A cítara e a guitarra

Outro dia, um amigo meu que é roqueiro e toca guitarra elétrica me perguntou a origem da palavra guitarra. Como acho que essa pode ser também a curiosidade de outras pessoas, resolvi responder à sua pergunta neste espaço.

A palavra portuguesa guitarra, que aqui no Brasil empregamos como sinônimo de guitarra elétrica (ou violão elétrico, como se dizia antigamente), significa originalmente apenas “violão”. Esse é o sentido da palavra no português lusitano e também em outras línguas (francês guitare, inglês guitar, italiano chitarra, etc.). O inglês, por exemplo, faz distinção entre electric guitar (a nossa guitarra) e acoustic guitar (o nosso violão).

Aliás, em Portugal o termo guitarra também é empregado para designar um tipo particular de instrumento de cordas característico da música portuguesa – quem já escutou algum fado na vida com certeza ouviu o som da guitarra portuguesa.

Essa palavra nos chegou do espanhol guitarra, igualmente significando “violão” – aliás, a Espanha é o berço do violão moderno, este que conhecemos e que substituiu o alaúde como instrumento de música popular. Mas o espanhol tomou essa palavra do árabe kītâra ainda nos tempos da dominação islâmica na península Ibérica. E agora o mais incrível: o árabe kītâra é empréstimo do grego kithára, que quer dizer… “cítara”. Isso mesmo, a guitarra, elétrica ou não, é neta do alaúde e bisneta da cítara grega, aquele instrumento musical semelhante a uma lira (que, por sua vez, é semelhante a uma pequena harpa).

Um dado interessante: o italiano chitarra proveio diretamente do árabe, ao passo que, nas demais línguas, a origem é o espanhol. É que, na Idade Média, os italianos, em especial os venezianos, comerciavam diretamente com o Oriente, de onde trouxeram a palavra e também o instrumento.

Ladrões de ontem e de hoje

A língua evolui justamente porque a sociedade que a fala muda o tempo todo. Se assim não fosse, a língua deixaria de dar conta das novas realidades e se tornaria inútil para a maioria das comunicações. O aspecto da linguagem que mais depressa e com maior frequência se transforma é o vocabulário. Quantas palavras que usamos hoje, como globalização, internet, tablet, celular, formatar, covid, mimimi, antifascista, vitimismo, gordofobia, nem sonhávamos em empregar 40 anos atrás! E quantas palavras que usávamos frequentemente há pouco mais de duas décadas foram totalmente esquecidas! (Vitrola, disquete, videocassete, garrafeiro, carburador são apenas alguns exemplos.)

A notícia de que houve um substancial aumento no furto de aparelhos celulares no último ano me fez lembrar que, até o advento do smartphone, que tira fotos, faz vídeos, permite teleconferências, pesquisas na internet, mensagens instantâneas, orientação por GPS no trânsito e, last but not least, permite fazer e receber chamadas telefônicas, o tipo mais comum de ladrão era o batedor de carteiras, também chamado de punguista. Como esse meliante precisava “acessar” (olha outro termo jovem aí) o bolso ou a bolsa da vítima, costumava dar-lhe um tranco ou empurrão, surrupiando seu objeto de desejo e fugindo rapidamente no meio da multidão. Por causa exatamente desse tranco, o delinquente, muitas vezes menor de idade, passou em São Paulo a ser chamado de “trombadinha” (no Rio, ele era conhecido por “pivete”).

Quem é que emprega os termos batedor de carteiras, punguista, trombadinha ou pivete hoje em dia? O fato é que, enquanto quase ninguém mais carrega dinheiro na carteira, quase todos portam um celular – geralmente caro – junto à orelha ou em frente aos olhos enquanto andam nas ruas, o que fez o aparelhinho tornar-se o novo desejo de consumo de dez entre dez marginais, muito mais do que um par de tênis importado ou uma moto. Sem falar que, dentro de uma penitenciária, um telefone móvel é muito mais útil do que tênis ou motos. Além do valor do aparelho em si, os criminosos estão de olho nas informações que ele contém: dados pessoais e bancários da vítima, listas de contatos em quem aplicar golpes, etc.

