Entrevista com Sérgio Cabral

Depois de ser posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro último, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-presidiário Sérgio Cabral decidiu dar sua primeira entrevista como cidadão livre e ficha-limpa (todos são inocentes até que se prove a sua culpa, após trânsito em julgado na última das infinitas instâncias do Poder Judiciário).

O repórter da televisão designado para entrevistar o ilustre político e mão-leve começa a entrevista perguntando:

— Senhor governador, como o senhor se sente depois de ter passado seis anos preso, condenado a mais de 400 anos de prisão, e agora em liberdade?

— Olha, rapaz, quando eu decidi partir pra corrupção, avaliei que era um bom negócio, no Brasil tudo é movido a propina, os mecanismos de fiscalização são falhos, superfaturar uma obra é muito fácil e ninguém percebe, e, mesmo quando há denúncias, a gente sempre diz que é intriga da oposição. No final, as investigações levam anos e não dão em nada; esses crimes nunca são julgados mesmo, né? E ainda tem o foro privilegiado. Além disso, a vida de nababo que eu e meus companheiros levávamos compensava plenamente o risco.

Só que, quando eu fui preso na Operação Lava-Jato, obrigado a confessar os meus crimes e a devolver parte do dinheiro desviado e, ainda por cima, fui condenado a centenas de anos de prisão, confesso que bateu um arrependimento: ir pra cadeia depois de ser um político de prestígio, que sonhava até ser presidente da república, foi duro.

Mas fiquei preso só seis anos, tive regalias na cadeia, como TV com DVD e caviar no jantar, e ainda pude curtir a companhia de alguns parças, como o meu brother Pezão, por exemplo. Ou seja, esses seis anos passaram depressa. Logo em seguida, fui pra prisão domiciliar, que de domiciliar só tem o nome, pois eu podia sair na rua à hora que quisesse, só não podia sair do país sem autorização judicial. E domicílio de rico é outra coisa, né?

Então, diante disso, eu comecei a reavaliar a situação e a achar que tinha valido a pena tudo que eu fiz. Afinal, ainda tenho muito tempo pela frente pra curtir a grana que eu desviei e que não tive que devolver aos cofres públicos. Até eu ser julgado e condenado na última instância, esses processos todos já terão caducado — ou eu estarei velho demais pra ir pra cadeia. Quem sabe role até um indulto presidencial ou uma graça, né?

— Mas, governador — interpela o repórter —, o senhor não acha um escárnio com o povo brasileiro o senhor estar por aí livre, leve e solto, gastando o dinheiro roubado dos contribuintes, mesmo tendo sido condenado a quatro séculos de prisão?

— Olha, garoto, em primeiro lugar, “dinheiro roubado” não, “desviado”, ok? Em segundo lugar, se tem alguém escarnecendo do povo, não sou eu, é o Poder Judiciário, eu só estou cumprindo ordens judiciais. Ou seja, eu estou rigorosamente dentro da lei. O problema não sou eu, é a lei. Só que eu, sinceramente, não tenho do que me queixar dessa lei, pra mim ela é muito boa. Aliás, pra você ver como são as coisas, o juiz que me condenou e mandou me prender está sendo investigado e pode até ser punido com a aposentadoria compulsória, isto é, ficar pelo resto da vida recebendo salário sem trabalhar — se bem que uma punição assim até eu queria, né?

— O senhor quer deixar uma última mensagem para os nossos telespectadores?

— Olha só, na minha concepção, o Brasil não é, como dizem, o país da corrupção, pois corrupção tem no mundo inteiro; no Oriente Médio, por exemplo, a coisa é bem pior do que aqui. O Brasil é, sim, o país da impunidade, e é a impunidade que alimenta a corrupção. Eu não teria feito tudo o que fiz se não tivesse a certeza de que, no final, ia me dar bem, como de fato me dei. As nossas leis são feitas pra não punir ninguém — a não ser, claro, os três P’s: preto, pobre e puta. Afinal, grande parte daqueles que fazem as leis, nossos ilustres legisladores, também têm problemas com a Justiça — e não sem razão! Então eles fazem leis pra si próprios, pensando que um dia também poderão ser beneficiados por elas. Minha mensagem é: meus amigos, no Brasil, o crime compensa! Muito obrigado pela oportunidade e um abraço a todos os telespectadores.

Palavra do ano: democracia

Mais um ano se finda, e é chegada a hora de elegermos a palavra do ano, o vocábulo mais utilizado e repetido nos últimos doze meses ou o que melhor sintetiza o espírito desse período. E, a meu ver, esse vocábulo é democracia. Certas palavras só se tornam importantes quando aquilo que elas representam se torna escasso: ninguém fala o tempo todo sobre o ar que respiramos a não ser que ele comece a faltar. Assim foi com a democracia. Deveria ser um termo banal, designativo de algo onipresente como o ar, mas, se tanto falamos dela neste 2022, é porque tivemos o medo real de perdê-la. Mais do que isso, tivemos a consciência do quanto ela esteve e ainda está sob ameaça.

Em pleno século XXI, a democracia idealizada pelos filósofos iluministas do século XVIII ainda é exceção e não regra; a maior parte dos seres humanos vive sob regimes que nem de longe se parecem democráticos. A brutalidade do poder que oprime e se legitima pela violência e pelo terror ainda domina a maioria das sociedades e estados. Por ser tão rara, a democracia é tão preciosa, como uma flor frágil que precisa ser regada e adubada diariamente para que não feneça. E há muitos que querem matá-la, que preferem a tirania porque acreditam ingenuamente que levarão vantagem em estar ao lado dos tiranos, esquecendo-se de que tiranos não têm amigos, apenas se utilizam de seus aliados enquanto estes lhes servem; quando não mais, os descartam impiedosamente.

