O que o saco tem a ver com isso

Em português temos várias expressões com a palavra “saco”, dentre as quais “encher o saco”, “puxar o saco” e “Que saco!”. Essas expressões costumam ser consideradas impróprias em certos contextos por serem tidas como de baixo calão. É que muitos pensam que o “saco” em questão é o chamado saco escrotal, parte do corpo masculino que abriga os testículos. No entanto, a origem dessas expressões é bem mais inocente do que se pensa.

“Encher o saco de alguém” é simplesmente encher sua paciência, saturar sua capacidade de tolerar abusos ou chatices. Há muito tempo se representa a paciência ou tolerância como um saco de tecido onde as coisas que os outros nos dizem ou fazem são depositadas. Trata-se de uma metáfora cognitiva, isto é, uma representação mental concreta de algo abstrato. Na verdade, quase todos os nossos conceitos abstratos são ou foram inicialmente representados a partir de situações concretas. É assim que falamos na fonte de informação, no desenlace de um conflito, na iluminação do saber, e assim por diante. No caso da paciência, quando o nosso “saco” mental está cheio, a introdução de mais um item (mais uma chatice, por exemplo) leva o saco a transbordar: é quando perdemos a paciência e explodimos com quem nos aborrece. (Note que o verbo “perder” sugere que a paciência é um objeto que possuímos.)

E o “puxa-saco”, será alguém que se pendura nos testículos alheios? Na verdade, a expressão “puxar o saco” surgiu na caserna: quando um novo oficial das Forças Armadas chegava a um batalhão para ali se instalar, costumava trazer seus pertences numa pesada mochila de lona chamada no meio militar de saco. Logo, um soldado raso qualquer era designado para transportar a pesada bagagem do oficial até seu alojamento. Justamente por ser pesado, o saco não era carregado às costas e sim puxado pela alça ou corda que lhe servia de nó. Assim, o soldado incumbido dessa tarefa inglória era chamado pelos demais de “puxa-saco”. Como carregar a bagagem alheia parece um ato de subserviência, militares que bajulavam seus superiores hierárquicos em busca de favores passaram a ser designados como “puxa-sacos”. A expressão logo transbordou do jargão militar para o corporativo e o doméstico. Pessoas subservientes, especialmente com o objetivo de granjear alguma vantagem pessoal, passaram a ser chamadas de puxa-sacos, e puxar o saco tornou-se sinônimo de bajular, lisonjear, adular com algum interesse oculto.

Ou seja, os testículos do chefe nada têm a ver com puxa-saquismo.

Poderíamos acabar com o hífen?

Outro dia, através do Facebook, meu amigo Sérgio Labruna dirigiu a vários linguistas, dentre os quais eu, a seguinte questão: poderíamos acabar com o hífen? Aqui vai a minha resposta.

Em primeiro lugar, todos já percebemos que o hífen é o calcanhar de aquiles (por que não de Aquiles?) da mais recente reforma ortográfica do português, afinal nem as pessoas mais letradas têm total segurança sobre o seu uso. A regra do hífen é tão complexa e contraditória que determina que “anti-inflamatório” tenha hífen mas “antiaéreo” não. Da mesma forma, “para-raios” tem hífen mas “paraquedas” e “parapeito” não. Idem para “mandachuva” e “guarda-chuva”, “quilograma” e “quilo-hertz”, e por aí vai. Pior ainda foi a perda do hífen em palavras compostas como “pé de moleque”, “pé de meia” e… “calcanhar de aquiles”.

Mas para que serve o hífen, afinal? O famoso tracinho tem três funções em português. Primeiro, serve para separar as sílabas das palavras, especialmente em quebra de linha. Com os processadores eletrônicos de texto, que distribuem automaticamente as palavras na linha, esse uso está cada vez mais restrito.

Em segundo lugar, o hífen serve para ligar ao verbo os pronomes pessoais mesoclíticos e enclíticos (isto é, que vêm no meio ou depois do verbo). Por fim, o hífen entra na grafia de muitas palavras compostas. E é aqui que mora o xis da questão. O português forma palavras compostas por aglutinação (fidalgo, boquirroto, pernilongo), justaposição (pontapé, girassol), hifenização (guarda-chuva, mesa-redonda) e, a partir da reforma ortográfica de 2009, também por espaços em branco (pé de moleque, bico de papagaio). Este último caso é o mais problemático, pois impede a distinção entre uma palavra composta e duas ou três palavras simples.

