Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.

Luiz Felipe Pondé e a pauta dos animais

Recentemente, o filósofo Luiz Felipe Pondé publicou um vídeo em seu canal do YouTube respondendo à pergunta “Por que não me preocupo com a pauta dos animais?”. Admiro muito Pondé por sua sensatez e equilíbrio na análise das mais diversas questões, desde as existenciais até as políticas, mas no vídeo em questão sou obrigado a dizer que o pensador tratou a questão de forma rasa e pouco sensível.

Logo de início, ele argumenta que a natureza é uma máquina de sofrimento e que, embora ninguém em sã consciência seja a favor do sofrimento, animais se alimentam de animais e que se deveria perguntar a um leão se ele é a favor do sofrimento. Mais adiante, ele questiona o que farão os veganos se um dia descobrirem que os vegetais também têm sentimentos: comerão o próprio corpo como única saída possível?

Todos sabemos que seres vivos se alimentam de outros seres vivos, sejam eles animais ou vegetais. Nisso a natureza é sábia, pois, se nos alimentássemos de minerais, que são recursos não renováveis, estaríamos devorando nosso próprio planeta. Portanto, até por ser uma lei da natureza, alimentar-se de animais não seria, em princípio, um problema ético. A questão é como o ser humano trata os animais que come.

O leão tem no antílope (eu ia dizer “veado”, mas algum militante LGBTQIAXYZ pode se sentir ofendido) seu alimento, mas, para comê-lo, ele precisa caçá-lo, e aí temos uma luta de igual para igual. Um dia é da caça, o outro do caçador, logo às vezes o leão mata e come o antílope, às vezes o antílope consegue fugir e sobreviver — para azar do leão.

Os índios (ou indígenas, ou povos originários) brasileiros costumam caçar para comer e até usam um meio um tanto desleal em relação aos bichos que caçam chamado arco e flecha; sim, com esse artefato tecnológico, levam certa vantagem sobre a presa, o que não aconteceria se caçassem só com as próprias mãos. Mesmo assim, jamais caçam além do que precisam para o seu consumo imediato, e algumas tribos ainda realizam cerimônias religiosas em memória dos animais que abatem, encomendando sua alma aos deuses num ato de gratidão.

Já nossa moderna civilização transformou os animais em mercadoria. Quando o dinheiro fala, qualquer princípio ético ou moral se cala — ou é calado. Nas fazendas de gado, tanto de corte quanto leiteiro, bem como nas granjas e avícolas, as condições de vida dos animais são absolutamente miseráveis e desumanas. As técnicas utilizadas no  abate de animais são de fazer inveja a qualquer administrador do campo de concentração de Auschwitz. A pesca predatória nos oceanos elimina muito mais peixes, moluscos e crustáceos do que aqueles que vão ser efetivamente comercializados e consumidos — o que já não seria pouco diante de uma humanidade de 8 bilhões de bocas ávidas de comida. Como resultado, temos a progressiva extinção de um grande número de espécies, o que vem causando um desequilíbrio ambiental irreversível.

Mas a pauta animal não se restringe ao veganismo: quem compra um cãozinho de raça está alimentando uma máfia de criadores inescrupulosos, para quem cachorro é dinheiro, e por trás de todo filhote fofinho há uma mãe (eles chamam desumanizadamente de “matriz”) maltratada, totalmente carente de cuidados, que dirá de carinho, cujo único propósito na vida é parir, e um pai (eles chamam de “reprodutor”) igualmente tratado como mera máquina de copular fêmeas. Quando não servem mais a esses propósitos capitalistas, são simplesmente descartados (mortos é uma palavra muito forte, né?).

Outro grande equívoco do Sr. Pondé em seu vídeo é associar a pauta animal a um modismo de comportamento. É mais ou menos o que faz a direita que enriquece vendendo armas e agrotóxicos ao dizer escarnecendo que “isso é coisa de esquerdista”. Nesse caso, a caridade, o pacifismo, o ambientalismo, a luta por justiça social e, mais ainda, a ética, a solidariedade, a gentileza, o amor ao próximo, tudo isso são pautas de esquerda, “coisa de comunista”. Sei que Pondé não é exatamente um direitista burro; suas posições políticas estão mais ao centro do que à direita, e burro é algo que ele definitivamente não é. Entretanto, sua crítica aos modismos de comportamento, à qual eu também faço coro (por exemplo, só nesta postagem zombei duas vezes da excrescência chamada linguagem politicamente correta), o levou desta vez a tecer um comentário raso onde ele poderia ser profundo, mesmo que seu vídeo ficasse um pouco mais longo. Talvez a pressa de produzir conteúdo toda semana para manter o famigerado engajamento (e a consequente monetização) o tenha levado à pouca reflexão, o que não é típico dele. Mas pode ser também que ele seja de fato um insensível, alguém a quem o excesso de leitura de filosofia, de gnósticos, estoicos até os cínicos, tenha embrutecido. Afinal, segundo a racionalidade fria da filosofia, a natureza é uma máquina de sofrimento, não é mesmo? E máquinas não têm sentimento. Por enquanto.

Voltando de férias com um desagravo

Estive sumido aqui do blog neste mês de janeiro, em parte porque, como todo filho de Deus — embora ateu —, eu também tenho direito a umas merecidas férias. Mas em parte também porque passei por uma experiência que, durante semanas, me tirou totalmente a vontade de escrever.

