A origem da palavra “dinheiro”

A Páscoa passou, e nessa data os cristãos rememoram a traição de Judas, a prisão de Jesus, seu julgamento e execução na cruz, além de sua suposta ressurreição. Uma das informações sempre veiculadas na narrativa sobre os últimos dias do Cristo é que ele foi traído pela quantia de 30 dinheiros, o que causa certa estranheza a algumas pessoas, visto que dinheiro não é unidade monetária, mas a própria moeda. Se perguntássemos qual era o dinheiro em circulação na Roma antiga e alguém respondesse “dinheiro”, acharíamos que a pessoa não entendeu a pergunta ou está de gozação, mas é isso mesmo: o dinheiro em circulação em Roma era o dinheiro — ou melhor, o denário.

Na verdade, a unidade monetária romana era o asse (em latim as, genitivo assis). Por sinal, é daí que vem o nosso ás do baralho. Esse sistema monetário tinha base duodecimal, e cada parte ou fração se chamava uncia, origem da nossa onça (não o felino selvagem, bem entendido, mas a unidade de medida ainda utilizada nos países anglo-saxônicos). Uncia deriva de unus, “um” em latim.

Mas e o denário? Em Roma, denarius (subentendido numus, “dinheiro, numerário”) era uma moeda de dez asses. É que denarius provém de decem, “dez” em latim. Portanto, Judas Iscariotes delatou Jesus Cristo por 30 denários ou 300 asses. Só não me perguntem se essa quantia era muito ou pouco dinheiro; não faço a menor ideia do poder de compra de um asse romano, e acho que nenhum economista seria capaz de fazer a conversão desse valor para o nosso real brasileiro atual.

De todo modo, os apóstolos eram pobres, e certamente uma soma como 30 dinheiros, mesmo que valesse apenas uns 300 reais, já era muito, especialmente para um apóstolo ambicioso e inescrupuloso, capaz de trair seu mestre por dinheiro.

Pelo menos, no final Judas se arrependeu de sua vileza e se suicidou de remorso.

Uma curiosidade é que a palavra denarius produziu uma unidade monetária, o dinar, muito usado em vários países, como Argélia, Iraque, Jordânia, Líbia, Tunísia e Sérvia. O nome dinar saiu do latim e passou pelo siríaco dinara, depois pelo árabe دينار (dinar), até chegar ao português. E denarius também resultou no espanhol dinero e no italiano denaro, além do antigo francês denier, hoje substituído por argent, literalmente “prata”.

A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?

A educação para a arte

Um dos papéis da educação é estimular nos indivíduos o gosto pela arte de qualidade. Para isso, ela parte do princípio de que é preciso “educar” os olhos e os ouvidos. Caso contrário, as pessoas só apreciariam obras vulgares e de pouco conteúdo. Não há nessa proposta algo de preconceituoso ou de elitista?

As crianças adoram certos alimentos, enquanto outros elas só comem obrigadas. Adultos acham gostosos certos alimentos porque foram acostumados desde pequenos a consumi-los. É por isso que em alguns lugares do mundo se come peixe cru, insetos, etc.

Uma piada que precisa ser explicada é realmente engraçada?

Em resumo, há certas obras que nos agradam naturalmente, sem que tenhamos de aprender a gostar delas; outras só são apreciadas por quem foi “condicionado” a gostar delas. Não é que estas não deem prazer, mas se trata de um prazer “oculto”, não óbvio, um prazer “iniciático”, que só alguns conseguem sentir.

Isso põe a questão: será que uma obra é intrinsecamente boa (por exemplo, quando produz prazer de modo instintivo, em mentes não treinadas) ou tudo não passa de condicionamento?

É função da escola “educar” o olhar e o ouvido no sentido de condicioná-lo a um padrão estético arbitrariamente estabelecido como de bom gosto por uma elite cultural ou econômica?

O que ocorre é que a escola tenta fazer — sem muito sucesso, devido aos seus métodos repressivos — o que a mídia deveria fazer, mas não faz: apresentar ao público a maior diversidade possível de gêneros artísticos para que cada um possa escolher do que gosta mais. O problema é que os meios de comunicação sempre oferecem mais do mesmo — e trata-se de obras que não primam pelo conteúdo, mas por serem vendáveis. Fica aí a questão: não serão elas vendáveis justamente porque coincidem com nosso modelo “instintivo” de prazer? Ou seja, não serão populares essas obras exatamente porque ativam as zonas de prazer do cérebro de pessoas não treinadas? Será então que a “educação do olhar” feita pela escola não é uma ação contrária à natureza? Mas ser o contrário da natureza não é exatamente a definição de cultura?

Fica aqui a reflexão.

De onde vem o sufixo “‑alha”?

