O instante do momento

Por trás de toda palavra, frase ou texto há sempre um significado oculto – ou muitos. Não raro, o que queremos dizer é muito diferente, quando não exatamente o oposto, do que nossa fala diz. A riqueza maior da linguagem reside em sua capacidade de “dizer” muito mais do que é efetivamente dito. Além do discurso literal, denotativo – que Roland Barthes chamou de “grau zero” da linguagem –, temos as quase infinitas possibilidades da conotação, com suas figuras retóricas (daí falarmos em linguagem figurada).

Além disso, a escolha, nem sempre consciente, que nossos antepassados fizeram para nomear certos conceitos ou dar conta de certas situações revela muito do que eles pensavam, de como viam o mundo. E, na medida em que utilizamos essas mesmas palavras, reproduzimos essa mesma visão de mundo, ou, como se costuma dizer tecnicamente, essa mesma ideologia.

Muitas vezes, usamos certas palavras ou expressões para ser enfáticos e abusamos de metáforas, hipérboles, sinédoques, catacreses e outros recursos estilísticos. Mas quando fazemos o caminho de volta, isto é, realizamos uma leitura literal do que foi dito, acabamos nos surpreendendo.

Quando, por exemplo, queremos aludir à desmesurada concentração populacional de uma megalópole como São Paulo, dizemos que essa cidade é um verdadeiro formigueiro humano. Ora, precisamente nessa frase o formigueiro não é “verdadeiro”, mas apenas uma metáfora. Não é curioso que se enfatize (até mesmo acentuando a entonação) o mais denotativo de todos vocábulos num contexto em que ele é totalmente conotativo?

E quando aquele conhecido a quem você deve inúmeros favores pergunta se você não poderia lhe emprestar algum dinheiro? É possível que você responda, por exemplo, “lógico!” ou “naturalmente!”. Mas o que há de lógico ou natural em fazer algo que não queremos? Na verdade, nada.

Prestar favores não é um instinto natural, é uma norma cultural. A lógica que há nisso – se é que há alguma – é que a manutenção dos liames sociais se baseia em grande parte na reciprocidade. Como nosso instinto animal é muito mais competitivo do que solidário, o altruísmo é uma mutação de nossa natureza. Diante de um pedido que não gostaríamos de atender, o lógico e natural é responder “não”.

Mas a língua tem muitos outros aspectos aparentemente contraditórios. Por exemplo, se perguntamos por alguém e recebemos como resposta que ele, “com certeza”, saiu, é porque quem nos responde não tem realmente certeza do paradeiro da pessoa indagada.

E as palavras que denominam as menores frações de tempo? “Momento” vem do latim momentum, “movimento”, e refere-se ao balanço do pêndulo dos relógios. Tanto que a física chama esse movimento pendular de “momento angular”. Cada ida ou vinda do pêndulo é um “momento”.

Ou seja, um “momento” não era, na sua origem, o mesmo que um tempo infinitesimal, mas uma duração suficiente para que algo se movesse de forma perceptível aos olhos. Já “instante” (do latim instans) significa “insistente, que perdura”. Não é paradoxal que o instante seja justamente o intervalo de tempo mais fugaz que existe?

Aquela história de que em português “pois sim” significa “não” e “pois não” significa “sim” já virou até piada. Mas quando comparamos o modo como dizemos as coisas em português com a maneira como as outras línguas expressam os mesmos conceitos, descobrimos fatos interessantes.

Em inglês, por exemplo, “ganhar dinheiro” se diz make money, literalmente “fazer dinheiro”, o que dá a ideia de produção, trabalho, geração de riqueza. Já a nossa expressão “ganhar dinheiro” remete à ideia de presente, prêmio, lucro fácil, pois ganhar é sempre de graça, sem dar nada em troca. Será por isso que os países de língua inglesa são mais ricos e desenvolvidos que os de língua portuguesa?

Uma última: “canhão” em francês é canon. E na França canon significa também “mulher bonita, mulherão” (daquelas de parar o trânsito). Já no Brasil, como se sabe, “canhão” é mulher feia. Pela escolha do termo, parece que ambas matam: uma, de prazer; a outra, de desespero.

Ah, que saudade do “a”!