Logo nos primeiros dias do ano, assistimos ao funeral do eterno Pelé, um dos meus grandes ídolos, que tive a sorte de ver jogar. A morte do Rei e a oportunidade de rever, nos inúmeros documentários que a televisão exibiu, seus incríveis lances provoaram em mim uma emoção só comparável a outra que também vivenciara pouco antes: a despedida dos palcos de Milton Nascimento, meu ídolo maior, em show no Mineirão, na minha amada Belo Horizonte, ao qual estive presente em novembro último. Isso me inspirou a escrever um artigo traçando um paralelo entre esses dois brasileiros geniais. O título seria Dois reis negros, dois brasileiros geniais. O texto se iniciava assim:

Dois negros. Dois brasileiros. Dois mineiros. Um, de Três Corações. O outro, de Três Pontas. Um, nascido a 23 de outubro de 1940. O outro, a 26 de outubro de 1942. Signo de escorpião. Um, nascido no Rio, mas criado em Minas. O outro, nascido em Minas, mas radicado em Santos. Dois gênios em suas profissões. Dois homens que emocionaram e emocionam o público. Dois cidadãos do mundo. Ambos de sobrenome Nascimento. O primeiro, de nome Edison (depois alterado por ele mesmo para Edson). O segundo, de nome Milton. Ambos nomes ingleses: o do inventor da lâmpada elétrica e o do autor do Paraíso Perdido.

E o artigo seguia falando sobre o imortal legado de Pelé, deus do futebol, e sobre a maravilhosa obra musical do Bituca, como Milton Nascimento gosta de ser chamado, e sua contribuição para a MPB, para o Brasil, para o mundo. Nesse texto, eu falava sobre a minha emoção diante do apoteótico show a que assisti, num Mineirão mais lotado que num Cruzeiro x Atlético. Eu terminava agradecendo por ter tido a sorte de ser contemporâneo desses dois gênios, de ter nascido no mesmo país e planeta que eles.

Todas as semanas, publico neste blog textos que escrevo da melhor forma que consigo, tentando falar às vezes de assuntos difíceis como linguística numa linguagem que atinja o maior número possível de leitores, especialmente os não iniciados no assunto. Graças a um dom natural, tenho prazer e facilidade em escrever e, modestamente, acho que faço isso bem. Por isso mesmo, a tarefa de escrever todas as semanas não me é pesada; pelo contrário, minha escrita flui com facilidade. Mas, quando escrevo sobre a língua, ou sobre a política nacional, ou sobre as mazelas do nosso país e do nosso tempo, escrevo com a cabeça. Já quando escrevi a crônica sobre Pelé e Bituca, o fiz com o coração, tomado de profunda emoção e rara inspiração. Tanto que mal podia esperar para que chegasse segunda-feira, dia 9 de janeiro, para publicá-lo. Seria um dos melhores artigos que já produzira na vida. De quebra, no dia anterior, havíamos perdido Roberto Dinamite, outro grande craque do nosso futebol, e eu aproveitaria o ensejo para também lhe prestar uma homenagem. Por último, eu pretendia finalizar com um comentário sucinto deplorando em palavras irônicas a barbárie ocorrida em Brasília na véspera, o fatídico 8 de janeiro.

Pois qual não foi minha surpresa e choque naquela segunda-feira ao abrir o arquivo Word em que estava o meu artigo e constatar que, com exceção do primeiro parágrafo (esse que transcrevi acima), o resto do texto havia sumido. Como? Teria eu por acidente apertado alguma tecla e deletado o restante do texto e a seguir salvado o arquivo? Possivelmente foi o que ocorreu. Como faço backup dos meus arquivos num HD externo ao meu laptop, fui até lá e, para minha decepção, o arquivo em backup também estava mutilado. A partir desse momento, comecei a entrar em pânico. Pesquisando na internet, descobri que o Windows salva versões anteriores dos arquivos, só que essa função precisa ser habilitada e, não se sabe por que cargas d’água, ela não vem habilitada de fábrica. Ou seja, o senhor Bill Gates, nerd que sempre foi, deve achar que todos os usuários dos seus produtos são formados em ciência da computação. Pois bem, descobri tarde demais que não havia versão anterior salva do meu pobre arquivo. Passei o dia baixando softwares de recuperação de arquivos deletados e até encontrei uma versão de 2017 do meu arquivo — ou seja, uma versão absolutamente inútil.

Conclusão: perdi meu texto para sempre, sem que ele tenha tido a chance de ser lido por uma alma sequer — mesmo eu jamais o lerei de novo, e tudo que me resta dele são alguns flashes na memória. Reescrevê-lo é impossível: a emoção e a inspiração que eu tive jamais se repetirão. Além disso, o momento de sua publicação passou; como dizem, perdi o timing.

Meus leitores podem achar bobagem, mais vivenciei um verdadeiro sentimento de luto nesses dias, comparável à perda de um ente querido. Com a diferença de que, quando perdi meus pais, sofri por um tempo, mas guardei comigo a lembrança de todos os anos de vida em que pude desfrutar de sua companhia. E desse artigo que perdi, que era como um filho (sim, amigos, os livros e artigos que escrevo são como meus filhos), o que vou guardar?

Isso tudo só fez reforçar minha ojeriza pela tecnologia. Ojeriza que começou ainda nos anos 90, quando eu finalizava minha tese de doutorado num computador XT, daqueles de telinha verde (os mais jovens nem fazem ideia do que seja isso). Pois, em certo momento, o “bicho” travou, o que fez minha tese, produto de seis anos de insano trabalho, simplesmente sumir. E na época não havia dispositivos de autorrecuperação como os do Windows de hoje em dia — na época sequer havia Windows! Felizmente, após algumas manobras e muito desespero, consegui salvar uma versão tosca do meu trabalho. Passei dias reformatando parágrafo por parágrafo, negrito por negrito, itálico por itálico, refazendo tabelas, redesenhando figuras, reescrevendo o último capítulo, que não havia sido salvo. Mas pelo menos consegui recuperar o conteúdo do arquivo. Esse episódio, somado ao assédio moral que sofria do meu orientador, explica o surto depressivo que tive à época e que me custou anos de tratamento psiquiátrico.

