoia fazem em matéria de uso da chamada norma-padrão da língua portuguesa.

Antes de mais nada, convém situar o leitor sobre do que trata essa gramática. Nela, Bagno advoga que a atual norma culta do português brasileiro, isto é, o modo como os brasileiros altamente escolarizados falam e escrevem, está bastante distante da norma-padrão, aquela preconizada pela gramática normativa e ensinada nas escolas, a qual estaria, portanto, desatualizada e se teria tornado anacrônica, além de refletir mais o português lusitano do que o brasileiro. Como resultado, o autor propõe não só que se adote uma nova norma-padrão, que abone construções típicas do falar brasileiro, como também que se passe a ensinar essa nova norma nas escolas. É daí que vem o epíteto “pedagógica” do título da obra.

Bagno afirma, dentre outras coisas, que os pronomes demonstrativos este/esta/estes/estas não existem mais no português brasileiro, substituídos que foram por esse/essa/esses/essas em todos os casos. No entanto, o próprio autor emprega diversas vezes este/esta/estes/estas em sua obra, numa contradição com sua própria lição.

Ele também defende que construções como “eu a vi” quase não se usam mais e, portanto, deve-se a partir de agora abonar construções como “eu vi ela”. Seu argumento, coerente com o militante de esquerda que é, é o de que a norma-padrão vigente é elitista e excludente e que, para empoderar os menos favorecidos, é preciso chancelar o modo como eles se expressam.

Esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro, a verdadeira emancipação dos mais pobres e menos escolarizados se dá justamente pela educação, portanto pelo acesso dessa população a um ensino de qualidade, que a torne proficiente naquela norma que vai lhe abrir as portas do mercado de trabalho qualificado, e não pelo rebaixamento da norma-padrão ao linguajar das pessoas menos escolarizadas. Essa proposta seria como se, em vez de lutar pela saúde bucal da população, tornando o tratamento dentário acessível a todos, se instituísse a boca banguela como padrão de normalidade.

O segundo problema é que a norma-padrão de uma língua se baseia no uso formal que as pessoas cultas fazem na modalidade ESCRITA. Embora a maioria de nós brasileiros use de fato esse no lugar de este mesmo referindo-se a um objeto próximo de quem fala, o uso do pronome este ainda está muito vivo em nossa escrita formal. Da mesma forma, todos nós dizemos “eu vi ela” quando falamos informalmente, mas nenhuma pessoa bem escolarizada, que é a que redige textos formais, escreveria dessa maneira num documento profissional, trabalho escolar ou na prova do Enem. Logo, o argumento de que nossa norma-padrão é uma peça de ficção, um retrato do português escrito de séculos atrás, como sustenta Bagno, não se sustenta.

É bem verdade que muitos profissionais de nível superior já não respeitam rigorosamente certas regras da gramática normativa quando escrevem, como, por exemplo, quando utilizam a próclise (anteposição do pronome oblíquo ao verbo) em contextos em que deveriam usar a ênclise (posposição do pronome ao verbo). Nesse sentido, a norma-padrão poderia, sim, ser flexibilizada, e creio que o será nos próximos anos, como é da dinâmica natural das gramáticas. Mas, se as pessoas cultas já escrevem assim — eu mesmo faço isso e, aliás, o fiz aqui neste texto — e essas construções são aceitas pacificamente, por que precisaríamos reformular radicalmente a norma-padrão? Não bastariam alguns pequenos ajustes? Por outro lado, que sentido há em institucionalizar uma construção como “eu vi ela” se nenhum redator culto a emprega em textos formais?

Nesse sentido, as críticas do Prof. Pestana à obra de Bagno são plenamente razoáveis e pertinentes. Além disso, a gramática em questão se baseia muito mais nas percepções pessoais do próprio autor sobre o português brasileiro do que num levantamento sistemático, segundo o método científico, de textos escritos formais do Brasil atual, ainda que ele afirme ter feito tal levantamento. Na prática, o que Bagno faz é tomar o português oral informal como padrão a ser adotado na escrita formal, algo que ainda está muito longe de acontecer e de ser aceito socialmente.

Mas o motivo deste meu artigo é que o linguista Marcos Bagno postou recentemente um texto no Facebook com o título “A calhordice do ‘ele não escreve como manda os outros escreverem’”. Embora não especifique a quem dirige sua ira, fica claro que o alvo é justamente o Prof. Pestana, primeiro porque, num trocadilho de gosto duvidoso, Bagno impreca a certa altura: “Vá queimar pestana, calhorda (…)”. E, em segundo lugar, porque as críticas que tenta rebater em sua postagem são exatamente aquelas feitas por Pestana.

A primeira coisa a observar é que Bagno não contra-argumenta, em nenhum momento afirma que os apontamentos de Pestana são inverdades, mas limita-se apenas a dizer que

a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia.

Só que, em sua gramática, Bagno não sustenta que se use indiferentemente quer a forma tradicional quer a inovadora, ele aconselha os professores a ensinar apenas esta segunda. Diz ele: “é perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença entre esse e este, que não existe na língua e que não é rigorosamente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos mais monitorados”.

Como não tem argumentos para negar que as críticas de Pestana têm fundamento, Bagno recorre ao argumentum ad hominem da retórica de Aristóteles e chama seu crítico de calhorda. Não podendo atacar o argumento, ataca o argumentador, numa atitude infantil de descontrole emocional de quem sabe que não tem razão. Ao contrário, Pestana critica Bagno com espírito científico, como é praxe no debate acadêmico, jamais em nível pessoal, jamais resvalando para a ofensa ou o insulto. Em outras palavras, ataca as ideias, não a pessoa.

Em outro momento, Bagno dá uma “carteirada” em Pestana, um típico “você sabe com quem está falando?”, ao dizer:

escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

Arrogante como sempre e detentor de uma postura de dono da verdade, como o são todos os extremistas, radicais e dogmáticos, Bagno se gaba de ter escrito uma gramática de mil páginas, o que, supostamente, Pestana não seria capaz de fazer. Ora, primeiramente, um livro grande não é necessariamente um grande livro, ou “tamanho não é documento”. Em segundo lugar, Pestana é autor d’A Gramática para Concursos Públicos, por sinal, a gramática mais vendida e a mais lida por concurseiros e vestibulandos, mas não só por eles.

A certa altura, Bagno coloca o pronome pessoal oblíquo antes do advérbio de negação (“…como se fosse possível algum trabalho que o não seja…”) e, pretensioso, desafia seu opositor como quem quer ensinar o padre-nosso ao vigário: “já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!”.

Bagno também afirma em sua postagem que sua gramática “descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas”. Será? “Eu vi ela” já está enraizado no uso ESCRITO das pessoas cultas? Diz também que “descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita”. No entanto, sua gramática se diz pedagógica justamente porque quer ensinar as pessoas a usar essas formas em sua escrita. Gramáticas descritivas descrevem a língua tal como é falada e escrita, tanto pelos mais cultos quanto pelos iletrados; já gramáticas normativas e pedagógicas normatizam a linguagem formal, isto é, estabelecem normas de como se deve ou não se deve escrever textos formais. A gramática de Bagno é pedagógica até no título, e seu conteúdo não é meramente descritivo, com fins unicamente científicos, é prescritivo e estimula os professores a ensinar a seus alunos um padrão que praticamente só o próprio Bagno utiliza. Afinal, quem mais no meio acadêmico ou profissional escreve “leia tudo o que tive de ler para escrever ELA”?

Em outra passagem de seu texto, Bagno se vangloria de ter escrito um romance em que não usou nenhuma vez a palavra cujo. Enquanto os grandes escritores se esmeram em produzir obras linguisticamente ricas, Bagno se orgulha de sua pobreza vocabular. E ainda assim se considera um literato!

Por fim, usando da falsa humildade característica dos cínicos, Bagno afirma: “aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito criticas e observações — mas calhordice, aceito não”. Coerência teórica?! Aceita críticas e observações?! Só se forem aquelas que não exponham sua incoerência ou a fragilidade de suas postulações. Do contrário, o crítico é calhorda, mesmo que todas as suas críticas estejam fundamentadas e apoiadas em dados colhidos por metodologia científica, como o fez o Prof. Pestana.

Mas, a certa altura de seu texto, Bagno também confessa: “na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese”. Pergunta que eu também me faço. O fato é que Marcos Bagno diz o tempo todo fazer ciência ao mesmo tempo em que confessa que todo o seu trabalho é eivado de ideologia (marxista, no caso), e que não é possível fazer ciência não ideológica. Na verdade, todo trabalho científico estritamente descritivo e explicativo que seja bem feito e metodologicamente correto, seja nas ciências naturais ou nas humanas, é não ideológico, já que se atém à realidade dos dados coletados, sem emitir opiniões ou juízos de valor. No entanto, Bagno advoga o tempo todo em favor de uma agenda política, como quando diz em sua postagem:

[o argumento] (é) calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc.

Em resumo, Bagno não faz ciência, faz política travestida de ciência. Como todo extremista, não se pauta por fatos objetivos e sim por dogmas. Como todo radical, é raivoso contra quem discorde de suas ideias. Como todo hipócrita, finge-se de democrata quando só dá ouvidos a quem lhe faz coro. Como todo aquele que se sabe medíocre (porque quem é bom de fato não precisa provar nada a ninguém), vomita o tempo todo seu currículo acadêmico e desqualifica seus adversários. Como militante político barulhento e rebelde sem causa, desprestigia os verdadeiros linguistas, aqueles que fazem ciência de verdade com seriedade e responsabilidade, que não misturam fatos com opiniões, que não falseiam dados para provar suas teses, que não atacam a honra de seus críticos ou adversários e que, além de tudo, escrevem num português que, mesmo não seguindo religiosamente a norma-padrão, é perfeitamente aceitável entre as pessoas de cultura. O que não é o caso do Sr. Marcos Bagno.

Novas palavras a ser proibidas por serem politicamente incorretas

DISCLAIMER AOS DESAVISADOS: Este texto tem fortes doses de ironia.

Como vocês sabem, a língua portuguesa, como de resto todas as línguas, é machista, racista, classista, homofóbica, transfóbica, aporofóbica, etc. etc. Portanto, precisamos urgentemente banir do nosso vernáculo todas as palavras e expressões que firam a suscetibilidade e os direitos das minorias. Aqui vai minha humilde contribuição a essa justa causa, apontando algumas palavras que até agora passaram despercebidas, mas que contêm uma grande carga de preconceito e desrespeito.

Comecemos pela palavra virtude. Sim, amigos, amigas e amigues, essa palavrinha aparentemente tão inocente e mesmo nobre veio do latim virtus, derivada de vir, “homem, ser humano do sexo masculino”, logo significa “qualidade de quem é homem, aquela que só o homem tem”. Como podem ver, é uma palavra pra lá de machista, visto que considera que só os machos da espécie têm a qualidade da virtude. Pelos mesmos motivos, devemos banir também viril, virilidade, varonil e másculo, pois todos esses termos remetem ao sexo masculino de forma positiva e elogiosa, desmerecendo as mulheres. Aliás, também é urgente proscrevermos hombridade (do espanhol hombre, “homem”) e homenagem (alguém até já propôs mulheragem em seu lugar, mas eu fico me perguntando se aí também não teríamos sexismo, só que em sentido oposto).

E por falar em mulheres, a própria palavra mulher é discriminatória, pois provém do latim mulier, “mulher casada, esposa”, como se só as casadas fossem mulheres de verdade. E o que dizer de senhor então? Essa palavra nos chegou do latim senior, que quer dizer “mais velho”, logo é um termo altamente ageísta. E jamais devemos dizer que um erro é crasso, pois crassus em latim é “gordo”, e nós evidentemente não somos gordofóbicos, né?

Por fim, jamais use a palavra atroz, que vem de ater, “negro” em latim, pois você estará associando a ideia nefasta de atrocidade às pessoas afrodescendentes. E tampouco use a palavra alvo no sentido de meta a ser atingida, já que esse vocábulo significa “branco”, e assim você estará elevando a raça branca ao status de superioridade, perfeição, de objetivo a que todos devem aspirar.

Bem, acho que por hoje já dei minha contribuição para tornar nosso idioma mais inclusivo e menos discriminatório. Em todo caso, se encontrar mais termos preconceituosos, darei prosseguimento ao meu index verborum prohibitorum, ok?

Inflação, carestia, preços altos… Mas de onde vêm as palavras “caro”, “preço” e “inflação”?

Hoje em dia, tudo está muito caro, efeito nefasto da inflação, que corrói nossa renda e afeta sobretudo os mais pobres. Mas qual a origem da palavra caro? Em latim, carus, de onde veio a palavra portuguesa, significava em primeiro lugar “querido, amado”. É daí que vêm os nossos “caro(a) amigo(a)” e “meu/minha caro(a)”, com que nos dirigimos a pessoas queridas. Daí também vêm caridade, carícia e acariciar, estes dois últimos por via do italiano. O termo latino se originou de uma raiz indo-europeia *kā‑, que significava “gostar, amar, desejar”. Ela está presente, por exemplo, no sânscrito kama, “amor”, que aparece no título do Kama Sutra, literalmente “Livro do Amor” (sutra, “livro” em sânscrito, é da mesma raiz de sutura, pois os livros eram feitos de folhas de pergaminho costuradas umas às outras).

Mas, como aquilo ou aqueles que amamos têm alto valor para nós, o latim carus também passou a significar “de alto valor ou preço”, como os gêneros de primeira necessidade atualmente no Brasil. Assim, caro hoje se refere não só ao valor moral ou afetivo que damos às coisas e pessoas como também ao custo monetário delas (das coisas, não das pessoas — se bem que há pessoas que também nos custam caro).

E se caro tem a ver com “valor, preço”, é por isso que temos apreço pelo que nos é caro, isto é, precioso. Em latim, pretium era o preço que se pagava por algo. Assim, pretiosus era “precioso” não só no sentido de “valioso”, mas também no de “dispendioso”. Hoje diríamos que o arroz e o feijão são muito preciosos, né? Consequentemente, appretiare, não era “apreciar”, mas “apreçar, avaliar, estabelecer o preço”. Mais uma vez, como tudo que tem valor tem alto preço (pelo menos entre os bens materiais), passou-se a usar os termos relativos a preço com sentido moral: apreciar uma comida, ter uma amizade preciosa, ter apreço por alguém, e assim por diante.

Mas começamos falando de inflação. Essa palavra, do latim inflatio, deriva de inflare, “inflar, inchar”, formado do prefixo in‑, “dentro”, e do verbo flare, “soprar”, que também ocorre em sufflare, que deu em português soprar e insuflar, e em afflare, “exalar”, que deu o nosso achar. Inflare significa “soprar dentro”, como se faz ao encher de ar uma bexiga de borracha soprando dentro dela.

Em resumo, inflação é um inchaço, no caso, dos preços. Trata-se de um termo cunhado pelos economistas. Mas também existe a inflação cósmica, expressão proposta pelo astrofísico e cosmólogo americano Alan Guth para denominar uma expansão exponencial que o Universo teria sofrido nos primeiros tempos de sua existência.

Tenho muito apreço por assuntos como cosmologia, mas a inflação dos preços não me é nada cara.

A origem da palavra “dinheiro”

A Páscoa passou, e nessa data os cristãos rememoram a traição de Judas, a prisão de Jesus, seu julgamento e execução na cruz, além de sua suposta ressurreição. Uma das informações sempre veiculadas na narrativa sobre os últimos dias do Cristo é que ele foi traído pela quantia de 30 dinheiros, o que causa certa estranheza a algumas pessoas, visto que dinheiro não é unidade monetária, mas a própria moeda. Se perguntássemos qual era o dinheiro em circulação na Roma antiga e alguém respondesse “dinheiro”, acharíamos que a pessoa não entendeu a pergunta ou está de gozação, mas é isso mesmo: o dinheiro em circulação em Roma era o dinheiro — ou melhor, o denário.

Na verdade, a unidade monetária romana era o asse (em latim as, genitivo assis). Por sinal, é daí que vem o nosso ás do baralho. Esse sistema monetário tinha base duodecimal, e cada parte ou fração se chamava uncia, origem da nossa onça (não o felino selvagem, bem entendido, mas a unidade de medida ainda utilizada nos países anglo-saxônicos). Uncia deriva de unus, “um” em latim.

Mas e o denário? Em Roma, denarius (subentendido numus, “dinheiro, numerário”) era uma moeda de dez asses. É que denarius provém de decem, “dez” em latim. Portanto, Judas Iscariotes delatou Jesus Cristo por 30 denários ou 300 asses. Só não me perguntem se essa quantia era muito ou pouco dinheiro; não faço a menor ideia do poder de compra de um asse romano, e acho que nenhum economista seria capaz de fazer a conversão desse valor para o nosso real brasileiro atual.

De todo modo, os apóstolos eram pobres, e certamente uma soma como 30 dinheiros, mesmo que valesse apenas uns 300 reais, já era muito, especialmente para um apóstolo ambicioso e inescrupuloso, capaz de trair seu mestre por dinheiro.

Pelo menos, no final Judas se arrependeu de sua vileza e se suicidou de remorso.

Uma curiosidade é que a palavra denarius produziu uma unidade monetária, o dinar, muito usado em vários países, como Argélia, Iraque, Jordânia, Líbia, Tunísia e Sérvia. O nome dinar saiu do latim e passou pelo siríaco dinara, depois pelo árabe دينار (dinar), até chegar ao português. E denarius também resultou no espanhol dinero e no italiano denaro, além do antigo francês denier, hoje substituído por argent, literalmente “prata”.

A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?

A educação para a arte

Um dos papéis da educação é estimular nos indivíduos o gosto pela arte de qualidade. Para isso, ela parte do princípio de que é preciso “educar” os olhos e os ouvidos. Caso contrário, as pessoas só apreciariam obras vulgares e de pouco conteúdo. Não há nessa proposta algo de preconceituoso ou de elitista?

As crianças adoram certos alimentos, enquanto outros elas só comem obrigadas. Adultos acham gostosos certos alimentos porque foram acostumados desde pequenos a consumi-los. É por isso que em alguns lugares do mundo se come peixe cru, insetos, etc.

Uma piada que precisa ser explicada é realmente engraçada?

Em resumo, há certas obras que nos agradam naturalmente, sem que tenhamos de aprender a gostar delas; outras só são apreciadas por quem foi “condicionado” a gostar delas. Não é que estas não deem prazer, mas se trata de um prazer “oculto”, não óbvio, um prazer “iniciático”, que só alguns conseguem sentir.

Isso põe a questão: será que uma obra é intrinsecamente boa (por exemplo, quando produz prazer de modo instintivo, em mentes não treinadas) ou tudo não passa de condicionamento?

É função da escola “educar” o olhar e o ouvido no sentido de condicioná-lo a um padrão estético arbitrariamente estabelecido como de bom gosto por uma elite cultural ou econômica?

O que ocorre é que a escola tenta fazer — sem muito sucesso, devido aos seus métodos repressivos — o que a mídia deveria fazer, mas não faz: apresentar ao público a maior diversidade possível de gêneros artísticos para que cada um possa escolher do que gosta mais. O problema é que os meios de comunicação sempre oferecem mais do mesmo — e trata-se de obras que não primam pelo conteúdo, mas por serem vendáveis. Fica aí a questão: não serão elas vendáveis justamente porque coincidem com nosso modelo “instintivo” de prazer? Ou seja, não serão populares essas obras exatamente porque ativam as zonas de prazer do cérebro de pessoas não treinadas? Será então que a “educação do olhar” feita pela escola não é uma ação contrária à natureza? Mas ser o contrário da natureza não é exatamente a definição de cultura?

Fica aqui a reflexão.

Pouco muito?

Uma curiosidade sobre os advérbios de intensidade “muito” e “pouco”. É muito comum utilizarmos a expressão “muito pouco” para nos referirmos a algo cuja quantidade ou intensidade é menor do que a utilização isolada do termo “pouco” expressaria. E faz sentido. O interessante é que, caso utilizássemos da maneira contrária, ou seja, “pouco muito”, denotando quantidade ou intensidade leve ou moderadamente aumentadas, ficaria bizarro e isso nunca aparece na linguagem diária ou em textos. Como explicar esse tratamento tão diverso para situações teoricamente semelhantes? Obrigado.
Luiz Otavio Andrade

Luiz, sua pergunta é muito interessante. O que ocorre é que em português a palavra muito exerce duas funções: pronome indefinido adjetivo e advérbio elativo. Em várias outras línguas há termos distintos para cada uma dessas funções. Por exemplo, em inglês o pronome é much, mas o elativo é very. Observe: “He has much money” (Ele tem muito dinheiro), mas “He is very rich” (Ele é muito rico). O mesmo se dá em francês (beaucoup x très), alemão (viel x sehr) e espanhol (mucho x muy), dentre outras. O pronome adjetivo qualifica ou quantifica o substantivo, enquanto o advérbio elativo intensifica o pronome ou adjetivo.

Quando digo, por exemplo, “muito pouco dinheiro”, muito é elativo do pronome adjetivo pouco, que por sua vez é adjunto adnominal de dinheiro. Só que pouco não pode atuar como elativo — não dizemos, por exemplo, “Ele é pouco rico” —; por isso, a combinação pouco muito não é possível em português. Além disso, pouco muito tem o mesmo significado de pouco: “ele tem pouco dinheiro”, razão pela qual pouco muito é uma expressão desnecessária.

A nação que roda sem sair do lugar

Caro Aldo, recentemente, o jornalista David Ribeiro disse em seu blog que “o Brasil não consegue sair de seu estado de colônia nem mesmo etimologicamente, pois, ao longo da história, tem sempre rodado sem sair do lugar”. O que ele quis dizer com isso? Por que o Brasil não sai do estado de colônia nem mesmo etimologicamente? Enfim, o que a etimologia tem a ver com isso?
Obrigado.
Emerson Felipe Lascuola

O colunista citado por Emerson utilizou uma fina imagem para representar a estagnação histórica do nosso país que, no entanto, exige para ser plenamente compreendida um conhecimento mais aprofundado de etimologia. É que a palavra colônia, assim como “colono” e “cultura”, provém do verbo latino colere, “cultivar, cuidar, tratar, preparar, habitar (especialmente a terra)”. Ou seja, colônia é a terra entregue ao colono para ser cultivada. E o colono é aquele que cultiva, isto é, o lavrador. Nos tempos coloniais, as terras brasileiras eram entregues pela coroa portuguesa a nobres que nela vinham morar e instalar plantações. O sentido básico de “cultivar” do verbo colere se estendeu a toda uma família de palavras designativas de cultivo, inclusive em sentido metafórico: agricultura (cultivo do campo — em latim, ager), piscicultura (criação de peixes), cultura (de soja, de bactérias, do intelecto), etc.

Mas qual a relação etimológica, levantada pelo blogueiro, entre a palavra colônia e nosso eterno rodar sem sair do lugar, que nos impede de ser uma grande nação, embora tenhamos tudo para isso? É que colere, descendente da raiz indo-europeia *kwel, significava originalmente “rodar, revolver”. Portanto, ao rodar sem sair do lugar, o Brasil está fazendo o mesmo movimento que o colono faz ao revolver a terra para cultivá-la.

Essa raiz indo-europeia também deu o grego kyklos, “roda, círculo”, que passou via latim ao português ciclo; boukolos, “criador de bois”, que nos deu bucólico; e polos (do indo-europeu *kwolos), “eixo” (em torno do qual a roda gira, donde, por metáfora, temos os polos da Terra). De *kwel também vieram o sânscrito chacra (cada um dos círculos energéticos do nosso corpo), o inglês wheel, “roda”, e o latim collum, “pescoço”, do qual derivaram colo, colete, colar e colarinho.

E por falar em coluna, esta palavra, embora pareça também pertencer à família de colere, tem outra origem: o verbo latino *cellere, “elevar-se”, de que também procedem excelso, excelência e colina.