A importância do cacoete na evolução linguística

A maior parte das inovações linguísticas surge da fala informal e não da fala ou da escrita formais. Exceto por neologismos técnicos, que em geral nascem em textos acadêmicos impressos, é sempre a fala popular que institui novas pronúncias (e, no limite, conduz à mutação fonética), novas construções sintáticas (por exemplo, a tendência à próclise) e novas palavras.

Por isso mesmo, é nos períodos costumeiramente chamados “de barbárie”, em que não há ensino formal da língua, e quase todos os falantes são ágrafos, isto é, analfabetos, que as mudanças linguísticas ocorrem mais depressa. Não foi por outra razão que a língua da Lusitânia passou, durante a Alta Idade Média (séculos 5 a 11 d.C.), isto é, em apenas seis séculos, do latim vulgar ao ibero-romance e deste ao galego-português, ou português arcaico. Em compensação, a partir do estabelecimento do Estado português e da institucionalização da educação, sobretudo a partir do século 16, a língua mudou relativamente pouco. Isso significa que o português de Camões está mais próximo do atual que daquele das cantigas trovadorescas.

Um dos muitos fatores que contribuem para a mudança linguística é, por incrível que pareça, o cacoete. Na fala cotidiana, em que temos de pensar e falar ao mesmo tempo, tendemos a truncar palavras e frases, a repetir elementos, seja por redundância (a fala é, por natureza, muito mais redundante que a escrita, já que o ruído na comunicação também é muito maior) ou por insegurança, e a gaguejar bastante. Também são comuns as “muletas do discurso”, certas expressões-chavão que utilizamos a todo momento (como “sei lá”, “tipo assim”, etc.) para preencher o vazio comunicativo enquanto pensamos ou para nos aliviar do peso de ter de ser criativos o tempo todo.

Muitas características definidoras de certos idiomas, como a negação dupla em francês (je ne sais pas), resultam de cacoetes que, de tão disseminados na fala popular, acabaram sendo integrados à norma e hoje fazem parte da gramática da língua. O vêneto, ou veneziano (língua minoritária falada na região de Veneza, Itália, e erroneamente considerada um dialeto italiano), o qual já foi muito importante nos tempos da antiga República de Veneza, repete sistematicamente o sujeito (algo como “Pedrinho ele foi à escola”). Ora, de algumas décadas para cá estamos verificando o mesmíssimo fenômeno na sintaxe do português brasileiro oral (e, se levarmos em consideração muitas das redações que obtiveram zero no Enem, também na sintaxe do português escrito).

O que são esses anacolutos que transformam uma oração do tipo sujeito-predicado em uma do tipo tópico-comentário senão cacoetes de fala que se espalham por contágio? Basta assistir no YouTube a entrevistas de 30 ou 40 anos atrás e compará-las com a fala atual das pessoas na TV para observar como a frequência desse tipo de construção aumentou nos últimos anos, mesmo entre pessoas escolarizadas, como repórteres, atores e cantores de MPB.

Redundâncias como as do espanhol (Le di una manzana a la maestra, “Dei uma maçã à professora”), do italiano (Questa mela la mangio io, “Esta maçã quem vai comer sou eu”) ou do inglês (At what time do you do your homework?, “A que horas você faz a lição de casa?”) nada mais são do que a cristalização e subsequente oficialização de antigos cacoetes que, por terem sido introduzidos, ou pelo menos disseminados, por falantes de uma certa influência social, contaminaram a maioria dos falantes séculos atrás e, de tão arraigados na fala coloquial, ascenderam à categoria de leis gramaticais, tornando-se, portanto, de uso obrigatório.

Isso, no entanto, não quer dizer que o uso desses cacoetes esteja liberado, especialmente em situações em que se espera algum respeito à norma. Penso que muitas pessoas que dão entrevistas na mídia deveriam policiar-se um pouco mais na hora de abrir a boca.