E como as pessoas andam nas ruas carregando ostensivamente esse objeto, além de estarem a maior parte do tempo distraídas com seus chats e aplicativos, o larápio nem precisa mais dar uma trombadinha para furtá-lo; basta tomá-lo da mão do desavisado transeunte. Ou seja, a tecnologia contribuiu muito para a otimização do processo operacional de subtração inopinada de bem alheio, mais conhecido como furto. Só que, estranhamente, ainda não cunharam um termo em português para nomear esse novo tipo de profissional do crime. Mas, do jeito como tal delito anda aumentando de frequência, logo logo nossa língua criará o neologismo adequado para dar conta dessa triste realidade.

A intérprete da pronúncia

Hoje o Brasil está completando quatro décadas sem Elis Regina. A Pimentinha, como era chamada, foi indubitavelmente uma das maiores intérpretes de nossa música popular, não só por seu grande talento e estilo inconfundível, mas também por ter lançado ao estrelado alguns dos maiores compositores da MPB dos anos 60 e 70 do século passado, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco e tantos outros.

Elis dava às músicas interpretações definitivas, tanto que alguns autores admitiam compor para ela, mesmo que a canção acabasse gravada por outro intérprete.

Elis brincava com a voz, cantava rindo, chorando, resmungando, imitando vozes e sotaques, da impostação à la Ângela Maria ao caipirês de Renato Teixeira e ao bexiguês de Adoniran Barbosa. Da dicção afetada das socialites ao timbre rouco de Louis Armstrong, tudo era pretexto para um malabarismo melódico-rítmico-fonético. Elis explorou como poucos as potencialidades da voz e fala humanas ao cantar. Mas, além das vozes e sotaques que simulava, tinha sua própria pronúncia, que evoluiu ao longo da carreira, confirmando o traço camaleônico de sua personalidade.

É difícil, se não impossível, saber o quanto de intencionalidade havia nas pronúncias que Elis adotou, o quanto esse processo era consciente e deliberado.

Sabe-se que há pessoas mais propensas do que outras a incorporar hábitos linguísticos do lugar em que passam a viver. Embora a idade seja um fator importante na sedimentação desses hábitos (quanto mais jovem alguém muda de cidade ou país, maior sua facilidade em incorporar o novo padrão sem deixar vestígios do antigo), algumas pessoas imitam com perfeição a fala alheia, enquanto outras são capazes de viver décadas numa nova terra sem jamais perder as características de sua fala original.

O fato é que, se num primeiro momento, Elis simplesmente adotou a pronúncia carioca, talvez para se inserir melhor num mercado profissional em que o sotaque sulista não seria bem aceito, após algum tempo desenvolveu uma pronúncia própria e única, um sotaque “elisiano”, se é que se pode assim chamá-lo.

Elis Regina Carvalho Costa era natural de Porto Alegre, portanto imagina-se que, até o momento de abraçar a carreira musical, falasse como uma típica cidadã gaúcha. No entanto, ao lançar seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, em 1961, ela já esboça uma pronúncia carioca que, por conta da Bossa Nova, começava a se tornar hegemônica na MPB, substituindo a articulação (e a impostação vocal) operística que predominara nas décadas de 1930 e 40.

Elis fixou residência em São Paulo a partir de 1964, e nessa cidade permaneceu até sua morte, em 1982. Seu s carioca (isto é, palatalizado em fim de sílaba) permaneceu inalterado até meados dos anos 1970, quando, aos poucos, foi substituído pelo impropriamente denominado s paulista (não palatalizado).

Pessoas não versadas em fonética ou dialetologia costumam referir-se a certos sons da fala brasileira por seus modelos prototípicos. Assim, o chamado r carioca (velar ou uvular, tecnicamente falando) não é próprio só do Rio, é padrão em boa parte do país. Da mesma forma, o r caipira deixou há muito de ser só interiorano, já que é usado por nativos de cidades como São Paulo e Curitiba.

