A potência e o ato

Antes que algum engraçadinho faça piada, já aviso que o título deste artigo não tem nada a ver com sexo. O que quero tratar aqui são as palavras gregas érgon e enérgeia, utilizadas por Aristóteles para resolver uma questão sobre a perenidade ou mutabilidade do Ser, colocada por outro filósofo grego, Parmênides, e que admitem várias traduções em português moderno dependendo da área do conhecimento em que se esteja. Potência e ato produzem, por exemplo, os derivados potencial e atual (no sentido de “efetivo”, não no de “contemporâneo”).

Em áreas como a administração de empresas e a engenharia, é comum distinguir entre a produtividade e o produto. Aliás, aí costuma aparecer um terceiro termo, intermediário entre eles, a produção. Logo, produtividade é a quantificação da capacidade de realizar a produção; esta é o processo de geração de produtos, sejam eles materiais (bens) ou imateriais (serviços); e o produto é o bem em si, objeto de valor econômico.

Na física, distinguem-se os conceitos de energia e trabalho. Realizar um trabalho é aplicar uma força sobre um corpo de modo a provocar seu movimento. Para realizar esse trabalho, é preciso que haja energia: um motor elétrico só se movimenta e executa um trabalho (como mover um portão automático) se houver energia elétrica passando em seu interior.

Como já deve ter dado para perceber, enérgeia deriva de érgon por parassíntese (parassíntese é o resultado da prefixação e sufixação simultâneas), mediante o prefixo en‑ e o sufixo ‑eia. E érgon, “trabalho”, que aparece em termos do português como ergonomia e teste ergométrico, vem da raiz indo-europeia *werg-, que também produziu o inglês work, igualmente “trabalho”.

A ideia central de Aristóteles ao introduzir esses termos em sua filosofia era distinguir entre algo real, palpável, que ocorreu ou está ocorrendo, e algo apenas possível ou provável, que pode ocorrer ou não. Para isso, ele de certa forma retoma os conceitos platônicos de mundo real e mundo ideal: o real é o ideal realizado.

O já citado Parmênides argumentava que, se o ser é e o não ser não é (logo o Nada não existe), a mudança seria uma ilusão, já que implicava a transformação do ser em não ser e vice-versa — para que algo mude, é preciso que algo que não era passe a ser.

Aristóteles responde que a árvore já existe potencialmente na semente que será plantada, logo não há surgimento nem desaparecimento, apenas transformação, o que reforça o pensamento de outro filósofo, Heráclito, segundo o qual pánta rheí, “tudo flui” em grego, isto é, tudo muda o tempo todo, de modo a ser impossível entrar duas vezes no mesmo rio: a cada vez, tanto nós quanto o rio já mudamos.

Em suma, potência remete ao poder (ou não) ocorrer, e ato, ao efetivo ocorrer. A potência dá origem à noção filosófica e também linguística da modalidade e, por conseguinte, dos verbos modais (querer, dever, saber, poder). Por sinal, para quem tiver interesse, em meu mais recente livro, O universo da linguagem, há um capítulo falando sobre a questão da modalidade.

Uma curiosidade: em inglês, actual não significa “atual, contemporâneo” e sim “efetivo”. Essa língua preservou o sentido original da palavra latina actualis, “relativo ao ato”.

Pensando bem, este artigo até poderia ser também sobre sexo. Afinal, a potência sexual significa a capacidade de realizar o ato sexual, e o ato propriamente dito é o sexo efetivamente realizado.

Mais algumas palavras que se usam numa única expressão

Duas semanas atrás, publiquei uma lista de palavras da língua portuguesa que só ocorrem numa única expressão, isto é, estão fossilizadas numa fórmula pronta e jamais ocorrem fora dessa fórmula. Só que alguns leitores reclamaram da falta de certas expressões; por isso, estou elencando mais algumas. São elas “a esmo”, “às avessas”, “sem eira nem beira”, “ao deus-dará”, “de chofre”, “de enfiada” e “ao bel-prazer”.