Predicativos, adjuntos e os dois modos de estar

O verbo estar pode ser de ligação (estar feliz, triste, doente, atrasado) ou intransitivo (estar bem, estar na sala, etc.). No primeiro caso, pede como complemento um predicativo do sujeito, que pode ser um adjetivo, como nos exemplos acima, ou um substantivo (“Eu não sou ministro, eu estou ministro”). No segundo caso, estar só pode ser complementado por um adjunto adverbial. É o caso de “estar bem”, “estar mal”, etc. (adjunto adverbial de modo) e o de “estar na sala”, “estar aqui”, etc. (adjunto adverbial de lugar). Em “estar bem”, “estar mal”, que se referem ao estado de saúde, estar tem aproximadamente o mesmo significado de passar: “ele está bem” equivale a “ele passa bem”. Só que estar também poderia ser interpretado aqui como verbo de ligação. Por isso, muita gente diz “Eu estou bom”, “Ela está boa”, no lugar de “Eu estou bem”, e assim por diante. Por sinal, em inglês popular, “He is good” tem o mesmo sentido de “He is well”. Já em “He is alright”, em que alright é tanto adjetivo quanto advérbio, fica impossível decidir se o verbo to be é de ligação ou intransitivo.

O predicativo, seja do sujeito ou do objeto, é uma classe sintática ambígua, pois, em muitos casos, funciona como um adjunto adverbial. “João entrou na sala silencioso” tem o mesmo valor semântico de “João entrou na sala silenciosamente”. A situação se complica porque muitos advérbios de modo prescindem do sufixo -mente: em “Este livro custou caro”, caro é advérbio e equivale a um hipotético caramente. A indistinção entre o adjunto adverbial e o predicativo é que leva algumas pessoas a dizer “Estes livros custaram caros” em vez de “custaram caro”. O famoso slogan da cerveja que “desce redondo” já causou muita polêmica e ensejou inúmeras questões em vestibulares e concursos públicos, pois, na realidade, é válido considerar que redondo pode referir-se tanto a cerveja (a cerveja desce redonda) quanto a descer (e aí, desce redondo).

Não por acaso, muitos termos que, numa língua, são adjetivos usados como predicativos, em outra, são advérbios invariáveis. Em português, dizemos que fulano e beltrano chegaram juntos (ou separados), o que mostra, pela flexão dessas palavras (juntos/juntas, separados/separadas) que se trata de adjetivos e, portanto, de predicativos. No mesmo contexto, o inglês usa together ou apart, vocábulos que constam nos dicionários ingleses como advérbios. Só que, na língua de Shakespeare, os adjetivos também são invariáveis, o que torna ainda mais opaca a distinção entre um adjetivo e um advérbio e, por conseguinte, entre um predicativo e um adjunto adverbial. Tanto que well é o advérbio de modo correspondente ao adjetivo good (assim como bem corresponde a bom), mas a possibilidade de intercâmbio entre well e good (“He is good/well”), como, aliás, também ocorre em português (“Ele está bem/bom”), fez que, com o tempo, well passasse a ser sentido como predicativo e, portanto, adjetivo, o que propiciou o surgimento do substantivo abstrato wellness, “bem-estar”. Para isso contribuiu, sem dúvida, a prévia existência de illness, “doença, mal-estar”, derivado de ill, que pode ser tanto adjetivo quanto advérbio.

Esse é um dos típicos casos em que a gramática normativa pouco esclarece. Já os estudos linguísticos apontam para a singularidade dos verbos designativos de essência ou existência, como ser e estar, que têm ao mesmo tempo características de verbos lexicais (também chamados de verbos cheios ou pesados) e de verbos gramaticais (ou vazios ou leves), em que são meras cópulas ou, no dizer da gramática normativa, verbos de ligação.

A própria distinção entre predicado verbal e predicado nominal fica abalada quando se introduz a semântica na questão. Afinal, qual a diferença entre “Ele é diabético” e “Ele tem diabetes”? Do ponto de vista da semântica profunda, nenhuma, pois ambas as frases denotam a relação entre um ente (no caso, uma pessoa) e um estado (no caso, doença). Para a gramática, no entanto, ter é verbo transitivo, tanto quanto ver ou matar, por exemplo, mesmo não admitindo voz passiva (“A diabetes é tida por ele” é um enunciado inaceitável em português). Ocorre que ter é mais um desses verbos vazios. Mas isso é assunto para outro post.

O glúten e o grude

Semana passada falei sobre a etimologia das palavras açúcar e glicose. Continuando a enveredar pela senda culinária, hoje vou falar de outro vilão da saúde nos tempos atuais, o glúten.

Segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde, a doença celíaca, caracterizada por intolerância ao glúten, está aumentando no mundo, resultado da dieta pouco saudável que a civilização moderna impõe. Uma das principais causas da incidência da doença é o consumo do trigo, que há bastante tempo foi geneticamente modificado por razões de produção, como mostra o médico e pesquisador William Davis no livro Barriga de Trigo (Editora Martins Fontes).