As gravações de Elis entre 1975 e 1979 revelam características fonéticas um pouco diferentes do período anterior: um r cada vez mais gutural, incomum até no Rio de Janeiro; um l mais velarizado (como na pronúncia lusitana) e, vez por outra, a abertura das vogais pré-tônicas à maneira nordestina; momentos em que a voz soa mais anasalada, em outros menos; e assim por diante.

Especificamente em relação ao s final de sílaba, pode-se reconhecer em Elis três fases:

1) a primeira, em que o fonema soa tal como pronunciado no Rio (por exemplo, “casas” pronunciado como “cásach” ou “cásaich”);

2) a seguir, uma pronúncia mais próxima do brasileiro padrão (“cásaç”);

3) finalmente, um misto dos dois: “cásaiç”. Esta pronúncia a levou a articular “céus” como “céuis” em determinada canção.

Nossa querida Pimentinha constitui um riquíssimo caso de estudo, não só para musicólogos e críticos, mas também para linguistas.

A origem do sorvete

Nesse calor doido que tem feito, resolvi refrescar as ideias e falar sobre a origem da palavra sorvete. Mas antes quero explicar a diferença, em etimologia, entre étimo e origem. O étimo de uma palavra é a palavra, da mesma língua ou de outra, que é sua antepassada direta numa etapa histórica anterior. Já a origem é o termo historicamente mais remoto a que se consegue chegar para traçar a linhagem de uma palavra.

Assim, no caso de sorvete, a origem está no árabe shurba, que passou ao turco sherbet e daí ao italiano sorbetto, que, por sua vez, deu o francês sorbet. O termo português veio do francês e teve ainda a influência analógica do verbo sorver, já que o sorvete é um alimento que se sorve. Portanto, a origem do vocábulo é árabe, mas o étimo é francês.

Nos tempos do Brasil Império, o sorvete era chamado de gelado, como o é até hoje em Portugal e também em outros países: espanhol helado, italiano gelato, alemão Gefrorenes ou Speiseeis, “comida de gelo”, francês glace, “gelo”, inglês ice cream, “creme de gelo”, e assim por diante.

O picolé é um tipo especial de sorvete, que normalmente utiliza água em vez de leite e é servido preso a um palito de madeira ou plástico. Só que em São Paulo é muito comum chamar-se o picolé de sorvete – mas não o inverso.

Os 450 anos de “Os Lusíadas”

Este ano completa 450 anos de sua publicação a obra máxima da literatura em língua portuguesa, a epopeia Os Lusíadas, de Luís de Camões (ou Luis de Camoẽs, como era a verdadeira grafia de seu nome). O poema, composto de 10 cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos decassílabos, narra, de forma romanceada e misturando elementos do fantástico e do maravilhoso (como a intervenção dos deuses do Olimpo na história), a viagem de Vasco da Gama em busca do caminho das Índias. Portugal se encontrava então, como de resto toda a Europa ocidental, em pleno Renascimento. O gênero épico estava muito em voga nessa época, pois uma das características mais marcantes da Renascença foi a imitação dos gêneros artísticos greco-romanos. Naquele período, influenciados pelas epopeias clássicas – a Ilíada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgílio –, muitos poetas criaram obras da mesma natureza e segundo os mesmos padrões estéticos. Podemos citar dentre eles os italianos Matteo Maria Boiardo, autor de Orlando Enamorado, Ludovico Ariosto, criador de Orlando Furioso, e Torquato Tasso, de Jerusalém Libertada, além do inglês John Milton (O Paraíso Perdido), todos eles precedidos de Dante Alighieri e sua Divina Comédia.

Mas, embora a obra de Camões seja das epopeias renascentistas a menos difundida internacionalmente, é a que mais fielmente recupera os traços do gênero épico da Antiguidade. Por sinal, a narrativa de uma viagem marítima cheia de perigos e indo ao encontro do desconhecido retoma elementos d’Os Argonautas, de Apolônio de Rodes, por exemplo. Além disso, enquanto as demais epopeias evocam temas cristãos ou medievais, Os Lusíadas estão repletos de mitologia grega e referências ao mundo clássico, tema, aliás, em que Camões tinha grande erudição.

Não vou me deter aqui nos aspectos mais propriamente literários da obra, visto que não sou especialista em literatura, nem tampouco vou falar da biografia do autor, cuja vida aventureira daria, ela própria, uma epopeia. Quero relatar a minha experiência pessoal com a obra, que desde o início exerceu sobre mim um extremo fascínio. Na verdade, desde criança eu ouvia falar vagamente de uma obra chamada Os Lusíadas, mas até então não sabia nada a respeito. Quando, nas aulas de literatura do colégio, finalmente compreendi do que se tratava e pude ler alguns excertos no livro didático que utilizávamos, foi paixão à primeira vista: corri a comprar uma edição, que tenho até hoje, publicada pela Edições de Ouro e comentada por Francisco da Silveira Bueno, além de belissimamente ilustrada com gravuras do século XIX. Li a gigantesca obra de uma lufada só, dia após dia, e a reli, no todo ou em partes, diversas vezes depois.

Mais do que isso, me aventurei a arriscar uns versos imitando o estilo do autor. Embora no século passado a epopeia já estivesse superada como gênero literário, eu quis, mesmo que de brincadeira, redigir o meu próprio poema épico – aliás, não fui o único maluco a fazer isso: Fernando Pessoa, Jorge de Lima e Cecília Meireles também se arriscaram, e com sucesso. A verdade é que meu poema nunca passou do primeiro canto; para ser bem sincero, nunca passou de um devaneio adolescente. Mas foi válido como experiência. Arrisco-me a dizer que minhas estrofes em oitava-rima (isto é, padrão de rimas ABABABCC) não ficaram nada más. Se tivesse nascido nos séculos XVI ou XVII, eu teria talvez sido até um poeta clássico razoável. Mas, por outro lado, não teria conhecido Drummond e sua poesia ácida e cética, minha grande inspiração no tempo em que eu cometia versos, também influenciado pelas letras de MPB no tempo em que letras de canções brasileiras eram verdadeira literatura.

Não sei como serão os festejos pelos 450 anos do poema que não só inseriu Portugal e a língua portuguesa na história da literatura mundial como também fixou o padrão linguístico que usamos até hoje, que se convencionou chamar de “português moderno”. Em tempos de pandemia e de Bolsonaro, é pouco provável que se dê algum relevo aqui no Brasil a essa efeméride. Já em Portugal espera-se uma grande comemoração. Se você ama poesia e literatura clássica, não deixe de ler Os Lusíadas; há boas edições no mercado e mesmo na internet.

Corrigindo o correto

No clima de violência em que vivemos, é cada vez mais comum ver na televisão entrevistas de pessoas que não querem se identificar e, por isso, têm seu rosto encoberto e sua voz modificada eletronicamente. Como a voz assim alterada nem sempre soa de modo claro, as emissoras costumam adicionar legendas à cena. E como muitas dessas pessoas não se expressam segundo a norma-padrão (na prática, quase ninguém faz isso), as legendas reproduzem literalmente sua fala, inclusive com todos os “erros”. Mas, para não chancelar formas tidas como incorretas pela gramática, essas legendas geralmente trazem as formas não padrão em itálico ou entre aspas. É a maneira encontrada pela TV para ser fiel aos depoimentos dos entrevistados e ao mesmo tempo ficar de bem com os “vigilantes da língua”. Desse modo, pra, prum, tava, os menino, eles foi e demais pérolas do português popular aparecem sempre destacadas na legenda.

O problema é que os profissionais responsáveis pela digitação de tais legendas tampouco dominam cem por cento a norma culta. E às vezes acabam por “corrigir” o que está correto, destacando formas legítimas e fazendo crer aos desavisados que seriam erradas.