Já faz um bom tempo que o português brasileiro aposentou a preposição a. Atualmente, a maioria dos verbos que antes regiam essa graciosa preposição preferem a companhia do para. Hoje em dia, não se dá nada a alguém, mas para alguém; não se diz algo a uma pessoa, mas se fala alguma coisa para ela. Verbos de transmissão (em latim, verba dativa), aqueles em que há implícita a ideia de fazer alguém ter algo que não tem, como dar, entregar, contribuir, enviar, e verbos de comunicação (lat. verba dicendi), como dizer, contar, explicar, informar, etc., que sempre pediram como complemento a preposição a – e que ainda o fazem em outros idiomas, como o espanhol, o francês e o italiano – resolveram trair essa companheira de tantos séculos na adúltera relação com para ou, pior, com sua irmã plebeia pra (mais raramente, com em e com, como no caso de chegar em, contribuir com, e por aí vai).

A razão desse adultério deve ser a possível confusão entre a preposição a e o artigo feminino a. Aliás, esses dois homônimos são a causa maior da dificuldade que nove entre dez falantes – ou melhor, escreventes – do português têm de usar a crase. A esse imbróglio se une o pronome pessoal oblíquo a. Assim, uma frase como “Aconselhei-a a ir de carro à padaria” vira algo como “Aconselhei ela pra ir de carro na padaria”. Dada a ambiguidade dos três a’s, a preposição virou pra ou em, o pronome oblíquo virou ela, e só o artigo ainda não foi substituído.

A preposição a atualmente resiste apenas em locuções petrificadas como a respeito de, a propósito, com vistas a, a meu ver, a qualquer preço, a todo custo… Nos demais casos, a teve de ceder o lugar que antes era exclusivamente seu: hoje se vai pra escola ou na escola, jamais à escola. Até o famoso Parabéns a você já virou Parabéns pra você.

A rejeição ao a se deve em grande parte aos hiatos desagradáveis que provoca. Por exemplo, “Ataliba adora-a a toda prova”. Essa sequência cacofônica de a’s não se resolve mudando o pronome de lugar: “Ataliba a adora a toda prova”.

Os portugueses em geral apreciam o a muito mais do que os brasileiros. Lá na terrinha, fala-se ao telefone, senta-se à mesa, fica-se ao sol, paga-se a dinheiro, entrega-se a domicílio. Até o famoso a nível de, tão repudiado pelos gramáticos brasileiros, tem seu lugar ao sol (ou no sol?) em Portugal. Além disso, os tempos cursivos, também chamados de progressivos, que aqui no Brasil se formam com o gerúndio (estou fazendo, estou dizendo) são construídos com a preposição a em terras lusitanas: estou a fazer, estou a dizer.

Outro dia, me deparei com esta bela frase em espanhol: todo lo que te sucede en la vida no es a ti, es para ti. Percebam a distinção que o castelhano faz das preposições a e para – assim como o inglês tampouco confunde to com for. Em português brasileiro, uma tradução não ambígua desse dito seria “tudo o que acontece na sua vida não é com você, é para você”. O verbo acontecer regia classicamente a preposição a (algo acontece a alguém), hoje rege preferencialmente com, preposição de companhia ou instrumento e não de alvo da ação. É o mesmo caso de contribuir com em lugar de contribuir a.

E a confusão de a com então? Isso aconteceu dois minutos, mas aquilo vai acontecer daqui a duas horas. Aí o povo vai e escreve: “a dois dias atrás…”, com duplo erro: preposição a em vez do verbo e redundância entre (no caso, a) e atrás.

E o que dizer de construções arcaicas como chegar a casa e preferir banana a laranja? Hoje se chega em casa e se prefere mais banana do que laranja. Aliás, há quem prefira muito mais uma coisa do que outra! Só faltou falar da interjeição ah: “ah, a amiga Aurora, há tempos que não a vejo!”.

Resumindo, o português brasileiro substituiu a preposição a por para (e consequentemente trocou à por para a, que no linguajar corrente virou pra a e depois simplesmente pra), substituiu por tem (exceto em expressões de tempo como “há dois dias” que se transforma automaticamente em “faz (ou, pior ainda, fazem) dois dias” e só manteve o a artigo (que não tem como substituir, né?) e a interjeição ah, que não se confunde com os outros a’s porque é sempre longa: “aaahh, que saudade do a!”.