“A esmo”, que significa “ao acaso” e é expressão equivalente à anteriormente citada “à toa”, contém o termo esmo, “cálculo aproximado, estimativa grosseira”, derivado de esmar, do latim aestimare, “estimar”. E aestimare contém o elemento aes, que quer dizer “bronze, metal precioso” e, consequentemente, “dinheiro”. Logo, estimar era primeiramente avaliar o preço de uma mercadoria.

“Às avessas” contém a palavra avessas, a qual tem a ver com avesso, do latim adversus, que também nos deu por via culta adverso. A ideia por trás dessa expressão é bem transparente: “às avessas” significa “de forma contrária ao usual ou ao que recomenda o bom senso”.

“Não ter eira nem beira”, como se sabe, é o mesmo que “não ter um tostão furado” ou “não ter onde cair morto”. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que, até o século XIX, eira e beira eram os nomes do térreo e do primeiro andar dos sobrados. Os ricos moravam em casas de dois andares; os pobres, em casas térreas. Logo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente não tinha onde morar, era morador de rua ou indigente.

“Viver ao deus-dará” é viver sem recursos, sujeito às vicissitudes da sorte, abandonado ao próprio destino. É que antigamente, diante de tantas adversidades, os desvalidos, geralmente muito religiosos, costumavam dizer num tom misto de conformismo e esperança que na hora do aperto Deus lhes proveria. Perguntados como iriam se virar, respondiam: “Deus dará”.

“De chofre” e “de enfiada” são expressões um tanto antiquadas, mas cuja menção vale a pena. Chofre, palavra onomatopaica, quer dizer “choque repentino” e também “tiro ao pombo”, prática abjeta que alguns idiotas chamam de esporte, além de “tacada de bilhar”. Portanto, “de chofre” significa “repentinamente”.

Enfiada é uma fileira de coisas, especialmente objetos atravessados por uma mesma linha, como as contas de um colar. Logo, “de enfiada” remete a uma grande quantidade de coisas entrouxadas de uma só vez, como um amontoado de informações que se dá a alguém sem que haja tempo de o cérebro processá-las. Antigamente se dizia, por exemplo, que fulano havia dito uma enfiada de disparates.

Finalmente, “fazer algo ao seu bel-prazer” contém a palavra composta bel-prazer, junção de bel, forma apocopada de belo, e prazer, cujo significado é “arbítrio, vontade própria”.

Não é curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes?

Qual a diferença entre “judeu”, “hebreu”, “israelense” e “israelita”?

A onda migratória que tem invadido a Europa nos últimos anos, formada em dado momento sobretudo por refugiados sírios e africanos, nos faz lembrar que o Brasil sempre foi um país aberto à imigração. De fato, muito do nosso progresso devemos a povos que para cá vieram e com o seu trabalho ajudaram a construir esta nação, dentre os quais se destacam portugueses, espanhóis, italianos, alemães, suíços, poloneses, japoneses, árabes e judeus.

Estes dois últimos povos não constituem propriamente nacionalidades e sim etnias, pois ninguém tem nacionalidade árabe (quem nasce na Arábia Saudita é de nacionalidade saudita e não árabe), mas o que chamamos de árabes eram, na verdade, imigrantes na sua maioria sírios ou libaneses, cuja língua nativa é o árabe. Portanto, árabes são todos os povos cujo idioma pátrio é o árabe. Árabe é, pois, um termo étnico e linguístico.

Bem mais difícil é definir o que seja judeu. Para complicar, muitos usam as palavras judeu, hebreu, israelita e mesmo israelense como sinônimos, o que dá margem a uma grande confusão — e a muitos preconceitos também, diga-se de passagem.

Comecemos então por definir o mais simples: israelense é o termo jurídico que define o cidadão nascido no Estado de Israel ou que possua a cidadania desse Estado, qualquer que seja a sua etnia ou religião. Tanto que há árabes muçulmanos nascidos em Israel e, portanto, detentores da cidadania israelense, o que lhes dá direito a utilizar os serviços públicos daquele Estado. Grande parte do conflito entre judeus e palestinos se dá exatamente por causa da disputa de ambos os povos pelo mesmo território.