Portanto, para criar uma regra racional sobre o uso do hífen, a primeira coisa que temos de fazer é saber com clareza quando uma palavra é composta ou não. Publiquei há vários anos um artigo acadêmico chamado “Os problemas da classificação tradicional das unidades léxicas e uma proposta de solução: o critério sêmio-táxico” (disponível em https://bit.ly/2H8REoh), em que discuto exatamente como determinar quando uma palavra é composta ou não. A ideia básica do artigo é a seguinte: por que “mesa-redonda” no sentido de reunião deve ter hífen, mas “mesa redonda” com respeito ao móvel circular não? Dito de outro modo, como saber se a sequência  mesa + redonda é uma palavra composta ou duas palavras simples?

Pois o critério semiotáxico (que à época da publicação do artigo se grafava “sêmio-táxico”) diz basicamente o seguinte: se o significado da sequência é a soma dos significados das palavras que a compõem, então trata-se de palavras simples que ocorrem juntas ocasionalmente (caso de “mesa redonda” ou “sapato preto”) ou frequentemente (caso de “aquecimento global” e “homicídio culposo”); já, se o significado da sequência não é a soma dos significados de seus componentes, então temos uma palavra composta.

Tomando o exemplo de mesa + redonda, temos duas situações:

a) “Minha sala de jantar tem uma mesa redonda e seis cadeiras.” Neste caso, o significado de “mesa redonda” como “móvel circular” é exatamente a soma dos significados de “mesa” (móvel) e “redonda” (circular). Ou seja, a sequência “mesa redonda” é o encontro casual na frase de duas palavras simples, o substantivo “mesa” e o adjetivo “redondo”, com a respectiva concordância de gênero e número.

b) “Os líderes das grandes potências realizaram uma mesa-redonda para discutir a crise na Síria.” Neste caso, o significado de “mesa-redonda” como “reunião” nada tem a ver com “mesa” nem com “redonda” (a não ser metonimicamente). Aqui “mesa-redonda” é palavra composta, o que justifica o uso do hífen.

Por esse critério, que dispensa a decoreba da lista de palavras compostas, fica fácil perceber que “pé de meia” referindo-se à vestimenta que usamos nos pés são três palavras simples, mas referindo-se a dinheiro poupado é uma palavra composta que, portanto, deveria ter mantido os hifens após a reforma (isto é, “pé-de-meia”). Pelo mesmo critério, “conta-corrente” e “cartão-postal” não deveriam ter hífen.

Uma vez que dispomos de uma regra objetiva sobre quando há ou não composição, resta agora decidir quando os elementos da composição devem vir justapostos ou ligados por hífen.

E é agora que começo a entrar propriamente na questão formulada por meu amigo Sérgio. Em princípio, todas as palavras compostas deveriam sê-lo por justaposição, com as devidas adaptações gráficas quando necessário – é o que fazem línguas como o inglês e o alemão. Nesse caso, grafaríamos “guardachuva”, “superomem”, “sacarrolhas”, “guardarroupa”, e assim por diante. O hífen só seria usado quando a justaposição pura e simples alterar a pronúncia da palavra. Assim, “bem-aventurado” e “bem-humorado” manteriam o hífen, pois em “bemaventurado” e “bemumorado”, o m, que é mudo, seria pronunciado. Idem para “mal-humorado”, cujo l pode se ligar ao segundo elemento ou não, soando então como u. Algumas palavras desse tipo causariam problemas, como “pan-americano” e “bem-vindo”, pois, no Brasil, poderiam perfeitamente ser grafadas “panamericano” e “benvindo”, mas em Portugal, onde se diz “pãnamericano” e “bãevindo”, teria de haver uma flexibilização da regra, algo como “tais e tais palavras não se escrevem como se pronunciam”. Isso já ocorre em inúmeras línguas, o que não seria, pois, um problema em português.

