Corrigindo o correto

No clima de violência em que vivemos, é cada vez mais comum ver na televisão entrevistas de pessoas que não querem se identificar e, por isso, têm seu rosto encoberto e sua voz modificada eletronicamente. Como a voz assim alterada nem sempre soa de modo claro, as emissoras costumam adicionar legendas à cena. E como muitas dessas pessoas não se expressam segundo a norma-padrão (na prática, quase ninguém faz isso), as legendas reproduzem literalmente sua fala, inclusive com todos os “erros”. Mas, para não chancelar formas tidas como incorretas pela gramática, essas legendas geralmente trazem as formas não padrão em itálico ou entre aspas. É a maneira encontrada pela TV para ser fiel aos depoimentos dos entrevistados e ao mesmo tempo ficar de bem com os “vigilantes da língua”. Desse modo, pra, prum, tava, os menino, eles foi e demais pérolas do português popular aparecem sempre destacadas na legenda.

O problema é que os profissionais responsáveis pela digitação de tais legendas tampouco dominam cem por cento a norma culta. E às vezes acabam por “corrigir” o que está correto, destacando formas legítimas e fazendo crer aos desavisados que seriam erradas.

Um caso recorrente é o das contrações dum e duma. Muitos pensam que essas formas sejam incorretas ou vulgares e as evitam a todo custo, ignorando que alguns dos nossos melhores escritores e poetas as prefiram. E as legendas da TV não poupam itálicos ou aspas para elas.

Outro caso comum de hipercorreção (isto é, errar ao tentar corrigir o que já está correto) é “me deu um dó”, que os legendistas televisivos não perdoam e metem logo em destaque, ignorando que , do latim dolum, é palavra masculina e não feminina em português.

Outro dia, no Fantástico (Rede Globo), leu-se a seguinte legenda à fala de um policial: “Você dentro de uma base, num contêiner que facilmente um projetil atravessa”. Isso mesmo, com as palavras num e projetil destacadas em itálico, como se estivessem erradas!

Acontece que a contração num, resultante de em + um, é perfeitamente possível e gramaticalmente correta em nossa língua, sendo até de uso mais frequente do que a forma não contraída em um, mesmo em textos formais. E projetil (oxítono) é forma divergente de projétil (paroxítono), estando ambas dicionarizadas. Por sinal, projétil deve sua prosódia ao latim projectilis, cujo acento tônico cai no e, ao passo que projetil nos chegou pelo francês projectile, cujo acento é no i. As duas formas igualmente corretas constituem um exemplo de palavras com dupla prosódia, como ocorre também com biópsia e biopsia, necrópsia e necropsia, casos também já tratados aqui.

Em compensação, formas indiscutivelmente erradas como interviu por interveio e se eu ver em lugar de se eu vir costumam passar incólumes nas legendas das reportagens.

Qual é o certo: biópsia ou biopsia?

Bom dia, Aldo. Sou jornalista, e no órgão em que trabalho a norma é empregar “autopsia”, “biopsia”, “necropsia” e não “autópsia”, “biópsia”, “necrópsia”, só que eu acho isso meio forçado. Afinal, quais são as formas corretas? E quais as mais adequadas? Obrigado.
Ana Flávia Borges – Belo Horizonte

Cara Ana Flávia, ambas as prosódias – em -ópsia e em -opsia – estão dicionarizadas e, portanto, são corretas. E existem ainda as formas “autopse”, “biopse” e “necropse”. O que acontece é que determinados gramáticos têm suas preferências e idiossincrasias, o que é agravado no caso de elaboradores de manuais de estilo de jornais pela premência de adotar uma forma única, padronizada, que todos os redatores utilizem de modo uniforme.

Em todo caso, vale a pena explicar por que existem ambas as formas. A maioria das palavras portuguesas terminadas em -ia (com i tônico), como “teoria”, “democracia”, e mesmo outras mais vulgares como “padaria” e “ventania”, contêm um sufixo que se origina no grego ía. Em alguns casos, esse sufixo nos chegou por via culta junto com a própria palavra (como em “democracia”); em outros, veio através do latim vulgar, que havia adotado o sufixo (caso de “padaria”).

Só que muitas palavras gregas de origem culta nos chegaram pelo latim literário, em que esse sufixo era átono. Por exemplo, as palavras gregas historía e theoría passaram ao latim como historia e theoria (pronunciadas história e teória), pois em latim era norma que, se a penúltima sílaba fosse breve, o acento tônico recuasse para a antepenúltima. Com isso, historía e theoría, palavras paroxítonas em grego, tornaram-se proparoxítonas em latim (já que o encontro vocálico i-a era hiato nessa língua).

Então por que pronunciamos “história” (como ditongo) e “teoria” (como hiato)? Tudo depende do percurso pelo qual a palavra chegou até nós. “História” é um termo culto muito antigo, já presente em textos medievais (cuja grafia “estória”, ao contrário do que muitos pensam, é mais antiga do que “história”) e trazido do próprio latim, ao passo que “teoria”, e também “autopsia”, “biopsia” e “necropsia” vieram diretamente do grego literário para os manuais de medicina. Daí a opção pela prosódia grega e não a latina.

No entanto, dada sua dupla origem (grega e/ou latina), algumas dessas palavras sofrem flutuação de uma língua para outra (enquanto dizemos “polícia”, “democracía” e “estratégia”, o espanhol diz “policía” e “democrácia”, e o italiano diz “strategía”) ou mesmo dentro da própria língua, caso de “autópsia/autopsia”, etc.

Outro fator que pode ter influenciado certas pronúncias é a origem francesa do vocábulo: se a palavra veio do grego ou latim por via francesa (isto é, se emprestamos o termo do francês e não diretamente das línguas clássicas), então é natural que a terminação seja com i tônico, pois essa é a única pronúncia possível em francês.

Enfim, só uma pesquisa etimológica rigorosa pode elucidar o porquê dessas formas. O fato concreto é que o uso de “autópsia”, “biópsia” e “necrópsia” é preferido não só por você como pela imensa maioria dos brasileiros. Talvez só não seja pelo editor do seu jornal.