Que tal uma linguagem neutra de número?

Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:

Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.

E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.

Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.

Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)

Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:

  • Ar duar salar estão ocupadar.
  • Minhar mãor estão sujar.
  • Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
  • Meur doir filhor vão se formar médicor.
  • Comprei um par de sapator.
  • Ambar ar respostar estão corretar.

Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?

É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?

Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.

Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!

A História como ciência

Há uma frase muito conhecida e propalada tanto no meio político quanto no acadêmico dizendo que a História é sempre contada pelos vencedores. Certo, fico imaginando como seria a história da Segunda Guerra Mundial contada pelos nazistas. Mas, de fato, essa frase tem um certo fundamento porque, durante muito tempo, a História não passou de uma narrativa feita sob encomenda dos poderosos para louvar seus feitos. As crônicas medievais, por exemplo, eram narrativas redigidas pelos chamados cronistas, escritores a serviço do rei incumbidos de enaltecer os feitos heroicos do soberano, às vezes até exagerando um pouco nas tintas — e omitindo seus fracassos e defeitos morais, é claro.

Atualmente, em tempos de politicamente correto e lugar de fala, tornou-se comum reivindicar que a História também seja contada do ponto de vista dos derrotados, isto é, das minorias oprimidas, como mulheres, negros, índios, homossexuais, etc. Até aí nenhum problema, parece uma reivindicação mais do que justa. Mas o ponto que quero destacar é: desde pelo menos o século XIX, a História se tornou uma ciência, com objeto bem definido e método próprio (o chamado método histórico), que consiste em procurar reconstituir o passado de uma sociedade da forma mais fidedigna possível com base no maior número de documentos a que se possa ter acesso. Portanto, se a História é de fato uma ciência e, como tal, fiel à realidade dos fatos e a seu objeto, então não há uma História contada pelos vencedores e outra contada pelos vencidos, há apenas História.

Afinal, se um suposto pesquisador homem, branco e heterossexual omitir em sua pesquisa todos os dados positivos em relação às mulheres, aos não brancos e aos gays, ressaltando apenas os pontos negativos desses grupos, esse indivíduo não é um historiador, é um mistificador, um embusteiro — numa palavra, um picareta.

Tenho notícia de alguns livros escolares de História, por sinal aprovados pelo Ministério da Educação, que retratam certos períodos históricos de forma maniqueísta, misturando fatos com juízos de natureza pessoal e ideológica e tomando partido por um lado ou por outro, portanto contando a História do ponto de vista ou do vitorioso ou do derrotado. Isso não é História, no sentido científico do termo, é doutrinação dos estudantes. Um historiador sério deve narrar os fatos tal qual eles ocorreram ou, pelo menos, tal qual se pode inferir que tenham ocorrido a partir dos registros de que dispomos. Como em qualquer ciência, onde é preciso manter a objetividade e a imparcialidade, não cabe ao historiador eleger mocinhos e vilões ou enaltecer os feitos de determinados governos e denegrir a imagem de outros segundo sua preferência político-ideológica. Não lhe cabe fazer juízos de valor, assim como não lhe cabe ressaltar os aspectos louváveis de determinada figura histórica e omitir seu lado obscuro ou vice-versa. Enfim, não cabe ao historiador que se preze e que faça História com perspectiva científica tomar o partido nem dos vencedores nem dos vencidos. Até porque, se a História é de fato uma prática científica, então não pode valer outra frase muito popular que é “a verdade não existe, o que existe são versões”.

A decadência da Academia Brasileira de Letras

Todas as grandes línguas de cultura têm academias de Letras. As primeiras, como a Academia Francesa e a Real Academia Espanhola, surgiram ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as línguas nacionais começavam a se firmar como idiomas de prestígio e a fazer frente ao até então todo-poderoso latim. A nossa Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1897 por iniciativa do grande mestre Machado de Assis e de Lucio de Mendonça, e seu lema é Ad Immortalitatem, “Para a Imortalidade”, donde seus membros serem conhecidos como “imortais”.

Desde sua fundação, a Academia tem sido reconhecida de maneira inconteste como a guardiã da língua portuguesa no Brasil e de sua literatura. Embora seja uma instituição de cunho privado, ao contrário de outras academias do gênero, sua influência penetra na esfera estatal, como, por exemplo, por ocasião das reformas ortográficas de 1943 e 1990, que se transformaram em leis. Na esteira da legislação sobre a ortografia, coisa que a maioria das grandes línguas do mundo não tem, a ABL publica também o VOLP — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Ilustres literatos e pensadores brasileiros, bem como grandes cultores do idioma pertencentes a outras áreas do saber, como médicos, professores, juristas e jornalistas, pertenceram às suas fileiras, tais como Ruy Barbosa, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, Oswaldo Cruz, Clovis Bevilacqua, Silvio Romero, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, Aloysio Azevedo, Euclydes da Cunha, Laudelino Freire, Vianna Moog, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, e muitos outros.

No entanto, de tempos para cá, a Academia passou a acentuar uma prática que já era algo costumeira desde seus primórdios: eleger membros que pouco ou nada contribuíram para o enriquecimento do idioma e de sua literatura, mas apenas exerciam influência política ou popular. Basta dizer que até Getulio Vargas e Ivo Pitanguy foram imortais.

A eleição de figuras pouco representativas em termos de língua vem desde as origens: os fundadores da ABL decidiram escolher patronos para suas cadeiras, coisa que não existia em outras academias mais antigas, e, como apontou ainda em 1923 o acadêmico Afranio Peixoto num discurso na própria Academia, muitos desses fundadores escolheram como seus patronos nomes de qualidade literária duvidosa, como Adelino Fontoura e Pardal Mallet.