Um caso recorrente é o das contrações dum e duma. Muitos pensam que essas formas sejam incorretas ou vulgares e as evitam a todo custo, ignorando que alguns dos nossos melhores escritores e poetas as prefiram. E as legendas da TV não poupam itálicos ou aspas para elas.

Outro caso comum de hipercorreção (isto é, errar ao tentar corrigir o que já está correto) é “me deu um dó”, que os legendistas televisivos não perdoam e metem logo em destaque, ignorando que , do latim dolum, é palavra masculina e não feminina em português.

Outro dia, no Fantástico (Rede Globo), leu-se a seguinte legenda à fala de um policial: “Você dentro de uma base, num contêiner que facilmente um projetil atravessa”. Isso mesmo, com as palavras num e projetil destacadas em itálico, como se estivessem erradas!

Acontece que a contração num, resultante de em + um, é perfeitamente possível e gramaticalmente correta em nossa língua, sendo até de uso mais frequente do que a forma não contraída em um, mesmo em textos formais. E projetil (oxítono) é forma divergente de projétil (paroxítono), estando ambas dicionarizadas. Por sinal, projétil deve sua prosódia ao latim projectilis, cujo acento tônico cai no e, ao passo que projetil nos chegou pelo francês projectile, cujo acento é no i. As duas formas igualmente corretas constituem um exemplo de palavras com dupla prosódia, como ocorre também com biópsia e biopsia, necrópsia e necropsia, casos também já tratados aqui.

Em compensação, formas indiscutivelmente erradas como interviu por interveio e se eu ver em lugar de se eu vir costumam passar incólumes nas legendas das reportagens.

Qual a sua playlist preferida?

Assim como as línguas, os seres vivos e as sociedades, a tecnologia também evolui – nem sempre para melhor, diga-se de passagem. A pergunta do título é bastante frequente hoje em dia, em que a maioria das pessoas baixa músicas de aplicativos de celular. Sou do tempo, não tão distante assim, em que, para colecionarmos as canções de que gostávamos, precisávamos ficar ouvindo o rádio com o gravador a postos e, quando a canção começava a tocar, imediatamente a púnhamos para gravar. Às vezes, o locutor falava durante a execução da dita cuja, o que estragava nossa gravação. Mas a ansiedade com que esperávamos para poder gravá-la e o prazer de conseguir essa proeza é que eram o grande barato de toda a operação. E, além disso, era de graça.

Hoje as pessoas precisam pagar para baixar suas músicas prediletas – como aliás precisam pagar para assistir TV de qualidade (e a qualidade da TV paga nem sempre é lá essas coisas), pagar para acessar a internet, e assim por diante.

Mas o maior problema que eu vejo é que a possibilidade de comprar canções isoladas simplesmente acabou com o conceito de álbum, aquela obra que cada artista só lançava uma vez por ano e que trazia em geral 10 a 12 faixas embaladas numa capa que era uma obra de arte. Aliás, às vezes até o selo do disco era uma obra de arte.

Pois é, minha gente, o álbum de música, seja ele um LP ou CD, não era um simples amontoado de canções ou temas instrumentais colocados ali a esmo: a ordem das faixas tinha um propósito, havia uma faixa principal (a chamada música de trabalho), que era a que tocava nas rádios e aguçava em nós a vontade de comprar o disco inteiro para poder ouvir mais daquela maravilha.

Havia até álbuns em que a sequência das faixas contava uma história, de modo que ouvi-las fora de ordem, apertando o botão shuffle do toca-CD, não fazia sentido.

Mas o álbum, assim como o livro físico, feito de papel, tem uma mística que a playlist do celular não tem. Em primeiro lugar, havia a magia das lojas de discos, em que podíamos passar uma tarde inteira vasculhando as novidades, garimpando preciosidades, degustando faixa por faixa de cada disco, escolhendo o que íamos comprar. Hoje esse prazer só resiste nos velhos sebos de discos, único lugar em que ainda podemos ter contato físico com a obra do artista.