israelita, hebreu e judeu são nomes que originalmente designavam um povo de língua semítica que habitava a região do Oriente Próximo chamada Judeia. Lá constituíram um reino chamado Israel (não confundir com o atual Estado de Israel), daí serem chamados de israelitas (isto é, filhos de Israel). Mas como os hebreus eram praticantes de uma religião monoteísta por eles mesmos criada e que veio a ser chamada de judaísmo, o termo judeu passou ao mesmo tempo a designar o povo hebreu e sua religião. Enquanto todos os praticantes do judaísmo eram hebreus e todos os hebreus praticavam essa religião (ou seja, as duas comunidades coincidiam totalmente), hebreu, judeu e israelita eram sinônimos perfeitos, tanto para denominar a etnia quanto a religião. (A única diferença, se podemos mencionar alguma, é que hebreu era o habitante de Hebron, judeu o habitante do reino de Judá, e israelita o habitante do reino de Israel. Na prática, todos os três um mesmo povo.)

As coisas começaram a se complicar quando ocorreu a Grande Diáspora judaica, que levou o povo hebreu a se espalhar por vários territórios ao redor do mundo e a assumir várias nacionalidades. Os descendentes dos habitantes da Judeia continuaram a professar o judaísmo e a se sentir pertencentes ao povo de Israel, daí continuarem a se autodenominar judeus. Mas, como uma pessoa pode converter-se ao judaísmo sem ser de etnia hebraica, assim como um descendente de hebreus emigrados pela Diáspora pode ter qualquer nacionalidade, além de poder converter-se a qualquer religião — ou mesmo renunciar a toda fé, como muitos judeus que se declaram ateus —, o termo judeu começa a comportar uma ambiguidade que não permite saber se estamos falando de raça, etnia, nacionalidade ou religião.

Para tornar mais claro o raciocínio, vou adotar termos alternativos para distinguir todos esses conceitos. Em primeiro lugar, convencionemos que o praticante da religião judaica, qualquer que seja sua origem étnica, seja chamado de judaísta. Reservaremos então o termo hebreu para designar os antigos habitantes de Hebron e da Judeia, que por volta do século XIII a.C. criaram o judaísmo e constituíram o reino de Israel.

Por conseguinte, chamaremos de hebreodescendentes aos descendentes dos antigos hebreus, quer tenham nascido em Israel ou em qualquer outro país, quer sejam judaístas ou praticantes de qualquer outra religião (ou de nenhuma). O resultado é que costumamos chamar de judeus tanto aos judaístas quanto aos hebreodescendentes. E é talvez aí que nasce o preconceito que persegue os judeus.

Vou fazer uma analogia para que o leitor entenda melhor. Sou brasileiro, neto de italianos, e venho de uma família católica, embora eu mesmo seja ateu. Os italianos, como se sabe, têm como pátria a Itália e são descendentes, assim como os franceses, espanhóis, portugueses, romenos, etc., dos antigos romanos, povo que viveu na Antiguidade num grande império chamado Roma.

Portanto, sou brasileiro, mas, por ser neto de italianos, tenho direito à cidadania italiana, o que quer dizer que posso morar na Itália e lá usufruir todos os serviços públicos a que os cidadãos italianos têm direito. No entanto, jamais digo que sou italiano, até porque isso seria uma impropriedade (não fui criado na Itália, não sou falante nativo do idioma italiano nem compartilho a maioria das características culturais do povo italiano; além disso, não me naturalizei italiano). Nesse sentido, sou 100% brasileiro e me orgulho disso apesar de todas as mazelas do nosso país. Além disso, poderia dizer de mim mesmo que sou um romanodescendente, já que meus ancestrais há 2 mil anos eram romanos, mas, sinceramente, não vejo muito sentido em proclamar isso. (Os romanodescendentes são o que se costuma chamar simplesmente de latinos, mas tampouco saio por aí dizendo que sou um latino.) Em suma, sou apenas um brasileiro.

No entanto, tenho um amigo que se diz judeu. Assim como eu, ele é nascido e criado no Brasil, portanto sua nacionalidade é oficialmente brasileira, embora ele também goze de cidadania israelense. Seus pais são igualmente brasileiros; seus avós vieram da Alemanha, Polônia e Ucrânia; seus bisavós, da Hungria, Ucrânia e Rússia; e se prosseguirmos nessa viagem ao passado de sua genealogia, encontraremos pessoas do Leste europeu pelo menos nas 20 últimas gerações, de modo que seu mais recente antepassado a viver na Palestina deve tê-lo feito por volta do século X ou XI da era cristã.

