Bom dia, Aldo. Sou jornalista, e no órgão em que trabalho a norma é empregar “autopsia”, “biopsia”, “necropsia” e não “autópsia”, “biópsia”, “necrópsia”, só que eu acho isso meio forçado. Afinal, quais são as formas corretas? E quais as mais adequadas? Obrigado.
Ana Flávia Borges – Belo Horizonte
Cara Ana Flávia, ambas as prosódias – em -ópsia e em -opsia – estão dicionarizadas e, portanto, são corretas. E existem ainda as formas “autopse”, “biopse” e “necropse”. O que acontece é que determinados gramáticos têm suas preferências e idiossincrasias, o que é agravado no caso de elaboradores de manuais de estilo de jornais pela premência de adotar uma forma única, padronizada, que todos os redatores utilizem de modo uniforme.
Em todo caso, vale a pena explicar por que existem ambas as formas. A maioria das palavras portuguesas terminadas em -ia (com i tônico), como “teoria”, “democracia”, e mesmo outras mais vulgares como “padaria” e “ventania”, contêm um sufixo que se origina no grego –ía. Em alguns casos, esse sufixo nos chegou por via culta junto com a própria palavra (como em “democracia”); em outros, veio através do latim vulgar, que havia adotado o sufixo (caso de “padaria”).
Só que muitas palavras gregas de origem culta nos chegaram pelo latim literário, em que esse sufixo era átono. Por exemplo, as palavras gregas historía e theoría passaram ao latim como historia e theoria (pronunciadas história e teória), pois em latim era norma que, se a penúltima sílaba fosse breve, o acento tônico recuasse para a antepenúltima. Com isso, historía e theoría, palavras paroxítonas em grego, tornaram-se proparoxítonas em latim (já que o encontro vocálico i-a era hiato nessa língua).
Então por que pronunciamos “história” (como ditongo) e “teoria” (como hiato)? Tudo depende do percurso pelo qual a palavra chegou até nós. “História” é um termo culto muito antigo, já presente em textos medievais (cuja grafia “estória”, ao contrário do que muitos pensam, é mais antiga do que “história”) e trazido do próprio latim, ao passo que “teoria”, e também “autopsia”, “biopsia” e “necropsia” vieram diretamente do grego literário para os manuais de medicina. Daí a opção pela prosódia grega e não a latina.
No entanto, dada sua dupla origem (grega e/ou latina), algumas dessas palavras sofrem flutuação de uma língua para outra (enquanto dizemos “polícia”, “democracía” e “estratégia”, o espanhol diz “policía” e “democrácia”, e o italiano diz “strategía”) ou mesmo dentro da própria língua, caso de “autópsia/autopsia”, etc.
Outro fator que pode ter influenciado certas pronúncias é a origem francesa do vocábulo: se a palavra veio do grego ou latim por via francesa (isto é, se emprestamos o termo do francês e não diretamente das línguas clássicas), então é natural que a terminação seja com i tônico, pois essa é a única pronúncia possível em francês.
Enfim, só uma pesquisa etimológica rigorosa pode elucidar o porquê dessas formas. O fato concreto é que o uso de “autópsia”, “biópsia” e “necrópsia” é preferido não só por você como pela imensa maioria dos brasileiros. Talvez só não seja pelo editor do seu jornal.
Gostei muito do texto. É ótimo quando o senhor fala da origem da palavra, no latim e no grego. Continue. Os leitores agradecem. Realmente não dá para entender porque deixamos de estudar latim na escola. O que se aprende é enriquecedor. O que o motiva a ensinar gratuitamente, professor Aldo?
Eu sempre escrevo sobre história das línguas e etimologia porque são as minhas especialidades. Além disso, parece que particularmente a etimologia é o ramo da linguística que mais atrai o interesse do público em geral. Aliás, respondendo à sua pergunta, O que me motiva é o prazer de disseminar o conhecimento e o desejo de popularizar a cultura. Por isso, faço divulgação científica: porque acredito que o conhecimento também pode ser pop.
Concordo inteiramente com tudo que o senhor escreveu. A etimologia é realmente fascinante. Uma coisa que me fascina também é a passagem das palavras do latim ao português. Infelizmente não aprendi tão bem essa parte na universidade. Não tinha tanto tempo para estudar já que, durante o período diurno, tinha de ganhar o pão de cada dia. Quando puder, explique a fonologização, a desfonologização e demais processos semelhantes com exemplos. Tenho certeza de que aqueles que nunca viram ou ouviram algo a respeito vão gostar muito.
Já pensou em escrever um livro de etimologia?
Não é preciso. Meu amigo Mário Eduardo Viaro, da USP, já fez isso. Mas penso em escrever um livro de popularização sobre a linguística histórica. Quanto ao tema sugerido, a sugestão está anotada.
Prof. Aldo, eu tenho o livro “Por Trás das Palavras – Manual de Etimologia do Português”, do
Mário Eduardo Viaro, publicado pela Editora Globo, mas eu sei que existem dois outros do mesmo autor, de etimologia também, publicados pela Globolivros e Contexto. Sabe dizer se o conteúdo é o mesmo? Espero que escreva sobre linguística histórica. Serei um dos primeiros a comprar o livro. Mas quero autografado, ok?
O livro “Por trás das palavras” foi reeditado mais recentemente com o título “Manual de Etimologia”. Portanto, trata-se do mesmo conteúdo. Agora, o livro “Etimologia”, da Ed. Contexto é outra obra. Ele também é coordenador de um livro chamado “Morfologia Histórica”, pela Cortez.
Obrigado.
[…] Acontece que a contração num, resultante de em + um, é perfeitamente possível e gramaticalmente correta em nossa língua, sendo até de uso mais frequente do que a forma não contraída em um, mesmo em textos formais. E projetil (oxítono) é forma divergente de projétil (paroxítono), estando ambas dicionarizadas. Por sinal, projétil deve sua prosódia ao latim projectilis, cujo acento tônico cai no e, ao passo que projetil nos chegou pelo francês projectile, cujo acento é no i. As duas formas igualmente corretas constituem um exemplo de palavras com dupla prosódia, como ocorre também com biópsia e biopsia, necrópsia e necropsia, casos também já tratados aqui. […]
Alô, Aldo. Concordo com o leitor. Seu trabalho é de uma enorme relevância para clarificar aspectos da evolução da língua que o vulgo (sem depreciação ou preconceito) desconhece. A etimologia é uma espécie de matriz semântica da qual derivam os sentidos que as palavras vão gradativamente incorporando. Confrontar o sentido original com esses outros, que com ele sempre mantêm algum vínculo, é estimulante e enriquecedor.
Obrigado, Chico! Seus comentários são sempre valiosos.
Lendo tudo isso, fico pensando no porquê de o VOLP não registar récorde/recorde como palavra de dupla prosódia, já que as duas coexistem no português falado no Brasil. “Récorde” é mais comum, mas a única opção q aparece no VOLP é recorde, com o acento a recair no “o”. Tem 2 dicionários q reconhecem a dupla prosódia nessa palavra: o Houaiss e o Michaellis