Sou do tempo da máquina de escrever, e os textos que datilografava quando era adolescente ainda estão comigo. Livros impressos ou escritos à mão, alguns com mil anos ou mais, ainda resistem nas grandes bibliotecas do mundo. Mas arquivos “virtuais”, estejam eles num HD ou na nuvem, podem sumir a qualquer momento. E estamos inconsequentemente digitalizando toda a nossa cultura, todo o nosso acervo de conhecimentos, eliminando o papel sob a desculpa de poupar o meio ambiente — como se fosse o papel o grande vilão da emergência climática que vivemos.

Queridos leitores e amigos, este texto é um desabafo e um desagravo. Posso estar ficando velho, mas ninguém me convence de que um videogame de futebol que joga sozinho é melhor que uma partida de futebol de botão. Que joguinhos de celular que se jogam com dois polegares são mais divertidos do que uma bola de futebol, um pião, uma bicicleta ou bolinhas de gude. Que brincar no playground do condomínio é mais bacana do que correr descalço na rua, sem medo de doença ou de bandido.

Volto à rotina da escrita, porque simplesmente não consigo viver sem isso, mas com profundo pesar e medo das próximas perdas. Até a semana que vem.

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Ah, um adendo: na minha opinião, não é o colapso climático ou a guerra nuclear o que vai em breve destruir a humanidade; é a Inteligência Artificial.

Sobre Pelé e a genialidade

A recente morte de Pelé, ídolo dos ídolos, celebridade das celebridades, deus do futebol, o eterno Rei, o mais ilustre dos brasileiros, fez aumentar subitamente de frequência o uso da palavra gênio, e não sem justa razão. É bem verdade que essa palavra anda meio banalizada ultimamente, tendo virado elogio fácil a qualquer um que, na suspeita e duvidosa opinião de alguns, tenha realizado algum feito notável, ainda que trivial. Nesses nossos tempos, Anitta é um gênio por ter chegado ao topo do ranking do Spotify, Galvão Bueno é o gênio da narração esportiva, Steve Jobs foi o gênio da tecnologia por ter inventado o i-Phone, e por aí vai. Mas, apesar desse uso lisonjeiro e pouco autêntico do termo, existem e existiram os gênios verdadeiros, aqueles que revolucionaram com sua inteligência e habilidades ímpares as áreas em que atuaram. Se para nós Pelé se tornou, mais do que um nome próprio, um substantivo comum designativo do indivíduo que chegou ao mais alto nível de seu ofício, tornando-se insuperável, podemos dizer que muitos seres humanos merecem esse epíteto. Não é errado dizer que Ivo Pitanguy foi o Pelé da cirurgia plástica, que Oscar Niemeyer foi o Pelé da arquitetura, Ayrton Senna o Pelé do automobilismo, Michael Phelps o Pelé da natação, Muhammad Ali o Pelé do pugilismo, e assim por diante. Talvez até devêssemos grafar Pelé nesse sentido com inicial minúscula: “o deputado fulano de tal é o pelé da corrupção”.

Mas, ao assistir na TV nestes últimos dias aos feitos fantásticos, inigualáveis e, por que não?, sobre-humanos do nosso querido Rei, me vêm à mente os nomes de muitos pelés que admiro e tenho como guias e fontes de inspiração, cada um tendo sido um divisor de águas em sua profissão, repartindo-a em “antes” e “depois” dele; alguns, diferentemente, foram tão iluminados que fundaram a própria profissão; para estes, só existiu o “depois”.

Por exemplo, penso em Aristóteles, o maior filósofo de todos os tempos, capaz de fazer reflexões profundas e complexas sobre todas as áreas do conhecimento, um homem cujas ideias na maioria dos campos em que filosofou ainda são válidas nos dias de hoje e que fez isso numa época em que a filosofia ainda dava seus primeiros passos. O fato é que nenhum filósofo depois dele conseguiu realizar obra mais perene e monumental do que o famoso estagirita, como ficou conhecido.

E o que dizer de Isaac Newton, o sábio inglês que, ao ver, segundo dizem, cair uma maçã, enunciou as leis que regem nosso Universo e que explicam todos os fenômenos físicos, exceto os muito rápidos (próximos à velocidade da luz) e os muito pequenos (na escala subatômica)? Newton não só fundou a física moderna, especialmente nos domínios da mecânica e da óptica, e, de certa forma, toda a ciência moderna, mas também foi um dos mais brilhantes astrônomos e matemáticos de todos os tempos. E, como se não bastasse, ainda fazia estudos em teologia e ciências ocultas. Apenas um homem se igualou a ele, mas não o superou: foi Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade. Esses dois gênios resumem toda a física. No entanto, Newton prestou reverência a seus mestres, outros gênios um pouco menores mas sem os quais Newton não seria Newton: Copérnico, Galileu e Kepler. Do mesmo modo, Aristóteles não seria quem foi sem seus mestres Sócrates e Platão, e também Tales, Anaximandro, Parmênides, Leucipo, Demócrito…

Enquanto isso, Charles Darwin revolucionou a biologia e, de quebra, abalou nossas mais profundas crenças religiosas com a Teoria da Evolução das Espécies, uma ideia simples, como são todas as ideias geniais, e que hoje se aplica a animais, plantas, línguas, culturas, sociedades, sistemas planetários e o próprio Universo. Mais uma vez, Darwin deve tributo a predecessores menos festejados pela História como Lineu e Lamarck.