E esse contato incluía o cheiro típico do vinil e do papelão, a contemplação da capa, a possibilidade de ler na contracapa um texto que funcionava como espécie de prefácio em que o autor do álbum ou um crítico musical apresentava a obra ao público, a capa interna dos álbuns duplos, que geralmente traziam fotos do making of (os músicos dentro do estúdio ou em momentos de descontração entre as gravações), o famoso encarte, em que vinham escritas as letras das canções – o que era especialmente útil no caso das cantadas em inglês – e também os créditos (quem compôs cada canção, quem tocou o quê, quem produziu, onde e quando).

O álbum físico podia ser dado de presente, e em sua capa podíamos escrever uma dedicatória à pessoa presenteada, assim como podíamos guardar cartas de amor e pétalas de flores dentro dos álbuns. Quem hoje em dia presenteia playlists? E quem escreve cartas de amor hoje em dia?

Todo mundo já deve ter ouvido falar do álbum branco dos Beatles, ou do Abbey Road, ou do Sgt. Pepper’s, não? Pois é, existem até antologias do tipo 1.001 Álbuns que Você Precisa Ouvir antes de Morrer ou coisa parecida. Não acredito que futuramente se escreva algum livro do tipo 1.001 Playlists que Você Precisa Ouvir… Na verdade, ouvir playlists é para mim como ler um capítulo de cada livro: você nunca vai entender a história.

É claro que os mais jovens, que não conheceram outra realidade, podem achar perfeitamente mágico e maravilhoso ouvir playlists e podem até achar careta este meu papo. Na verdade, todos nós, à medida que vamos ficando mais velhos, temos a tendência de achar que nosso tempo de adolescência é que era bom. Mas, vendo a maneira veloz como o mundo atual está se deteriorando em todos os aspectos (social, afetivo, político, econômico, cultural, ambiental), chego a pensar que os mais velhos não estão de todo errados.

Feliz Ano Novo ou feliz Ano-Novo?

Estranharam o título desta postagem? Pois saibam que ambas as grafias existem – e significam coisas diferentes. Quem deseja feliz Ano-Novo (com hífen) está fazendo votos de que a noite do Réveillon e o subsequente primeiro dia do ano sejam felizes. Já quem deseja feliz Ano Novo (ou mesmo em minúsculas: ano novo) deseja que todo o ano que se inicia seja feliz, aquilo a que todos nós ansiamos, mesmo sabendo de antemão que é muito difícil de acontecer, pois momentos felizes e momentos infelizes ocorrem todos os anos a todas as pessoas.

Mas o que importa aqui é que o Ano-Novo dura somente um dia enquanto o Ano Novo dura 365 dias. Essa distinção também é feita em outras línguas. Por exemplo, o inglês distingue entre New Year’s Eve (o nosso Réveillon) e New Year (o novo ano). Por isso, a saudação Happy New Year sugere 365 dias de felicidade. Em italiano, pode-se desejar Buon Capodanno (bom começo de ano) ou Buon Anno (o ano inteiro). Os franceses dizem sempre Bonne Année (bom ano) almejando 12 meses felizes. O mesmo se aplica ao alemão Fröhliches Neues Jahr.

Portanto, quando enviamos saudações de Feliz Ano Novo a nossos amigos e parentes, o que queremos é que eles tenham um ano inteiro de paz, harmonia, realizações, sucesso, prosperidade e um mínimo de dissabores – se possível, nenhum.

Então quando se usa Ano-Novo? Usa-se em contextos como “Vou passar o Ano-Novo na praia”, o que significa que estarei à beira-mar nos dias 31 de dezembro e 1º de janeiro, não o ano todo. Por sinal, tenho um amigo que sempre me deseja um feliz Ano-Novo e um feliz Ano Novo. Trata-se de um gracejo que, afinal de contas, faz sentido, mas que, provavelmente, só é plenamente compreendido por quem conhece as minúcias da nossa ortografia.

Bem, o Ano-Novo já passou, e eu espero que tenha sido feliz para os meus leitores. Então agora quero desejar-lhes um feliz e maravilhoso Ano Novo, com 12 meses, 52 semanas e 365 dias de alegrias.