Democracia, palavra de origem grega formada de dêmos, “povo”, e krátos, “poder, governo”, é o governo do povo, para o povo e pelo povo. É bem verdade que em nenhum lugar do mundo é o povo quem governa. Mesmo na antiga Atenas, berço do termo e do sistema, exerciam o poder todos os cidadãos, que no caso não chegavam a um quinto da população da cidade-estado, já que mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram considerados cidadãos. Nas sociedades modernas, muito mais complexas que a pólis ateniense, a democracia só pode ser representativa ou, no máximo, participativa. Em ambos os casos, os cidadãos elegem representantes, que são quem vai legislar e apoiar — ou não — o governo eleito. E, como a democracia não raro degenera em demagogia, como já alertava Aristóteles, isso num tempo em que ainda nem havia marketing político, os “representantes do povo” não representam o povo e sim os lobbies que os elegeram: grandes corporações, grandes latifundiários, igrejas proselitistas e altamente capitalistas, poderosos sindicatos, até organizações criminosas. Isso quando não representam a si mesmos, isto é, defendem seus próprios interesses particulares, legislando em causa própria.

Apesar de tudo isso, a democracia é, como dizem, o pior dos regimes, com exceção de todos os demais. Estejamos, pois, vigilantes; como disse John Philpot Curran em 1790, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Feliz Ano Novo!

Carta ao presidente Lula

Prezado senhor presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, antes de mais nada, quero esclarecer que, no primeiro turno da eleição deste ano, não votei nem no senhor – ou melhor, em Vossa Excelência – nem no seu arquiadversário (ou deveria eu dizer “arqui-inimigo”?) porque não simpatizo com populistas nem de esquerda nem de direita. Por outro lado, neste segundo turno me vi obrigado a votar em V.Ex.ª, mesmo tendo de tapar o nariz para o odor fétido exalado do Mensalão, do Petrolão do triplex no Guarujá, do sítio de Atibaia e das inúmeras confissões de delatores e outras provas de corrupção pelo simples motivo de que, dos dois candidatos que chegaram ao segundo turno, V.Ex.ª era o “menos pior” e o fato é que nem toda a corrupção dos governos do PT se compara ao mal que Bolsonaro fez e continua fazendo ao Brasil. Em todo caso, parece que temos sempre de nos contentar com o menos ruim, já que o bom e o ótimo nunca estão ao nosso alcance.

Ainda assim, quero dar-lhe os parabéns pela vitória e desejar-lhe muita sorte em seu governo, esperando sobretudo que V.Ex.ª e não o Centrão ou os sindicalistas do PT governem este país.

Mas quero acima de tudo lhe fazer um pedido: cuide com especial carinho da educação de nosso país. Por favor, durante seu mandato, ofereça a todos os cidadãos a tão sonhada e necessária educação pública e gratuita de qualidade, pois só com ela, com bons e bem remunerados professores e boa infraestrutura escolar, conseguiremos sair de nossa triste condição de gigante eternamente adormecido, deitado em berço esplêndido, que assiste a outras nações emergentes, com muito menos riquezas e potencial do que a nossa, passarem à nossa frente enquanto permanecemos este país que não deu certo, esta eterna republiqueta bananeira disfarçada de grande nação.

Sim, Sr. Presidente, porque a educação é a solução para todos os nossos problemas. Não adianta falar em gerar empregos – claro, gerar empregos é importante para o país crescer, mas, mesmo com toda a crise econômica, não há falta de empregos, há empregos sobrando; o que falta é mão de obra qualificada para preencher essas vagas. Ou seja, falta educação, falta qualificação profissional. De nada adianta gerar subemprego, trabalho braçal com salário mínimo que jamais tirará o trabalhador da pobreza.

A única solução para acabarmos com essa vergonha que é nossa monstruosa desigualdade social é a educação de qualidade. Quando as crianças e adolescentes da periferia puderem estudar em tempo integral em escolas com três refeições diárias, banheiros limpos e decentes, biblioteca, brinquedoteca, laboratórios, quadra e ginásio de esportes bem equipados, consultório médico, dentário e psicológico, estiverem livres de violência (interna e externa) e puderem seguir assim até o fim do ensino médio, sem precisar interromper seus estudos para trabalhar ou para fugir de tiroteios, esses estudantes poderão entrar nas melhores universidades sem precisar de cotas sociais ou raciais – e poderão pleitear bons empregos. E, com bons empregos, poderão finalmente deixar a periferia.

Com isso, a própria periferia deixará de ser lugar de criminalidade, e os bandidos não terão mais onde se esconder nem como usar a população pobre como escudo humano contra a polícia. Com melhor educação, a pobreza e a violência diminuirão muito, e precisaremos gastar menos com assistência social e segurança pública.

Com melhor educação, e consequentemente melhor renda, as pessoas se alimentarão melhor e terão melhores condições de higiene; logo, precisaremos gastar menos com saúde pública.

Mais bem educadas e com melhor nível de vida, as pessoas precisarão recorrer menos a igrejas caça-níqueis que vendem falsas esperanças em troca dos suados dízimos. Com isso, nossa TV aberta e nossas rádios AM (e também algumas FMs) deixarão de ser dominadas por essas igrejas e seus pastores mercenários. Aliás, um povo bem educado é sempre um povo mais racional e secularista e menos propenso ao fanatismo religioso. Assim, sacerdotes picaretas deixarão de ter o poder que têm hoje de manipular multidões em seu próprio proveito e de amealhar fortunas em mansões e fazendas, canais de rádio e televisão, jatinhos particulares e contas milionárias no exterior. Consequentemente, também deixarão de ter o poder de eleger gigantescas bancadas nos legislativos que tentam impor a toda a população suas crenças e seu modo de vida como se o Brasil fosse uma teocracia.

Com mais e melhor educação, as pessoas não deixarão por certo de dar muita importância ao futebol, às telenovelas e ao Carnaval, paixões de nosso povo, mas compreenderão melhor o valor da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da cultura e da arte de qualidade e não deixarão que essas áreas fiquem à míngua para que projetos eleitoreiros de ocasião sejam priorizados. Com mais e melhor educação, certamente deixaremos de ser este país brega que somos – e que no passado não éramos.

Numa nação mais bem educada e, portanto, mais desenvolvida, haverá menos feminicídios, menos homofobia, menos racismo, menos destruição do meio ambiente e menos tudo o que hoje nos envergonha perante as nações desenvolvidas.