Mais recentemente, a ABL elegeu os ex-presidentes da república José Sarney, autor de Marimbondos de fogo, grande monumento de nossas letras (atenção: aqui há ironia), e Fernando Henrique Cardoso, autor da grande obra literária chamada Plano Real (ironia novamente). A indicação de Sarney deveu-se a Josué Montello, seu conterrâneo, que quis privilegiar — ou garantir uma reserva de mercado — ao Estado do Maranhão. Já FHC escreveu muitos textos acadêmicos (os quais ele posteriormente pediu que fossem esquecidos), mas, a meu ver, nenhum que tenha lustro em termos de apuro linguístico ou qualidade literária.

A seguir, veio o controverso letrista, escritor, místico e ex-hippie Paulo Coelho, aquele que não permite que os revisores corrijam seus (muitos) erros gramaticais e ortográficos porque, segundo sua visão místico-mercadológica, “Deus pode estar num erro de português”.

Então, seguindo o (mau) exemplo da Academia Sueca, que resolveu conceder o prêmio Nobel de literatura ao cantor e compositor americano Bob Dylan, a ABL admitiu mais recentemente os letristas de MPB Geraldo Carneiro, Antônio Cícero e Gilberto Gil, e também a atriz Fernanda Montenegro, o cineasta Cacá Diegues e o jornalista e comentarista “global” Merval Pereira, atual presidente da casa, que, à época de sua eleição, tinha apenas dois livros publicados (hoje tem três), sendo um deles uma coletânea de artigos e o outro uma série de reportagens feitas em coautoria.

Não nego o talento de alguns desses nomes ou o valor artístico de suas obras. No entanto, é preciso fazer algumas considerações. Primeiramente, se a Academia visa a contemplar perfis que muito contribuem ou contribuíram para o engrandecimento do idioma e de sua produção literária, então ela deveria agraciar os produtores de textos e não os simples reprodutores, como é o caso da atriz Fernanda Montenegro, que nunca escreveu uma linha em termos literários (seu único livro é uma autobiografia) e apenas reproduziu oralmente nos palcos e estúdios os textos de outrem.

O segundo ponto é que a ABL é uma academia de Letras, portanto voltada à linguagem verbal, sobretudo à escrita. Então, que sentido tem admitir produtores de discursos musicais ou audiovisuais, em que a linguagem verbal tem aspecto secundário e, por vezes, pouco importante? Em que pese a qualidade dos versos de Gil, seu registro escrito se encontra basicamente nos encartes de seus LPs e CDs (hoje em dia, com as plataformas de streaming, as letras das canções sequer têm versão escrita). Já Antônio Cícero teria sido eleito por versos como os de Fullgas? E por que Chico Buarque, nosso maior letrista e quem sabe maior poeta, vencedor do prêmio Camões, não está na Academia? Por que Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meirelles, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Mario Quintana nunca estiveram?

Este ano, o cartunista Mauricio de Sousa quase se tornou imortal; seria mais um criador cujo foco não é a língua e sim uma linguagem visual (o desenho) e cujos textos, voltados às crianças e vendidos em bancas de jornais, são propositalmente simplórios (ou “simplólios”, como diria o Cebolinha). Com todo o respeito ao brilhante cartunista, um de nossos orgulhos nacionais, em boa hora a Academia preferiu Ricardo Cavaliere, este sim um literato, estudioso e cultor do idioma, autor de relevantes contribuições à língua portuguesa.

Se o lema da Academia faz alusão à imortalidade, e se essa imortalidade é sobretudo da obra e não de seu autor, por que se privilegiam autores de obras descartáveis, como canções populares, filmes já datados ou romances soníferos?

Não há nenhum problema em que autores não ficcionistas, como cientistas, filósofos, filólogos, linguistas, gramáticos, juristas e jornalistas, façam parte da Academia, mas é preciso que tenham produzido obras de relevo em termos linguísticos e/ou culturais, que tenham dado contribuição significativa ao idioma. Entretanto, quer me parecer que o atual critério de escolha dos novos membros é mais político ou mercadológico do que de mérito acadêmico-cultural.

Com isso, a Academia Brasileira de Letras reproduz o que é o próprio Brasil: um país de privilégios, de pessoas “cordiais” (no sentido dado por Sergio Buarque de Holanda), em que amizade e compadrio valem mais do que conquistas pessoais e profissionais, enfim, um país pas sérieux. A ABL é hoje uma triste sombra do que um dia foi — se é que foi.

Que tipo de país queremos?

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para se referir à realidade brasileira, um misto de Bélgica e Índia, um país com leis e impostos de Primeiro Mundo e com serviços e realidade social de Terceiro. A seguir, esse conceito foi estendido para dar conta de um Brasil contraditório, cuja sociedade tem ao mesmo tempo aspectos de Primeiro e Terceiro Mundos: de um lado, uma elite rica e culta, megacidades com infraestrutura de países desenvolvidos, grande parque industrial, importantes universidades produzindo pesquisa de ponta, recordes de produção agrícola, recordes em número de helicópteros e de cirurgias plásticas per capita, produção artística tipo exportação, e, de outro, fome, miséria, analfabetismo, doenças endêmicas, latifúndios improdutivos, muita corrupção, péssimos serviços públicos, comunidades ilhadas no meio de florestas, aonde só se chega de barco, e assim por diante.

Talvez hoje o termo Belíndia já não seja mais tão adequado, visto que a Índia, embora continue a ser um país com população majoritariamente pobre, é uma das nações emergentes e a quinta maior economia global, que também já conta com ilhas de excelência em vários campos, estando, por sinal, em alguns deles mais adiantada que o Brasil. Noutros termos, a própria Índia é hoje uma Belíndia. Por isso, penso que hoje o termo mais adequado para definir o Brasil e a Índia seja Beláfrica. Afinal, o continente africano segue sendo o mais atrasado do planeta em termos políticos, econômicos, sociais e educacionais. É lá que ainda estão os problemas mais graves da humanidade em termos de fome, miséria, superpopulação, educação precária, péssimas condições de saúde e higiene, pouquíssimo desenvolvimento industrial, infraestrutura deficiente, costumes retrógrados, fanatismo religioso, ditadores tirânicos e corruptos, guerras tribais intermináveis, etc. É claro que lá também há bons exemplos de progresso material e cultural, logo nem tudo é pobreza na África. No entanto, em termos gerais de desenvolvimento, especialmente aquele medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano —, a África permanece em último lugar na média dos continentes.

