A ciência é apenas mais uma ideologia?

Tornou-se muito frequente nos últimos tempos a crítica, oriunda sobretudo de filósofos e cientistas sociais, de que a ciência é uma atividade tão ideológica quanto qualquer outra prática discursiva humana e que, portanto, a suposta neutralidade e imparcialidade da ciência, garantidas pelo chamado método científico, não passam de um mito. E mais: que esse mito estaria a serviço de certos interesses políticos e econômicos contrários aos valores de igualdade e justiça social, bem como aos direitos humanos. Noutras palavras, a ciência estaria a serviço de um projeto capitalista opressor e exploratório espertamente encoberto por um jargão incompreensível aos leigos, criado para passar a falsa impressão de isenção e assepsia.

Mais do que isso, argumenta-se que a ciência procura revestir-se de uma aura de infalibilidade e de certeza quando, na verdade, ela é apenas uma ideologia, no sentido de “crença que temos sobre a realidade, distinta da própria realidade”, como qualquer outra: como a política, a religião, o jornalismo, a arte, a publicidade… Mais além, alguns até empregam o termo ideologia aplicado à ciência em seu sentido marxista de “acobertamento proposital da realidade”.

Com o propósito de provar essa tese, invocam-se grandes pensadores do fazer científico, como Thomas Kuhn, Robert Merton, Karl Popper, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e outros, todos, com exceção de Kuhn, humanistas e não cientistas, portanto intelectuais que discutiram a ciência teoricamente, mas nunca a exerceram, logo nunca experimentaram na prática o que é fazer ciência.

Diante dessas críticas, convém primeiro esclarecer do que estamos falando. Desde o século XVII, convencionou-se que ciência é um conjunto de práticas de busca da verdade e de construção permanente do conhecimento por meio do raciocínio lógico, da razão e sobretudo do chamado método científico, ou método experimental, que consiste em formular hipóteses acerca de um fenômeno (natural ou social) e testá-las por meio da observação e experimentação (atenção aos meus grifos). Se a hipótese resiste ao teste da experiência, torna-se uma teoria e passa a ensejar novas hipóteses, igualmente sujeitas à testagem empírica. Logo, trata-se de um processo contínuo e infinito. Nele, por vezes teorias são modificadas ou simplesmente abandonadas quando os dados da experiência as contradizem. É o chamado mecanismo de autocorreção da ciência.

Mas a ciência é uma construção permanente do conhecimento, o que significa que, ao contrário das ideologias, que são conhecimentos prontos e imutáveis, o conhecimento científico está em permanente construção, como uma parede a que se acrescenta um tijolo de cada vez. E esse conhecimento é construído a partir do que é lógico, racional, do que faz sentido, do que é plausível e não de explicações mágicas, sobrenaturais ou de argumentos de autoridade e opiniões pessoais e idiossincráticas. A ciência opera com hipóteses e não com dogmas ou opiniões. A diferença é que uma hipótese é uma espécie de “verdade provisória” a ser testada e eventualmente descartada. Já dogmas e opiniões não estão sujeitos a testes e refutações: ou você aceita o dogma ou é excomungado; eu tenho uma opinião sobre algo e só abdico dela se quiser. E a maioria das pessoas carrega consigo suas opiniões e seus preconceitos até morrer.

Como resultado, a ciência é, em primeiro lugar, um processo de busca da verdade e não a própria Verdade. Diferentemente da religião, que sustenta verdades absolutas e inquestionáveis, embora nunca provadas nem comprováveis (e que não raro são desmentidas pela experiência prática), a ciência faz uma aproximação permanente da verdade sem jamais alcançá-la. Nunca saberemos tudo, mas sabemos cada vez mais. A prova de que o conhecimento científico, mesmo incompleto e imperfeito, funciona são as tecnologias que usamos no dia a dia, todas decorrentes da aplicação dos saberes produzidos pela ciência.

Embora ela seja um conhecimento aproximado, reducionista, conseguimos prever com absoluta precisão a que distância da Terra passará um meteoro e tomar as devidas providências para que ele não nos atinja. Quando o meteoro passa, constatamos aliviados que nossa previsão estava correta. Já ideologias e doutrinas fazem previsões que nunca se cumprem: quantas vezes profetas e religiosos previram o fim do mundo para determinada data, e, no entanto, ainda estamos aqui, vivos? A doutrina marxista, por exemplo, previu um regime político e um sistema econômico que produziriam sociedades absolutamente justas, igualitárias e felizes, e, entretanto, o que vemos é que todas as sociedades governadas por regimes marxistas são profundamente injustas, infelizes e cruéis.

Na verdade, a crítica que se faz à ciência deveria ser dirigida aos cientistas, que, como seres humanos, são falhos, portadores de fraquezas, emoções, desejos e vaidades, e, como tal, corrompíveis pelos valores do capitalismo e do mercado. Há uma grande diferença entre a ciência e os cientistas, assim como há entre a política e os políticos. Deveríamos então rejeitar a política só porque há políticos corruptos?

Leio numa postagem do filósofo brasileiro Gustavo Bertoche exatamente essa crítica. Ele diz:

Foi Rubem Alves quem, no livro “Filosofia da Ciência”, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.

Nada mais verdadeiro. Mas observem que sua crítica se dirige aos cientistas — e nem todos são assim; na verdade, a maioria não é — e não à ciência, embora ele diga em outro trecho que

[a] ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas. […] a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. […] Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

O que parece um defeito da ciência, que retiraria sua credibilidade e a colocaria na posição de mera ideologia — ou, antes, de embate de ideologias conflitantes — é na verdade sua grande qualidade. Se não sabemos a verdade e, para tentar nos aproximar dela, precisamos formular hipóteses, é óbvio que diferentes hipóteses precisarão ser testadas. É óbvio também que há diferentes métodos de testar essas hipóteses. É daí que surgem os embates entre os cientistas, cada qual sustentando sua hipótese e defendendo sua corrente de pensamento até que um experimento (ou muitos) determine qual hipótese é válida é merece tornar-se uma teoria — lembrando que teorias também são constantemente testadas e que o papel do cientista não é tentar comprovar uma teoria e sim derrubá-la; logo, teorias são apenas hipóteses que passaram num primeiro teste. Por conseguinte, a controvérsia entre os pesquisadores, longe de revelar a fraqueza da ciência em chegar à verdade, é o que conduz a comunidade científica a aproximar-se cada vez mais dela.

Citando mais uma vez Bertoche, “[s]e um cientista torna-se um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e posicionou-se no campo da ideologia”. Por sinal, é contra esse dogmatismo de certas alas da academia, especialmente na linguística, que eu venho me batendo. Sobretudo nas ciências sociais, ainda muito impregnadas pelo pensamento filosófico, em que a argumentação e a retórica valem mais do que os dados empíricos, há muita ideologia, muito dogmatismo e pouca cientificidade.

Mas o dogmatismo existe em todas as áreas científicas porque, mais uma vez, a ciência é feita por cientistas, que são humanos. Nesse sentido, há na academia pessoas que, em vez de impulsionar o avanço do conhecimento, representam um verdadeiro obstáculo a ele. Felizmente, elas cedo ou tarde acabam substituídas por outras, com novas ideias (ou talvez novos dogmas), e vida que segue.

Porém, o grande problema em equiparar ciência e ideologia sob o argumento de que “todo discurso é ideológico” ou de que “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”, palavras de ordem repetidas à exaustão na área de Ciências Humanas e de Humanidades, é pôr no mesmo balaio fatos e opiniões, dando a um preconceito o mesmo peso argumentativo de uma afirmação comprovada e comprovável. Nesta era da pós-verdade que estamos vivendo, instituiu-se que o que vale não é o que efetivamente é verdade e sim o que eu penso que seja verdade. Se acho que determinado termo tem conotação racista, então ele deve ser banido dos dicionários mesmo que todas as evidências etimológicas e semânticas comprovem que ele não tem nem nunca teve qualquer conexão com o conceito de raça, muito menos depreciativamente. Se a opinião vale tanto ou mais do que o fato e se o conhecimento científico é relativo e ideológico, então afirmações como a de que a Terra é redonda, de que vacinas previnem doenças ou de que a água ferve a 100 graus Celsius são meras crenças propagadas por cientistas com segundas intenções inconfessáveis e financiados por poderosas corporações que querem acabar com a humanidade. Está então aberto o caminho para as fake news, para os negacionistas, os terraplanistas, os antivacinistas, os criacionistas, os teóricos da conspiração e, pior, os fascistas, os supremacistas brancos e os terroristas de toda espécie.

Existe empobrecimento na língua e na cultura?

Um amigo meu, que está concluindo sua dissertação de mestrado, me pergunta se é possível falar em empobrecimento da cultura ou da língua e, mais, se é possível medir esse empobrecimento, caso ele exista.

Trata-se de um tema espinhoso, pois o próprio conceito de empobrecimento é relativo: pode-se argumentar que o que realmente ocorre é uma mudança de paradigmas, que a cultura e a língua são dinâmicas, portanto a ideia de que algo está se perdendo é mera perspectiva saudosista, já que algo novo está sempre surgindo em seu lugar.

No entanto, muitos intelectuais de respeito apontam o fato de que está efetivamente havendo uma perda em termos tanto quantitativos quanto qualitativos; Gilles Lapouge, por exemplo, fala disso em vários de seus escritos.

Em minha visão, esse empobrecimento tem a ver com a decadência da educação e também com as novas tecnologias, fenômeno mundial, embora mais perceptível em nações como o Brasil, em que o sistema educacional e a condição social da população são mais frágeis. Antigamente, a cultura era transmitida basicamente pelos livros, e ler tanto literatura quanto ciência e filosofia era um hábito entre as famílias da elite, mas também uma imposição da escola. E liam-se os clássicos da literatura, cujo linguajar era muito rico, os grandes pensadores de todos os tempos, desde os gregos até os mais modernos e mesmo jornais e revistas, que naquela época eram muito bem escritos.

Então veio o rádio, a seguir a televisão, depois os sites de internet e, mais recentemente, as redes sociais. Sobretudo os mais jovens passaram a valorizar mais a informação midiática do que a literária, talvez por seu apelo audiovisual e seu marketing. Mas também porque a linguagem desses meios se aproximava mais do coloquial desses jovens. Até mesmo os filmes e as telenovelas foram pouco a pouco incorporando um linguajar mais despojado, mais próximo do dia a dia: a fala impostada e teatral dos anos 1940 e ’50 cedeu às gírias e expressões cotidianas. Também os temas mudaram: as antigas telenovelas, que adaptavam para a TV grandes romances do passado ou eram ambientadas numa Europa longínqua e medieval passaram a abordar a vida presente das cidades brasileiras, com seus dramas e contradições — drogas, violência, choque de gerações, racismo, machismo, homofobia. Mesmo as poucas novelas de época que temos hoje procuram adaptar-se à ideologia presente, lançando uma visão crítica à escravidão que certamente não constava na maioria das obras clássicas.

Como disse no início, pode ser que estejamos apenas substituindo uma cultura por outra: saem os mitos gregos, entram os super-heróis norte-americanos. Mas a educação atual privilegia sem dúvida o conhecimento tecnológico em detrimento da cultura clássica, afinal nossa sociedade capitalista espera que a escola forme mão de obra qualificada para as empresas, e dominar tecnologia da informação é mais importante hoje em dia do que saber latim ou ser versado em literatura grega.

Quanto à língua, é possível mensurar objetivamente se há ou não um empobrecimento, mas essa mensuração terá de restringir-se aos registros que temos, isto é, aos textos escritos de hoje em dia e do passado. Na verdade, não temos como saber se a fala informal das pessoas comuns da atualidade é mais ou menos rica que a de nossos antepassados, pois não há registros daquelas falas a não ser episodicamente na reprodução que algum escritor fez da fala popular ao retratar um personagem.

Mas há pistas. Por exemplo, minha falecida mãe me legou a cartilha em que estudara as primeiras letras. E é possível ver nos textos desse livro didático dirigido a crianças de seis, sete anos uma riqueza vocabular que deixa embaraçados hoje em dia até estudantes universitários. A comparação entre textos escritos de décadas ou séculos passados e atuais permite avaliar, dentre outras coisas, a complexidade das estruturas gramaticais, a já mencionada riqueza vocabular, o uso de figuras de linguagem, a elaboração estilística e mesmo a variedade e a erudição das referências temáticas (filosofia, mitologia, alta literatura). Mesmo a extensão dos textos pode nos revelar algo: parece que hoje, até pela falta de tempo imposta por nossa vida corrida, os textos costumam ser mais curtos, concisos e objetivos — às vezes até lacônicos. E um texto mais curto é também mais pobre linguisticamente.

A análise comparativa de textos antigos e atuais nos aspectos linguísticos acima mencionados pode ser feita por meio de softwares especializados que devolvem dados quantitativos e estatísticas sobre a frequência de uso de palavras, expressões, construções sintáticas, etc., classificados por gênero textual, por época, por autor, e assim por diante. Os linguistas estatísticos e computacionais, assim como os especialistas em linguística de corpus, têm bastante familiaridade com esses programas.

Em resposta ao meu amigo, não posso dizer assim de chofre se a cultura e a língua estão empobrecendo, pois seria preciso empreender o estudo que acima mencionei para ter dados concretos em que pudéssemos apoiar nossas afirmações. Do contrário, eu estaria apenas emitindo uma opinião pessoal e, como cientista, sei mais do que ninguém que, em ciência, opiniões pessoais não valem nada. Mas, se me permitem um palpite — afinal este texto não é um artigo científico —, acho que nossa educação indigente, somada à pouca importância que uma parcela significativa de nossa população dá a ela, tem contribuído muito para a derrocada da qualidade dos textos que se produzem hoje, pelo menos no Brasil. Mas é possível que a progressiva substituição de Chico Buarque e Elis Regina por Anitta, a de Machado de Assis por Paulo Coelho, a de Beatles e Burt Bacharach por Rihanna, a de Ernest Hemingway por Harold Robbins estejam de fato assinalando um empobrecimento cultural, com seu inevitável corolário linguístico.

Uma última consideração: a história é feita de ciclos. A eras de apogeu cultural sucedem-se eras de decadência e trevas para novamente ressurgir o esplendor da cultura, e assim sucessivamente. Talvez estejamos de fato vivenciando uma época de obscuridade; tomara seja apenas um interregno a anunciar um futuro novo boom de cultura.

As “fake news” na linguística

Como tenho comentado aqui neste espaço, existe uma cruzada por parte de alguns colegas linguistas em prol de uma agenda muito mais ideológica do que científica, que, embora até bem-intencionada, já que visa à inclusão social por meio da linguagem, peca por falta de cientificidade, falseia fatos, distorce a realidade, propõe uma utopia irrealizável e sobretudo se equivoca ao querer nivelar a educação por baixo em vez de proporcionar aos mais carentes acesso ao verdadeiro ensino de qualidade.

Num artigo intitulado “Quando se fala de linguagem neutra, não é de linguagem neutra que se fala”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a linguista Jana Viscardi lança mão de mais uma fake news para sustentar um ponto de vista ideológico. Tentando provar que a língua é machista por fazer a concordância no plural pelo gênero masculino (o famoso “bom dia a todos”, que supostamente excluiria as mulheres), ela diz:

Um dos argumentos “linguísticos” mais comuns para recriminar o uso das novas formas e manter exclusivamente o uso das já conhecidas (a saber, o feminino e o masculino) é “todos já inclui todo mundo”. Eis aí o conceito de ‘masculino genérico’, regra que faz parte de uma convenção na língua portuguesa (mas não só nela) em que, para se referir a um grupo de homens e mulheres, usa-se o masculino representando todo o conjunto. Assim, diz-se “bem-vindos”e estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa.

Assim, costuma-se aceitar o masculino genérico e assumir que “a língua é assim naturalmente”. Pois eu terei que desapontar você: pesquisas conduzidas ainda nas décadas de 70/80 revelam que o uso do masculino genérico não tem nada de natural. Ann Bodine, por exemplo, nos revela, ao analisar gramáticas antigas, a incômoda realidade de que gramáticos dos séculos XVII e XVIII justificavam o uso de formas linguísticas masculinas (em distintas circunstâncias) pela relevância que o homem teria na sociedade. Observe, com isso, que a regra nada teria de “natural”. Ao invés disso, a definição dessa regra tinha a ver com a maneira como a presença das mulheres e dos homens era lida pela sociedade da época (e por aqueles que escreviam as gramáticas).

Esse exemplo ilustra algo fundamental para a discussão em torno da questão da neolinguagem: aquilo que muitos entendem como ‘natural’ na língua pode ser uma convenção, como no caso do masculino genérico. E essa convenção se estabeleceu a partir do entendimento de sociedade que se tinha na época e, mais do que isso, o entendimento do papel da mulher nessa mesma sociedade, como apontei anteriormente. Desde a década de 70 questiona-se, então, o uso do masculino genérico e são propostas outras formas possíveis – pasmem, nas línguas do mundo há diferentes maneiras de se dizer a mesma coisa.

Segundo a autora, a concordância no masculino não é natural, mas fruto de uma convenção estabelecida nos séculos XVII e XVIII por gramáticos homens (ela não disse brancos, heterossexuais, cisgênero e conservadores, mas está subentendido) com base no entendimento de que as mulheres tinham menos valor na sociedade da época do que os homens.

Não há dúvida de que esse entendimento era verdadeiro, tanto que até o filósofo Baruch Spinoza, apesar de toda a sua racionalidade, considerava que a filosofia não devia ser praticada por mulheres pelo fato de elas serem mais emocionais que os homens. Mas Ann Bodine, citada por Viscardi, apenas afirma que esse argumento era utilizado pelos gramáticos da época para justificar a concordância no masculino; em nenhum momento ela diz que essa concordância foi uma escolha desses gramáticos. Na verdade, essa escolha nunca ocorreu. Vamos explicar por quê.

Como se sabe, a língua portuguesa só admite dois gêneros gramaticais, o masculino e o feminino. Portanto, se a concordância no plural não fosse feita no masculino, teria de ser feita no feminino, já que não temos um terceiro gênero — teríamos então de dizer “bom dia a todas”. Nesse caso, teríamos um sexismo reverso: os homens é que estariam excluídos.

Mas a questão é que a concordância no plural se dá no masculino em português desde muito antes do século XVII; na verdade, desde os primórdios da língua — ou ainda antes, no latim, que fazia a concordância para pessoas no masculino — multi vocati sunt, pauci vero electi, “muitos são chamados, poucos os escolhidos” (Mateus 22:14) — e para coisas no neutro — multa me dehortantur a vobis, “muitas coisas me desanimam em vós” (Salústio, Bellum Iugurthinum). Só que o latim herdou essa concordância do indo-europeu, que já a fazia 6 mil anos atrás. E este provavelmente a herdou do nostrático, língua-mãe do indo-europeu, falado há cerca de 10 a 15 mil anos. Se formos retroceder no tempo até achar a origem dessa concordância, descobriremos que os Homo erectus, primeiros hominídeos a desenvolver a fala, já tinham uma língua “machista”. E isso é assim por razões que têm a ver com nossa própria biologia. Na maioria das espécies animais, há uma prevalência física do macho sobre a fêmea; por exemplo, são os machos que disputam as fêmeas, e não o inverso. Isso obviamente se refletiu na linguagem desde que o homem começou a falar e foi passando de língua-mãe a língua-filha desde então. Como a evolução linguística é fortuita e não controlada por nossos desejos, essa situação nunca mudou, e não vejo como ela poderia ser mudada agora por decreto ou por força de uma militância política.

O fato é que, como expliquei em um capítulo do meu livro O universo da linguagem chamado “O gênero da natureza” e também no vídeo Linguagem neutre de gênere? do meu canal do YouTube, o gênero que subsume masculino e feminino, neutralizando-os, chama-se gênero complexo. Portanto, o latim multi não é propriamente masculino e sim complexo.

O que ocorreu na verdade, como já expus várias vezes, é que o latim tinha três gêneros, masculino, feminino e neutro. E podia, eventualmente, fazer a concordância plural no gênero neutro. Só que, por razões meramente fonéticas, o gênero neutro e o masculino se fundiram no latim vulgar ainda antes da passagem do latim ao português. Portanto, o gênero masculino assumiu as funções que antes eram do neutro. Esse processo não teve nada de ideológico, nunca pressupôs uma superioridade dos homens sobre as mulheres, mas tão somente decorreu de uma mutação fonética: a perda da consoante final que distinguia entre o gênero masculino e o neutro. Logo, a concordância no plural pelo masculino sempre foi uma injunção morfológica da língua portuguesa e jamais fruto de uma escolha dos falantes, muito menos dos gramáticos do século XVII.

Mesmo línguas como o inglês e o alemão, que neutralizam a oposição de gêneros no plural (o inglês all e o alemão alle significam indiferentemente “todos” ou “todas”), não fazem isso por razões de inclusão social, mas igualmente em decorrência da evolução fonética fortuita. Aliás, segundo a citada Ann Bodine, o inglês sempre utilizou o pronome pessoal plural supragenérico they no singular para neutralizar masculino e feminino (o tal gênero complexo); apenas por um período sua gramática normativa substituiu esse uso pelo masculino he (entre os séculos XVII e XIX) e em seguida passou a usar he or she, ou mesmo o feioso (s)he, para, mais recentemente, retornar ao uso de they. A solução encontrada pelo inglês evidentemente não funcionaria em português, em que teríamos de optar entre eles e elas, portanto o dilema continuaria.

Os defensores da tese de que o português é machista podem argumentar que, desde o início, os falantes poderiam dizer “bom dia a todos e todas” (“todes” seria impensável na Idade Média, quando o português surgiu: esse linguajar certamente terminaria na fogueira da Santa Inquisição). Só que, mais uma vez, há dois problemas nesse raciocínio. Primeiro, a questão da economia linguística, que também atende pelo nome de concisão: “todos” é mais simples que “todos e todas”. Segundo, se dizemos “todos e todas”, estamos colocando os homens em primeiro lugar, logo o machismo persiste. Se, ao contrário, dizemos “todas e todos”, estamos privilegiando as mulheres e aí caímos no já citado sexismo reverso. O mesmo vale se dizemos simplesmente “todas”.

Em suma, a concordância no plural pelo gênero masculino atendeu em primeiro lugar à evolução fonética natural da língua e em segundo ao princípio da economia linguística; a ideia de que isso é assim porque os homens são superiores às mulheres foi apenas um argumento oportunista usado pelos homens do passado para justificar sem base científica alguma, num tempo em que, por sinal, nem se sonhava com a existência de uma ciência da linguagem, um fato puramente gramatical.

Não sei se Jana Viscardi conhece esses fatos (deveria conhecer, já que é linguista) nem se defende seu ponto de vista equivocado por pura ignorância da história da língua ou se o faz por deliberada má-fé com o intuito de sustentar uma posição ideológica muito bem-vista no meio acadêmico de Letras, embora nem um pouco científica. Mas a realidade é que, nas chamadas ciências humanas (que, por vezes, e graças a essas mazelas, têm pouco de ciências), o uso de fake news como instrumento de argumentação é fato corrente. E, como os leitores de veículos como o Le Monde Diplomatique são na maioria leigos no assunto, essas fake news passam como verdades. Ainda mais quando quem assina o artigo detém um título de doutora em linguística.

P.S.: Jana Viscardi escreve: “estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa”. Se ela não quer ser sexista, deveria escrever: “estaríamos todas, todos e todes incluídas, incluídos e incluídes na conversa”. Linguagem inclusiva e superconcisa, não?

Os peixe

Hoje quero reproduzir aqui neste espaço um excelente artigo de meu amigo e colega José Horta Manzano publicado originalmente no Correio Braziliense em 2011. A questão aqui abordada continua mais atual do que nunca. Vamos ao artigo.

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo “os menino pega os peixe”como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central — imperial primeiro, republicana em seguida — usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos — afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de “falar errado”. Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não “falam errado”. Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, “os menino pode pegar tudo os peixe”. Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

O ser humano é realmente um animal racional?

Dando continuidade à minha “filosofice” do artigo anterior, publico agora outro artigo, redigido muito tempo antes daquele, mas que de certa forma funciona como complemento e continuação da minha reflexão sobre a inteligência, a racionalidade e a sabedoria (ou não) da humanidade. Então vamos lá.

Por que o BBB faz tanto sucesso? Por que música brega é tão popular? Por que tanta gente aposta em loterias? Por que tanta gente acredita no sobrenatural? Por que políticos corruptos são (re)eleitos?

Cientistas sociais se debruçam sobre essas questões e produzem teses e mais teses acadêmicas quando a resposta é simples: o bom gosto é irmão do bom senso. E a maioria das pessoas não tem nem bom gosto nem bom senso. Aliás, o bom gosto é a manifestação estética do bom senso. E o bom senso deriva da racionalidade. Só que, embora a racionalidade seja o mais humano dos atributos (“o homem é um ser racional”), ela é um atributo “recessivo”, isto é, a maior parte das pessoas não tem o gene da racionalidade como dominante. É por isso que pessoas guiadas pela razão são minoria no planeta.

A razão foi importante na evolução da espécie humana, mas o fator preponderante da nossa evolução foi de natureza não racional. A superstição e o julgamento pela emoção parecem ter contribuído mais para a sobrevivência dos nossos antepassados do que a razão. Racionalidade é bom na hora de planejar uma caçada, mas isso um dos membros da tribo — o mais racional — pode planejar sozinho. Já a sobrevivência individual dependeu mais de decisões rápidas e não racionais.

Embora se desenvolva com o estudo, a racionalidade só aparece como traço dominante numa pequena parcela da população. É por isso que a religião e a superstição são mais populares que a ciência, e o mau gosto supera o bom senso estético.

A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

Ainda sobre Marcos Bagno e sua gramática

ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.

Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.

A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.

Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.

A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.

Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.

O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.

Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou  não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.

Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.

Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.

Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?

Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?

Também  se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.

Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.

Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…

Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.

 Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.

Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.

É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.

Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.

Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.

Quem é o calhorda?

Desde o início do ano, o Prof. Fernando Pestana, meu colega colunista na página Língua e Tradição, vem publicando nessa página uma série de artigos comentando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do linguista Marcos Bagno, sobretudo apontando os erros metodológicos e as incoerências entre o que o autor prega e o que ele mesmo e os autores em que se apoia fazem em matéria de uso da chamada norma-padrão da língua portuguesa.

Antes de mais nada, convém situar o leitor sobre do que trata essa gramática. Nela, Bagno advoga que a atual norma culta do português brasileiro, isto é, o modo como os brasileiros altamente escolarizados falam e escrevem, está bastante distante da norma-padrão, aquela preconizada pela gramática normativa e ensinada nas escolas, a qual estaria, portanto, desatualizada e se teria tornado anacrônica, além de refletir mais o português lusitano do que o brasileiro. Como resultado, o autor propõe não só que se adote uma nova norma-padrão, que abone construções típicas do falar brasileiro, como também que se passe a ensinar essa nova norma nas escolas. É daí que vem o epíteto “pedagógica” do título da obra.

Bagno afirma, dentre outras coisas, que os pronomes demonstrativos este/esta/estes/estas não existem mais no português brasileiro, substituídos que foram por esse/essa/esses/essas em todos os casos. No entanto, o próprio autor emprega diversas vezes este/esta/estes/estas em sua obra, numa contradição com sua própria lição.

Ele também defende que construções como “eu a vi” quase não se usam mais e, portanto, deve-se a partir de agora abonar construções como “eu vi ela”. Seu argumento, coerente com o militante de esquerda que é, é o de que a norma-padrão vigente é elitista e excludente e que, para empoderar os menos favorecidos, é preciso chancelar o modo como eles se expressam.

Esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro, a verdadeira emancipação dos mais pobres e menos escolarizados se dá justamente pela educação, portanto pelo acesso dessa população a um ensino de qualidade, que a torne proficiente naquela norma que vai lhe abrir as portas do mercado de trabalho qualificado, e não pelo rebaixamento da norma-padrão ao linguajar das pessoas menos escolarizadas. Essa proposta seria como se, em vez de lutar pela saúde bucal da população, tornando o tratamento dentário acessível a todos, se instituísse a boca banguela como padrão de normalidade.

O segundo problema é que a norma-padrão de uma língua se baseia no uso formal que as pessoas cultas fazem na modalidade ESCRITA. Embora a maioria de nós brasileiros use de fato esse no lugar de este mesmo referindo-se a um objeto próximo de quem fala, o uso do pronome este ainda está muito vivo em nossa escrita formal. Da mesma forma, todos nós dizemos “eu vi ela” quando falamos informalmente, mas nenhuma pessoa bem escolarizada, que é a que redige textos formais, escreveria dessa maneira num documento profissional, trabalho escolar ou na prova do Enem. Logo, o argumento de que nossa norma-padrão é uma peça de ficção, um retrato do português escrito de séculos atrás, como sustenta Bagno, não se sustenta.

É bem verdade que muitos profissionais de nível superior já não respeitam rigorosamente certas regras da gramática normativa quando escrevem, como, por exemplo, quando utilizam a próclise (anteposição do pronome oblíquo ao verbo) em contextos em que deveriam usar a ênclise (posposição do pronome ao verbo). Nesse sentido, a norma-padrão poderia, sim, ser flexibilizada, e creio que o será nos próximos anos, como é da dinâmica natural das gramáticas. Mas, se as pessoas cultas já escrevem assim — eu mesmo faço isso e, aliás, o fiz aqui neste texto — e essas construções são aceitas pacificamente, por que precisaríamos reformular radicalmente a norma-padrão? Não bastariam alguns pequenos ajustes? Por outro lado, que sentido há em institucionalizar uma construção como “eu vi ela” se nenhum redator culto a emprega em textos formais?

Nesse sentido, as críticas do Prof. Pestana à obra de Bagno são plenamente razoáveis e pertinentes. Além disso, a gramática em questão se baseia muito mais nas percepções pessoais do próprio autor sobre o português brasileiro do que num levantamento sistemático, segundo o método científico, de textos escritos formais do Brasil atual, ainda que ele afirme ter feito tal levantamento. Na prática, o que Bagno faz é tomar o português oral informal como padrão a ser adotado na escrita formal, algo que ainda está muito longe de acontecer e de ser aceito socialmente.

Mas o motivo deste meu artigo é que o linguista Marcos Bagno postou recentemente um texto no Facebook com o título “A calhordice do ‘ele não escreve como manda os outros escreverem’”. Embora não especifique a quem dirige sua ira, fica claro que o alvo é justamente o Prof. Pestana, primeiro porque, num trocadilho de gosto duvidoso, Bagno impreca a certa altura: “Vá queimar pestana, calhorda (…)”. E, em segundo lugar, porque as críticas que tenta rebater em sua postagem são exatamente aquelas feitas por Pestana.

A primeira coisa a observar é que Bagno não contra-argumenta, em nenhum momento afirma que os apontamentos de Pestana são inverdades, mas limita-se apenas a dizer que

a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia.

Só que, em sua gramática, Bagno não sustenta que se use indiferentemente quer a forma tradicional quer a inovadora, ele aconselha os professores a ensinar apenas esta segunda. Diz ele: “é perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença entre esse e este, que não existe na língua e que não é rigorosamente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos mais monitorados”.

Como não tem argumentos para negar que as críticas de Pestana têm fundamento, Bagno recorre ao argumentum ad hominem da retórica de Aristóteles e chama seu crítico de calhorda. Não podendo atacar o argumento, ataca o argumentador, numa atitude infantil de descontrole emocional de quem sabe que não tem razão. Ao contrário, Pestana critica Bagno com espírito científico, como é praxe no debate acadêmico, jamais em nível pessoal, jamais resvalando para a ofensa ou o insulto. Em outras palavras, ataca as ideias, não a pessoa.

Em outro momento, Bagno dá uma “carteirada” em Pestana, um típico “você sabe com quem está falando?”, ao dizer:

escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

Arrogante como sempre e detentor de uma postura de dono da verdade, como o são todos os extremistas, radicais e dogmáticos, Bagno se gaba de ter escrito uma gramática de mil páginas, o que, supostamente, Pestana não seria capaz de fazer. Ora, primeiramente, um livro grande não é necessariamente um grande livro, ou “tamanho não é documento”. Em segundo lugar, Pestana é autor d’A Gramática para Concursos Públicos, por sinal, a gramática mais vendida e a mais lida por concurseiros e vestibulandos, mas não só por eles.

A certa altura, Bagno coloca o pronome pessoal oblíquo antes do advérbio de negação (“…como se fosse possível algum trabalho que o não seja…”) e, pretensioso, desafia seu opositor como quem quer ensinar o padre-nosso ao vigário: “já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!”.

Bagno também afirma em sua postagem que sua gramática “descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas”. Será? “Eu vi ela” já está enraizado no uso ESCRITO das pessoas cultas? Diz também que “descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita”. No entanto, sua gramática se diz pedagógica justamente porque quer ensinar as pessoas a usar essas formas em sua escrita. Gramáticas descritivas descrevem a língua tal como é falada e escrita, tanto pelos mais cultos quanto pelos iletrados; já gramáticas normativas e pedagógicas normatizam a linguagem formal, isto é, estabelecem normas de como se deve ou não se deve escrever textos formais. A gramática de Bagno é pedagógica até no título, e seu conteúdo não é meramente descritivo, com fins unicamente científicos, é prescritivo e estimula os professores a ensinar a seus alunos um padrão que praticamente só o próprio Bagno utiliza. Afinal, quem mais no meio acadêmico ou profissional escreve “leia tudo o que tive de ler para escrever ELA”?

Em outra passagem de seu texto, Bagno se vangloria de ter escrito um romance em que não usou nenhuma vez a palavra cujo. Enquanto os grandes escritores se esmeram em produzir obras linguisticamente ricas, Bagno se orgulha de sua pobreza vocabular. E ainda assim se considera um literato!

Por fim, usando da falsa humildade característica dos cínicos, Bagno afirma: “aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito criticas e observações — mas calhordice, aceito não”. Coerência teórica?! Aceita críticas e observações?! Só se forem aquelas que não exponham sua incoerência ou a fragilidade de suas postulações. Do contrário, o crítico é calhorda, mesmo que todas as suas críticas estejam fundamentadas e apoiadas em dados colhidos por metodologia científica, como o fez o Prof. Pestana.

Mas, a certa altura de seu texto, Bagno também confessa: “na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese”. Pergunta que eu também me faço. O fato é que Marcos Bagno diz o tempo todo fazer ciência ao mesmo tempo em que confessa que todo o seu trabalho é eivado de ideologia (marxista, no caso), e que não é possível fazer ciência não ideológica. Na verdade, todo trabalho científico estritamente descritivo e explicativo que seja bem feito e metodologicamente correto, seja nas ciências naturais ou nas humanas, é não ideológico, já que se atém à realidade dos dados coletados, sem emitir opiniões ou juízos de valor. No entanto, Bagno advoga o tempo todo em favor de uma agenda política, como quando diz em sua postagem:

[o argumento] (é) calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc.

Em resumo, Bagno não faz ciência, faz política travestida de ciência. Como todo extremista, não se pauta por fatos objetivos e sim por dogmas. Como todo radical, é raivoso contra quem discorde de suas ideias. Como todo hipócrita, finge-se de democrata quando só dá ouvidos a quem lhe faz coro. Como todo aquele que se sabe medíocre (porque quem é bom de fato não precisa provar nada a ninguém), vomita o tempo todo seu currículo acadêmico e desqualifica seus adversários. Como militante político barulhento e rebelde sem causa, desprestigia os verdadeiros linguistas, aqueles que fazem ciência de verdade com seriedade e responsabilidade, que não misturam fatos com opiniões, que não falseiam dados para provar suas teses, que não atacam a honra de seus críticos ou adversários e que, além de tudo, escrevem num português que, mesmo não seguindo religiosamente a norma-padrão, é perfeitamente aceitável entre as pessoas de cultura. O que não é o caso do Sr. Marcos Bagno.

Novas palavras a ser proibidas por serem politicamente incorretas

DISCLAIMER AOS DESAVISADOS: Este texto tem fortes doses de ironia.

Como vocês sabem, a língua portuguesa, como de resto todas as línguas, é machista, racista, classista, homofóbica, transfóbica, aporofóbica, etc. etc. Portanto, precisamos urgentemente banir do nosso vernáculo todas as palavras e expressões que firam a suscetibilidade e os direitos das minorias. Aqui vai minha humilde contribuição a essa justa causa, apontando algumas palavras que até agora passaram despercebidas, mas que contêm uma grande carga de preconceito e desrespeito.

Comecemos pela palavra virtude. Sim, amigos, amigas e amigues, essa palavrinha aparentemente tão inocente e mesmo nobre veio do latim virtus, derivada de vir, “homem, ser humano do sexo masculino”, logo significa “qualidade de quem é homem, aquela que só o homem tem”. Como podem ver, é uma palavra pra lá de machista, visto que considera que só os machos da espécie têm a qualidade da virtude. Pelos mesmos motivos, devemos banir também viril, virilidade, varonil e másculo, pois todos esses termos remetem ao sexo masculino de forma positiva e elogiosa, desmerecendo as mulheres. Aliás, também é urgente proscrevermos hombridade (do espanhol hombre, “homem”) e homenagem (alguém até já propôs mulheragem em seu lugar, mas eu fico me perguntando se aí também não teríamos sexismo, só que em sentido oposto).

E por falar em mulheres, a própria palavra mulher é discriminatória, pois provém do latim mulier, “mulher casada, esposa”, como se só as casadas fossem mulheres de verdade. E o que dizer de senhor então? Essa palavra nos chegou do latim senior, que quer dizer “mais velho”, logo é um termo altamente ageísta. E jamais devemos dizer que um erro é crasso, pois crassus em latim é “gordo”, e nós evidentemente não somos gordofóbicos, né?

Por fim, jamais use a palavra atroz, que vem de ater, “negro” em latim, pois você estará associando a ideia nefasta de atrocidade às pessoas afrodescendentes. E tampouco use a palavra alvo no sentido de meta a ser atingida, já que esse vocábulo significa “branco”, e assim você estará elevando a raça branca ao status de superioridade, perfeição, de objetivo a que todos devem aspirar.

Bem, acho que por hoje já dei minha contribuição para tornar nosso idioma mais inclusivo e menos discriminatório. Em todo caso, se encontrar mais termos preconceituosos, darei prosseguimento ao meu index verborum prohibitorum, ok?

Inflação, carestia, preços altos… Mas de onde vêm as palavras “caro”, “preço” e “inflação”?

Hoje em dia, tudo está muito caro, efeito nefasto da inflação, que corrói nossa renda e afeta sobretudo os mais pobres. Mas qual a origem da palavra caro? Em latim, carus, de onde veio a palavra portuguesa, significava em primeiro lugar “querido, amado”. É daí que vêm os nossos “caro(a) amigo(a)” e “meu/minha caro(a)”, com que nos dirigimos a pessoas queridas. Daí também vêm caridade, carícia e acariciar, estes dois últimos por via do italiano. O termo latino se originou de uma raiz indo-europeia *kā‑, que significava “gostar, amar, desejar”. Ela está presente, por exemplo, no sânscrito kama, “amor”, que aparece no título do Kama Sutra, literalmente “Livro do Amor” (sutra, “livro” em sânscrito, é da mesma raiz de sutura, pois os livros eram feitos de folhas de pergaminho costuradas umas às outras).

Mas, como aquilo ou aqueles que amamos têm alto valor para nós, o latim carus também passou a significar “de alto valor ou preço”, como os gêneros de primeira necessidade atualmente no Brasil. Assim, caro hoje se refere não só ao valor moral ou afetivo que damos às coisas e pessoas como também ao custo monetário delas (das coisas, não das pessoas — se bem que há pessoas que também nos custam caro).

E se caro tem a ver com “valor, preço”, é por isso que temos apreço pelo que nos é caro, isto é, precioso. Em latim, pretium era o preço que se pagava por algo. Assim, pretiosus era “precioso” não só no sentido de “valioso”, mas também no de “dispendioso”. Hoje diríamos que o arroz e o feijão são muito preciosos, né? Consequentemente, appretiare, não era “apreciar”, mas “apreçar, avaliar, estabelecer o preço”. Mais uma vez, como tudo que tem valor tem alto preço (pelo menos entre os bens materiais), passou-se a usar os termos relativos a preço com sentido moral: apreciar uma comida, ter uma amizade preciosa, ter apreço por alguém, e assim por diante.

Mas começamos falando de inflação. Essa palavra, do latim inflatio, deriva de inflare, “inflar, inchar”, formado do prefixo in‑, “dentro”, e do verbo flare, “soprar”, que também ocorre em sufflare, que deu em português soprar e insuflar, e em afflare, “exalar”, que deu o nosso achar. Inflare significa “soprar dentro”, como se faz ao encher de ar uma bexiga de borracha soprando dentro dela.

Em resumo, inflação é um inchaço, no caso, dos preços. Trata-se de um termo cunhado pelos economistas. Mas também existe a inflação cósmica, expressão proposta pelo astrofísico e cosmólogo americano Alan Guth para denominar uma expansão exponencial que o Universo teria sofrido nos primeiros tempos de sua existência.

Tenho muito apreço por assuntos como cosmologia, mas a inflação dos preços não me é nada cara.