Mas não é só isso: com mais educação, as pessoas saberão votar com mais consciência e escolher melhor seus governantes e representantes. Desse modo, os políticos fisiológicos do Centrão, os coronéis latifundiários do Nordeste, a bancada da bala, a bancada ruralista, a bancada da Bíblia, tudo isso será reduzido a seu devido tamanho, e os parlamentos (federal, estaduais e municipais) refletirão de fato a composição do povo brasileiro em gênero, cor, etnia e idoneidade.

Sr. Presidente, V.Ex.ª não pode errar desta vez como errou no passado, deixando o poder subir-lhe à cabeça e sentindo-se acima do bem e do mal, senão todos sabemos quem poderá voltar ao poder. Tudo é uma questão de como V.Ex.ª deseja passar à História: como o estadista que fez a grande revolução que nosso país precisa ou como mais um político que apenas passou pelo poder enquanto o Brasil permanece o país do futuro – que talvez nunca chegue.

Os evangélicos e as eleições

Nestas eleições, em que deveriam estar sendo discutidos os grandes temas nacionais, como a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a infraestrutura, o debate se perde em questões que não têm nada a ver com a administração do país, mas que são caras a grande parte da população, provavelmente por falta de uma cultura política, reflexo de nossa falta de cultura geral. Uma dessas questões é, infelizmente, a religião. Desde sempre, o povo brasileiro escolheu seus governantes e representantes muito em função de suas crenças religiosas. Para muitos brasileiros, mais importante do que se o candidato é honesto ou competente, é se ele acredita ou não em Deus, especialmente no Deus judaico-cristão. Historicamente, padres e pastores têm influenciado muitos fiéis, fazendo pregação política nos templos e por vezes ameaçando com o Inferno e a danação eterna aqueles que não votarem em determinado candidato, o que surte grande efeito nos mais ignorantes – por sinal, boa parte da população brasileira.

Mas desde que se discute religião nas campanhas políticas, o foco têm sido sempre os chamados “evangélicos”, na verdade, protestantes de linha pentecostal, como os membros da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, ou neopentecostal, como os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo. É que existem também os protestantes tradicionais, adeptos das igrejas que surgiram com a Reforma Protestante de Lutero em 1517: são os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, etc. Estes não costumam ser chamados de evangélicos porque seu comportamento em geral difere bastante daquele dos (neo)pentecostais. Portanto, é destes últimos que quero falar, já que são estes que estão no foco da discussão política atual.

O Brasil é um país majoritariamente religioso e sobretudo cristão, abarcando cidadãos das mais diversas fés e confissões, como católicos, protestantes, ortodoxos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, candomblecistas, além daqueles que creem em Deus mas não seguem nenhuma doutrina em particular.

No entanto, não se fala desses grupos religiosos como se fala dos evangélicos, nem o interesse dos políticos está voltado para essas outras comunidades como está para a evangélica. Por quê?

É fato que as denominações (neo)pentecostais são as que mais têm crescido no Brasil, apontando para a tendência de se tornarem majoritárias dentro em breve. Isso se deve a diversos fatores, mas principalmente ao apelo que essas igrejas têm na população mais carente, oferecendo-lhe a possibilidade de solução mais concreta e imediata de seus problemas do que outras religiões.

Mas, se não só os políticos como também a população em geral tende a considerar os evangélicos um grupo à parte em meio à massa dos religiosos em geral e, mais do que isso, um setor à parte da própria população brasileira, é porque esse grupo tem um comportamento que os diferencia, e muito, dos demais cidadãos, o que também é a causa do preconceito que sofrem.

Para o senso comum, o evangélico é um indivíduo que lê a Bíblia todos os dias, vai à igreja toda semana (às vezes mais de uma vez por semana) ouvir um pastor gritar histericamente, não bebe álcool, usa roupas sóbrias – no caso das mulheres, saias e cabelos compridos; algumas nem se depilam –, só ouve música gospel, só assiste a canais de TV de suas igrejas e sobretudo paga o dízimo à sua igreja “religiosamente” (desculpem o trocadilho).

Diferentemente de outros grupos religiosos, os evangélicos são proselitistas e tentam agregar cada vez mais fiéis às suas igrejas, o que representa cada vez mais dízimos e, portanto, mais poder financeiro, que se traduz em cada vez mais templos e mais canais de rádio e televisão – além, é claro, de uma vida cada vez mais rica e luxuosa para os comandantes dessas igrejas.

Nenhuma outra confissão religiosa tem uma bancada tão organizada no Congresso Nacional: não há uma bancada espírita, judaica ou islâmica, mas há uma poderosa e influente bancada evangélica, por sinal sempre fazendo parte da base de apoio ao governo – qualquer governo que seja. Nenhuma outra confissão tem tantas emissoras de rádio ou de TV. Nenhuma outra confissão é tão rica, com exceção, é claro, da Igreja Católica, mas a riqueza desta resulta de um patrimônio de séculos de hegemonia no Ocidente e não da arrecadação de dinheiro entre os fiéis.

Outro aspecto que chama a atenção aos evangélicos é seu conservadorismo em termos de costumes, o que faz a extrema direita sempre flertar com eles. Mais do que isso, o fundamentalismo e, por vezes, o literalismo das posturas de certos evangélicos os coloca como fanáticos religiosos, e daí vem o preconceito maior contra eles. Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra outros credos, especialmente os de matriz africana, chegando em alguns casos a pregar e a praticar a violência física contra “a religião do Diabo”, bem como sua censura ao homossexualismo, os faz serem vistos como racistas e homofóbicos, portanto cultores do ódio em vez do amor, base de todas as religiões.

Enfim, todos esses aspectos acabam por alimentar a desconfiança contra os evangélicos por parte dos que não seguem essa doutrina. E, pelo crescente tamanho dessa comunidade, nenhuma força política pode ignorá-la, já que, sem ela e seu apoio no Congresso, fica difícil governar. O temor da parcela mais progressista e esclarecida da população é que essa comunidade, vindo a tornar-se majoritária no Brasil, tente impor a toda a sociedade, incluindo os não cristãos e os não religiosos, uma teocracia, em que a “palavra de Deus”, isto é, a Bíblia em sua leitura literal e sobretudo a vontade dos pastores, se sobreponha à Constituição e às leis. Isso seria o fim da democracia, eis por que fanáticos religiosos e extremistas de direita têm tanto apreço uns pelos outros.

Motociata ou motosseata?

Neste Sete de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez promoveu uma motociata – e mais uma vez sem usar capacete –, o que, por sinal, se tornou marca registrada de seu governo. Tanto que essa prática até plasmou a própria palavra motociata, uma passeata de motocicleta. Mas quem consolidou a grafia do termo foi a imprensa escrita. E de maneira errada.

Em primeiro lugar, voltemos à palavra passeata, a primeira da família que surgiu em nosso idioma, como empréstimo do italiano passeggiata, “passeio”, derivada do verbo passeggiare, que, como o nosso passear, remete ao primitivo vocábulo passo. Ou seja, trata-se de um percurso cumprido a pé, dando passos. O que o português fez foi aclimatar o termo italiano ao nosso idioma, substituindo o radical original do verbo passeggiare pelo do verbo vernáculo passear. Em ambas as línguas, a palavra passou em certo momento a designar um deslocamento coletivo, especialmente para protestar ou comemorar.

Quando essas passeatas de celebração ou protesto passaram a ser feitas de carro, cunhou-se o termo carreata utilizando o mesmo sufixo ‑ata de passeata. Agora que Bolsonaro introduziu o hábito de fazer passeatas de motocicleta, o lógico é que se fizesse um mix (chamado de palavra-valise) de moto e passeata, que resultaria na grafia motosseata e não motociata, como trazem a mídia impressa e a eletrônica.

Será que quem cunhou essa grafia motociata estava pensando em negociata, por exemplo? Não seria estranho em se tratando do governo Bolsonaro e seus aliados do Centrão ou da quantidade de imóveis que sua família comprou com dinheiro vivo. Mas não deve ter sido esse o caso. Acho mais provável creditar essa grafia esquisita à ignorância do jornalista que deu à luz o termo, seguida da ignorância dos jornalistas que o replicaram. O problema é que, uma vez consolidada uma grafia errada, leva tempo para consertá-la. Haja vista o tempo que demorou para que as pessoas entendessem que grafar mussarela com ss era errado e começassem a escrever muçarela corretamente com ç.

*-*-*

Em tempo: como brasileiro, me sinto envergonhado pelo papel ridículo que fizemos mais uma vez perante o mundo na comemoração dos 200 anos da independência. “Imbrochável”, comparação machista entre primeiras-damas, uso da cerimônia para fazer campanha política em vez de saudar a importância da data, menosprezo ao convidado de honra da solenidade, o presidente de Portugal, posto no palanque em posição secundária enquanto a lateral do presidente Bolsonaro era ocupada por um Luciano Hang fantasiado de Zé Carioca… Enfim, nenhum respeito à liturgia e às responsabilidades do cargo de Presidente da República, ainda mais em data tão importante e que só se repetirá daqui a 100 anos. Que lástima!

Racionalidade, não racionalidade e irracionalidade

A semiótica, ou ciência da significação, é um poderoso instrumento de explicação e compreensão do sentido – tanto explícito quanto oculto – dos discursos. E para cumprir esse objetivo, uma das ferramentas da chamada semiótica greimasiana (proposta inicialmente pelo estudioso lituano Algirdas Julien Greimas) é o quadrado lógico-semiótico. Segundo sua teoria, todo discurso e, por extensão, toda ação humana (que para ele é discurso) se apoia na tensão dialética entre opostos. Seu quadrado semiótico baseia-se no quadrado lógico de Aristóteles, cujos vértices superiores representam dois conceitos contrários (por exemplo, vivo e morto), ao passo que cada um dos vértices inferiores representa o contraditório do atributo situado no vértice superior diametralmente oposto. Seriam eles, respectivamente, não morto e não vivo. Como é óbvio, um ser animado só pode estar num dos estados vivo ou morto. Já um ser inanimado, como uma caneta ou uma pedra, não está nem vivo nem morto.

Para compreender semioticamente a psique humana, vamos colocar nos vértices superiores do quadrado os contrários racionalidade e irracionalidade; teremos então quatro combinações possíveis de situações, conforme a figura abaixo.

Como podemos ver, a não racionalidade, contraditório da racionalidade, não é o mesmo que a irracionalidade. Quando dizemos que os animais são irracionais, na verdade queremos dizer que são não racionais, isto é, não agem segundo a razão, o raciocínio lógico (tenho sérias dúvidas disso); já irracional é toda atitude contrária à razão, como rasgar dinheiro, por exemplo.

A não irracionalidade é o estado de quem está, digamos assim, em seu juízo perfeito. É o que podemos chamar de sensatez ou equilíbrio mental. Já a não racionalidade envolve aqueles processos em que somos guiados por outras instâncias da mente, como a intuição e a emoção. Dito em outros termos, racionalidade é pensar com a cabeça, ao passo que não racionalidade é pensar com o coração. Todos nós fazemos ambas as coisas dependendo da situação. Ninguém responde a uma prova de matemática pensando com o coração: “Vou escolher a alternativa b) porque é a equação mais bonita” (até há alguns vestibulandos que fazem isso, mas não aconselho). Igualmente, ninguém é racional quando está apaixonado. Declarar seu amor ao ente amado com a cabeça em vez do coração certamente não funcionará.

Como resultado, quando somos racionais e não irracionais, portanto, sensatos, estamos no domínio da razão. Já quando não somos nem racionais nem irracionais, somos emocionais: estamos no domínio da emoção, do sentimento.

E quando alguém é ao mesmo tempo irracional e não racional? Essa pessoa está naquele estado que chamamos de loucura: só emoção, nenhuma razão, nenhuma sensatez. Essa loucura a que me refiro aqui não é só a condição patológica identificada pelos psiquiatras como psicose, aquilo que leva muitas pessoas a uma internação em clinicas psiquiátricas e manicômios (nos países em que ainda existem); trata-se na verdade de um estado em que todos nós podemos nos encontrar em determinados momentos da vida. Aquele indivíduo que vê seu bem mais precioso, que levou a vida inteira para conquistar, ser tomado por um assaltante e se atraca com o criminoso sem pensar que pode perder a vida se encontra nesse estado de loucura transitória. Aquele sujeito que, diante de uma situação banal como um arranhão em seu carro ou uma fechada no trânsito, parte para a agressão ou mesmo saca uma arma e mata também está nesse estado. Quem se encontra em depressão profunda e tenta o suicídio, idem. Quem frequenta um culto religioso cujo pastor grita histericamente durante vários minutos, onde se toca e canta música alta e repetitiva até que todos entrem em transe, costuma experimentar esse estado – sim, semioticamente falando, o transe é uma espécie de loucura, que, no caso em questão, leva facilmente o indivíduo a doar dez por cento de sua renda à igreja, dinheiro com o qual o pastor vai comprar sua mansão, seu jatinho particular, seu canal de televisão e vai formar sua bancada no Congresso Nacional. Ou seja, o fanatismo, quer religioso, quer político ou futebolístico, é uma forma perigosa de loucura.

Se razão é pensar com a cabeça e emoção é pensar com o coração, a loucura é o não pensar, o agir sem pensar, o agir por impulso, por instinto ou por perda das faculdades mentais.

Como se pode ver, a semiótica é um instrumento poderoso de explicação da realidade.

Brasileiros e brasileiras

Foi o ex-presidente da república José Sarney quem eternizou a expressão “brasileiros e brasileiras”, com a qual iniciava seus discursos. Antes dele, o general-presidente João Figueiredo dizia apenas “meus amigos”. E Getúlio Vargas começava suas preleções com “trabalhadores do Brasil”.

Hoje, por influência da linguagem politicamente correta e das pautas identitárias, é cada vez mais comum ouvirmos “bom dia a todos e todas”, “Vossas Excelências senadoras e senadores”, e assim por diante. É bem verdade que a expressão “senhoras e senhores” é muito antiga e existe em todas as línguas – quem não conhece o famoso ladies and gentlemen? –, o que indica que a preocupação em abarcar na comunicação homens e mulheres (ou, antes, mulheres e homens) não é nova.

O problema é que, desde que se passou a disseminar a fake news de que o português é uma língua machista porque faz a concordância no plural pelo gênero masculino (por exemplo, brasileiros inclui homens e mulheres nascidos no Brasil), a distinção todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc., passou a ser sentida como uma necessidade e uma forma de deferência ao chamado “sexo frágil” – isto sim uma denominação machista, já que de frágil as mulheres não têm nada!

Tenho ressaltado muitas vezes que essa ideia de que línguas são machistas decorre da confusão que se tem feito entre quatro coisas diferentes: sexo biológico, gênero psicossocial, gênero semântico e gênero gramatical. Mas não custa esclarecer essa diferença mais uma vez.

Sexo biológico é uma característica que todos os seres vivos sexuados têm e é algo que herdamos “de fábrica”, ou seja, praticamente todo animal pluricelular, incluindo nós seres humanos, nasce macho ou fêmea – a única exceção são alguns animais hermafroditas, que são macho e fêmea ao mesmo tempo.

No entanto, o ser humano, por sua complexidade psíquica, desenvolveu paralelamente ao seu sexo biológico a característica de gênero psicossocial, a qual, por sinal, foi ignorada pela ciência durante muito tempo. Ocorre que muitos indivíduos têm uma orientação sexual distinta da majoritária heterossexualidade: são os homossexuais, os bissexuais e os assexuais (não confundir com assexuados, que são animais não dotados da distinção macho/fêmea). Além disso, independentemente de sua orientação sexual, muitas pessoas se reconhecem como transexuais ou transgênero (não recomendo a forma “transgêneras” e já comentei esse ponto em outra postagem), não binárias, gender-fluid e muitas outras denominações, o que tem feito a sigla LGBTQIA+ crescer cada vez mais (a despeito de o sinal + já abrir espaço para novos acréscimos).

Quanto ao gênero semântico, trata-se de como as línguas interpretam – ou interpretaram até hoje – a realidade dos sexos biológicos e dos gêneros psicossociais. Os gêneros semânticos são cinco:

  • masculino (seres animados do sexo masculino): pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);
  • feminino (seres animados do sexo feminino): mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);
  • neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos): caderno, felicidade (A ração dos cachorros acabou);
  • sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado): criança, testemunha, vítima (O animal que vi na rua estava ferido);
  • complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): ser humano, brasileiros, humanidade (O cão é um animal mamífero).

Esses cinco gêneros semânticos se manifestam nas diferentes línguas através dos gêneros gramaticais. Nesse sentido, há desde línguas com quatro gêneros gramaticais, como o sueco (masculino, feminino, neutro e comum) até línguas sem gênero, como o hopi, da América do Norte. O alemão e o inglês têm três gêneros, masculino, feminino e neutro, sendo que em alemão a distribuição dos seres entre esses gêneros é bastante arbitrária (por exemplo, Sonne, “Sol”, é feminino, Mond, “Lua”, é masculino, Mädchen, “menina”, é neutro). Já em inglês, seres com gênero semântico masculino ou feminino têm igualmente gênero gramatical masculino ou feminino (man é masculino e substituível pelo pronome pessoal he, woman é feminino e substituível por she); os demais entes são todos agrupados no gênero neutro. Os gêneros sobrecomum e complexo são frequentemente representados pelo pronome plural invariável they.

Por fim, o português e todas as línguas neolatinas com exceção do romeno têm dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, resultado da convergência entre o masculino e o neutro latinos num único gênero por força da evolução fonética fortuita.

Como resultado, o português subsume nos gêneros masculino e feminino conceitos portadores dos cinco gêneros semânticos e faz a concordância no plural pelo gênero gramatical masculino por uma simples questão de convenção decorrente da evolução histórica do idioma, desprovida de qualquer viés ideológico.

Aliás, justamente por não corresponderem exatamente a nenhum gênero semântico e menos ainda a gênero psicossocial ou sexo biológico, os gêneros gramaticais deveriam chamar-se gênero 1 e gênero 2 ou gênero marcado e gênero não marcado, como sugerem muitos linguistas. Isso acabaria de vez com essa ideia equivocada de que a língua é machista baseada na confusão irrefletida entre gramática, psicologia e biologia. Vou além: a própria denominação gênero dada a uma categoria gramatical deveria ser trocada por outra para não se confundir com a noção de gênero psicossocial. Fica aí a minha sugestão aos colegas linguistas e aos gramáticos.

-*-*-

Em agosto de 1977, como reação à ditadura militar então vigente, o Prof. Goffredo da Silva Telles Junior leu diante das arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a famosa faculdade do Largo de São Francisco – a hoje histórica Carta aos Brasileiros, um libelo em favor da restauração do estado democrático de direito. Hoje, exatos 45 anos depois, quando nossa democracia volta a ser ameaçada, um novo manifesto é lido no mesmo local, com igual impacto social, desta vez batizado de Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Sinal dos tempos, a nova carta enfatiza a distinção de gênero e gentilmente coloca as mulheres em primeiro lugar. Pelo andar da carruagem, se dentro de mais algum tempo surgir nova ameaça à nossa democracia, terá de ser redigida uma Carta aos Brasileiros, Brasileiras e Brasileires.

Tá doido, rapaz? Ou melhor, tá inclusão?

Outro dia, publiquei neste espaço um artigo em que teci uma certa crítica à chamada linguagem politicamente correta e à militância que, em nome do justo combate a preconceitos e desrespeito a direitos humanos, sentencia de morte certas palavras, atribuindo-lhes uma carga depreciativa que elas efetivamente não têm, como, por exemplo, afirmar (erroneamente) que denegrir faça alguma alusão à raça negra.

Como era de se esperar, minha crítica, embora fundamentada, gerou algum incômodo em espíritos mais sensíveis a essas causas, na maioria das vezes pessoas bem-intencionadas mas mal-informadas. Um leitor me questionou:

Não entendi se o senhor aceita a mudança da troca das palavras?

E se trocar mudaria para você o que?

E se estudamos a língua com afinco em saber a suas origens, e entendimento ao longo de nossa existência, ela não vale ser revista? Ou que momento isso pode acontecer? Ou não pode?

Sobre o apontamento a pessoas portadoras de deficiências, é algo que está em constante mudança par atingir mais pessoas sem distingui-las como “defeito de fábrica”, já que a sociedade cria um modelo de ser “humano” a ser normatizado e qualquer outro ser humano fora desse padrão é estigmatizado com termos que são excludentes. A empatia no uso dos termos tenta amenizar as diferenças que são consideradas pejorativas por outros (nas mesma definições). […]

Respondi-lhe que, como linguista, sei mais do que ninguém que a língua evolui e, portanto, o léxico muda com o tempo. No entanto, existe uma diferença entre a mudança espontânea feita pelo consenso dos falantes e uma tentativa de mudança imposta por certos grupos de poder. Por exemplo, quem decidiu trocar negro por afrodescendente não foram os falantes do português em geral, nem mesmo os próprios negros; foram sociólogos e antropólogos de universidades públicas na esteira do inglês African American, que tampouco foi criado pelos falantes da língua inglesa, mas por cientistas sociais e intelectuais americanos. O resultado mais concreto dessas tentativas de imposição daquilo que chamei de “novilíngua politicamente correta” é que termos como afrodescendente ou pessoa portadora de necessidades especiais não têm adesão popular; são usados exclusivamente pela imprensa e por ativistas. Os próprios negros em geral se chamam de negros e não de afrodescendentes. Aliás, tenho vários amigos negros e já os vi chamando-se uns aos outros de “negão” ou “crioulo” de forma carinhosa.

Portanto, o que eu critico não é a mudança da língua em si, fato inevitável e que constitui a própria essência da linguagem humana (talvez até de tudo que é humano); minha crítica é à tentativa artificial de imposição de novos termos, bem como a proibição de outros, sem um critério objetivo e por razões meramente ideológicas por parte de grupos políticos que, por vezes, se sentem donos da verdade. Aliás, o fanatismo e o extremismo, sejam eles religiosos, políticos ou até mesmo futebolísticos, surgem quando indivíduos, imbuídos da convicção de que a causa pela qual militam é justa, se sentem no direito (ou, mais do que isso, no dever) de impor sua visão de mundo a toda a sociedade. A Inquisição católica medieval, o nazismo e o comunismo, com suas consequentes atrocidades, nasceram de crenças assim, de que almas precisavam ser salvas, de que o mundo sem judeus ou sem capitalistas seria um mundo melhor.

Em nome do combate ao preconceito e à exclusão social, já tentaram até censurar os dicionários com o objetivo de banir certas acepções consideradas demeritórias a certos grupos. Ora, o dicionário é um espelho da língua: se certos sentidos existem nele é porque existem na língua. Aqui vale o velho adágio: “Não culpes o espelho se tua cara é torta”. Acima de tudo, minha crítica se dirige à hipocrisia de setores políticos que acham que, mudando a linguagem, mudam a realidade. Nesse aspecto, prefiro, por exemplo, continuar chamando os índios de índios, mas vê-los ser tratados com a dignidade que merecem (o que, diga-se de passagem, nunca o foram, e menos ainda neste atual governo) a chamá-los de indígenas ou povos originários e continuar tratando-os com o mesmo descaso histórico como os tratamos atualmente.

Pois bem, um dos efeitos mais deletérios da chamada linguagem politicamente correta (ou linguagem PC, para os íntimos) é o mascaramento da realidade, como se dar nomes bonitos e pomposos a coisas feias as tornasse menos feias. Ou seja, o PC não deixa de ser uma forma dissimulada de manipulação por meio das palavras, e as pessoas comuns, especialmente aquelas que não se deixam influenciar por ideologias (políticas, publicitárias, religiosas, etc.) percebem isso. O cidadão idoso que sempre chamou os afrodescendentes de pretos sem nenhuma conotação pejorativa tem razão de sentir-se perplexo quando agora é advertido de que sua maneira de expressar-se é inadequada, politicamente incorreta ou, o que é pior, racista.

Uma das reações ao patrulhamento ideológico que tenta impor essa novilíngua é a zombaria: expressões PC acabam ganhando sentido bem-humorado (por exemplo, diante de uma tempestade iminente, dizer que o céu está cheio de nuvens afrodescendentes). Expressões politicamente corretas logo produzem versões humorísticas ou paródias, como chamar o careca de “portador de deficiência capilar” ou o baixinho de “pessoa verticalmente deficiente”.

O mais novo rebento desse humor politicamente incorreto (aliás, humor politicamente correto não tem graça nenhuma) decorre da atual – e, a meu ver, acertada – política educacional de incluir nas salas de aula regulares alunos com deficiência cognitiva ou intelectual (outrora deficiência mental), como autistas, portadores da síndrome de Down e outros.

Como se trata de uma política de inclusão social (e a própria legislação educacional assim a denomina), eis que surge a gíria maliciosa entre os profissionais da educação pública: qualquer pessoa que pareça lelé da cuca agora é “inclusão”. A Maria pôs a marmita no micro-ondas e se esqueceu de ligá-lo? Tá na cara que ela é inclusão! O Antônio considera Bolsonaro um defensor da democracia? Só pode estar inclusão! João acredita na honestidade dos políticos do Centrão? Xi, inclusão sem sombra de dúvida!

Como o humor é sempre mais inteligente que o patrulhamento das consciências (o semanário francês Charlie Hebdo que o diga!), não importa quantos termos estrambóticos e rebuscados a linguagem PC invente, o povo vai sempre achar um uso bem-humorado para eles. Mesmo que criado com boas intenções, o PC logo se torna ridículo, e as pessoas cuja fala espontânea não tem maldade nem preconceito utilizam da comicidade como instrumento de defesa contra a “assepsia da linguagem” promovida por esse nosso admirável mundo novo.

Militância política e apadrinhamento na área de Letras das universidades públicas

Uma das grandes controvérsias que agitam o meio acadêmico na área de Letras é provocada pelo mau uso, decorrente do mau entendimento, da chamada teoria da variação linguística. Essa teoria, em sua essência, apenas revela o óbvio: que a língua varia de uma época para outra (é a chamada evolução linguística), de uma região para outra (dando origem aos regionalismos e, em certos casos, aos dialetos), de uma classe ou grupo social para outro e, finalmente, de uma situação de comunicação (como uma palestra ou um bate-papo entre amigos) para outra. Mais recentemente, acrescentou-se a essa teoria a variação entre língua falada e língua escrita.

Em nenhum momento, os propositores dessa teoria, como o linguista americano William Labov, disseram que determinada variedade linguística deveria ter mais direito à existência do que outra, assim como nunca disseram que qualquer variedade pode ser empregada em qualquer situação indiferentemente. No entanto, muitos maus linguistas, bem como muitos professores de língua mal formados (ou doutrinados em sala de aula), passaram a “politizar” a língua, vendo na defesa de certas variedades linguísticas e no ataque a outras uma bandeira político-ideológica a ser desfraldada.

E por que esses linguistas, invariavelmente encastelados em universidades públicas brasileiras, têm essa postura? Minha hipótese – e trata-se apenas disso, uma hipótese, pois, em conversas que tenho com eles, jamais confessam seus verdadeiros propósitos – é a de que, como militantes ou simpatizantes de certos partidos políticos de extrema esquerda, adotam a tese gramsciana de que é preciso fomentar a revolução aos poucos, de dentro para fora, “comendo pelas beiradas”, como se diz.

Mas por que esses profissionais e servidores públicos são, em sua grande maioria, de esquerda? Um observador ingênuo (ou nem tanto) diria que, por serem pessoas estudiosas e, portanto, esclarecidas, só poderiam situar-se no flanco esquerdo do espectro político. No entanto, conhecendo melhor os critérios utilizados pelas bancas examinadoras de concursos para preenchimento de vagas docentes em instituições públicas, percebe-se que a escolha feita por essas bancas não é neutra ou isenta nem prima exclusivamente pelo exame do mérito dos candidatos.

Quem já participou de algum desses concursos pode ter presenciado situações como as que eu presenciei ou das quais tive notícia e que passo agora a relatar.

Imagine um concurso para professor doutor em que há quatro candidatos, três dos quais doutorados pela maior universidade brasileira e um pela Sorbonne, sendo que um dos doutorados no Brasil já era professor de uma respeitada universidade pública, e, no entanto, todos os quatro foram reprovados porque aquela que seria a quinta candidata e que havia sido orientanda do presidente da banca no mestrado não pôde participar do concurso porque seu doutorado, feito no exterior, não havia sido convalidado no Brasil a tempo do concurso. Pois dois meses depois, foi aberto novo concurso para aquela mesma vaga, só que desta vez para professor mestre. E, para surpresa de todos (disclaimer: nesta expressão, uso ironia), a moça cujo doutorado não fora reconhecido no Brasil foi a vencedora!

Imagine agora um concurso que ainda nem havia sido oficialmente aberto, mas cujo vencedor já estava previamente escolhido. Um professor de determinado departamento de determinada faculdade de determinada universidade pública pretendia candidatar-se à vaga em outro departamento da mesma faculdade que havia sido aberta com a aposentadoria de determinado professor. O fato é que ele foi aconselhado a não concorrer, uma vez que, na própria reunião departamental que discutiu a abertura do concurso, veiculou-se a informação de que aquela vaga estava prometida a certa professora de uma certa PUC (não digo qual) que desejava encerrar sua carreira numa universidade pública. Realizado o concurso, adivinhem quem venceu? Quem disser que foi a professora vinda da PUC ganha um doce!

Para finalizar, pois os exemplos abundam, mas não quero abusar da paciência do leitor, tem aquele caso do concurso em que certo membro da banca atribuiu nota zero (ZERO!) a todos os candidatos exceto àquele que ele queria “emplacar”. Só que a presidente da banca fez o mesmo com todos os candidatos menos aquela que ela queria ver escolhida. Conclusão: todos os candidatos foram eliminados, a não ser os dois que não receberam zero. (E aqui vai uma consideração: por menos apto à vaga que seja um candidato, jamais alguém detentor de um doutorado é merecedor de uma nota zero.)

Comentou-se à boca pequena que o embate entre os dois membros da banca, ocorrido a portas fechadas como manda o regulamento dos concursos, foi tão vigoroso que pôde ser ouvido do lado de fora. Ao final, venceu o concurso a candidata preferida da presidente da banca. Detalhe: a moça já havia sido coautora da professora em diversos trabalhos publicados, e ambas, ainda por cima, eram colegas de sinagoga.

Esses poucos exemplos mostram que, não raro, os vencedores de concursos docentes em universidades públicas, especialmente na área de Letras, são escolhidos por critérios de afinidade pessoal, profissional e também, como não poderia deixar de ser, político-partidária.

Índio ou indígena?

O presidente Jair Bolsonaro recentemente vetou uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que propunha alterar o nome do Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas. Essa atitude reacendeu uma polêmica que já dura algum tempo e que põe em xeque a palavra índio como designativa dos povos de origem asiática que já habitavam as Américas antes da chegada dos europeus, bem como de seus atuais descendentes. Nesse embalo, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz chegou a postar um vídeo no YouTube de reprimenda ao presidente com o título É indígena, sr. Presidente!.

Como todos devem saber, a palavra índio tem a ver com a Índia, e a primeira das acepções desse vocábulo nos dicionários é justamente “o mesmo que indiano” (em espanhol, até hoje, os indianos, habitantes da Índia, são chamados de indios, e em inglês Indian significa indistintamente “indiano” e “índio”). É que, segundo consta, ao chegar ao continente americano, Cristóvão Colombo acreditava ter chegado às Índias. E naquele tempo, Índias era a designação que os europeus davam não só à Índia propriamente dita, mas a todo o sudeste asiático, daí o termo no plural.

Desse modo, Colombo chamou os aborígines americanos de índios, e esse nome ficou consagrado por séculos. Como esses aborígines tinham características físicas peculiares (pele moreno-avermelhada, cabelos pretos e lisos, olhos negros ligeiramente amendoados, nariz discretamente achatado), os antropólogos do século XIX decidiram chamar de índia essa suposta raça humana por oposição aos brancos, negros e amarelos (na verdade, os orientais, que de amarelo não têm nada). Uma classificação antropológica mais moderna denomina os brancos de europoides ou caucasianos, os negros de negroides e os amarelos de mongoloides (não confundir com os portadores da síndrome de Down). Quanto aos índios, são atualmente classificados entre os mongoloides, isto é, são um subgrupo dos humanos que habitam o Extremo Oriente e que um dia, há cerca de 30 mil anos, cruzaram o estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, num tempo em que a calota polar o permitia, e povoaram a América.

Hoje em dia se questiona muito o conceito de raça, visto que, do ponto de vista genético e graças à análise do DNA, se sabe que os humanos têm entre si muito mais semelhanças do que diferenças. Mesmo assim, ainda costumamos dividir a humanidade em raças com base nas características físicas de cada povo. Isso é tão verdade que hoje, mais do que nunca, os negros procuram afirmar-se como tal em sua luta contra o racismo e pela preservação de seus valores culturais.

Quanto a indígena, esse termo que normalmente usamos para nos referir aos ameríndios (e olhe a palavra índio aí de novo, disfarçada!) nada tem a ver etimologicamente com os índios. A palavra vem do latim, portanto já existia bem antes de os europeus terem chegado à América, e significa simplesmente “natural da terra, nativo”, do latim indu-, “dentro”, e geno, “nascer”. Ou seja, indígena é quem nasceu dentro (do país). A semelhança fonética fortuita entre índio e indígena foi um prato cheio para estabelecer-se a confusão e passar-se a achar que só os habitantes originários do Novo Continente são indígenas.

Mas a polêmica, alimentada pelo famigerado movimento politicamente correto, está na crença, trajada de fake news, de que o termo índio é pejorativo e de que põe no mesmo balaio povos de etnias muito diferentes. Em primeiro lugar, ninguém ignora hoje em dia que um txucarramãe é etnicamente muito distinto de um ianomâmi; no entanto, chamá-los todos de índios não é muito diferente de chamar povos tão distintos quanto portugueses e húngaros de europeus. Em segundo lugar, qual a evidência científica de que o termo índio tem conotação pejorativa? Há alguma estatística de uso da palavra que comprove que, na maioria das vezes, é empregada em tom depreciativo? Como homem de ciência, me apego aos fatos e não a opiniões ou crenças, e fatos são comprováveis por dados observáveis. Sem eles, o que há é mera especulação, por vezes a serviço de certas agendas ideológicas. O “cancelamento” de palavras legitimamente vernáculas e sem nenhum cunho preconceituoso como gordo, cego, surdo, vesgo, paralítico, careca, etc., e sua substituição por paráfrases longas e pouco práticas de ser pronunciadas como pessoa portadora de deficiência ou pessoa não vidente (até a expressão deficiente visual vem sendo evitada ultimamente) procura criar uma espécie de novilíngua à moda daquela descrita por George Orwell em seu romance distópico 1984, na qual determinadas palavras ou acepções são banidas com o objetivo de restringir a amplitude do pensamento. Assim, se algo não pode ser dito, não pode ser pensado, logo não existe. O que o politicamente correto faz é justamente isso: em vez de procurar mudar a realidade para melhor, ele a mascara, dando nomes bonitos a coisas feias para que elas pareçam mais bonitas – ou menos feias.

A vítima mais recente da orwellização da língua portuguesa é a palavra escravo, sistematicamente substituída por escravizado – como se pessoas escravizadas não fossem escravas. Por essa lógica, não podemos mais nos referir à Abolição da Escravatura, mas devemos em vez disso aludir à Abolição da Escravização.

O pior de tudo é que essa proscrição de palavras feita pela linguagem politicamente correta não tem embasamento nas ciências da linguagem e é feita por pessoas, em geral militantes ideológicos de cultura rasa, sem nenhum cabedal de conhecimento etimológico ou de história da língua. Recentemente, uma deputada federal propôs banir o vocábulo travestido por afirmar erroneamente que seria uma alusão depreciativa aos travestis.

O fato é que muitos jornalistas, intelectuais e ativistas políticos têm evitado até referir-se aos nativos brasileiros como indígenas e empregado em seu lugar a expressão povos originários. Ou seja, já fizeram o revisionismo do próprio revisionismo linguístico.