Portanto, se somos uma Beláfrica e não queremos permanecer nesse estado, temos dois caminhos a seguir: ou nos aproximamos da Europa, onde estão os países mais desenvolvidos do mundo, ou nos aproximamos da África, onde estão os mais atrasados. Deveria ser consenso que o modelo a ser seguido é o europeu, com sociedades altamente industrializadas, democracias sólidas e a maior parte da população situada na classe média ou alta e portadora de escolaridade superior. No entanto, certos grupos ideológicos parecem querer que o Brasil rume na direção oposta. Embora façam um discurso aparentemente bem-intencionado (“lacrador” eu diria), polvilhado de um bom-mocismo que soa bem a muitos (especialmente aos que fazem parte de sua “bolha”), o que eles pregam é uma divisão do país em que uma das partes precisa aniquilar a outra. Trata-se da famosa oposição “nós x eles”, que dividiu e polarizou o Brasil.

Somos uma nação plural, somatório de muitas culturas, e essa é nossa grande vantagem estratégica. Nossa diversidade cultural é nosso grande capital, que, somado ao nosso potencial natural (imenso e rico território, riquezas minerais e vegetais, clima favorável, ausência de cataclismos), pode fazer de nós uma potência mundial. No entanto, para esses grupos ideológicos, a cultura brasileira dominante é fundamentalmente branca e europeia e, portanto, exclui a maior parte da população, de origem africana e/ou indígena. Na visão desses grupos, para incluir socialmente essa maioria preta ou parda e sobretudo pobre, é preciso mudar radicalmente nossos paradigmas culturais, não propriamente somando à cultura branca europeia as valiosas contribuições dos indígenas e afrodescendentes, mas erradicando aquela cultura e substituindo-a por esta.

Tenho falado muito aqui sobre o absurdo que é a proposta de alguns linguistas de substituir nossa norma-padrão supradialetal e fundada em longa tradição escrita e literária pelos usos do português brasileiro contemporâneo falado informal, isto é, o linguajar coloquial das ruas. Segundo esses linguistas, a gramática normativa do português é elitista, excludente, opressora, elaborada por homens brancos, burgueses, conservadores, heterossexuais e misóginos, logo precisa ser destruída, num ato revolucionário análogo talvez à Revolução Bolchevique ou à Revolução Cultural chinesa. Vejam o que diz, por exemplo, o livro Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores, organizado por Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (p. 41): “Assim, a emergência de um novo paradigma de gramatização exige a destruição em larga escala do paradigma tradicional e grandes alterações nos problemas e técnicas arraigados historicamente no nosso fazer gramatical, algo próprio do caráter revolucionário” (grifos meus).

Sem dúvida, a linguística pode contribuir e muito para o fazer gramatical, e eu mesmo tenho sempre reiterado que o modelo de análise da língua baseado na gramática grega de Dionísio o Trácio precisa ser superado. Mas a elaboração de gramáticas normativas tem sua lógica própria, que esses linguistas aparentemente desconhecem. Eles criticam aquilo que nem sequer entendem. E elaborar novas gramáticas utilizando o ferramental da linguística é uma coisa, já substituir arbitrariamente um padrão linguístico estável e estabelecido por outro que só é usado na fala descontraída sob o pretexto da inclusão social dos menos favorecidos é pura demagogia. Em vez de levar educação de qualidade aos mais pobres, opta-se por mantê-los na situação em que estão, normalizando sua pobreza material e intelectual. Aos pobres, uma educação igualmente pobre.

Sem dúvida, a norma-padrão que utilizamos baseia-se numa variedade de português calcada no falar das elites culturais da “corte” — seja a Lisboa monárquica seja o Rio de Janeiro imperial. Mas isso é assim em qualquer idioma de cultura: o francês padrão nada mais é do que a língua falada pelos reis e nobres franceses de antanho; o italiano padrão é o dialeto da antiga corte de Florença, e assim por diante. É natural que a classe dominante de uma sociedade imponha a ela seus costumes e também sua língua. Assim como é natural nas sociedades complexas (isto é, as que passaram do estágio tribal ao civilizado) que haja hierarquia, classes sociais distintas e disputas de poder entre elas. No entanto, o que se vê historicamente é que, quando uma classe oprimida depõe o grupo dominante e toma o poder, é ela que passa a ser a classe opressora. Até costumo dizer que, se os europeus tivessem se mantido tribais e os africanos tivessem desenvolvido uma civilização altamente tecnológica, teriam sido os negros a escravizar os brancos. Afinal, o homem é o lobo do homem.

Se, como pregam alguns de meus colegas linguistas que não conseguem analisar o fenômeno “língua” sem projetar nele suas ideologias políticas pessoais, a gramática normativa em vigor é opressiva e reforça o preconceito linguístico, fazendo com que a população menos favorecida sinta que fala “errado”, substituí-la por uma nova gramática, baseada em outra variedade do português (a preferência desses linguistas é pelo padrão das pessoas pouco ou nada letradas) vai apenas trocar uma opressão por outra. Pois, se a gramática é normativa, portanto seu uso é uma injunção em textos formais, qualquer que seja ela, desrespeitá-la configurará erro, que estará decerto sujeito ao preconceito linguístico (mais uma vez, “o homem é o lobo do homem”).