O trigo é um dos cereais mais ricos em glúten (que também admite a forma glute em português). O glúten é uma substância proteínica viscosa que se encontra na parte interna das sementes dos cereais. E, por ser viscosa, muito cedo se descobriu que a farinha de trigo ou de outros cereais, como o arroz, quando molhada, se torna uma excelente cola. Foi por isso que o latim gluten evoluiu para o português grude, que, segundo o dicionário Michaelis, pode ser cola branca, cola feita de farinha de trigo ou polvilho, cola de madeira, de calçados, bem como desordem, motim, luta corporal, iguaria feita de goma seca e coco ralado, comida em geral e amizade estreita. E, segundo o Houaiss, pode ser cola forte, goma, e também comida ruim, gororoba.

A partir de grude chegamos ao verbo grudar, isto é, aderir, colar, unir com grude, etc. A palavra grude é da mesma etimologia do inglês glue, “cola”, e de seu derivado to glue, “colar”: essa palavra veio do francês antigo glu, que, assim como o nosso grude, se originou do latim gluten, glutinis. Em latim também havia a forma glus, glutis, com o mesmo significado de substância viscosa, cola, grude.

Da mesma família etimológica também eram as palavras latinas glubere (descascar), gluma (película dos grãos, casca de trigo), glomus (novelo), glomerare (enovelar), globus (bola) e gleba (bolinha de terra, torrão, e, por extensão, gleba de terra). E do latim gluten também saiu o verbo aglutinar, que nada mais é do que grudar.

O que há de comum entre “doce” e “glicose”?

E aí, pessoal, comeram muitos doces nessas Festas? Todo início de ano, as pessoas prometem perder peso, trancar a boca, fazer academia, mas, na última semana do ano, o que elas fazem? Ganham peso! É claro que o doce não é o único vilão dessa história, mas datas como Natal e Páscoa são pródigos em guloseimas açucaradas.

Todo mundo sabe que o que dá o gosto doce aos alimentos é o açúcar. Ou melhor, os açúcares, já que se trata de um vasto conjunto de compostos químicos que atendem pelos mais diversos nomes científicos: glicose, frutose, lactose, sacarose…

A origem de termos como frutose e lactose é óbvia: açúcares extraídos respectivamente das frutas e do leite. Mas, de onde vêm sacarose? E glicose?

Sacarose (e também sacarina, sacarídeo, etc.) deriva de um radical grego sakkharon, que significa “açúcar” e provém do páli sakkhara, este por sua vez procedente do sânscrito sárkara, “areia”. Portanto, na origem do nome está uma interessante metáfora, em que os grãos do açúcar são comparados aos da areia. (Não por acaso, já vi arear panelas com açúcar, se bem que, após o advento da palha de aço, nem areia se usa mais para esse fim.)

A própria palavra açúcar é da mesma origem, embora nos tenha chegado por outro caminho. Neste caso, o sânscrito passou ao persa shakar, que passou ao árabe sukkar. Este deu o italiano zucchero, e daí o alemão Zucker, mas também o francês sucre (e deste o inglês sugar). Já o português e o espanhol tomaram a palavra diretamente do árabe, e com a incorporação do artigo, pois al sukkar significa literalmente “o açúcar”. Por assimilação, al sukkar evoluiu para assukkar, que para entrar no português só precisou de uma adaptação ortográfica.

Curiosamente, “açúcar” em romeno é zahar, o que denuncia a origem da palavra diretamente no grego ou em alguma língua do Oriente.

E o radical glico-, de glicose, que também se diz glucose, de onde veio? Havia em indo-europeu uma raiz *dluk, “doce”, que, por dissimilação (e, evidentemente, por maior facilidade de pronúncia) deu em grego gluk, de onde vieram glicose, glucose, glicemia, glicogênio, etc. Em latim, *dluk deu dulk, também para facilitar a pronúncia (convenhamos que esse encontro consonantal dl não é dos mais fáceis de pronunciar). E de dulk veio o adjetivo dulcis, que produziu em português doce, edulcorar, Dulcora (uma antiga marca de balas e drops), dulçor, o nome próprio Dulce, e assim por diante.

Uma última curiosidade: em muitas línguas, “doce” é sinônimo de “macio” (por exemplo, em francês chiffon doux quer dizer “pano macio”), provavelmente porque o gosto doce é percebido como suave ao paladar. Por isso mesmo, um homem apaixonado oferece bombons à amada; espinafre não teria o mesmo efeito romântico… Mas, voltando à etimologia, a raiz indo-europeia *swad, que significava indiferentemente “doce” ou “macio”, é a origem do grego hedús, de hedonismo, do latim suavis, “suave”, e do inglês sweet, “doce”.

Então, pessoal, partiu 2019, bora malhar!

Balneabilidade?

Para se comunicar num idioma de cultura, não são necessárias mais do que 5 mil a 10 mil palavras. Contudo, o léxico de qualquer língua escrita (portanto, isso não vale para as línguas ágrafas de pequenas comunidades ou tribos) costuma ter mais de 200 mil vocábulos. Por que isso acontece? Porque a maioria desses vocábulos é de uso ultraespecializado e não de domínio público.

Durante este feriadão prolongado de Natal e Réveillon, ouvi no rádio que as praias do litoral paulista apresentavam boas condições de balneabilidade. Balneabilidade? Num primeiro momento, fiquei surpreso com o suposto neologismo. Mas imediatamente compreendi que se trata da condição que uma praia oferece de alguém banhar-se nela. O curioso é que esse termo deriva de um suposto adjetivo balneável, que não consta nos dicionários, proveniente, por sua vez, do verbo balnear, este sim constante no “pai dos burros”, mas com o significado de “dar banho a”. Ora, balneabilidade não é a condição de poder dar banho, mas sim a de poder tomar banho numa praia (ou rio, ou lago, ou…). Portanto, o inexistente adjetivo balneável deriva, na verdade, de banhar-se e não de balnear, empréstimo do latim balneare – por sinal, verbo culto de baixíssima frequência e forte candidato à obsolescência.

Temos muitos casos na língua portuguesa de palavras cultas ou semicultas derivadas de termos vulgares, isto é, herdados diretamente do latim. Por exemplo, entonação vem de entoar e não de um inexistente entonar; frenagem vem de frear e não de frenar; laticínio deriva de leite, embora a palavra tenha sido formada a partir do latim lacte; e assim por diante. É claro que a influência de outras línguas românicas sobre o português não pode ser ignorada, e é possível – aliás, bem provável – que entonação tenha sofrido a influência do espanhol entonación (de entonar) ou do francês intonation. Da mesma forma, é mais provável que o étimo de nossa frenagem esteja no francês freinage (de freiner) e não no latim frenum, “freio”.

Com certeza, personalidade provém, via francês ou espanhol, do latim tardio personalitas e não diretamente do português pessoa ou pessoal. Aliás, existe em nosso idioma o substantivo pessoalidade, que nada tem a ver com personalidade: pessoalidade é a característica da função profissional que deve ser exercida rotineiramente pela mesma pessoa, sendo vedada a sua terceirização. Por exemplo, espera-se que o professor responsável por determinada sala de aula seja o mesmo ao longo de todo o ano letivo e não que, a cada semana, um docente diferente venha dar aula a essa turma. Já a função de faxineiro não exige, em tese, a mesma pessoalidade.

Seria, por sinal, muito estranho se determinados termos cultos ou semicultos do português fossem totalmente aportuguesados, ou seja, tivessem seus radicais latinos substituídos pelos correspondentes vernáculos. Teríamos, então, artigoação no lugar de articulação, mulhericídio em vez de feminicídio, centelhante por cintilante, orelhal por auricular, desjanelar em vez de defenestrar, porquino por suíno, povoacional em lugar de populacional, sessenteiro por sexagenário, funçoeiro em vez de funcionário, obração por operação, ensementear por inseminar, beiçal por labial, mijadouro no lugar de mictório, e por aí vai.

E se, ao contrário, resolvêssemos relatinizar nosso vocabulário vernáculo? Provavelmente galinheiro viraria galinário, abelha seria apícula, devolver se tornaria devoluir, engarrafamento seria imbuticulamento, cabeça daria capícia, escorregar seria excorricar, caderno passaria a quaterno, criança viraria creância, arrepio seria horripílio, coelho se tornaria cunículo, sujo daria súcido, geladeira glaciário, vassoura versória, deitar dejectar e, o que é pior, empregada seria implicada.

Bom ano a todos!