Esse meu amigo nasceu numa família em que todos praticam o judaísmo, mas ele, que cedo se interessou pelas ciências naturais, tornou-se cético, agnóstico e enfim ateu. Hoje é professor de física numa importante universidade. Ele não é judaísta nem hebreu (nem poderia, já que os hebreus, segundo a minha nomenclatura, bem entendido, não existem mais), é apenas um hebreodescendente bem distante. Entretanto, ele se diz judeu e assim a ele se referem os outros.

Eu e ele temos situações análogas. Somos ambos nascidos e criados no Brasil, filhos de brasileiros, descendentes de europeus até onde a árvore genealógica de nossas famílias alcança, além de não praticarmos nenhuma religião. No entanto, ele se considera pertencente a um povo que não é o brasileiro, nem o alemão nem o polonês nem o ucraniano: ele é integrante do povo judeu.

O que vocês achariam se eu eventualmente dissesse que faço parte do povo católico? Ou do povo romano? Algumas seitas cristãs até costumam denominar seus fiéis de “povo de Deus”, mas a palavra povo aí não tem qualquer conotação étnica como tem no caso dos judeus; além disso, quem me conhece e sabe do meu anticlericalismo, daria risada do meu suposto catolicismo.

Mais estranho ainda seria se eu reivindicasse para mim a etnia romana, já que sou descendente do “povo de Roma”, que um dia também se dispersou, se miscigenou e virou italiano, francês, português, etc. Como tenho senso de ridículo, digo que sou brasileiro e, se quiserem saber mais, explico que sou neto de italianos. Ponto final.

A questão é que nós, descendentes de italianos, em geral não nos consideramos um povo à parte dentro de outro povo: não somos uma nação dentro do Brasil, como são os povos indígenas. Tampouco os italodescendentes espalhados pelo mundo agem como se fossem uma entidade transnacional, uma nação sem território que está em todos os territórios. (A bem da verdade, uns poucos, bem poucos mesmo, até fazem isso.)

É verdade que por séculos Israel não teve um território, pois, após a destruição do templo de Jerusalém e a Diáspora, e até a fundação do moderno Estado de Israel em 1948, o único traço em comum entre os hebreodescendentes foi a religião judaica, o que explica em parte que eles tenham feito do judaísmo a sua pátria. Mas não nos esqueçamos de que a Itália também só passou a existir como Estado em 1861: antes disso era, no dizer de Metternich, “uma mera expressão geográfica”.

Outro argumento que se pode lançar é que, durante séculos, independentemente de sua origem geográfica, os judeus foram discriminados no Ocidente pela Igreja Católica, o que fez com que todos eles fossem vistos como um único povo e, ao mesmo tempo, um povo distinto dos europeus. Mas é preciso lembrar que, durante a Idade Média, em que essa perseguição foi mais sistemática, não só os judeus eram vistos como uma nação: a própria cristandade constituía uma nação que transcendia territórios e Estados. Portanto, se em tempos medievais havia apenas duas nacionalidades — judeus e cristãos —, hoje as coisas não são mais assim: os cristãos deixaram há muito de ser uma nação transestatal; hoje a nacionalidade política se sobrepõe amplamente à identidade religiosa. O mesmo poderia valer em relação aos judeus.

O fato é que o apego de meu amigo às suas longínquas origens hebreias, a ponto de ele se identificar com uma nação que tecnicamente não existe, é o que atrai para si uma certa suspeita. Como ele mesmo me relatou, já foi algumas vezes vítima de preconceito racial por ser judeu. Mesmo veladamente, alguns colegas deixam transparecer alguma desconfiança, pois o veem como um “agente infiltrado”. Certamente não é o caso do meu amigo, mas muitos judeus tomam atitudes que contribuem para essa imagem de “jogo duplo”: ricos empresários judeus nascidos e criados no Brasil que enviam dinheiro para ajudar Israel na guerra contra os palestinos; judeus nascidos e criados no Brasil que pedem em testamento para ser enterrados em Israel; muitos que se organizam em comunidades e clubes em que a entrada de não judeus é vista com muita estranheza, e assim por diante.