Sob o pretexto de que nossa cultura e nosso padrão linguístico são eminentemente brancos e europeus, o que se propõe não é acrescentar ao estudo da história das civilizações da Europa e Ásia o estudo da história da África (por sinal, eminentemente oral, uma mistura de fatos e mitos), como, aliás, já vem sendo feito, e sim substituir uma pela outra. Em vez de filosofia grega, estudaremos os orixás africanos (a pergunta que faço é: ser versado em história e cultura africanas abre as portas do mercado de trabalho mais qualificado a alguém?). Em vez de permitirmos que jovens pretos e pardos das periferias tenham acesso à cultura letrada por meio do domínio da norma supradialetal, oficializaremos “eu vi ela” e “vamos se encontrar” como padrão culto.

A lógica desses grupos, que paradoxalmente incluem pessoas de alta cultura e muito bem informadas, é a de que só se combate uma sociedade patriarcal instituindo o matriarcado, que só se apaga a chaga do racismo contra os negros discriminando os brancos, e assim por diante. Numa palavra, o que eles propõem não é justiça social, é uma mera inversão de papéis, em que opressores se tornem oprimidos e oprimidos se tornem opressores. Era mais ou menos essa a lógica dos comunistas de 1917: o proletariado governando a burguesia. O que querem fazer com a língua é uma espécie de vingança dos iletrados sobre os que tiveram a chance de estudar.

Em suma, o que está em jogo é que tipo de país queremos ser: queremos ser como a Bélgica ou como a África? É bom lembrar que até o final do século XIX o Brasil era um país escravocrata, quase exclusivamente rural, sem indústrias, com uma população quase totalmente formada de africanos e indígenas e seus descendentes e governada por uma pequena elite latifundiária composta por descendentes dos primeiros portugueses que nos colonizaram. Foi com a chegada dos imigrantes europeus e asiáticos em fins do século XIX e princípios do XX, logo após o fim da escravidão, que começou nossa industrialização, surgiram as primeiras universidades e a sociedade brasileira foi progressivamente se urbanizando. É que esses imigrantes, mesmo aqueles que foram trabalhar na lavoura em substituição aos escravos, tinham uma cultura urbana e valores milenares de civilização, além de um espírito empreendedor e grande apreço pela educação. Tanto que, duas ou três gerações após sua chegada, seus descendentes, inclusive de muitos que eram analfabetos, já estavam na universidade. E vejam que esses imigrantes sofreram quase tanto racismo quanto os negros e os índios.

Vários de nossos intelectuais de esquerda criticam esse processo de “embranquecimento” da população brasileira promovido pela República Velha como se isso tivesse sido uma violência contra nossa nacionalidade quando, na verdade, esses imigrantes só vieram somar a essa nacionalidade. Não tivesse havido essa onda imigratória, seríamos provavelmente ainda hoje um país predominantemente agrícola e rural, dominado por oligarcas latifundiários, como éramos à época do Império. Mas parece que é exatamente isso que esses ideólogos gostariam que fôssemos.

Aliás, de maneira contraditória e incoerente, esses intelectuais críticos à política de imigração são eles próprios descendentes de imigrantes e certamente não estariam aqui no Brasil nem muito menos ocupando cargos nas universidades não fosse essa política que tanto criticam.

É evidente que a República Velha falhou em dar aos negros recém-libertos condições de emancipação econômica como cidadãos, o que os fez trocar a senzala pela favela. Mas, quase um século e meio após a Abolição, o que o Estado Novo, a República Nova, o regime militar e a Nova República fizeram por essas pessoas e seus descendentes? Já tivemos muito tempo para curar essas feridas, mas tudo que foi feito foram leis e políticas demagógicas, que nada resolvem. Tudo que se faz é um discurso hipócrita de inclusão social, entoado por uma elite acadêmica branca, eurodescendente e de classe média alta.

O fato é que se instalou em nosso meio intelectual, inclusive nas universidades, que deveriam primar pela racionalidade, pelo bom senso e pelo apego à verdade, uma ideologia iconoclasta, que vê tudo que é branco, europeu, ocidental, capitalista, judaico-cristão e, mais, masculino, heterossexual e cisgênero como negativo, opressor, excludente, elitista, quando não fascista. Temos, de fato, uma longa história de dominação de brancos sobre negros e índios, de europeus sobre africanos e outros povos aborígines, mas é preciso ter em mente que o Brasil está inserido no mundo ocidental, que é culturalmente oriundo da civilização europeia e cristã. Logo, apegarmo-nos a tradições africanas e indígenas em detrimento de conhecimentos científicos e filosóficos europeus não vai nos conduzir ao progresso que almejamos. Se queremos nos integrar cada vez mais ao mundo desenvolvido e incluir cada vez mais nossa população nas classes médias e altas da sociedade, não podemos renunciar ao patrimônio de cultura que nos foi legado desde a era greco-romana nem ao padrão linguístico que produziu todo o acervo literário de que dispomos.

Que se valorizem todas as culturas que formaram nosso país, que se acabe com o pernicioso racismo que nos assola, que se ajustem as contas com nosso passado escravista, que se respeitem as culturas nativas, que se estabeleça uma verdadeira justiça social em nosso país é o que todos queremos. Mas esse desideratum só se conquista somando e não subtraindo ou dividindo.