Em vez de “anti-inflamatório”, “micro-ondas” e “contra-ataque”, teríamos “antiinflamatório”, “microondas” e “contraataque”. Por sinal, no caso de “antiinflamatório” e “contraataque”, poderíamos ter também “antinflamatório” e “contrataque”, com aglutinação, como já acontece com “microrganismo”.

Casos como o de “guardarroupa” e “catavento” seguiriam a mesma lógica de “passatempo”, “parapeito” e “tiracolo”, sem que precisássemos levar em conta, como fazem os autores da reforma de 2009, se o sentimento de composição se perdeu ou não, o que, aliás, demandaria um grande levantamento estatístico na população falante, coisa que nunca foi feita. Mas “bate-papo” seria um problema, pois a grafia “batepapo” poderia suscitar uma pronúncia artificial do e, algo como “batêpapo”, da mesma forma como ocorre hoje com “futebol”, em que alguns pronunciam o e como ê e outros como i.

Quanto aos prefixos, que a rigor formam palavras derivadas e não compostas, só viriam separados por hífen se a sua pronúncia mudasse caso fossem justapostos ao radical, como no caso de “pré-história”, “pós-pago”, “inter-relação”, etc. Pelo mesmo motivo, manteríamos o hífen em “ab-reação” e “sub-reptício”, e deveríamos usá-lo em “sub-lingual” e “sub-item”, cujas pronúncias, ao menos em português brasileiro, são diferentes de “sublime” e “subalterno”. Afinal, quem pronuncia su-blin-gual e su-bi-tem?

Talvez só o prefixo “ex‑” de “ex-marido” e “ex-presidente” devesse manter o hífen, já que sua pronúncia é tônica, diferentemente do “ex‑” de “expedir” ou “exposto”, que por vezes soa “is”.

Como vimos, na justaposição algumas adaptações gráficas teriam de ser feitas, como a eliminação do h do segundo elemento: “supererói”, “sobreumano”, etc. Mas em “quilohertz”, o h seria mantido porque é aspirado. De quebra, eu proporia a grafia “encima” por analogia com “embaixo”, bem como “derrepente”, já que é assim que a maioria dos falantes pronuncia.

Por fim, eu manteria o hífen que separa o verbo dos pronomes enclíticos e mesoclíticos, pois, caso contrário, “vê-se”, “veem-se”, “fá-lo-ia”, “dar-no-los-ão” e outros que-tais (ou será quetais?) teriam de ser grafados “vesse”, “vêense”, “faloía”, “darnolosão”, e assim por diante. E como grafaríamos “deram-nos”: “déramnos”? E como distinguir “vê-la” de “vela” ou “sê-lo” de “selo”?

O fato é que certas características fonéticas do português, como o fato de a mesma vogal soar de formas diferentes segundo seja tônica ou átona, consoantes como r e l soarem diferentemente diante de consoante ou de vogal ou, ainda, a existência de vogais nasais, complicam bastante a grafia de palavras compostas. Felizes são os alemães, que podem formar sequências quilométricas por justaposição sem jamais precisar do hífen, embora, vez por outra, também o utilizem.

Trânsito em julgado ou trânsito julgado?

Nestes dias em que tanto se discute se o início do cumprimento de uma pena pode ocorrer após esgotados os recursos da segunda instância ou somente após o trânsito em julgado, aproveito para “requentar” a resposta que dei tempos atrás ao meu leitor Douglas, que perguntava: “A locução correta para exprimir a definitividade de uma decisão judicial seria ‘trânsito em julgado’, como ordinariamente escrevem ou dizem os juristas, ou ‘trânsito julgado’, sem a preposição? Se a primeira locução for a correta, seria possível também ‘trânsito em calmo da avenida’, para aquelas situações de tráfego?”.

Então vamos à resposta que dei naquela ocasião: segundo a Wikipédia, “trânsito em julgado é uma expressão usada para uma decisão (sentença ou acórdão) judicial da qual não se pode mais recorrer, seja porque já passou por todos os recursos possíveis, seja porque o prazo para recorrer terminou ou por acordo homologado por sentença entre as partes. Daí em diante a obrigação se torna irrecorrível e certa”.