Neste momento em que se afigura uma guerra entre Israel e o Hamas que tende a ser longa e sangrenta, alguns fatos me chamam a atenção. Outro dia, uma “brasileira” (aparentemente carioca, a julgar pelo sotaque) que vive em Israel e tem sobrenome eslavo declarou na televisão que vai alistar-se no exército israelense e combater ao lado do namorado, que é soldado e já está na linha de frente da batalha. Ela tranquiliza sua família, que vive no Brasil, e afirma que é preciso lutar por Israel, segundo ela, o único lugar em que os judeus podem viver. A julgar por sua fala, sua pátria é Israel e não o Brasil, e ela não vê nosso país como um lugar onde judeus possam viver, embora ela própria tenha nascido e por muito tempo vivido no Brasil, e sua família ainda esteja aqui e em segurança.

Outra jovem nascida e criada no Brasil, desta vez com sotaque paulista, no aeroporto já de partida para Israel, declarou à reportagem que está indo lutar na guerra para defender a sua pátria.

De modo geral, a tendência de os judeus se considerarem uma nação à parte dentro de qualquer outra nação que habitem, somada ao fato de não se misturarem com facilidade a outras etnias (casamentos entre judeus e não judeus são pouco frequentes e nem sempre bem vistos), faz com que, apesar de serem vítimas históricas do racismo, sejam muitas vezes injustamente tachados de racistas.

Em resumo, brasileiros filhos de brasileiros, netos de alemães, bisnetos de poloneses e tataranetos de ucranianos são muitas vezes vistos — especialmente pelos menos informados — como se fossem estrangeiros, não importa quão patrioticamente brasileiros eles sejam. Essa ambiguidade no significado da palavra judeu tem, a meu ver, grande peso nessa visão preconceituosa que cerca os judeus.

Enfim, judeus ou israelitas eram em primeiro lugar os hebreus da Antiguidade. Da Idade Média em diante, passaram a ser os judaístas e os hebreodescendentes, sendo que, até certo ponto, todos os judaístas eram hebreodescendentes e vice-versa. Hoje há judaístas que não são hebreodescendentes (como a cantora Aracy de Almeida no fim da vida), há hebreodescendentes que não são judaístas (como Bob Dylan, que se tornou cristão, ou Woody Allen, que é ateu), e nenhum deles é israelense, no sentido de “nascido em Israel”, embora possam usufruir essa cidadania. E, numa grosseira simplificação de linguagem, chamamos a todos eles de judeus.

Enquanto isso, eu, um legítimo romanodescendente, membro da nação cristã (embora ateu), sou apenas um brasileiro. E já acho bastante.

*-*-*

No quadro comparativo abaixo, procuro fazer uma grosseira analogia entre a comunidade judaica e a latina ou romanodescendente.

Quadro comparativo judeus x romanos e seus descendentes

Hebron, Judeia, Judá, reino de IsraelImpério Romano, Itália romana
Estado de Israel (fundado em 1948)República Italiana (fundada em 1861)
judeus, hebreusromanos
hebreodescendenteslatinos
judaístascatólicos

Dor de cabeça e dor na cabeça

Tempos atrás, surgiu um debate dentro do grupo de Whatsapp dos colaboradores da página do Facebook Língua e Tradição (www.facebook.com/linguaetradicao), da qual faço parte, em torno de uma postagem cuja imagem aqui reproduzo.

A pergunta da autora do post é: por que dizemos “dor de cabeça”, “dor de barriga”, mas “dor NO braço” e não “dor DE braço”. Na ocasião, apresentei a teoria de que “dor DE” se refere a dores internas, sobretudo as provocadas por disfunção orgânica, ao passo que “dor NO” se refere a dor externa, provocada por contusão ou mau jeito. Por exemplo, “dor de cabeça” é a chamada cefalalgia; já “dor na cabeça” pode ser fruto de uma pancada. A dor de cabeça em geral é uma dor no cérebro, assim como a dor de barriga é uma dor no intestino. Já uma dor na cabeça ou na barriga afeta os músculos ou os ossos imediatamente abaixo da pele.