Campanha da Rede Globo contra o racismo peca por ignorância

Por ocasião dos 132 anos da abolição da escravatura no Brasil, a Rede Globo acaba de lançar uma campanha contra expressões verbais consideradas racistas por conterem as palavras “negro” ou “preto” (ou suas flexões de gênero e número). O comercial consiste em omitir a palavra em questão em expressões consagradas na língua portuguesa – e que têm equivalentes em outras línguas –, substituindo-a por uma lacuna (o famoso underline, para quem é da geração digital). Temos então: a coisa está _____, não sou tuas _____, serviço de _____, ovelha _____, mercado _____, lista _____, e por aí vai. O problema é que boa parte dessas expressões não tem nenhuma relação com a raça negra, portanto não tem nada de racista.

Se, de fato, serviço de preto significa “serviço malfeito” porque feito por negros (na época da origem da expressão, escravos), e não sou tuas negas se refere às negras com quem o senhor de escravos se deitava, as demais expressões remetem ao negro como cor e não como raça.

Desde tempos imemoriais, o homem teme a escuridão – e na época das cavernas muito mais do que hoje –, afinal à noite o risco de ser atacado por predadores ou inimigos era muito maior. Da mesma forma, uma caverna escura poderia conter ameaças, desde um buraco até uma fera. Não por outra razão, o negro foi escolhido como a cor do luto, já que a escuridão evoca a tristeza e o medo do desconhecido. Evoca sobretudo o maior de nossos medos: a morte. Daí deriva também o uso da cor negra como símbolo de tudo que é negativo, nefasto e fora do padrão, assim como o branco sempre foi associado à pureza e à virtude. Se todas as ovelhas são brancas, o indivíduo que destoa de seu grupo só poderia ser uma ovelha negra – ovelhas azuis ou amarelas não surtiriam o mesmo efeito de contraste. A lista negra é a que contém os nomes dos indesejáveis, dos que não merecem confiança porque são impuros no caráter. O mercado negro é o comércio ilegal, clandestino, que opera às escuras, sem ser visto pela lei. “A coisa está preta” é mera alusão às nuvens negras anunciando tempestade, e assim por diante.

A maior parte dessas expressões nasceu na Antiguidade ou na Europa medieval, num tempo portanto muito anterior à escravidão negra na América e ao preconceito racial dela decorrente, num tempo em que os europeus praticamente não tinham nenhum contato com os africanos.

O que se passa é que a ideologia do politicamente correto promove uma caça às bruxas, tentando encontrar culpados a todo custo e criminalizando palavras e expressões que, em sua origem, não tinham nada de preconceituoso. Querendo combater o fascismo da sociedade, é o politicamente correto que se torna fascista, censurando qualquer um que não se comporte ou fale segundo sua cartilha. A seguir essa lógica, logo estaremos proibidos de escrever com caneta preta, e as mulheres não poderão mais usar vestido pretinho básico.

A intenção da Globo foi boa, mas de boas intenções o inferno está cheio. Nota zero para essa campanha, que demonstra ignorância da origem das expressões que condena!

*-*-*

Acho que já contei essa história aqui, mas, em todo caso, vale repeti-la. Certa vez, eu estava dando aula enquanto um temporal medonho se avizinhava lá fora, com enormes nuvens negras, raios e trovões dignos de filme de terror. Olhei pela janela e disse aos alunos: “Pessoal, a coisa lá fora tá preta”. Nisso, uma aluna negra me interpelou dizendo que eu não deveria usar essa expressão, que eu deveria demonstrar mais respeito pelo holocausto africano, etc. etc. (Sim, meus amigos, em seu longo sermão ela usou o termo “holocausto” em relação à escravidão). Um tanto perplexo, eu não perdi a pose e voltei à janela, olhei para fora novamente e remendei: “Pessoal, me desculpem, eu quis dizer que a coisa lá fora está afrodescendente”.

Língua oral ou língua escrita: qual é melhor?