Saindo da ciência e indo para a arte, como não lembrar de Johann Sebastian Bach, o maior compositor de todos, o sujeito que não apenas produziu os maiores hits de todos os tempos (sim, se vivesse nos dias de hoje, Bach seria um hitmaker maior que Paul McCartney ou Burt Bacharach, certamente ganhador de todos os Grammys) como simplesmente definiu a estrutura da música ocidental. Tudo o que Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, os Beatles, Michael Jackson, Tom Jobim, etc., fizeram só foi possível porque Bach fez primeiro. E sua música sublime é conhecida nos quatro cantos do mundo; não há ninguém que nunca tenha ouvido alguma de suas melodias, nem que seja num comercial de televisão. Aliás, conta-se que um certo crítico musical, quando perguntado quem em sua opinião era o rei da música, respondeu: “Beethoven”. Sua resposta causou surpresa e certa indignação ao indagador, que arguiu: “E Bach?”. Ao que o crítico esclareceu: “Beethoven é o rei da música, já Bach é o deus da música”.

E Lavoisier, o homem que inventou a química e tornou possíveis todos os infinitos produtos industriais que temos hoje? E Thomas Edison, o maior inventor da História? E Sigmund Freud, o médico que desvendou a mente humana? E Leonardo da Vinci, o grande polímata, considerado por muitos o maior de todos os gênios, um craque (poderíamos dizer “um Pelé”) na pintura, escultura, arquitetura, música, poesia, engenharia, anatomia, botânica, aeronáutica, precursor de grande parte dos inventos que só surgiriam oficialmente séculos depois dele, sobretudo o “inventor” do Renascimento e, por consequência, do mundo moderno?

E temos ainda alguns gênios menos difundidos, mas não menos brilhantes: Michael Faraday, o autodidata que destrinçou a eletricidade e tornou possível toda a moderna tecnologia; Alfred Wegener, o geofísico alemão que percebeu a complementaridade entre as formas dos continentes e criou a teoria da Pangeia, segundo a qual todos os atuais continentes um dia formaram uma única massa, que se partiu graças ao movimento das placas tectônicas; Gian Lorenzo Bernini, o mais magistral dos escultores, cujas estátuas parecem ter vida; William Jones, o jurista britânico que, percebendo as semelhanças entre várias línguas da Europa e da Ásia, postulou sua ancestralidade comum num idioma pré-histórico, o indo-europeu, e, com isso, inaugurou a linguística; e, depois dele, Ferdinand de Saussure, o linguista suíço que deitou as bases dessa ciência a partir de uma meia dúzia de dicotomias, das quais já falei diversas vezes em meus escritos. Enfim, há tantos “pelés” a quem devemos o melhor de nossa ciência, arte, tecnologia, esporte, cultura. E o mais incrível é que a maioria deles partiu de ideias absolutamente simples, só que ninguém as teve antes deles, e que se mostraram revolucionárias, além de terem trabalhado às vezes com os recursos mais rudimentares, como a bola de meia com que Pelé aprendeu a jogar futebol. Como diz um provérbio chinês antigo — e mineiro moderno —, inteligente é quem descobre o óbvio. O que nosso Pelé fez com a bola nos pés é no fundo muito simples, mas que outro jogador seria capaz de fazê-lo? Na verdade, muitos craques, como Zico, Maradona, Ronaldo, Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, fizeram em algum momento algo que Pelé fez, mas o Rei fez primeiro; e fez, sozinho, o que todos os outros craques fazem juntos. Ou seja, seria preciso somar o talento de todos eles para produzir Pelé. E esse gênio, um dos maiores da galeria que elenquei aqui, era negro, pobre e brasileiro, para nosso orgulho. Pelé morreu. Viva Pelé!

O ocaso da civilização?

Nestas duas primeiras décadas do século XXI, temos visto o mundo passar por várias mudanças – a meu ver para pior. Como todos aqueles que têm um pouco mais de idade (no meu caso, nem tanta assim rs), sinto saudade dos meus tempos de infância e adolescência. Na verdade, acho que todo mundo já sentiu, sente ou sentirá saudade desses tempos de despreocupação com o futuro, algo ainda tão distante, e de quase nenhum passado a recordar, quando só o presente importa. E aí temos a tendência a achar que esses tempos foram os melhores não só para nós, mas para todas as pessoas. Olhamos para trás e achamos que nunca, nem antes nem depois, o mundo foi tão bom como naquela época em que éramos mais jovens. Não consultei muitas outras pessoas sobre isso, mas tenho para mim que essa sensação deve ser universal – exceto, é claro, para quem teve uma infância horrível, de privação e violência, por exemplo.

Todavia, no meu caso – e perdoem-me se estou sendo chauvinista –, fico achando que o tempo em que fui criança ou adolescente coincidiu de fato com a melhor época da humanidade, pelo menos nesta parte do planeta que convencionamos chamar de Ocidente.

Se fizermos um retrospecto do que foi a história da espécie humana e em particular a história de nossa civilização, talvez os amigos leitores concordem comigo. Comecemos pela Antiguidade clássica. A civilização greco-romana nos legou um inestimável patrimônio de cultura, arte, filosofia, ciência, fundamentos de ética e moral, mas era, ao mesmo tempo, uma sociedade escravagista, patriarcal, belicosa, xenófoba e dominada por tiranos – mesmo a chamada democracia ateniense não era assim tão democrática, já que excluía a maior parte da população. Portanto, foi uma época de muito arbítrio e pouca liberdade.

Então vieram os mil anos da Idade Média com seu obscurantismo, fanatismo religioso, guerras, fome, peste, falta de higiene, caça às bruxas, ódio a todo conhecimento que não estivesse de acordo com a Bíblia, fogueira aos hereges e nenhuma liberdade de pensamento.

