Imagine que a língua portuguesa é um idioma desconhecido e que você é um linguista tentando descrevê-la, isto é, decifrar sua gramática e assim revelar sua estrutura. Imagine também que você tem duas amostras da língua para usar em sua análise: um discurso oral e um texto escrito. Observe primeiramente o discurso oral abaixo.
Amostra 1 (língua oral): Bom, a Maria ela foi na… é… eu acho que ela fo-foi na farmácia, qué dizê, na drogaria, né? Ela falô pra mim que, tipo assim, ela ia comprá uns remédio, num sei que remédio é. Agora, ãh… se ela… se ela foi mesmo só na farmácia… na na… drogaria, né?, então eu acho que ela num vai demorá pra voltá, tá ligado?
Analise agora a segunda amostra, desta vez de um texto escrito.
Amostra 2 (língua escrita): Ao que parece, Maria foi à drogaria comprar alguns remédios que eu não sei quais sejam, mas, se de fato ela tiver ido somente lá, provavelmente não demorará a voltar.
Então, se o seu objetivo como linguista é descrever a estrutura gramatical dessa língua, reconhecendo a ordem dos elementos na frase, as flexões, as concordâncias e regências, o encadeamento das palavras no sintagma, dos sintagmas nas orações e das orações nos períodos, qual das duas amostras acima lhe seria mais útil?
A linguística do século XX, a partir de Saussure, postulou que seu objeto de estudo é a linguagem verbal em sua modalidade oral, até porque a maioria das línguas do mundo não tem expressão escrita – são as chamadas línguas ágrafas. Portanto, quando etnolinguistas se deparam com uma língua recém-descoberta desse tipo, eles têm de analisar amostras cheias de anacolutos, topicalizações, interrupções, gaguejos, marcadores conversacionais (os famosos “ééé…”, “ããh…”, “entendeu?”, “sabe?”, “né?”), etc. Mesmo assim, eles buscam construir um modelo teórico de “língua ideal”, ou seja, aquela que seria falada se o falante não fosse um ser humano dotado de emoções e sim uma máquina de produzir enunciados a partir das regras gramaticais de base do idioma. Nas línguas de cultura, a escrita culta é essa língua ideal, também chamada pelos gramáticos de língua exemplar.
Quando aprendemos um idioma estrangeiro numa escola, normalmente aprendemos a gramática “ideal” (isto é, normativa) do idioma paralelamente a diálogos bastante artificiais desprovidos de qualquer cacoete. Algo do tipo: “Onde está o livro? O livro está sobre a mesa.”. É o famoso método The Book Is on the Table.
Já quando aprendemos o idioma na prática (por exemplo, quando passamos uma longa temporada num país estrangeiro para o qual fomos sem saber falar uma palavra sequer da sua língua nativa), é a língua oral que vamos aprender. Mesmo assim, nosso cérebro consegue filtrar todos os cacoetes da oralidade (quebras de continuidade, gaguejos, hesitações, gírias) e montar intuitivamente a gramática da língua. É por isso que, mesmo quando aprendemos na prática (ou “na raça”, como se diz), nos tornamos capazes de criar novos enunciados, que nunca proferimos nem ouvimos antes: é que nossa gramática interna, deduzida intuitivamente, nos guia mesmo sem termos consciência dela.
Atualmente, nosso objeto de estudo não é mais tão estreito quanto o da linguística estruturalista do século passado, pois sabemos que, mesmo que noventa por cento do uso que se faz da língua seja na modalidade oral informal, a mente trabalha com uma gramática interna de regras bem definidas (o que Chomsky chama de competência linguística), não necessariamente as regras da gramática normativa, que só quem frequenta a escola aprende (se é que aprende, né?), mas ainda assim regras rígidas, quase computacionais.
O que a linguística atual faz é estudar e compreender todas as marcas da oralidade – que, por incrível que possa parecer, também têm suas regras – e incorporá-las à gramática interna da língua.
Nesse sentido, o estudo da norma culta é tão importante quanto a análise dos discursos orais de todos os falantes de todos os grupos sociais. E o estudo da língua escrita formal é tão relevante para a pesquisa e o avanço do conhecimento científico na área quanto o estudo da língua oral coloquial das classes menos escolarizadas.
Ótimo texto! Coloca as coisas no lugar, ao procurar restabelecer a importância do ensino da gramática na escola. Há quem minimize essa tarefa e queira
que nossos alunos se comportem mais como pesquisadores (uma espécie de cientistas da linguagem), do que como usuários que devem conhecer a norma culta para melhor se comunicar e obter ascensão social.
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Concordo.
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Concordo. Mas sabemos que só o domínio da norma culta da língua não garante a ninguém ascensão social, seja como for que se defina isto; vice-versa, a falta de domínio da norma também não impede ascensão social.
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De fato, Júlio, no passado as elites econômica, política e cultural coincidiam. Hoje, um analfabeto pode abrir uma franquia do McDonald’s e ficar milionário. Ao mesmo tempo, os professores de português, que teoricamente dominam a norma culta, vivem na penúria. A meu ver, hoje em dia, as melhores maneiras de obter ascensão social são: 1) cantar funk; 2) abrir uma igreja evangélica; 3) formar uma dupla sertaneja; 4) entrar para a política. Não necessariamente nessa ordem.
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[…] línguas ágrafas). Em outros dois artigos (A importância da escrita na pesquisa linguística e Língua oral ou língua escrita: qual é melhor?), no entanto, já expliquei que a modalidade escrita da língua é objeto legítimo da linguística […]
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