Olá, Professor! Gostaria de saber de onde vem o sufixo de palavras como “gentalha”, “parentalha” etc. Muito obrigado.
Wilberley Araújo Gomes

O português tem muitas palavras terminadas em -alha, como as citadas gentalha e parentalha, e também canalha, migalha, muralha, mortalha

Também tem palavras terminadas em -ália, como genitália, parafernália e Tropicália. Ambos os sufixos provêm do latim -alia, plural neutro de -alis, sufixo que em português forma adjetivos como nacional, central, cultural, etc. A diferença é que -alha nos chegou por herança latina ou empréstimo de outra língua românica, enquanto -ália é forma culta, vinda do latim por empréstimo.

O sentido latino desse sufixo era plural e coletivo. Assim, se genitale era a redução por elipse da expressão genitale organum (“órgão genital”), o plural genitalia significava “os genitais” (novamente subentendendo “órgãos”). Igualmente, Saturnalia eram as Saturnais, festas em honra do deus Saturno (redução de Saturnalia festa, plural de Saturnale festum, “festa saturnal”). Como a festa durava vários dias, era natural que se usasse sua denominação no plural. E paraphernalia eram os pertences pessoais que a noiva levava para seu novo lar após o casamento. Muitas dessas palavras passaram ao português em sua forma erudita, introduzidas por literatos, como genitália e parafernália. Outras herdamos diretamente do latim e, nesse caso, houve evolução fonética transformando o l seguido de i na consoante palatal lh. Foi assim que o latim Parentalia, “festa anual em homenagem aos parentes mortos” (plural neutro de parentalis, derivado de parentes, “antepassados, parentes”) resultou no português parentalha, com o sentido de “reunião de parentes, conjunto de todos os parentes”. A partir daí, o sufixo -alha se tornou produtivo na formação de coletivos, especialmente depreciativos, como gentalha (reunião de gente baixa, populacho, ralé). Aliás, canalha, que nos chegou do italiano canaglia (o sufixo italiano -aglia tem a mesma origem e significados que o português -alha) também significa “ralé, populacho, escória”, portanto tem sentido coletivo, e posteriormente passou a designar também o membro dessa classe. E como a tradição costuma associar às pessoas de baixa extração social os piores defeitos, daí para “canalha” passar a significar “calhorda, patife” foi um pulinho. Da mesma forma, migalha é um diminutivo um tanto quanto depreciativo de miga, que já é por si só qualquer coisa insignificante.

Aqui um comentário: o italiano canaglia era um coletivo de cães (cane em italiano), não em seu sentido literal de matilha de cachorros e sim no de pessoas biltres. É que em italiano cane também significa “biltre, patife, calhorda”, como na expressão figlio di un cane, cujo equivalente em português acho que não preciso mencionar, né?

Portanto, nós seres humanos sempre atribuindo aos pobres animais os defeitos que são nossos e exclusivamente nossos!

O sufixo culto -ália se presta à formação de nomes designativos de reuniões de pessoas, como o movimento musical da Tropicália (reunião de músicos de um país tropical) ou a Carnavália, feira de negócios relacionados ao Carnaval (e também título de uma canção dos Tribalistas).

Mas atenção: nem toda palavra portuguesa terminada em -alha ou -ália possui esse sufixo. Palha vem do latim palea, tralha vem de tragula, fornalha de fornacula, navalha de novacula, e assim por diante.

Relembrando e refletindo sobre Belchior e seu legado

Nos últimos dias, acabei casualmente voltando a ter alguns contatos com a música de Belchior, que eu não ouvia há muito tempo. Primeiro, me deparei com um documentário na TV por assinatura sobre sua vida e obra; depois, um programa no rádio dedicado a ele; e mais algumas canções suas que tocaram no rádio do carro enquanto eu dirigia (“Dentro do carro / Sobre o trevo / A cem por hora, ó, meu amor”). Isso me fez refletir um pouco sobre esse ícone da música popular brasileira desaparecido há quase seis anos, em 30 de abril de 2017.

Por sinal, sua morte me pregou uma peça: alguns dias antes, eu havia participado de uma matéria para o Fantástico, da Rede Globo, sobre o Dia da Língua Portuguesa, que é comemorado em 5 de maio. Essa matéria iria ao ar exatamente em 30 de abril, mas, na hora agá, a morte do artista “derrubou”, como se diz no jargão jornalístico, a matéria de que eu participava. No domingo seguinte, o Dia da Língua já havia passado, e a reportagem jamais foi ao ar.

Mas não guardo mágoa de Belchior por ele ter roubado minha cena: sem dúvida, sua morte foi um fato muito mais relevante do que as minhas considerações sobre a língua portuguesa. Aliás, ele foi um grande cultor do idioma: suas letras são poemas impecáveis, de um vernáculo esmerado e burilado, e ele próprio se dizia um artesão da palavra, alguém que passava horas tentando melhorar um verso que já estava ótimo.

Antônio Carlos Belchior, que também se autodenominava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, portanto, como ele próprio jocosamente dizia, um dos maiores nomes da MPB, surgiu no cenário da música brasileira no âmbito de um movimento de artistas cearenses chamado “Pessoal do Ceará”, que também revelaria Fagner, Ednardo e Amelinha, dentre outros. No entanto, diferentemente destes, Belchior é um artista que eu tenho dificuldade em classificar como de MPB, pois sua música transitava entre o rock, o blues e as baladas românticas. Não que outros nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Jorge Ben Jor não tenham flertado com o pop-rock: após os Beatles, a Jovem Guarda e a Tropicália, praticamente todos eles fizeram isso em algum momento. Mas, no caso de Belchior, sua música revela algumas contradições.

Em primeiro lugar, seus versos eloquentes repisavam certos temas recorrentes: o desalento pelo fim do sonho hippie (The dream is over, lembram?), a juventude perdida, a inadequação do rapaz sertanejo na cidade grande, o sentimento de pertença latino-americana. Belchior era alguém que, já nos anos 1970 era um saudosista dos anos ’60. E isso com apenas 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Como ele próprio diz na canção A Palo Seco, aquele seu desespero era moda em 73. O problema é que essa temática do fim da contracultura foi ficando datado, mesmo a canção tendo sido reeditada três anos depois com a letra alterada para “76”. A década de ’70 passou, e com ela o sucesso de Belchior. Tanto que, nos anos ’80, ele basicamente lançou inúmeras regravações de seus sucessos da década anterior. O desespero de Belchior havia saído de moda.

Como apenas um rapaz latino-americano que era, ele afirmava, também nessa mesma canção, que “Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues”. Só que, contraditoriamente, a canção em questão é exatamente um blues. Por sinal, Belchior falava muito do sertão de onde saíra, mas sua música jamais teve um acento nordestino; ao contrário, era muito urbana e muito anglo-saxônica. Suas referências sempre foram John Lennon (“a felicidade é uma arma quente”), James Dean e outros símbolos da cultura pop internacional. Por isso, acho difícil enquadrar Belchior na mesma MPB de Edu Lobo, Chico Buarque, Dori Caymmi, Ivan Lins, Gonzaguinha, João Bosco, nossa recém-falecida Sueli Costa, e mesmo de nomes nordestinos como os já citados Caetano, Gil, Fagner, Djavan, além de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e outros mais fincados na herança da Bossa Nova e dos ritmos nacionais.

Ao mesmo tempo, não vejo Belchior como integrante do cenário roqueiro dos anos ’70, ao lado de Rita Lee, Sérgio Hinds, Arnaldo Batista, Raul Seixas, Erasmo Carlos…

Talvez essa dificuldade de se enquadrar em qualquer gênero dentro da música popular brasileira, embora revelasse a grande qualidade de ser único e revolucionário — além de sua figura exótica, com seu enorme bigode, que mais o aproximava dos cantores hispano-americanos ou talvez do country americano, além de sua voz rouca e fanhosa —, acabou por relegá-lo a um certo ostracismo. Com efeito, a partir dos anos 1990, ele vai aos poucos desaparecendo de cena até literalmente sumir. Especulações à época diziam que ele teria abandonado a carreira musical e fugido de seus credores. Belchior acumulou dívidas impagáveis — não no sentido do riso e da hilaridade, bem entendido, mas no da insolvência financeira —, abandonou bens, foi morar de favor até no Uruguai, tentou manter oculta sua identidade (se bem que isso era quase impossível em se tratando de uma figura como ele), foi descoberto por fãs e pela imprensa, voltou à obscuridade e finalmente morreu aos 70 anos, ofuscando minha estreia na televisão.

Lembro que a mãe de um colega meu de classe no colégio era muito fã de Belchior, tinha todos os discos dele, sabia de cor e cantava todas as suas canções, e eu, que na época curtia o pop internacional e a disco music, ou no máximo uma MPB mais ortodoxa, tipo Chico e Milton, achava estranho aquele gosto por um cantor bigodudo que eu, equivocadamente, equiparava aos bregas da época: Waldick Soriano, Odair José, Reginaldo Rossi, Altemar Dutra, Nelson Ned, y otros más. Demorei algum tempo para compreender a verdadeira dimensão da obra de Belchior, que, embora não seja dos meus artistas favoritos, é inegavelmente um dos gigantes da nossa música, além de um grande poeta.

Entrevista com Sérgio Cabral

Depois de ser posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro último, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-presidiário Sérgio Cabral decidiu dar sua primeira entrevista como cidadão livre e ficha-limpa (todos são inocentes até que se prove a sua culpa, após trânsito em julgado na última das infinitas instâncias do Poder Judiciário).

O repórter da televisão designado para entrevistar o ilustre político e mão-leve começa a entrevista perguntando:

— Senhor governador, como o senhor se sente depois de ter passado seis anos preso, condenado a mais de 400 anos de prisão, e agora em liberdade?

— Olha, rapaz, quando eu decidi partir pra corrupção, avaliei que era um bom negócio, no Brasil tudo é movido a propina, os mecanismos de fiscalização são falhos, superfaturar uma obra é muito fácil e ninguém percebe, e, mesmo quando há denúncias, a gente sempre diz que é intriga da oposição. No final, as investigações levam anos e não dão em nada; esses crimes nunca são julgados mesmo, né? E ainda tem o foro privilegiado. Além disso, a vida de nababo que eu e meus companheiros levávamos compensava plenamente o risco.

Só que, quando eu fui preso na Operação Lava-Jato, obrigado a confessar os meus crimes e a devolver parte do dinheiro desviado e, ainda por cima, fui condenado a centenas de anos de prisão, confesso que bateu um arrependimento: ir pra cadeia depois de ser um político de prestígio, que sonhava até ser presidente da república, foi duro.

Mas fiquei preso só seis anos, tive regalias na cadeia, como TV com DVD e caviar no jantar, e ainda pude curtir a companhia de alguns parças, como o meu brother Pezão, por exemplo. Ou seja, esses seis anos passaram depressa. Logo em seguida, fui pra prisão domiciliar, que de domiciliar só tem o nome, pois eu podia sair na rua à hora que quisesse, só não podia sair do país sem autorização judicial. E domicílio de rico é outra coisa, né?

Então, diante disso, eu comecei a reavaliar a situação e a achar que tinha valido a pena tudo que eu fiz. Afinal, ainda tenho muito tempo pela frente pra curtir a grana que eu desviei e que não tive que devolver aos cofres públicos. Até eu ser julgado e condenado na última instância, esses processos todos já terão caducado — ou eu estarei velho demais pra ir pra cadeia. Quem sabe role até um indulto presidencial ou uma graça, né?

— Mas, governador — interpela o repórter —, o senhor não acha um escárnio com o povo brasileiro o senhor estar por aí livre, leve e solto, gastando o dinheiro roubado dos contribuintes, mesmo tendo sido condenado a quatro séculos de prisão?

— Olha, garoto, em primeiro lugar, “dinheiro roubado” não, “desviado”, ok? Em segundo lugar, se tem alguém escarnecendo do povo, não sou eu, é o Poder Judiciário, eu só estou cumprindo ordens judiciais. Ou seja, eu estou rigorosamente dentro da lei. O problema não sou eu, é a lei. Só que eu, sinceramente, não tenho do que me queixar dessa lei, pra mim ela é muito boa. Aliás, pra você ver como são as coisas, o juiz que me condenou e mandou me prender está sendo investigado e pode até ser punido com a aposentadoria compulsória, isto é, ficar pelo resto da vida recebendo salário sem trabalhar — se bem que uma punição assim até eu queria, né?

— O senhor quer deixar uma última mensagem para os nossos telespectadores?

— Olha só, na minha concepção, o Brasil não é, como dizem, o país da corrupção, pois corrupção tem no mundo inteiro; no Oriente Médio, por exemplo, a coisa é bem pior do que aqui. O Brasil é, sim, o país da impunidade, e é a impunidade que alimenta a corrupção. Eu não teria feito tudo o que fiz se não tivesse a certeza de que, no final, ia me dar bem, como de fato me dei. As nossas leis são feitas pra não punir ninguém — a não ser, claro, os três P’s: preto, pobre e puta. Afinal, grande parte daqueles que fazem as leis, nossos ilustres legisladores, também têm problemas com a Justiça — e não sem razão! Então eles fazem leis pra si próprios, pensando que um dia também poderão ser beneficiados por elas. Minha mensagem é: meus amigos, no Brasil, o crime compensa! Muito obrigado pela oportunidade e um abraço a todos os telespectadores.

Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.

Luiz Felipe Pondé e a pauta dos animais

Recentemente, o filósofo Luiz Felipe Pondé publicou um vídeo em seu canal do YouTube respondendo à pergunta “Por que não me preocupo com a pauta dos animais?”. Admiro muito Pondé por sua sensatez e equilíbrio na análise das mais diversas questões, desde as existenciais até as políticas, mas no vídeo em questão sou obrigado a dizer que o pensador tratou a questão de forma rasa e pouco sensível.

Logo de início, ele argumenta que a natureza é uma máquina de sofrimento e que, embora ninguém em sã consciência seja a favor do sofrimento, animais se alimentam de animais e que se deveria perguntar a um leão se ele é a favor do sofrimento. Mais adiante, ele questiona o que farão os veganos se um dia descobrirem que os vegetais também têm sentimentos: comerão o próprio corpo como única saída possível?

Todos sabemos que seres vivos se alimentam de outros seres vivos, sejam eles animais ou vegetais. Nisso a natureza é sábia, pois, se nos alimentássemos de minerais, que são recursos não renováveis, estaríamos devorando nosso próprio planeta. Portanto, até por ser uma lei da natureza, alimentar-se de animais não seria, em princípio, um problema ético. A questão é como o ser humano trata os animais que come.

O leão tem no antílope (eu ia dizer “veado”, mas algum militante LGBTQIAXYZ pode se sentir ofendido) seu alimento, mas, para comê-lo, ele precisa caçá-lo, e aí temos uma luta de igual para igual. Um dia é da caça, o outro do caçador, logo às vezes o leão mata e come o antílope, às vezes o antílope consegue fugir e sobreviver — para azar do leão.

Os índios (ou indígenas, ou povos originários) brasileiros costumam caçar para comer e até usam um meio um tanto desleal em relação aos bichos que caçam chamado arco e flecha; sim, com esse artefato tecnológico, levam certa vantagem sobre a presa, o que não aconteceria se caçassem só com as próprias mãos. Mesmo assim, jamais caçam além do que precisam para o seu consumo imediato, e algumas tribos ainda realizam cerimônias religiosas em memória dos animais que abatem, encomendando sua alma aos deuses num ato de gratidão.

Já nossa moderna civilização transformou os animais em mercadoria. Quando o dinheiro fala, qualquer princípio ético ou moral se cala — ou é calado. Nas fazendas de gado, tanto de corte quanto leiteiro, bem como nas granjas e avícolas, as condições de vida dos animais são absolutamente miseráveis e desumanas. As técnicas utilizadas no  abate de animais são de fazer inveja a qualquer administrador do campo de concentração de Auschwitz. A pesca predatória nos oceanos elimina muito mais peixes, moluscos e crustáceos do que aqueles que vão ser efetivamente comercializados e consumidos — o que já não seria pouco diante de uma humanidade de 8 bilhões de bocas ávidas de comida. Como resultado, temos a progressiva extinção de um grande número de espécies, o que vem causando um desequilíbrio ambiental irreversível.

Mas a pauta animal não se restringe ao veganismo: quem compra um cãozinho de raça está alimentando uma máfia de criadores inescrupulosos, para quem cachorro é dinheiro, e por trás de todo filhote fofinho há uma mãe (eles chamam desumanizadamente de “matriz”) maltratada, totalmente carente de cuidados, que dirá de carinho, cujo único propósito na vida é parir, e um pai (eles chamam de “reprodutor”) igualmente tratado como mera máquina de copular fêmeas. Quando não servem mais a esses propósitos capitalistas, são simplesmente descartados (mortos é uma palavra muito forte, né?).

Outro grande equívoco do Sr. Pondé em seu vídeo é associar a pauta animal a um modismo de comportamento. É mais ou menos o que faz a direita que enriquece vendendo armas e agrotóxicos ao dizer escarnecendo que “isso é coisa de esquerdista”. Nesse caso, a caridade, o pacifismo, o ambientalismo, a luta por justiça social e, mais ainda, a ética, a solidariedade, a gentileza, o amor ao próximo, tudo isso são pautas de esquerda, “coisa de comunista”. Sei que Pondé não é exatamente um direitista burro; suas posições políticas estão mais ao centro do que à direita, e burro é algo que ele definitivamente não é. Entretanto, sua crítica aos modismos de comportamento, à qual eu também faço coro (por exemplo, só nesta postagem zombei duas vezes da excrescência chamada linguagem politicamente correta), o levou desta vez a tecer um comentário raso onde ele poderia ser profundo, mesmo que seu vídeo ficasse um pouco mais longo. Talvez a pressa de produzir conteúdo toda semana para manter o famigerado engajamento (e a consequente monetização) o tenha levado à pouca reflexão, o que não é típico dele. Mas pode ser também que ele seja de fato um insensível, alguém a quem o excesso de leitura de filosofia, de gnósticos, estoicos até os cínicos, tenha embrutecido. Afinal, segundo a racionalidade fria da filosofia, a natureza é uma máquina de sofrimento, não é mesmo? E máquinas não têm sentimento. Por enquanto.

Voltando de férias com um desagravo

Estive sumido aqui do blog neste mês de janeiro, em parte porque, como todo filho de Deus — embora ateu —, eu também tenho direito a umas merecidas férias. Mas em parte também porque passei por uma experiência que, durante semanas, me tirou totalmente a vontade de escrever.

Logo nos primeiros dias do ano, assistimos ao funeral do eterno Pelé, um dos meus grandes ídolos, que tive a sorte de ver jogar. A morte do Rei e a oportunidade de rever, nos inúmeros documentários que a televisão exibiu, seus incríveis lances provoaram em mim uma emoção só comparável a outra que também vivenciara pouco antes: a despedida dos palcos de Milton Nascimento, meu ídolo maior, em show no Mineirão, na minha amada Belo Horizonte, ao qual estive presente em novembro último. Isso me inspirou a escrever um artigo traçando um paralelo entre esses dois brasileiros geniais. O título seria Dois reis negros, dois brasileiros geniais. O texto se iniciava assim:

Dois negros. Dois brasileiros. Dois mineiros. Um, de Três Corações. O outro, de Três Pontas. Um, nascido a 23 de outubro de 1940. O outro, a 26 de outubro de 1942. Signo de escorpião. Um, nascido no Rio, mas criado em Minas. O outro, nascido em Minas, mas radicado em Santos. Dois gênios em suas profissões. Dois homens que emocionaram e emocionam o público. Dois cidadãos do mundo. Ambos de sobrenome Nascimento. O primeiro, de nome Edison (depois alterado por ele mesmo para Edson). O segundo, de nome Milton. Ambos nomes ingleses: o do inventor da lâmpada elétrica e o do autor do Paraíso Perdido.