As coisas parecem melhorar com o Renascimento e sua cultura do homem, mas a Santa Inquisição continua a postos, e ainda surgem os monarcas absolutistas. Há uma Revolução Científica acontecendo no século XVII, mas cientistas e pensadores ainda são condenados à prisão ou à morte (Galileu Galilei e Giordano Bruno que o digam). Há também um movimento chamado Iluminismo no século XVIII pregando o estado laico, a separação entre os poderes e o sistema democrático representativo. Mas ainda durante todo o século XIX pouco se pode falar de democracia. Mesmo os regimes republicanos que começam a surgir no Novo Mundo com a independência das antigas colônias europeias têm pouco de democráticos ou representativos. Talvez um pequeno respiro nessa sucessão de tragédias tenha sido a Belle Époque, breve intervalo entre guerras, de 1870 a 1914, em que floresceram as artes e as ciências, e o Ocidente respirou alguma liberdade.

Aí vem o primeiro grande abalo planetário com a Primeira Grande Guerra e seus milhões de mortos, seguida da epidemia conhecida como Gripe Espanhola. Esse conflito descortinou um período sombrio de crise econômica, com a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a subsequente recessão-depressão dos anos ’30, e de crise política, com a ascensão do fascismo e do nazismo, culminando numa convulsão global ainda maior, a Segunda Guerra Mundial.

A partir daí, apesar do início da chamada Guerra Fria e das tensões políticas dela advindas, a Europa ocidental, reconstruída pelo Plano Marshall, e a América vitoriosa começam a viver um período de paz, democracia, mobilidade social, secularismo, liberdade sexual, de costumes e de expressão e florescimento cultural nunca antes vistos: é a era da cultura pop, dos Beatles, de Woodstock, da televisão, da social-democracia e seu estado de bem-estar social. A Europa ainda é atormentada de vez em quando por alguns atentados terroristas de inspiração comunista, mas o clima em geral é de tranquilidade e de efervescência intelectual e artística. Além disso, é a época do conforto: da refrigeração, do aquecimento central elétrico, do chuveiro elétrico, dos eletrodomésticos…

A queda do muro de Berlim em fins dos anos ’80 e o consequente fim da Guerra Fria, aliados ao surgimento da globalização, parecem apontar o início de uma nova era de prosperidade e paz. Só parece. O atentado do 11 de Setembro de 2001 substitui o terrorismo de esquerda pelo terrorismo islâmico. Novos inimigos surgem no horizonte: o Estado Islâmico, a China, ditadura que desponta como a segunda maior potência econômica mundial, a Rússia de Putin e seu desejo de ser o novo imperador do mundo e de nos pôr à beira da Terceira Guerra Mundial. Paralelamente, democracias até então sólidas começam a periclitar: Orban na Hungria, Salvini e Meloni na Itália, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil… A guinada à direita já se esboçava nos anos ’80 com Thatcher, Kohl, Reagan e João Paulo II, ladeada pelo retorno triunfante das religiões e do misticismo na virada do milênio e a progressiva derrocada do laicismo e ascensão de fantasmas como negacionismo, pós-verdade, fake news e outros venenos do esclarecimento.

Como cereja do bolo, chegam as modernas tecnologias, como a inteligência artificial, trazendo o emburrecimento das mentes e a robotização do ser humano, e o aquecimento global, causador das mudanças climáticas, querendo indicar que nosso modelo de civilização globalizado e consumista está chegando aos estertores.

Enfim, o ciclo de paz, prosperidade e resplendor cultural que se estendeu de aproximadamente 1950 a 2000 parece que terminou. Curiosamente, esse período histórico coincide com o reinado da recém-finada rainha Elizabeth, o que de fato sinaliza o fim de uma era.

Pareço muito pessimista? Talvez. Mas creio que o pessimismo é a melhor forma de realismo. Certa vez disseram ao mestre José Saramago que ele parecia um profeta, tal era o grau de acerto de suas previsões sobre o futuro da humanidade. Ao que ele respondeu que é fácil ser profeta: basta prever o pior cenário possível; certamente será este o que se verificará.

Negacionismo científico e negacionismo político

Semanas atrás, recebi um comentário a um vídeo do meu canal do YouTube Planeta Língua intitulado “A palavra é… negacionismo”. Nesse vídeo, explico a origem e o significado da palavra, que se tornou tão corrente desde a eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. O comentário em questão afirmava que negacionismo é um termo pejorativo criado pela esquerda para depreciar, humilhar e intimidar a direita. Em outras palavras, o que o comentador do vídeo, indisfarçavelmente de direita, sustenta é que negacionismo não existe, trata-se de uma acusação vazia, o que implica que as posições que os supostos negacionistas defendem são legítimas.

Vamos então primeiramente falar sobre a origem do termo e do porquê de sua criação. A palavra negacionismo foi cunhada em francês (négationnisme) pelo historiador Henry Rousso em seu livro de 1987 A síndrome de Vichy, em que ele o aplica à atitude política de certos membros da direita francesa de negar a existência do Holocausto. Portanto, o termo negacionismo nasceu no âmbito da história e, por isso mesmo, é por vezes chamado de negacionismo histórico.

Na década de 1990, por ocasião dos debates sobre as mudanças climáticas, surgiram os negadores dessas mudanças, os chamados “ambientalistas céticos”. A partir daí, a comunidade científica, especialmente nos EUA, passou a empregar o termo negacionismo (em inglês negationism) em relação a esses céticos. Surgia o negacionismo científico.

Portanto, negacionismo é a postura de negar a realidade e, em especial, fatos cientificamente comprovados como forma de fugir de uma verdade incômoda.
É o triunfo da opinião sobre o fato. O negacionismo se distingue da simples negação porque rejeita uma tese mesmo que ela seja empiricamente comprovável e mesmo já esteja provada um sem-número de vezes. De certa forma, o negacionismo é primo-irmão das teorias conspiratórias. Os adeptos dessas teorias, chamados de conspiracionistas, sustentam que a comunidade científica internacional, denominada depreciativamente por eles mainstream científico, é fechada a novas ideias e rejeita sistematicamente teorias alternativas, como a de que a espécie humana é descendente de extraterrestres ou então teses criacionistas como o design inteligente, por exemplo. Na opinião desses conspiracionistas, a comunidade científica não seria nada mais do que uma máfia.