Imagine que a língua portuguesa é um idioma desconhecido e que você é um linguista tentando descrevê-la, isto é, decifrar sua gramática e assim revelar sua estrutura. Imagine também que você tem duas amostras da língua para usar em sua análise: um discurso oral e um texto escrito. Observe primeiramente o discurso oral abaixo.

Amostra 1 (língua oral): Bom, a Maria ela foi na… é… eu acho que ela fo-foi na farmácia, qué dizê, na drogaria, né? Ela falô pra mim que, tipo assim, ela ia comprá uns remédio, num sei que remédio é. Agora, ãh… se ela… se ela foi mesmo só na farmácia… na na… drogaria, né?, então eu acho que ela num vai demorá pra voltá, tá ligado?

Analise agora a segunda amostra, desta vez de um texto escrito.

Amostra 2 (língua escrita): Ao que parece, Maria foi à drogaria comprar alguns remédios que eu não sei quais sejam, mas, se de fato ela tiver ido somente lá, provavelmente não demorará a voltar.

Então, se o seu objetivo como linguista é descrever a estrutura gramatical dessa língua, reconhecendo a ordem dos elementos na frase, as flexões, as concordâncias e regências, o encadeamento das palavras no sintagma, dos sintagmas nas orações e das orações nos períodos, qual das duas amostras acima lhe seria mais útil?

A linguística do século XX, a partir de Saussure, postulou que seu objeto de estudo é a linguagem verbal em sua modalidade oral, até porque a maioria das línguas do mundo não tem expressão escrita – são as chamadas línguas ágrafas. Portanto, quando etnolinguistas se deparam com uma língua recém-descoberta desse tipo, eles têm de analisar amostras cheias de anacolutos, topicalizações, interrupções, gaguejos, marcadores conversacionais (os famosos “ééé…”, “ããh…”, “entendeu?”, “sabe?”, “né?”), etc. Mesmo assim, eles buscam construir um modelo teórico de “língua ideal”, ou seja, aquela que seria falada se o falante não fosse um ser humano dotado de emoções e sim uma máquina de produzir enunciados a partir das regras gramaticais de base do idioma. Nas línguas de cultura, a escrita culta é essa língua ideal, também chamada pelos gramáticos de língua exemplar.

Quando aprendemos um idioma estrangeiro numa escola, normalmente aprendemos a gramática “ideal” (isto é, normativa) do idioma paralelamente a diálogos bastante artificiais desprovidos de qualquer cacoete. Algo do tipo: “Onde está o livro? O livro está sobre a mesa.”. É o famoso método The Book Is on the Table.

Já quando aprendemos o idioma na prática (por exemplo, quando passamos uma longa temporada num país estrangeiro para o qual fomos sem saber falar uma palavra sequer da sua língua nativa), é a língua oral que vamos aprender. Mesmo assim, nosso cérebro consegue filtrar todos os cacoetes da oralidade (quebras de continuidade, gaguejos, hesitações, gírias) e montar intuitivamente a gramática da língua. É por isso que, mesmo quando aprendemos na prática (ou “na raça”, como se diz), nos tornamos capazes de criar novos enunciados, que nunca proferimos nem ouvimos antes: é que nossa gramática interna, deduzida intuitivamente, nos guia mesmo sem termos consciência dela.

Atualmente, nosso objeto de estudo não é mais tão estreito quanto o da linguística estruturalista do século passado, pois sabemos que, mesmo que noventa por cento do uso que se faz da língua seja na modalidade oral informal, a mente trabalha com uma gramática interna de regras bem definidas (o que Chomsky chama de competência linguística), não necessariamente as regras da gramática normativa, que só quem frequenta a escola aprende (se é que aprende, né?), mas ainda assim regras rígidas, quase computacionais.

O que a linguística atual faz é estudar e compreender todas as marcas da oralidade – que, por incrível que possa parecer, também têm suas regras – e incorporá-las à gramática interna da língua.

Nesse sentido, o estudo da norma culta é tão importante quanto a análise dos discursos orais de todos os falantes de todos os grupos sociais. E o estudo da língua escrita formal é tão relevante para a pesquisa e o avanço do conhecimento científico na área quanto o estudo da língua oral coloquial das classes menos escolarizadas.