Sobre ideologia e pragmatismo

Pessoas que professam ideologias, sejam elas políticas, religiosas ou mesmo futebolísticas, tendem a achar que todos os seres humanos são igualmente ideológicos. Por sinal, uma frase frequentemente repetida pelos ideólogos de esquerda é “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”. Antes de mais nada, é preciso definir do que estou falando, já que essa palavra tem vários significados. Refiro-me à ideologia como crença numa doutrina, isto é, num conjunto de ideias e propostas que, para quem nelas crê, têm valor de verdade, portanto não são sentidas como crenças e sim como verdades absolutas. Pessoas assim não conseguem compreender a diferença entre crer e saber: para elas, tudo é objeto de crença, inclusive as afirmações embasadas em evidências concretas; logo, a própria ciência não passa de uma doutrina. Essas pessoas equiparam a eficácia de vacinas ou a esfericidade da Terra à virgindade de Maria ou a ressurreição de Jesus. E, obviamente, a ideologia em que acreditam é a verdadeira e as demais, falsas. Como, para elas, tudo é ideologia, elas não conseguem conceber uma postura filosófica e pessoal chamada pragmatismo, misto de ceticismo e bom senso, que consiste em não aceitar passivamente qualquer afirmação como verdade inquestionável e sempre preferir modelos de conduta e propostas de solução de problemas que já se tenham provado eficazes. Mas, sim, há pessoas pragmáticas, que não se deixam seduzir pelo canto da sereia de certas doutrinas e olham criticamente toda e qualquer afirmação ou proposta de solução. É verdade que são bem raras, até entre os chamados “intelectuais”, muitos deles também profundamente contaminados por ideologias, especialmente as políticas. E o mais irônico é que muitos desses intelectuais dizem ter uma visão “crítica” da realidade.

De fato, é bem difícil livrar-se das ideologias, primeiro porque, como disse acima, a maioria das pessoas não tem consciência de que é ideológica, mas pensa que sua crença é a própria Verdade; segundo porque somos doutrinados desde a infância por pais, professores, padres, pastores, lideranças políticas ou artísticas, influenciadores digitais, a mídia, etc.; terceiro porque, como humanos mortais que somos, padecemos de uma terrível fraqueza emocional que nos leva a nos agarrarmos desesperadamente a nossas próprias certezas, afinal a crítica pressupõe a dúvida, e temos aversão ao desconhecido, sobretudo ao desconhecido supremo que é a morte. Por isso, precisamos acreditar em divindades que nos protegem e salvam se formos devotados a elas, em vida após a morte e também em políticos salvadores da pátria, em sistemas políticos e econômicos que proporcionarão a felicidade e a paz eternas à humanidade, e assim por diante.

Só que as ideologias não são ideias isoladas, são conjuntos estruturados e coerentes de ideias e atitudes que são vendidos como um pacote completo. Se sou de direita, então tenho de ser contra o aborto, o casamento gay (e contra os gays de modo geral), as vacinas, a Teoria da Evolução e a favor da pena de morte, do armamento da população, do Estado mínimo, da privatização total e irrestrita de todos os serviços públicos, da inviolabilidade da propriedade privada, do garimpo na Amazônia, etc.

Já, se sou de esquerda, tenho de ser a favor do casamento gay, do ensino da ideologia de gênero nas escolas, da linguagem neutra de gênero, da liberação da maconha e das outras drogas, do controle estatal dos meios de comunicação, de um Estado forte e intervencionista, da estatização de todos os serviços públicos, do banimento dos dicionários de palavras que sejam consideradas politicamente incorretas, e por aí vai.

Quando se trata de ideologia, não há meio termo: ou se compra o pacote completo ou se é um traidor da causa, um alienado, um inocente útil, massa de manobra, um “isentão”, ou seja, alguém que, por ação ou omissão, serve à ideologia oposta. Não à toa, para os esquerdistas os isentões estão a serviço da direita, e vice-versa.

Só que a realidade é mais complexa do que sonha nossa vã filosofia — ou ideologia. Não há soluções mágicas para os problemas humanos, até porque somos criadores compulsivos de problemas. Nem o cristianismo, nem o islamismo, nem o marxismo, nem o neoliberalismo, nem a filosofia new age vão nos livrar de nós mesmos, embora os adeptos dessas doutrinas achem que sim.

Diante do cardápio de “soluções” oferecidas por essas ideologias, posso perfeitamente escolher aquelas que funcionam na prática, sejam elas de esquerda ou de direita, de modo frio e racional, portanto sem me deixar levar por paixões ou idiossincrasias. Posso concordar com a esquerda em certos pontos e discordar em outros, assim como posso fazer o mesmo com a direita. Mas, para que isso funcionasse na prática, seria preciso que todos fossem igualmente pragmáticos, o que está muito longe de acontecer.

Por exemplo, uma discussão como a que ocorre sobre a legalização do aborto em todos os casos e não só nos atualmente previstos na lei brasileira deveria dar-se com base em dados objetivos e não em dogmas religiosos. Primeiro, um embrião é um ser vivo e, mais, um ser humano ou só um projeto, um amontoado de células? Um embrião ou um feto pode ser considerado juridicamente um sujeito dotado de direitos? Ele tem consciência, é um ser senciente, ele sente dor, ele sabe que está vivo? A possível vida desse embrião vale mais do que a de um jovem negro morto pela polícia? Vale mais que a de um cão ou gato morto por maus tratos? Vale mais que a de uma galinha morta em ritual religioso? Vale mais que a dos insetos nos quais pisamos no dia a dia? E, se vale, com base em qual ética? Essa ética é universal? Tem amparo em evidências fáticas? Até qual fase da gestação o aborto deveria ser permitido, caso o fosse? As mulheres deveriam ser consultadas sobre algo que diz respeito a seus próprios corpos?

Indo além, a liberação do aborto melhoraria ou pioraria as condições de saúde pública? Aumentaria ou reduziria a criminalidade? Aumentaria ou diminuiria a mortalidade de mulheres jovens? Contribuiria ou não para a paternidade e maternidade responsáveis, para o planejamento familiar, para a erradicação da pobreza e da desigualdade social, para a superpopulação mundial? Como é a vida em países em que o aborto é legalizado e em países em que não é: melhor ou pior do que aqui?

Evidentemente, não tenho resposta a todas essas questões, embora saiba que especialistas no tema as têm para a maioria delas. Só que, nesse debate, o que prevalece não é o parecer técnico de quem estuda há décadas o problema, é a pressão de grupos ideológicos, tanto de um lado quanto de outro, os quais defendem suas posições apenas porque acreditam cegamente nelas — e acreditam porque foram condicionados desde muito cedo a acreditar. A ideologia é uma máscara que, de tanto ser usada, se cola de tal modo ao rosto de seu usuário que ele acaba por confundi-la com sua própria face.