Meu colega e amigo Chico Viana complementou: “Parece que a preposição ‘de’ introduz um determinante que alude a algo conhecido, consensual. Ouvir de alguém próximo que está com ‘dor de cabeça’ não preocupa tanto quanto dele ouvir que está com uma ‘dor na cabeça’. Esta última pode ser um sinal de algo mais grave. O mesmo se aplica, por exemplo, a ‘dor de barriga’ e ‘dor na barriga’. A preposição ‘em’ acena ao desconhecido e sugere a necessidade de procurar logo um médico”.

E nosso outro colega e amigo, Rafael Rigolon, acrescentou: “Temos ainda o caso fantástico da ‘dor de cotovelo’ (o despeito amoroso) e a ‘dor no cotovelo’. A primeira é terrível. Só não é pior do que a ‘dor de olvido’ (Millôr)”.

Em resumo, “dor DE” é uma dor conhecida, como a dor de cabeça, de barriga ou de cotovelo, cujas causas são rotineiramente as mesmas. Já “dor EM” é uma dor cuja causa pode ser conhecida ou não, mas nunca é a usual. Por isso, o filhinho de três anos da Carina, autora da postagem, que ainda não é proficiente nessas sutilezas da língua portuguesa, falou em “dor de braço” por analogia com essas dores mais comuns que sentimos cujo nome começa com “dor de”. Toda língua tem essas nuances sutis que só dominamos à medida que vamos nos tornando falantes fluentes. E que um falante não nativo às vezes nunca chega a dominar.

A título de exemplo, o inglês também distingue entre uma dor corriqueira, de causa rotineira, como a dor de cabeça, e uma dor de causa diferente, pouco comum, como uma dor na cabeça: a primeira se chama headache; a segunda, pain in the head.

Palavras que se usam numa única expressão

Vocês já devem ter notado que o português tem várias palavras ou expressões que se usam num único contexto e por isso mesmo estão dicionarizadas junto a esse contexto, não é?

Palavras como tona, toa, léu, dentre outras, só ocorrem em expressões como “vir à tona”, “estar à toa”, “andar ao léu”… Além dessas, temos “à queima-roupa”, “por um triz”, “em riste” (referindo-se unicamente a “dedo”), “breca” (só nas expressões “com a breca”, hoje desusada, e “levado da breca”), “caramba” (só em “pra caramba” e na exclamação “Caramba!”), “de soslaio”, “às pressas”, “de esguelha”, “de supetão”, “às arrascas”, “tintim por tintim”, além dos antiquados “à socapa”, “à sorrelfa”, “sem tir-te nem guar-te”, “de truz”, “à mancheia” e “aos borbotões”.

Muitas dessas palavras eram de uso corrente no passado (por exemplo, truz significa “ruído de queda, estrondo”), mas caíram em desuso, ficando cristalizadas apenas em expressões que usamos no dia a dia, as mais das vezes sem sequer suspeitar de seu significado ou sua origem.

Tona é a superfície da água, logo “vir à tona” é emergir até a superfície. Só que (quase) ninguém diz: “Tenho medo de me afogar, por isso não mergulho, só fico boiando na tona da piscina”. Uma curiosidade: tona, do latim tunna, significava originalmente “casca de árvore, pele fina”; foi daí que surgiu a metáfora de designar a superfície da água de tona.

Do mesmo modo, toa, do inglês tow, era a corda que amarrava um navio a outro; hoje, “andar à toa” é “andar a esmo, sem destino”. Quem está à toa na vida, como na canção de Chico Buarque, está sem fazer nada, sem propósito; quem diz coisas à toa é porque não tem o que dizer.

E léu? Vinda do occitano, língua do sul da França que foi muito importante na Idade Média e legou muitos vocábulos ao português, essa palavra quer dizer “ócio”. “Estar ou andar ao léu” é não ter nada para fazer (quem me dera!).