A questão é que o que eles chamam de mainstream é, na verdade, o conjunto majoritário de pesquisadores do mundo todo que baseiam seus conhecimentos no método científico, isto é, nos dados resultantes de experimentos nos quais uma hipótese é posta à prova e, se contradita pela experiência, é descartada. Essa comunidade de pesquisadores é responsável por estudos minuciosos, rigorosamente planejados e controlados, e sobretudo tão neutros e imparciais quanto possível, o que significa que nenhum resultado é privilegiado a priori, mas as teorias têm de se dobrar ante os fatos, e, se uma teoria entra em contradição com a realidade mostrada pelos resultados empíricos, errada está a teoria, não a realidade.

O ambiente científico é tão controlado que qualquer publicação séria tem de passar primeiro pelo crivo de pareceristas contratados pelo periódico ao qual o artigo é submetido, pareceristas estes de alta reputação científica, que fazem uma análise duplo-cego: nem o parecerista sabe o nome do autor do artigo nem vice-versa. Se aprovado e publicado, o artigo passa agora pelo crivo de toda a comunidade científica; o experimento ali descrito pode ser replicado por qualquer um, e os resultados obtidos devem ser os mesmos relatados no artigo. Se não forem, algo está errado. Logo, uma fraude científica cedo ou tarde é desmascarada. Este é o verdadeiro mainstream da ciência.

Por sinal, é a ele que devemos toda a evolução tecnológica do mundo atual, desde medicamentos para as mais diversas doenças até os modernos meios de transporte e comunicação, dentre tantas outras inovações. Ou seja, se as teorias científicas vigentes estivessem erradas e as “alternativas” é que fossem corretas, certamente ainda estaríamos na Idade Média. O grande problema dessas teorias alternativas, que, a rigor, nem teorias são, mas meras hipóteses, é que elas não têm suporte em dados empíricos, o que equivale a dizer que elas não apresentam provas de sua veracidade, são meros argumentos que podem convencer os mais ingênuos, mas não resistem a um teste mais rigoroso.

Em resumo, ao contrário do que afirma o comentador do meu vídeo, negacionismo não é uma pecha injusta criada pela esquerda política para depreciar direitistas, é uma acusação feita pelas pessoas de bom senso, que aceitam verdades sobejamente provadas, contra as que não as aceitam. O negacionismo é, pois, uma vertente do obscurantismo.

Mas o negacionismo não existe só na ciência, como na história (negação do Holocausto), na biologia (negação da evolução das espécies), na ecologia (negação do aquecimento global) ou na medicina (negação das vacinas); ele existe também na política. A atitude de negar os resultados de pesquisas eleitorais feitas por institutos sérios, com metodologia científica, apenas porque o candidato de sua preferência não está na liderança dessas pesquisas ou, pior, negar o resultado de eleições limpas e seguras, altamente monitoradas até por organismos internacionais, alegando fraude, jamais comprovada, apenas porque seu candidato não venceu, é uma forma de negacionismo político. Por conseguinte, o negacionismo político anda de mãos dadas com o golpismo. Aliás, todos os golpistas partem de uma mentira que eles sustentam como verdade para justificar seu golpe. A alegação de Putin de que o governo ucraniano é neonazista serviu de justificativa para a invasão da Ucrânia. Desde então, o governo russo nega verdades amplamente documentadas pela imprensa como a de que os mísseis russos miram alvos civis ao mesmo tempo que sustenta inverdades como a de que não há uma guerra e sim uma operação militar especial, o que quer que isso signifique.

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Antes que algum bolsonarista me acuse de ser esquerdista, comunista ou “mortadela”, quero esclarecer que sou politicamente de centro e no primeiro turno não votei nem em Lula nem em Bolsonaro. Logo, minhas considerações não têm nenhum caráter sectário ou ideológico, mas são na verdade a mera constatação de uma patologia social de nosso tempo chamada extremismo.

Monarquia ou república?

Desde o falecimento da rainha Elizabeth II do Reino Unido e a consequente ascensão ao trono de seu filho, o agora rei Charles III, vem ganhando corpo naquele país o debate sobre o possível fim da monarquia britânica. Pesquisas mostram que cerca de 40% dos britânicos são republicanos, e hashtags como #notmyqueen e #notmyking pulularam nas redes sociais nestes últimos dias.

Sem dúvida, a república é um regime de governo mais moderno que a monarquia, tanto que a maior parte dos países do mundo foi monárquica até o século XIX e, desde então adotou o sistema republicano.

No entanto, gostaria de fazer algumas considerações sobre essa possível opção entre monarquia e república que a eventual impopularidade do novo soberano britânico pode quem sabe levar seus súditos a ter de fazer dentro de algum tempo.

Antes de mais nada, quero esclarecer que não sou monarquista e, apesar do clima romântico que a monarquia brasileira inspirou e que até hoje rende telenovelas de época de grande sucesso, penso que o Brasil teria se desenvolvido mais se tivesse sido uma república desde a Independência. Mas há alguns fatos a serem analisados e ponderados.