Citei como exemplo a questão do aborto, mas poderia tratar igualmente da pena de morte, da redução da maioridade penal, do controle de natalidade, da descriminalização das drogas, das privatizações, da taxa de juros, do novo arcabouço fiscal, da linguagem neutra de gênero ou qualquer outra. Como sempre digo, teríamos o melhor dos mundos se todas as pessoas fossem racionais, bem educadas, bem informadas, emocionalmente equilibradas, bem intencionadas e, mais, altruístas, generosas, empáticas, simpáticas e sobretudo pragmáticas em vez de ideológicas, mas isso é utopia demais para a nossa comezinha humanidade, não é? Por isso, pragmatismo é mercadoria escassa no mercado. Abundantes mesmo são as crenças cegas e fanáticas e seus decorrentes atos de violência contra os defensores de outras ideologias ou do pragmatismo, atos esses sempre justificáveis por quem os pratica, já que estes são os detentores e conhecedores únicos da Verdade absoluta.

A ciência é apenas mais uma ideologia?

Tornou-se muito frequente nos últimos tempos a crítica, oriunda sobretudo de filósofos e cientistas sociais, de que a ciência é uma atividade tão ideológica quanto qualquer outra prática discursiva humana e que, portanto, a suposta neutralidade e imparcialidade da ciência, garantidas pelo chamado método científico, não passam de um mito. E mais: que esse mito estaria a serviço de certos interesses políticos e econômicos contrários aos valores de igualdade e justiça social, bem como aos direitos humanos. Noutras palavras, a ciência estaria a serviço de um projeto capitalista opressor e exploratório espertamente encoberto por um jargão incompreensível aos leigos, criado para passar a falsa impressão de isenção e assepsia.

Mais do que isso, argumenta-se que a ciência procura revestir-se de uma aura de infalibilidade e de certeza quando, na verdade, ela é apenas uma ideologia, no sentido de “crença que temos sobre a realidade, distinta da própria realidade”, como qualquer outra: como a política, a religião, o jornalismo, a arte, a publicidade… Mais além, alguns até empregam o termo ideologia aplicado à ciência em seu sentido marxista de “acobertamento proposital da realidade”.

Com o propósito de provar essa tese, invocam-se grandes pensadores do fazer científico, como Thomas Kuhn, Robert Merton, Karl Popper, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e outros, todos, com exceção de Kuhn, humanistas e não cientistas, portanto intelectuais que discutiram a ciência teoricamente, mas nunca a exerceram, logo nunca experimentaram na prática o que é fazer ciência.

Diante dessas críticas, convém primeiro esclarecer do que estamos falando. Desde o século XVII, convencionou-se que ciência é um conjunto de práticas de busca da verdade e de construção permanente do conhecimento por meio do raciocínio lógico, da razão e sobretudo do chamado método científico, ou método experimental, que consiste em formular hipóteses acerca de um fenômeno (natural ou social) e testá-las por meio da observação e experimentação (atenção aos meus grifos). Se a hipótese resiste ao teste da experiência, torna-se uma teoria e passa a ensejar novas hipóteses, igualmente sujeitas à testagem empírica. Logo, trata-se de um processo contínuo e infinito. Nele, por vezes teorias são modificadas ou simplesmente abandonadas quando os dados da experiência as contradizem. É o chamado mecanismo de autocorreção da ciência.

Mas a ciência é uma construção permanente do conhecimento, o que significa que, ao contrário das ideologias, que são conhecimentos prontos e imutáveis, o conhecimento científico está em permanente construção, como uma parede a que se acrescenta um tijolo de cada vez. E esse conhecimento é construído a partir do que é lógico, racional, do que faz sentido, do que é plausível e não de explicações mágicas, sobrenaturais ou de argumentos de autoridade e opiniões pessoais e idiossincráticas. A ciência opera com hipóteses e não com dogmas ou opiniões. A diferença é que uma hipótese é uma espécie de “verdade provisória” a ser testada e eventualmente descartada. Já dogmas e opiniões não estão sujeitos a testes e refutações: ou você aceita o dogma ou é excomungado; eu tenho uma opinião sobre algo e só abdico dela se quiser. E a maioria das pessoas carrega consigo suas opiniões e seus preconceitos até morrer.

Como resultado, a ciência é, em primeiro lugar, um processo de busca da verdade e não a própria Verdade. Diferentemente da religião, que sustenta verdades absolutas e inquestionáveis, embora nunca provadas nem comprováveis (e que não raro são desmentidas pela experiência prática), a ciência faz uma aproximação permanente da verdade sem jamais alcançá-la. Nunca saberemos tudo, mas sabemos cada vez mais. A prova de que o conhecimento científico, mesmo incompleto e imperfeito, funciona são as tecnologias que usamos no dia a dia, todas decorrentes da aplicação dos saberes produzidos pela ciência.

Embora ela seja um conhecimento aproximado, reducionista, conseguimos prever com absoluta precisão a que distância da Terra passará um meteoro e tomar as devidas providências para que ele não nos atinja. Quando o meteoro passa, constatamos aliviados que nossa previsão estava correta. Já ideologias e doutrinas fazem previsões que nunca se cumprem: quantas vezes profetas e religiosos previram o fim do mundo para determinada data, e, no entanto, ainda estamos aqui, vivos? A doutrina marxista, por exemplo, previu um regime político e um sistema econômico que produziriam sociedades absolutamente justas, igualitárias e felizes, e, entretanto, o que vemos é que todas as sociedades governadas por regimes marxistas são profundamente injustas, infelizes e cruéis.

Na verdade, a crítica que se faz à ciência deveria ser dirigida aos cientistas, que, como seres humanos, são falhos, portadores de fraquezas, emoções, desejos e vaidades, e, como tal, corrompíveis pelos valores do capitalismo e do mercado. Há uma grande diferença entre a ciência e os cientistas, assim como há entre a política e os políticos. Deveríamos então rejeitar a política só porque há políticos corruptos?

Leio numa postagem do filósofo brasileiro Gustavo Bertoche exatamente essa crítica. Ele diz:

Foi Rubem Alves quem, no livro “Filosofia da Ciência”, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.

Nada mais verdadeiro. Mas observem que sua crítica se dirige aos cientistas — e nem todos são assim; na verdade, a maioria não é — e não à ciência, embora ele diga em outro trecho que

[a] ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas. […] a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. […] Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

O que parece um defeito da ciência, que retiraria sua credibilidade e a colocaria na posição de mera ideologia — ou, antes, de embate de ideologias conflitantes — é na verdade sua grande qualidade. Se não sabemos a verdade e, para tentar nos aproximar dela, precisamos formular hipóteses, é óbvio que diferentes hipóteses precisarão ser testadas. É óbvio também que há diferentes métodos de testar essas hipóteses. É daí que surgem os embates entre os cientistas, cada qual sustentando sua hipótese e defendendo sua corrente de pensamento até que um experimento (ou muitos) determine qual hipótese é válida é merece tornar-se uma teoria — lembrando que teorias também são constantemente testadas e que o papel do cientista não é tentar comprovar uma teoria e sim derrubá-la; logo, teorias são apenas hipóteses que passaram num primeiro teste. Por conseguinte, a controvérsia entre os pesquisadores, longe de revelar a fraqueza da ciência em chegar à verdade, é o que conduz a comunidade científica a aproximar-se cada vez mais dela.

Citando mais uma vez Bertoche, “[s]e um cientista torna-se um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e posicionou-se no campo da ideologia”. Por sinal, é contra esse dogmatismo de certas alas da academia, especialmente na linguística, que eu venho me batendo. Sobretudo nas ciências sociais, ainda muito impregnadas pelo pensamento filosófico, em que a argumentação e a retórica valem mais do que os dados empíricos, há muita ideologia, muito dogmatismo e pouca cientificidade.

Mas o dogmatismo existe em todas as áreas científicas porque, mais uma vez, a ciência é feita por cientistas, que são humanos. Nesse sentido, há na academia pessoas que, em vez de impulsionar o avanço do conhecimento, representam um verdadeiro obstáculo a ele. Felizmente, elas cedo ou tarde acabam substituídas por outras, com novas ideias (ou talvez novos dogmas), e vida que segue.

Porém, o grande problema em equiparar ciência e ideologia sob o argumento de que “todo discurso é ideológico” ou de que “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”, palavras de ordem repetidas à exaustão na área de Ciências Humanas e de Humanidades, é pôr no mesmo balaio fatos e opiniões, dando a um preconceito o mesmo peso argumentativo de uma afirmação comprovada e comprovável. Nesta era da pós-verdade que estamos vivendo, instituiu-se que o que vale não é o que efetivamente é verdade e sim o que eu penso que seja verdade. Se acho que determinado termo tem conotação racista, então ele deve ser banido dos dicionários mesmo que todas as evidências etimológicas e semânticas comprovem que ele não tem nem nunca teve qualquer conexão com o conceito de raça, muito menos depreciativamente. Se a opinião vale tanto ou mais do que o fato e se o conhecimento científico é relativo e ideológico, então afirmações como a de que a Terra é redonda, de que vacinas previnem doenças ou de que a água ferve a 100 graus Celsius são meras crenças propagadas por cientistas com segundas intenções inconfessáveis e financiados por poderosas corporações que querem acabar com a humanidade. Está então aberto o caminho para as fake news, para os negacionistas, os terraplanistas, os antivacinistas, os criacionistas, os teóricos da conspiração e, pior, os fascistas, os supremacistas brancos e os terroristas de toda espécie.

Existe empobrecimento na língua e na cultura?

Um amigo meu, que está concluindo sua dissertação de mestrado, me pergunta se é possível falar em empobrecimento da cultura ou da língua e, mais, se é possível medir esse empobrecimento, caso ele exista.

Trata-se de um tema espinhoso, pois o próprio conceito de empobrecimento é relativo: pode-se argumentar que o que realmente ocorre é uma mudança de paradigmas, que a cultura e a língua são dinâmicas, portanto a ideia de que algo está se perdendo é mera perspectiva saudosista, já que algo novo está sempre surgindo em seu lugar.

No entanto, muitos intelectuais de respeito apontam o fato de que está efetivamente havendo uma perda em termos tanto quantitativos quanto qualitativos; Gilles Lapouge, por exemplo, fala disso em vários de seus escritos.

Em minha visão, esse empobrecimento tem a ver com a decadência da educação e também com as novas tecnologias, fenômeno mundial, embora mais perceptível em nações como o Brasil, em que o sistema educacional e a condição social da população são mais frágeis. Antigamente, a cultura era transmitida basicamente pelos livros, e ler tanto literatura quanto ciência e filosofia era um hábito entre as famílias da elite, mas também uma imposição da escola. E liam-se os clássicos da literatura, cujo linguajar era muito rico, os grandes pensadores de todos os tempos, desde os gregos até os mais modernos e mesmo jornais e revistas, que naquela época eram muito bem escritos.

Então veio o rádio, a seguir a televisão, depois os sites de internet e, mais recentemente, as redes sociais. Sobretudo os mais jovens passaram a valorizar mais a informação midiática do que a literária, talvez por seu apelo audiovisual e seu marketing. Mas também porque a linguagem desses meios se aproximava mais do coloquial desses jovens. Até mesmo os filmes e as telenovelas foram pouco a pouco incorporando um linguajar mais despojado, mais próximo do dia a dia: a fala impostada e teatral dos anos 1940 e ’50 cedeu às gírias e expressões cotidianas. Também os temas mudaram: as antigas telenovelas, que adaptavam para a TV grandes romances do passado ou eram ambientadas numa Europa longínqua e medieval passaram a abordar a vida presente das cidades brasileiras, com seus dramas e contradições — drogas, violência, choque de gerações, racismo, machismo, homofobia. Mesmo as poucas novelas de época que temos hoje procuram adaptar-se à ideologia presente, lançando uma visão crítica à escravidão que certamente não constava na maioria das obras clássicas.