Queima-roupa, palavra composta que só ocorre em “atirar à queima-roupa” e, metaforicamente, em “dizer ou perguntar à queima-roupa”, é autoexplicativo: quando se atira em alguém de muito perto, a pólvora da bala queima a roupa da vítima. Logo, “à queima-roupa” é usado em diversas situações em que se age agressivamente e sem rodeios.

E por falar em atirar, quando se diz que “a bala passou por um triz” ou que “Fulano escapou por um triz”, a ideia é que faltou muito pouco para que algo muito ruim acontecesse. Triz, do grego thrix, “fio de cabelo”, é um quase nada. Um fio de cabelo é a distância entre a trajetória da bala e o corpo do alvo.

Já que falamos em triz, vamos ao truz. Como disse mais acima, trata-se de uma onomatopeia para ruído de golpe ou queda. Só que “pessoa de truz” é pessoa notável, distinta, de valor. Será que pessoas assim fazem esse ruído?

Na Idade Média, riste, do espanhol ristre, era o suporte em que os cavaleiros repousavam a lança em posição horizontal. Daí o “dedo em riste”, uma analogia com a posição horizontal da lança e seu formato retilíneo e agudo. Hoje, quando não há mais cavaleiros nem justas medievais em que se usam lanças, o significado original de riste se perdeu.

Breca, “cãibra”, passou a ser uma das denominações do Diabo (como cão, tinhoso, cramulhão, etc.). Daí que a exclamação “Com a breca!” é equivalente a “Com os diabos!” e subentende a imprecação “Vá com os diabos, vá para o Inferno!”. Pela mesma razão, uma criança “levada da breca” é um pimpolho cuja alma foi levada pelo Diabo, portanto uma criança endiabrada.

Caramba, de origem sânscrita, mas que nos chegou pelo espanhol, denota admiração, mas passou a ser usado como eufemismo para um termo chulo de sonoridade parecida, o qual originalmente era apenas uma estaca ou mastro de navio, que, por sua forma ereta, se tornou metáfora para “pênis”.

Também  do espanhol, soslaio é “posição oblíqua”, donde “olhar de soslaio” é “olhar de esguelha”, outra palavra de pouco e restrito uso.

A expressão “de supetão” contém a palavra de uso único supetão, corruptela de subitâneo, derivado de súbito; por sinal, paralelamente a súbito, temos em português os adjetivos  populares súpeto e súpito.

Arrascas, da expressão “às arrascas”, vem do verbo espanhol arrascar, forma popular de rascar, “raspar” (daí falar-se de uma voz rascante). Fazer algo às arrascas é fazer à força, como que raspando.

Tintim é onomatopaico e representa o ruído de copos de vidro colidindo — é por isso que, ao brindarmos, dizemos “Tintim!”. Mas “tintim por tintim” é “nos mínimos detalhes”; nesse caso, tintim é sinônimo de detalhe, pormenor.

Bem, faltou falar daquelas expressões que hoje não se usam mais, mas com as quais nos deparamos ao ler os clássicos. “À socapa” significa “às escondidas” (por sinal, escondidas só se usa nessa expressão, assim como pressas em “às pressas”, cujo termo usual é pressa). Sua origem é a expressão sob capa, isto é, oculto sob uma capa. Já “à sorrelfa” remete a sorrelfa, “disfarce para enganar”, portanto o sentido é o mesmo de socapa.

“Sem tir-te nem guar-te” quer dizer “sem cerimônia, repentinamente, sem aviso prévio”. Trata-se de uma corruptela da antiga expressão “sem tira-te nem guarda-te”, isto é, sem que a pessoa pudesse tirar-se ou guardar-se, logo proteger-se de algum ataque.

Mancheia vem de “mão cheia, punhado”. Quem lembra destes versos de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia livros, / livros à mancheia. / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar.”? Talvez poucos lembrem, já que livros hoje em dia têm tido pouca chance de germinar palmas e, por conseguinte, fazer pensar, não é?

Mas “livros à mancheia” é o mesmo que “livros aos borbotões”. E borbotão é um forte jorro d’água, como o de uma grande cascata. A metáfora com a ideia de “grande quantidade” é óbvia, não? É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas).