Mentiras e inverdades

Boa tarde, Prof. Vejo os políticos se acusarem uns aos outros de estarem dizendo inverdades quando de fato estão é falando mentiras. Afinal qual a diferença entre uma mentira e uma inverdade? Obrigado,
Paulo César Lourenço

Caro Paulo, tanto a mentira quanto a inverdade correspondem a informações falsas, que não procedem, o que poderia nos levar a crer que são palavras sinônimas, mas não é bem assim.

Uma inverdade é apenas uma afirmação que não corresponde à realidade, o que pode ser fruto de equívoco ou ignorância. Já uma mentira tem sempre uma carga de intencionalidade, o desejo deliberado de enganar. Portanto, quem diz uma inverdade pode de fato acreditar no que está dizendo, ao passo que quem mente sempre sabe que está mentindo.

É claro que nem sempre dizemos uma mentira movidos de má-fé: às vezes mentimos até por compaixão, como, por exemplo, ao dizermos que está tudo bem quando não está apenas para não preocupar desnecessariamente nossos entes queridos.

Mas, no caso dos políticos, que se acusam mutuamente, alegar que o adversário está dizendo uma inverdade é apenas um eufemismo para acusá-lo de mentir. É que uma acusação direta requer provas, caso contrário configura calúnia. Mas todos sabemos que os políticos mentem descaradamente, e quem acusa o oponente de mentir com certeza também mente.

E se você também tem uma dúvida, mande-a para o e-mail de contato deste blog que responderei aqui neste espaço.

De onde vem o sufixo “‑alha”?

Olá, Professor! Gostaria de saber de onde vem o sufixo de palavras como “gentalha”, “parentalha” etc. Muito obrigado.
Wilberley Araújo Gomes

O português tem muitas palavras terminadas em -alha, como as citadas gentalha e parentalha, e também canalha, migalha, muralha, mortalha

Também tem palavras terminadas em -ália, como genitália, parafernália e Tropicália. Ambos os sufixos provêm do latim -alia, plural neutro de -alis, sufixo que em português forma adjetivos como nacional, central, cultural, etc. A diferença é que -alha nos chegou por herança latina ou empréstimo de outra língua românica, enquanto -ália é forma culta, vinda do latim por empréstimo.

O sentido latino desse sufixo era plural e coletivo. Assim, se genitale era a redução por elipse da expressão genitale organum (“órgão genital”), o plural genitalia significava “os genitais” (novamente subentendendo “órgãos”). Igualmente, Saturnalia eram as Saturnais, festas em honra do deus Saturno (redução de Saturnalia festa, plural de Saturnale festum, “festa saturnal”). Como a festa durava vários dias, era natural que se usasse sua denominação no plural. E paraphernalia eram os pertences pessoais que a noiva levava para seu novo lar após o casamento. Muitas dessas palavras passaram ao português em sua forma erudita, introduzidas por literatos, como genitália e parafernália. Outras herdamos diretamente do latim e, nesse caso, houve evolução fonética transformando o l seguido de i na consoante palatal lh. Foi assim que o latim Parentalia, “festa anual em homenagem aos parentes mortos” (plural neutro de parentalis, derivado de parentes, “antepassados, parentes”) resultou no português parentalha, com o sentido de “reunião de parentes, conjunto de todos os parentes”. A partir daí, o sufixo -alha se tornou produtivo na formação de coletivos, especialmente depreciativos, como gentalha (reunião de gente baixa, populacho, ralé). Aliás, canalha, que nos chegou do italiano canaglia (o sufixo italiano -aglia tem a mesma origem e significados que o português -alha) também significa “ralé, populacho, escória”, portanto tem sentido coletivo, e posteriormente passou a designar também o membro dessa classe. E como a tradição costuma associar às pessoas de baixa extração social os piores defeitos, daí para “canalha” passar a significar “calhorda, patife” foi um pulinho. Da mesma forma, migalha é um diminutivo um tanto quanto depreciativo de miga, que já é por si só qualquer coisa insignificante.

Aqui um comentário: o italiano canaglia era um coletivo de cães (cane em italiano), não em seu sentido literal de matilha de cachorros e sim no de pessoas biltres. É que em italiano cane também significa “biltre, patife, calhorda”, como na expressão figlio di un cane, cujo equivalente em português acho que não preciso mencionar, né?

Portanto, nós seres humanos sempre atribuindo aos pobres animais os defeitos que são nossos e exclusivamente nossos!

O sufixo culto -ália se presta à formação de nomes designativos de reuniões de pessoas, como o movimento musical da Tropicália (reunião de músicos de um país tropical) ou a Carnavália, feira de negócios relacionados ao Carnaval (e também título de uma canção dos Tribalistas).

Mas atenção: nem toda palavra portuguesa terminada em -alha ou -ália possui esse sufixo. Palha vem do latim palea, tralha vem de tragula, fornalha de fornacula, navalha de novacula, e assim por diante.

Provador ou provadouro?

Prezado Aldo, as lojas de roupas geralmente têm uma cabine para provar as peças chamada ‘provador’. Fiquei pensando se esse nome está correto, afinal provador é aquele que prova, não? Assim como investigador é quem investiga, consumidor é quem consome, etc. Em suma, o sufixo mais adequado para indicar lugar onde se faz algo não é -douro? Ou seja, o lugar onde se prova roupas não deveria ser provadouro em vez de provador? Obrigado.
Laerte Munhoz dos Santos

Laerte tem toda a razão. Embora a palavra provadouro não conste em nossos dicionários nem no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), o que significa que esse vocábulo rigorosamente não existe, a cabine de prova (que em francês se chama cabine d’essayage e em inglês, fitting room) é o local onde se experimenta a roupa a ser comprada. O sufixo -dor, de fato, indica o chamado nomen agentis, isto é, serve para formar palavras que designam o autor de uma ação, seja ele uma pessoa, animal ou máquina: vendedor, investidor, predador, roedor, computador, acelerador. Já o sufixo -douro é apropriado para formar nomes de lugares em que se faz algo: ancoradouro, matadouro, nascedouro, sorvedouro. Portanto, o lugar onde se provam roupas deveria ser o provadouro. Deveria ser, mas não é.

Os dicionários Houaiss e Michaelis definem provador como aquele que prova, especialmente, o profissional encarregado de provar vinhos, cafés, etc. Mas o Houaiss também reconhece a acepção “cabine onde se provam roupas”. Curiosamente, o espanhol também oferece a palavra probador nesses dois sentidos (e em espanhol o sufixo que forma lugar onde se faz algo é -dero, portanto probador deveria ser probadero, igualmente inexistente).

O que tudo isso significa? Que a língua nem sempre se pauta pela lógica, mas existe uma força poderosíssima, contra a qual nem mesmo os gramáticos mais respeitados conseguem agir, chamada uso. Parece ter sido o que ocorreu a provador: seu emprego com o sentido de lugar, embora inadequado (assim como o é o emprego de babador em lugar de babadouro), acabou de tal modo consagrado que mudar esse estado de coisas hoje parece impossível. Tanto que os próprios dicionários reconhecem tal acepção. E se esse uso equivocado do sufixo se dá também em espanhol, é talvez porque as duas línguas tenham em algum momento compartilhado o termo. Como se trata de conceito ligado ao comércio, é bem possível que comerciantes pouco afeitos à morfologia da língua tenham confundido os sufixos, instituindo um novo significado de provador em vez de cunhar o termo provadouro. A seguir, o vocábulo transpôs as fronteiras, passando do português ao espanhol, ou vice-versa. O fato é que, mesmo sendo fruto de um equívoco, a palavra provador está dicionarizada como cabine de prova, logo seu emprego nesse sentido é legítimo.

O gênero da palavra “selfie”

Prof. Aldo, desde que a palavra “selfie” se popularizou, tenho ouvido tanto “o selfie” quanto “a selfie”. Qual é a forma correta? “Selfie” é masculino ou feminino? Obrigado.
Jair Antunes da Silva

De fato, desde que os celulares passaram a tirar fotos e permitir sua postagem imediata nas redes sociais, a prática de tirar selfies virou febre. O que coloca a relevante questão: estamos tirando “um” selfie ou “uma” selfie?

Selfie é palavra inglesa, diminutivo de self, por sua vez redução de self-portrait, “autorretrato”. Alguns gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida, defendem que palavras estrangeiras sejam empregadas em português mantendo o gênero que têm na língua de origem. Outros advogam que essas palavras tenham em português o gênero de sua equivalente vernácula. Assim, pelo primeiro critério devemos dizer “a Deutsche Bank” porque Bank é feminino em alemão; pelo segundo critério, é certo dizer “o Deutsche Bank”, já que estamos nos referindo a um banco, masculino em português.

Quanto a selfie, seu gênero em inglês é neutro (ou natural, como denominam alguns), já que portrait é neutro. Como não temos em português o gênero neutro, devemos transferi-lo para o masculino, uma vez que as palavras neutras do latim deram, salvo uma ou outra exceção, palavras masculinas em nosso idioma. Nesse caso, selfie será masculino em português.

Se adotarmos o segundo critério, daremos a selfie o mesmo gênero do português “retrato”. Mas este também é masculino, logo, qualquer que seja o critério adotado, “selfie” será sempre palavra masculina em nossa língua.

Resultado: devemos dizer “o selfie”, “um selfie” e não “a selfie”, “uma selfie”. Só que           ninguém, que eu saiba, faz isso – nem eu!

Deformação ou deformidade?

Carmen Lúcia Gradelli pergunta: “Outro dia, li num anúncio que determinado produto era garantido contra deformidades. O correto não seria ‘deformações’? Obrigado.”

A pergunta da leitora procede. Vários radicais permitem tanto derivações nominais quanto verbais. Por exemplo, observação (ato de observar) e observância (qualidade de quem é observante, isto é, obediente). Como, além de olhar, espreitar, etc., observar também significa “obedecer”, em certo momento observação e observância se confundiram.

É esse o mesmo caso de deformação e deformidade. Rigorosamente, deformação é o ato de deformar e deformidade é o estado ou qualidade daquilo que é ou está deformado. Portanto, deformação é o processo e deformidade, o produto ou resultado. Não obstante, é comum ouvir dizer que fulano tem uma séria deformação de caráter quando, na verdade, o seu caráter não está sofrendo um processo de deformação, ele já é deformado (talvez desde o berço), logo seria mais adequado dizer que ele tem uma deformidade de caráter.

No caso do anúncio, a opção por uma forma ou outra não é tão indiferente assim, pois, se o produto é garantido contra deformações, o que se deduz é que, se ele se deformar com o uso, o consumidor terá seu dinheiro de volta (ou talvez o produto seja tão bom que jamais se deforme). Já, se for garantido contra deformidades, fica subentendido que, ao abrirmos a embalagem, se o produto estiver deformado, portanto com defeito de fabricação, o fabricante assume a responsabilidade pela troca ou reembolso.

Na primeira hipótese, o produto estava bom e se deformou com o tempo, portanto ocorreu deformação; na segunda, já veio de fábrica deformado, logo há deformidade. No caso em questão, só é possível saber exatamente contra qual das duas situações o anunciante oferece garantia se soubermos de que tipo de produto se trata, o que nossa amiga Carmen não nos informou.

Por que flexionamos em gênero os numerais um e dois?

Boa noite, me chamo Rodrigo.

Acompanho seu blog (Diário de um Linguista), já há certo tempo.

Tenho uma dúvida que sempre quis saber a resposta, já perguntei a outro professor e ele não soube responder. Dado o seu óbvio conhecimento, acredito que o senhor poderia me ajudar.

Eu sempre quis saber a razão de alguns números variarem de acordo com o gênero e outros não. Entendo que o “um” varie pois além de número é artigo, mas por que há “dois” e “duas” mas não há “três” e “tresa”? Por que é correto falar que tenho duzentAs laranjas, mas não que tenho duzentas e quatrA laranjas?

Caro Rodrigo, a explicação de por que o português flexiona em gênero os numerais um, dois, duzentos, trezentos e demais centenas está no latim. Como você sabe, o português descende do latim, e nessa língua havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Consequentemente, o latim flexionava nesses três gêneros os numerais de um a três e mais as centenas a partir de duzentos. Tínhamos então: unus, una, unum; duo, duae, duo; tres, tres, tria; ducenti, ducentae, ducenta; trecenti, trecentae, trecenta, e assim por diante. Observe que em espanhol, francês e italiano, línguas-irmãs do português, somente o um admite flexão no feminino, os demais numerais são invariáveis. Lembro também que o numeral um não é flexionável porque também é artigo indefinido; na verdade, ocorreu o oposto: o artigo indefinido derivou do numeral, até porque em latim não havia artigos.

Mas por que os numerais acima de três não se flexionavam em latim? Para responder a essa pergunta, temos de retroceder ainda mais no tempo, até cerca de 4 mil anos a.C., quando se falava a língua-mãe do latim, o indo-europeu. Nessa língua, somente os numerais de um a três eram flexionáveis. Isso leva os linguistas históricos, como eu, a pensar que o indo-europeu descendia de uma outra língua, nomeada pelos especialistas de nostrático, que só tinha numerais de um a três, o que, aliás, é a situação verificada na maioria das línguas do mundo.

De fato, línguas ágrafas, como são os idiomas de tribos primitivas, só contam até dois ou no máximo três porque culturas simples como as tribais não têm muito o que contar. Essas línguas são chamadas de one-two-many, ou “um-dois-muitos” porque quantidades acima de dois são genericamente tratadas como “muito”.

Em resumo, o nostrático, que teria dado origem ao indo-europeu, deve ter sido falado por volta de 8 mil anos a.C. por uma população de caçadores-coletores nômades, portanto uma sociedade tribal extremamente simples.

A título de curiosidade, a origem remota do numeral latino tres é a mesma da preposição trans, que quer dizem “além” (como em transnacional, por exemplo). Ou seja, tres designava originalmente tudo o que está além de dois, algo como um, dois e o resto.

Dobrando as palavras

Boa tarde, não sei se a pergunta chega valer um artigo em seu blog, mas aí vai: queria saber qual o significado da raiz “plic” (ou ao menos me parece ser uma só raiz). Percebo que tem um monte de verbos com essa raiz, mas não consigo discernir um conceito comum entre eles. Só agora de cabeça, lembro de: aplicar, complicar, explicar, replicar, suplicar, implicar. Lembro também dos baseados em números, como duplicar e triplicar, mas imagino que estes não sejam da mesma raiz, pois vêm de adjetivos como duplo e triplo, a não ser que os adjetivos é que venham dos verbos…
Um abraço,
Cleverson

Caro Cleverson, sua pergunta vale sim um artigo! E aqui vai ele.

Todos os verbos que você menciona vêm do latim e são derivados de plicare, que significa “dobrar”. É desse verbo que saiu o português prega (de vestido), que é uma dobra no tecido.

Além dos verbos applicare, complicare, explicare, replicare, supplicare, implicare, duplicare, triplicare, etc., também temos em latim os adjetivos formados a partir do elemento de composição ‑plex, ‑plicis, como, por exemplo, simplex, “simples”, duplex, “dúplice”, triplex, “tríplice”, e assim por diante. Ou seja, adjetivos com o sentido de “dobrado uma, duas, três, etc. vezes”.

A par desse elemento ‑plex, há também o elemento ‑plus de simplus, duplus, triplus, que deu em nossa língua duplo, triplo, etc. E ambos os elementos radicam no indo-europeu *‑pel, “dobrar”. Esse radical também aparece no grego haplós, dyplós, etc., que igualmente significa “simples, duplo” e que aparece em português em palavras como haplologia, haploide e diploide.

Agora algumas curiosidades: os apartamentos duplex e triplex (inclusive o do Guarujá) na verdade deveriam chamar-se dúplex e tríplex, mantendo, portanto, a acentuação latina. (Na verdade, é assim que eles se chamam segundo a gramática normativa, que nenhum corretor de imóveis segue.)

E mais, “dobrar” é plegar em espanhol, plier em francês e piegare em italiano, todos provenientes do latim plicare. E também o inglês fold, o alemão falten e o sueco fålla, “dobrar”, são parentes distantes de plicare, já que também provieram do indo-europeu *‑pel.

O nosso verbo chegar também veio de plicare. Mas o que chegar tem a ver com dobrar? É que na Roma antiga a expressão plicare vela significava “dobrar as velas do navio ao atracar no cais”. Com o tempo, plicare passou a significar “chegar ao cais” e, por extensão, “chegar” (a qualquer lugar).

Curiosamente, em romeno, outra língua neolatina, o verbo a pleca quer dizer exatamente o oposto, ou seja, “partir”. É que no latim dos soldados romanos plicare tentorium era “dobrar a tenda” e plicare sarcinam, “dobrar (isto é, fechar) a mochila”, duas atitudes de quem desmonta o acampamento para ir embora.

Uma palavra esquisita

A pedido do meu leitor Cleverson Casarin Uliana, vou falar hoje de uma palavra esquisita: justamente a palavra esquisito. E por que ela é esquisita? Porque existe em várias línguas europeias (espanhol exquisito, francês exquis, italiano squisito, inglês exquisite, alemão exquisit, sueco exkvisit) e em todas significa a mesma coisa: apurado, distinto, delicado, excelente, raro, sofisticado, elegante, requintado. Somente em português é que esquisito significa “esquisito, estranho, incomum”. Mas por que isso acontece?

Vamos começar voltando à origem do vocábulo, no caso, o latim exquisitus, particípio passado do verbo exquirere (= ex- + quaerere), que quer dizer “buscar com cuidado”, sentido que derivou para “buscar algo raro”. Logo exquisitus passou a significar “raro” e, portanto, “precioso, valioso”. Daí para assumir o sentido de “excelente, requintado” foi um pulinho. É esse significado que se mantém até hoje nas línguas supracitadas. E que também já pertenceu ao português (alguns dicionários ainda listam essa acepção, já que ela figura em textos mais antigos). De fato, não é incomum – e portanto não é esquisito – encontrar a palavra usada nesse sentido em textos dos séculos XVI e XVII. Por exemplo, Camões, n’Os Lusíadas, emprega “manjares novos e esquisitos” falando de comidas requintadas.

No entanto, a partir do século XVIII e sobretudo do XIX, esquisito passou a ser usado em tom pejorativo, como algo raro não por ser excelente, mas por ser estranho, anormal, inusual. Acontece que, aos olhos da plebe, os hábitos, as roupas, os gestos, as comidas e a linguagem da aristocracia parecia não propriamente sofisticada, senão muito distante do normal para um cidadão comum. Daí que o comportamento da nobreza aos olhos do povão parecesse mesmo esquisito. E foi essa a acepção da palavra que nos ficou até os dias de hoje. Esquisito, não?

Uma superdica: cuidado com o hífen!

Olá, bom dia! Tudo bem?
Poderia tirar uma dúvida? O correto é Superdica ou Super dica?
Obrigada!!
Patricia Ferreira Flor

A dúvida de Patricia é uma dessas dúvidas recorrentes em matéria de ortografia, e não só por causa do novo Acordo Ortográfico, pois as regras anteriores não eram menos problemáticas, especialmente no que diz respeito ao hífen. Sim, porque alguns prefixos exigem hífen em todos os casos, alguns apenas em certos casos, e outros em nenhum.

O caso de “super” é idêntico aos de “hiper” e “inter”: com palavras iniciadas por “h” ou “r”, usa-se obrigatoriamente o hífen (“super-homem”, “inter-relação”); nos demais casos, o prefixo se liga diretamente à palavra (“superpotência”, “hipermercado”, “interagir”). O que nunca ocorre em português é o prefixo destacado da palavra, isto é, separado dela por espaço em branco.

Portanto, a grafia correta é “superdica” e não “super dica”. Entretanto, conforme já comentei neste espaço, “super” parece estar ganhando vida própria, como se fosse palavra independente, o que justifica o titubeio entre escrever junto ou separado.

Docente tem a ver com educar?

Bom dia, mestre Aldo. Li ou ouvi em algum lugar que a palavra “docente” é da mesma origem que “educar”,
“educação” etc… Então por que o “o” se transformou em “u” (ou vice-versa)? Isso era comum em latim? Obrigado.
Fábio Lucas Garcia

Do ponto de vista semântico, meu caro Fábio, claro que “docente” tem a ver com “educação”. Já do etimológico, não há nenhuma relação, a não ser uma dessas semelhanças fortuitas que geram os chamados parônimos (palavras de forma gráfica ou fonética parecida) que dão muito pano pra manga.

Em primeiro lugar, a transformação de o em u só se deu em latim num caso muito específico: em sílaba final átona, na passagem do latim arcaico para o clássico. Foi assim que equos e lupos se tornaram equus e lupus. Também tínhamos uma oscilação dialetal entre u e o em algumas palavras, como vulgus e volgus, mas nesse caso a vogal era sempre seguida de r ou l.

Quanto a “docente”, trata-se do particípio presente do verbo docere, “ensinar”, que resultou tanto num substantivo quanto num adjetivo (em “corpo docente”, por exemplo). Já “educação”, “educativo”, “educar”, etc., derivam todos do verbo educare, formado do prefixo e-, forma variante de ex- (“para fora”) e ducare, por sua vez variante de ducere, “conduzir”. Portanto, educare era literalmente “levar para fora”. A primeira motivação da palavra era bem concreta: “criar, alimentar, amamentar” (neste caso, poderíamos pensar em “trazer para fora” o leite materno alojado no seio). Mas também “ter cuidado com, cuidar de”, o que é um sentido mais abstrato derivado do anterior. Finalmente, temos “educar, instruir, ensinar”.

Nesse ponto, os etimólogos divergem sobre como “conduzir para fora” passou a ter o sentido de “educar”. Alguns acreditam que o termo tenha a ver com “levar a criança para fora de casa” (no caso, para a escola). Na Grécia antiga, por sinal, havia até um escravo incumbido dessa tarefa: o pedagogo (de pais, paidós, “criança”, e agogós, “guia, condutor”).

Desse sentido mais literal passa-se a um outro mais metafórico: levar a criança para o mundo lá fora. Portanto, educar seria preparar os pequenos para enfrentar os desafios que, quando adultos, eles encontrarão fora de casa.

Com a evolução das línguas, as palavras mudam de significado, e o pedagogo deixaria de ser um mero escravo condutor de crianças para tornar-se o mestre, o condutor da vida dos cidadãos; igualmente, educar deixaria de ser um mero “levar para fora”, vindo a ter o amplo sentido que tem hoje.

Em resumo, já que os verbos docere e ducere têm raízes e significados diferentes, não há relação etimológica entre “docente” e “educação”, mas apenas, como disse no início, em termos semânticos.