Como disse no início, pode ser que estejamos apenas substituindo uma cultura por outra: saem os mitos gregos, entram os super-heróis norte-americanos. Mas a educação atual privilegia sem dúvida o conhecimento tecnológico em detrimento da cultura clássica, afinal nossa sociedade capitalista espera que a escola forme mão de obra qualificada para as empresas, e dominar tecnologia da informação é mais importante hoje em dia do que saber latim ou ser versado em literatura grega.

Quanto à língua, é possível mensurar objetivamente se há ou não um empobrecimento, mas essa mensuração terá de restringir-se aos registros que temos, isto é, aos textos escritos de hoje em dia e do passado. Na verdade, não temos como saber se a fala informal das pessoas comuns da atualidade é mais ou menos rica que a de nossos antepassados, pois não há registros daquelas falas a não ser episodicamente na reprodução que algum escritor fez da fala popular ao retratar um personagem.

Mas há pistas. Por exemplo, minha falecida mãe me legou a cartilha em que estudara as primeiras letras. E é possível ver nos textos desse livro didático dirigido a crianças de seis, sete anos uma riqueza vocabular que deixa embaraçados hoje em dia até estudantes universitários. A comparação entre textos escritos de décadas ou séculos passados e atuais permite avaliar, dentre outras coisas, a complexidade das estruturas gramaticais, a já mencionada riqueza vocabular, o uso de figuras de linguagem, a elaboração estilística e mesmo a variedade e a erudição das referências temáticas (filosofia, mitologia, alta literatura). Mesmo a extensão dos textos pode nos revelar algo: parece que hoje, até pela falta de tempo imposta por nossa vida corrida, os textos costumam ser mais curtos, concisos e objetivos — às vezes até lacônicos. E um texto mais curto é também mais pobre linguisticamente.

A análise comparativa de textos antigos e atuais nos aspectos linguísticos acima mencionados pode ser feita por meio de softwares especializados que devolvem dados quantitativos e estatísticas sobre a frequência de uso de palavras, expressões, construções sintáticas, etc., classificados por gênero textual, por época, por autor, e assim por diante. Os linguistas estatísticos e computacionais, assim como os especialistas em linguística de corpus, têm bastante familiaridade com esses programas.

Em resposta ao meu amigo, não posso dizer assim de chofre se a cultura e a língua estão empobrecendo, pois seria preciso empreender o estudo que acima mencionei para ter dados concretos em que pudéssemos apoiar nossas afirmações. Do contrário, eu estaria apenas emitindo uma opinião pessoal e, como cientista, sei mais do que ninguém que, em ciência, opiniões pessoais não valem nada. Mas, se me permitem um palpite — afinal este texto não é um artigo científico —, acho que nossa educação indigente, somada à pouca importância que uma parcela significativa de nossa população dá a ela, tem contribuído muito para a derrocada da qualidade dos textos que se produzem hoje, pelo menos no Brasil. Mas é possível que a progressiva substituição de Chico Buarque e Elis Regina por Anitta, a de Machado de Assis por Paulo Coelho, a de Beatles e Burt Bacharach por Rihanna, a de Ernest Hemingway por Harold Robbins estejam de fato assinalando um empobrecimento cultural, com seu inevitável corolário linguístico.

Uma última consideração: a história é feita de ciclos. A eras de apogeu cultural sucedem-se eras de decadência e trevas para novamente ressurgir o esplendor da cultura, e assim sucessivamente. Talvez estejamos de fato vivenciando uma época de obscuridade; tomara seja apenas um interregno a anunciar um futuro novo boom de cultura.

O ser humano é realmente um animal racional?

Dando continuidade à minha “filosofice” do artigo anterior, publico agora outro artigo, redigido muito tempo antes daquele, mas que de certa forma funciona como complemento e continuação da minha reflexão sobre a inteligência, a racionalidade e a sabedoria (ou não) da humanidade. Então vamos lá.

Por que o BBB faz tanto sucesso? Por que música brega é tão popular? Por que tanta gente aposta em loterias? Por que tanta gente acredita no sobrenatural? Por que políticos corruptos são (re)eleitos?

Cientistas sociais se debruçam sobre essas questões e produzem teses e mais teses acadêmicas quando a resposta é simples: o bom gosto é irmão do bom senso. E a maioria das pessoas não tem nem bom gosto nem bom senso. Aliás, o bom gosto é a manifestação estética do bom senso. E o bom senso deriva da racionalidade. Só que, embora a racionalidade seja o mais humano dos atributos (“o homem é um ser racional”), ela é um atributo “recessivo”, isto é, a maior parte das pessoas não tem o gene da racionalidade como dominante. É por isso que pessoas guiadas pela razão são minoria no planeta.

A razão foi importante na evolução da espécie humana, mas o fator preponderante da nossa evolução foi de natureza não racional. A superstição e o julgamento pela emoção parecem ter contribuído mais para a sobrevivência dos nossos antepassados do que a razão. Racionalidade é bom na hora de planejar uma caçada, mas isso um dos membros da tribo — o mais racional — pode planejar sozinho. Já a sobrevivência individual dependeu mais de decisões rápidas e não racionais.

Embora se desenvolva com o estudo, a racionalidade só aparece como traço dominante numa pequena parcela da população. É por isso que a religião e a superstição são mais populares que a ciência, e o mau gosto supera o bom senso estético.

A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?