Já no site DireitoNet (www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/976/Transito-em-julgado), encontramos: “Diz-se que a demanda transitou em julgado quando a sentença tornou-se definitiva, não podendo mais ser modificada, seja por ter transcorrido o prazo para a interposição de eventuais recursos, seja por não caber mais recurso sobre ela”.

O dicionário Michaelis explica que “transitar em julgado” é o mesmo que “passar em julgado”. E para esta última expressão, dá a seguinte definição: “não ser apelada nem agravada por nenhuma das partes (uma decisão final qualquer)”.

Nem a internet nem os dicionários consultados apresentam resultados para a busca por “trânsito julgado”, o que significa que essa expressão não existe. E a razão é compreensível: em “trânsito julgado”, o adjetivo “julgado” é um adjunto adnominal de “trânsito”, portanto “julgado” seria um atributo de “trânsito”, o que equivale a dizer que o trânsito é que foi julgado. Mas não é isso que a expressão jurídica quer dizer. Na realidade, quem transitou (isto é, atravessou todas as instâncias do Judiciário) foi o processo, e ao final desse trânsito foi considerado definitivamente julgado (isto é, não passível de novo julgamento). Portanto, “em julgado” é adjunto adverbial que modifica o verbo “transitar”, algo como “transitar em definitivo”. Note que a locução “em definitivo” é bastante usual em português (por exemplo, “ela se mudou em definitivo para os Estados Unidos”). O mesmo raciocínio vale para a locução “em julgado”.

Se transitar em julgado é transitar em caráter definitivo pela Justiça, a analogia “transitar em calmo da avenida” não é possível. Em primeiro lugar, “julgado” é particípio pretérito com valor de substantivo; já “calmo” é meramente um adjetivo. Em segundo lugar, o trânsito a que se refere a expressão jurídica é a tramitação do processo, enquanto o trânsito da avenida é o fluxo de automóveis. No jargão jurídico, “trânsito” é termo técnico, e “trânsito em julgado” é expressão petrificada. Nada semelhante ocorre em relação ao tráfego de veículos.

O que significa “habeas corpus”?

 

O habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal pela defesa do ex-presidente Lula para evitar sua prisão após a condenação em segunda instância será finalmente julgado hoje, 4 de abril. Mas por que esse instrumento jurídico tem esse nome?

Habeas corpus subjacendum eram as palavras iniciais do mandado por meio do qual a justiça inglesa apresentava um réu à corte. Seu significado literal é “toma o corpo do detido e apresenta-o para julgamento”. “Toma o corpo” em latim é habeas corpus.

Sua instituição remonta à Carta Magna de 1215, a constituição mais antiga do mundo, promulgada pelo rei João sem Terra. Em 1225, a Carta do rei Henrique III estabeleceu: “Nenhum homem livre será detido ou preso, nem despojado de seu livre domínio, de suas liberdades ou livres costumes, nem posto fora da lei, nem exilado, nem molestado, de maneira alguma, e nós não poremos nem mandaremos pôr a mão nele, a não ser em virtude de um julgamento legal, por seus pares, e segundo a lei do país”.

A função dessa medida judicial é proteger a liberdade física do homem (daí a alusão ao corpo). Ela visa a salvaguardar o indivíduo contra atos arbitrários de autoridade nos casos de coação ilegal ou abuso de poder. Sempre que alguém for vítima de violência ou estiver sob risco de ato ilegal que possa privá-lo de sua liberdade corpórea, pode impetrar um habeas corpus. É exatamente o risco de privação ilegal da liberdade do ex-presidente o que a defesa de Lula argumenta para sustentar essa medida junto ao STF. A controvérsia jurídica se dá em torno do que diz a Constituição Federal acerca do momento em que a justiça pode decretar a prisão de um condenado: após o esgotamento dos recursos de segundo grau ou apenas após o trânsito em julgado, quando não há mais possibilidade de recursos.

Que o Supremo julgue o caso com serenidade, justiça e espírito cívico, pois o que está em jogo neste momento é a própria democracia brasileira.