Em primeiro lugar, alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, como Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Japão, são monarquias, e não parece que os povos dessas nações estejam descontentes com seus soberanos. Nesses países, o índice de defensores da república é baixo, talvez porque o custo financeiro desses regimes seja menor que o da coroa britânica. De fato, a principal reclamação dos súditos de Charles III diz respeito ao fausto em que vive a família real sustentado pelo dinheiro dos contribuintes – embora há já algum tempo a realeza pague impostos. De todo modo, essas monarquias que citei estão entre os países mais ricos do mundo, perfeitamente capazes de custear esse regime sem prejuízo da qualidade dos serviços públicos. O fato é que, enquanto a pequena parcela mais rica e desenvolvida da humanidade é governada por reis, a imensa maioria dos países mais pobres do mundo é de repúblicas, muitas delas comandadas por ditadores.

Outro fato que talvez explique a antipatia de parcela do povo britânico pela sua monarquia são os escândalos em que volta e meia a família real se envolve. Mas escândalos não são exclusividade da realeza, é bom lembrar. Aliás, o Brasil republicano é pródigo neles.

Por outro lado, a monarquia britânica, com seus rituais de troca da guarda, passeios do monarca em carruagem dourada pela cidade, aparições públicas do soberano na sacada do Palácio de Buckingham, além da existência de palácios e castelos, soldados com fardas belíssimas, títulos de nobreza, etc., tudo isso atrai turistas do mundo inteiro e, por conseguinte, gera renda ao país. É bem verdade que parte dessa renda vai para a própria família real, que licencia produtos – canecas, chaveirinhos, camisetas e outros souvenirs – com a imagem da rainha ou o brasão real, mas, em vez de acabar com a monarquia, bastaria transferir para o estado essa arrecadação. Para se ter uma ideia, a realeza britânica é uma das marcas de maior valor agregado que existem. Se fosse uma empresa, seria uma das mais caras do mundo.

Outro aspecto a ser considerado e que explica a grande atração e fascínio que esse regime exerce é o próprio imaginário popular, muito ligado a reis, rainhas, príncipes e princesas. Aqui no Ocidente, fomos governados por monarcas por pelo menos 2 mil anos, desde o Império Romano, passando pelos reinos europeus medievais, com suas histórias de cavalaria, depois pelas monarquias absolutistas da Idade Moderna, representadas nos romances de capa-e-espada como Os Três Mosqueteiros, até chegarmos às monarquias nórdicas da atualidade. Esse sistema de governo e todo o estilo de vida a ele ligado ainda está tão impregnado em nós que até hoje ninguém chama a um filho pequeno de “meu presidentinho” ou “minha primeira-daminha”: ainda são os príncipes e princesas que nos fascinam e é como eles que as crianças gostam de se fantasiar nas festas infantis. E ainda são contos de fada com príncipes e princesas que contamos aos nossos filhos.

Há ainda a questão da estabilidade política que o regime monárquico proporciona. Em países governados por soberanos, é raro vermos crises institucionais, ameaças de golpe ou coisa parecida. É claro que há reinos e reinos. Uma coisa é a Grã-Bretanha, cujos 70 anos de reinado de uma rainha Elizabeth carismática e popular garantiram essa estabilidade, muito embora a última revolução ocorrida na Inglaterra tenha se dado no século XVII. Outra coisa são reinos como a Tunísia, a Arábia Saudita e a Tailândia. Mas o que pesa aí não é o regime em si, é o nível de desenvolvimento do país. Em outras palavras, nações subdesenvolvidas estão sujeitas a conviver com a instabilidade política qualquer que seja o sistema de governo. Ademais, o risco de corrupção num reinado é menor do que numa república: reis já são ricos e desfrutam dessa riqueza de forma vitalícia, portanto não precisam desviar dinheiro público.

Por sinal, a monarquia britânica tem sido até hoje a responsável por manter o Reino Unido unido, isto é, por impedir a desagregação do estado em face de separatismos como o escocês, por exemplo.

De todo modo, a troca constante de governantes, própria do regime republicano, gera sempre mais instabilidade, especialmente em países como o Brasil, em que é costume cada novo mandatário desfazer todas as realizações de seu antecessor, não necessariamente porque não fossem boas, mas por puro revanchismo político.

Em estados como o Reino Unido, cujo sistema de governo é parlamentarista, o papel do rei é puramente simbólico, assim como também o seria o de um presidente da república. Basta ver que em repúblicas parlamentaristas como Portugal, Itália e Alemanha o presidente pouco apita. Nesse caso, que diferença faria trocar o rei por um presidente? Aliás, grande parte da culpa que se atribui aos monarcas ingleses pelos desmandos do Império Britânico – exploração colonialista, escravidão, roubo de relíquias históricas das colônias – cabe na verdade aos primeiros-ministros do Império, os reais governantes a perpetrar essas barbaridades. Por sinal, a França, republicana desde 1870, cometeu os mesmos abusos em suas colônias.

Por fim, vale lembrar que, se a grande queixa dos republicanos britânicos é o alto custo da monarquia, repúblicas também custam caro. Basta ver os gastos do governo norte-americano com seu presidente em termos de segurança, mas também de cerimonial. Aliás, o estado republicano brasileiro é um dos mais caros do mundo – haja vista o quanto pagamos de impostos – a despeito da pobreza da maior parte de nossa população e dos péssimos serviços públicos oferecidos em troca. Fica aí uma questão para se pensar.

O planeta tem esse nome porque é plano?

Parece incrível, mas em pleno século XXI ainda tem gente acreditando que a Terra é plana: são os terraplanistas, que, juntamente com os antivacinistas, formam a maior parte dos chamados negacionistas (o sufixo ‑ista de todos eles evidencia que são seguidores de ideologias ou doutrinas e constituem verdadeiros movimentos – ou seitas).

Existem negacionistas menos populares que esses dois tipos acima, como os que negam a morte de Elvis Presley e os que negam a morte de Hitler (claro, o Führer está vivo e forte aos 133 anos de idade!). Ao contrário, há aqueles que acreditam que Paul McCartney morreu em 1967 e quem está até hoje gravando discos e fazendo shows em seu lugar é um impostor.