E o artigo seguia falando sobre o imortal legado de Pelé, deus do futebol, e sobre a maravilhosa obra musical do Bituca, como Milton Nascimento gosta de ser chamado, e sua contribuição para a MPB, para o Brasil, para o mundo. Nesse texto, eu falava sobre a minha emoção diante do apoteótico show a que assisti, num Mineirão mais lotado que num Cruzeiro x Atlético. Eu terminava agradecendo por ter tido a sorte de ser contemporâneo desses dois gênios, de ter nascido no mesmo país e planeta que eles.

Todas as semanas, publico neste blog textos que escrevo da melhor forma que consigo, tentando falar às vezes de assuntos difíceis como linguística numa linguagem que atinja o maior número possível de leitores, especialmente os não iniciados no assunto. Graças a um dom natural, tenho prazer e facilidade em escrever e, modestamente, acho que faço isso bem. Por isso mesmo, a tarefa de escrever todas as semanas não me é pesada; pelo contrário, minha escrita flui com facilidade. Mas, quando escrevo sobre a língua, ou sobre a política nacional, ou sobre as mazelas do nosso país e do nosso tempo, escrevo com a cabeça. Já quando escrevi a crônica sobre Pelé e Bituca, o fiz com o coração, tomado de profunda emoção e rara inspiração. Tanto que mal podia esperar para que chegasse segunda-feira, dia 9 de janeiro, para publicá-lo. Seria um dos melhores artigos que já produzira na vida. De quebra, no dia anterior, havíamos perdido Roberto Dinamite, outro grande craque do nosso futebol, e eu aproveitaria o ensejo para também lhe prestar uma homenagem. Por último, eu pretendia finalizar com um comentário sucinto deplorando em palavras irônicas a barbárie ocorrida em Brasília na véspera, o fatídico 8 de janeiro.

Pois qual não foi minha surpresa e choque naquela segunda-feira ao abrir o arquivo Word em que estava o meu artigo e constatar que, com exceção do primeiro parágrafo (esse que transcrevi acima), o resto do texto havia sumido. Como? Teria eu por acidente apertado alguma tecla e deletado o restante do texto e a seguir salvado o arquivo? Possivelmente foi o que ocorreu. Como faço backup dos meus arquivos num HD externo ao meu laptop, fui até lá e, para minha decepção, o arquivo em backup também estava mutilado. A partir desse momento, comecei a entrar em pânico. Pesquisando na internet, descobri que o Windows salva versões anteriores dos arquivos, só que essa função precisa ser habilitada e, não se sabe por que cargas d’água, ela não vem habilitada de fábrica. Ou seja, o senhor Bill Gates, nerd que sempre foi, deve achar que todos os usuários dos seus produtos são formados em ciência da computação. Pois bem, descobri tarde demais que não havia versão anterior salva do meu pobre arquivo. Passei o dia baixando softwares de recuperação de arquivos deletados e até encontrei uma versão de 2017 do meu arquivo — ou seja, uma versão absolutamente inútil.

Conclusão: perdi meu texto para sempre, sem que ele tenha tido a chance de ser lido por uma alma sequer — mesmo eu jamais o lerei de novo, e tudo que me resta dele são alguns flashes na memória. Reescrevê-lo é impossível: a emoção e a inspiração que eu tive jamais se repetirão. Além disso, o momento de sua publicação passou; como dizem, perdi o timing.

Meus leitores podem achar bobagem, mais vivenciei um verdadeiro sentimento de luto nesses dias, comparável à perda de um ente querido. Com a diferença de que, quando perdi meus pais, sofri por um tempo, mas guardei comigo a lembrança de todos os anos de vida em que pude desfrutar de sua companhia. E desse artigo que perdi, que era como um filho (sim, amigos, os livros e artigos que escrevo são como meus filhos), o que vou guardar?

Isso tudo só fez reforçar minha ojeriza pela tecnologia. Ojeriza que começou ainda nos anos 90, quando eu finalizava minha tese de doutorado num computador XT, daqueles de telinha verde (os mais jovens nem fazem ideia do que seja isso). Pois, em certo momento, o “bicho” travou, o que fez minha tese, produto de seis anos de insano trabalho, simplesmente sumir. E na época não havia dispositivos de autorrecuperação como os do Windows de hoje em dia — na época sequer havia Windows! Felizmente, após algumas manobras e muito desespero, consegui salvar uma versão tosca do meu trabalho. Passei dias reformatando parágrafo por parágrafo, negrito por negrito, itálico por itálico, refazendo tabelas, redesenhando figuras, reescrevendo o último capítulo, que não havia sido salvo. Mas pelo menos consegui recuperar o conteúdo do arquivo. Esse episódio, somado ao assédio moral que sofria do meu orientador, explica o surto depressivo que tive à época e que me custou anos de tratamento psiquiátrico.

Sou do tempo da máquina de escrever, e os textos que datilografava quando era adolescente ainda estão comigo. Livros impressos ou escritos à mão, alguns com mil anos ou mais, ainda resistem nas grandes bibliotecas do mundo. Mas arquivos “virtuais”, estejam eles num HD ou na nuvem, podem sumir a qualquer momento. E estamos inconsequentemente digitalizando toda a nossa cultura, todo o nosso acervo de conhecimentos, eliminando o papel sob a desculpa de poupar o meio ambiente — como se fosse o papel o grande vilão da emergência climática que vivemos.

Queridos leitores e amigos, este texto é um desabafo e um desagravo. Posso estar ficando velho, mas ninguém me convence de que um videogame de futebol que joga sozinho é melhor que uma partida de futebol de botão. Que joguinhos de celular que se jogam com dois polegares são mais divertidos do que uma bola de futebol, um pião, uma bicicleta ou bolinhas de gude. Que brincar no playground do condomínio é mais bacana do que correr descalço na rua, sem medo de doença ou de bandido.

Volto à rotina da escrita, porque simplesmente não consigo viver sem isso, mas com profundo pesar e medo das próximas perdas. Até a semana que vem.

*-*-*

Ah, um adendo: na minha opinião, não é o colapso climático ou a guerra nuclear o que vai em breve destruir a humanidade; é a Inteligência Artificial.

Sobre Pelé e a genialidade

A recente morte de Pelé, ídolo dos ídolos, celebridade das celebridades, deus do futebol, o eterno Rei, o mais ilustre dos brasileiros, fez aumentar subitamente de frequência o uso da palavra gênio, e não sem justa razão. É bem verdade que essa palavra anda meio banalizada ultimamente, tendo virado elogio fácil a qualquer um que, na suspeita e duvidosa opinião de alguns, tenha realizado algum feito notável, ainda que trivial. Nesses nossos tempos, Anitta é um gênio por ter chegado ao topo do ranking do Spotify, Galvão Bueno é o gênio da narração esportiva, Steve Jobs foi o gênio da tecnologia por ter inventado o i-Phone, e por aí vai. Mas, apesar desse uso lisonjeiro e pouco autêntico do termo, existem e existiram os gênios verdadeiros, aqueles que revolucionaram com sua inteligência e habilidades ímpares as áreas em que atuaram. Se para nós Pelé se tornou, mais do que um nome próprio, um substantivo comum designativo do indivíduo que chegou ao mais alto nível de seu ofício, tornando-se insuperável, podemos dizer que muitos seres humanos merecem esse epíteto. Não é errado dizer que Ivo Pitanguy foi o Pelé da cirurgia plástica, que Oscar Niemeyer foi o Pelé da arquitetura, Ayrton Senna o Pelé do automobilismo, Michael Phelps o Pelé da natação, Muhammad Ali o Pelé do pugilismo, e assim por diante. Talvez até devêssemos grafar Pelé nesse sentido com inicial minúscula: “o deputado fulano de tal é o pelé da corrupção”.

Mas, ao assistir na TV nestes últimos dias aos feitos fantásticos, inigualáveis e, por que não?, sobre-humanos do nosso querido Rei, me vêm à mente os nomes de muitos pelés que admiro e tenho como guias e fontes de inspiração, cada um tendo sido um divisor de águas em sua profissão, repartindo-a em “antes” e “depois” dele; alguns, diferentemente, foram tão iluminados que fundaram a própria profissão; para estes, só existiu o “depois”.

Por exemplo, penso em Aristóteles, o maior filósofo de todos os tempos, capaz de fazer reflexões profundas e complexas sobre todas as áreas do conhecimento, um homem cujas ideias na maioria dos campos em que filosofou ainda são válidas nos dias de hoje e que fez isso numa época em que a filosofia ainda dava seus primeiros passos. O fato é que nenhum filósofo depois dele conseguiu realizar obra mais perene e monumental do que o famoso estagirita, como ficou conhecido.

E o que dizer de Isaac Newton, o sábio inglês que, ao ver, segundo dizem, cair uma maçã, enunciou as leis que regem nosso Universo e que explicam todos os fenômenos físicos, exceto os muito rápidos (próximos à velocidade da luz) e os muito pequenos (na escala subatômica)? Newton não só fundou a física moderna, especialmente nos domínios da mecânica e da óptica, e, de certa forma, toda a ciência moderna, mas também foi um dos mais brilhantes astrônomos e matemáticos de todos os tempos. E, como se não bastasse, ainda fazia estudos em teologia e ciências ocultas. Apenas um homem se igualou a ele, mas não o superou: foi Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade. Esses dois gênios resumem toda a física. No entanto, Newton prestou reverência a seus mestres, outros gênios um pouco menores mas sem os quais Newton não seria Newton: Copérnico, Galileu e Kepler. Do mesmo modo, Aristóteles não seria quem foi sem seus mestres Sócrates e Platão, e também Tales, Anaximandro, Parmênides, Leucipo, Demócrito…

Enquanto isso, Charles Darwin revolucionou a biologia e, de quebra, abalou nossas mais profundas crenças religiosas com a Teoria da Evolução das Espécies, uma ideia simples, como são todas as ideias geniais, e que hoje se aplica a animais, plantas, línguas, culturas, sociedades, sistemas planetários e o próprio Universo. Mais uma vez, Darwin deve tributo a predecessores menos festejados pela História como Lineu e Lamarck.

Saindo da ciência e indo para a arte, como não lembrar de Johann Sebastian Bach, o maior compositor de todos, o sujeito que não apenas produziu os maiores hits de todos os tempos (sim, se vivesse nos dias de hoje, Bach seria um hitmaker maior que Paul McCartney ou Burt Bacharach, certamente ganhador de todos os Grammys) como simplesmente definiu a estrutura da música ocidental. Tudo o que Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, os Beatles, Michael Jackson, Tom Jobim, etc., fizeram só foi possível porque Bach fez primeiro. E sua música sublime é conhecida nos quatro cantos do mundo; não há ninguém que nunca tenha ouvido alguma de suas melodias, nem que seja num comercial de televisão. Aliás, conta-se que um certo crítico musical, quando perguntado quem em sua opinião era o rei da música, respondeu: “Beethoven”. Sua resposta causou surpresa e certa indignação ao indagador, que arguiu: “E Bach?”. Ao que o crítico esclareceu: “Beethoven é o rei da música, já Bach é o deus da música”.

E Lavoisier, o homem que inventou a química e tornou possíveis todos os infinitos produtos industriais que temos hoje? E Thomas Edison, o maior inventor da História? E Sigmund Freud, o médico que desvendou a mente humana? E Leonardo da Vinci, o grande polímata, considerado por muitos o maior de todos os gênios, um craque (poderíamos dizer “um Pelé”) na pintura, escultura, arquitetura, música, poesia, engenharia, anatomia, botânica, aeronáutica, precursor de grande parte dos inventos que só surgiriam oficialmente séculos depois dele, sobretudo o “inventor” do Renascimento e, por consequência, do mundo moderno?

E temos ainda alguns gênios menos difundidos, mas não menos brilhantes: Michael Faraday, o autodidata que destrinçou a eletricidade e tornou possível toda a moderna tecnologia; Alfred Wegener, o geofísico alemão que percebeu a complementaridade entre as formas dos continentes e criou a teoria da Pangeia, segundo a qual todos os atuais continentes um dia formaram uma única massa, que se partiu graças ao movimento das placas tectônicas; Gian Lorenzo Bernini, o mais magistral dos escultores, cujas estátuas parecem ter vida; William Jones, o jurista britânico que, percebendo as semelhanças entre várias línguas da Europa e da Ásia, postulou sua ancestralidade comum num idioma pré-histórico, o indo-europeu, e, com isso, inaugurou a linguística; e, depois dele, Ferdinand de Saussure, o linguista suíço que deitou as bases dessa ciência a partir de uma meia dúzia de dicotomias, das quais já falei diversas vezes em meus escritos. Enfim, há tantos “pelés” a quem devemos o melhor de nossa ciência, arte, tecnologia, esporte, cultura. E o mais incrível é que a maioria deles partiu de ideias absolutamente simples, só que ninguém as teve antes deles, e que se mostraram revolucionárias, além de terem trabalhado às vezes com os recursos mais rudimentares, como a bola de meia com que Pelé aprendeu a jogar futebol. Como diz um provérbio chinês antigo — e mineiro moderno —, inteligente é quem descobre o óbvio. O que nosso Pelé fez com a bola nos pés é no fundo muito simples, mas que outro jogador seria capaz de fazê-lo? Na verdade, muitos craques, como Zico, Maradona, Ronaldo, Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, fizeram em algum momento algo que Pelé fez, mas o Rei fez primeiro; e fez, sozinho, o que todos os outros craques fazem juntos. Ou seja, seria preciso somar o talento de todos eles para produzir Pelé. E esse gênio, um dos maiores da galeria que elenquei aqui, era negro, pobre e brasileiro, para nosso orgulho. Pelé morreu. Viva Pelé!