Mas um dos comentários mais hilários que li de um terraplanista é que o planeta Terra se chama planeta justamente porque é plano. Tudo bem que nossos antepassados da Antiguidade ou da Pré-História pensassem que a Terra é chata, afinal a extensão de território que eles conseguiam percorrer era pequena demais para perceber a curvatura do nosso corpo celeste. Mesmo o horizonte marítimo visto da praia parece retilíneo, mas Aristóteles sabiamente já argumentava que, se a Terra fosse de fato plana, os navios não desapareceriam no horizonte. E os eclipses mostravam sobre a Lua a sombra circular da Terra, o que os gregos também já haviam percebido. Aliás, foi na Grécia antiga que, pela primeira vez, se mediu a circunferência da Terra. O autor do brilhante feito foi o matemático e astrônomo Eratóstenes de Cirene, e seu erro em relação à medida atual foi de apenas 300 quilômetros!

Mas, se os gregos já sabiam que nosso planeta é esférico, porque lhe deram justamente o nome de planeta? A resposta é simples, pelo menos para quem estuda etimologia e sabe um pouco de grego: é que a palavra grega planétes, que deu nosso planeta, não tem nenhum parentesco com o latim planus, que deu o português plano. Na verdade, planétes quer dizer “viajante”, do verbo plánasthai, “vagar, viajar”. Ou seja, os gregos não só sabiam que os planetas são esféricos como também que se movem no espaço. É verdade que o modelo geocêntrico de Ptolomeu colocava a Terra no centro do mundo, portanto numa posição imóvel em torno da qual os outros planetas giravam. Logo, a denominação planeta inicialmente não se aplicava à Terra. Foram os astrônomos renascentistas, a partir de Copérnico, que compreenderam que o centro era o Sol e que a Terra também se movia (eppur si muove, “e no entanto se move”, teria dito Galileu após ter abjurado do sistema heliocêntrico perante a Santa Inquisição a fim de preservar a própria vida). Portanto, agora a Terra também era um planeta, isto é, um viajante, um corpo errante no Universo.

Infelizmente, 400 anos depois disso e malgrado os esforços empreendidos e os riscos corridos pelos cientistas, ainda tem gente acreditando que a Terra é plana. E usando da falsa etimologia, ou etimologia de botequim, para sustentar sua esdrúxula teoria.

Tá doido, rapaz? Ou melhor, tá inclusão?

Outro dia, publiquei neste espaço um artigo em que teci uma certa crítica à chamada linguagem politicamente correta e à militância que, em nome do justo combate a preconceitos e desrespeito a direitos humanos, sentencia de morte certas palavras, atribuindo-lhes uma carga depreciativa que elas efetivamente não têm, como, por exemplo, afirmar (erroneamente) que denegrir faça alguma alusão à raça negra.

Como era de se esperar, minha crítica, embora fundamentada, gerou algum incômodo em espíritos mais sensíveis a essas causas, na maioria das vezes pessoas bem-intencionadas mas mal-informadas. Um leitor me questionou:

Não entendi se o senhor aceita a mudança da troca das palavras?

E se trocar mudaria para você o que?

E se estudamos a língua com afinco em saber a suas origens, e entendimento ao longo de nossa existência, ela não vale ser revista? Ou que momento isso pode acontecer? Ou não pode?

Sobre o apontamento a pessoas portadoras de deficiências, é algo que está em constante mudança par atingir mais pessoas sem distingui-las como “defeito de fábrica”, já que a sociedade cria um modelo de ser “humano” a ser normatizado e qualquer outro ser humano fora desse padrão é estigmatizado com termos que são excludentes. A empatia no uso dos termos tenta amenizar as diferenças que são consideradas pejorativas por outros (nas mesma definições). […]

Respondi-lhe que, como linguista, sei mais do que ninguém que a língua evolui e, portanto, o léxico muda com o tempo. No entanto, existe uma diferença entre a mudança espontânea feita pelo consenso dos falantes e uma tentativa de mudança imposta por certos grupos de poder. Por exemplo, quem decidiu trocar negro por afrodescendente não foram os falantes do português em geral, nem mesmo os próprios negros; foram sociólogos e antropólogos de universidades públicas na esteira do inglês African American, que tampouco foi criado pelos falantes da língua inglesa, mas por cientistas sociais e intelectuais americanos. O resultado mais concreto dessas tentativas de imposição daquilo que chamei de “novilíngua politicamente correta” é que termos como afrodescendente ou pessoa portadora de necessidades especiais não têm adesão popular; são usados exclusivamente pela imprensa e por ativistas. Os próprios negros em geral se chamam de negros e não de afrodescendentes. Aliás, tenho vários amigos negros e já os vi chamando-se uns aos outros de “negão” ou “crioulo” de forma carinhosa.

Portanto, o que eu critico não é a mudança da língua em si, fato inevitável e que constitui a própria essência da linguagem humana (talvez até de tudo que é humano); minha crítica é à tentativa artificial de imposição de novos termos, bem como a proibição de outros, sem um critério objetivo e por razões meramente ideológicas por parte de grupos políticos que, por vezes, se sentem donos da verdade. Aliás, o fanatismo e o extremismo, sejam eles religiosos, políticos ou até mesmo futebolísticos, surgem quando indivíduos, imbuídos da convicção de que a causa pela qual militam é justa, se sentem no direito (ou, mais do que isso, no dever) de impor sua visão de mundo a toda a sociedade. A Inquisição católica medieval, o nazismo e o comunismo, com suas consequentes atrocidades, nasceram de crenças assim, de que almas precisavam ser salvas, de que o mundo sem judeus ou sem capitalistas seria um mundo melhor.

Em nome do combate ao preconceito e à exclusão social, já tentaram até censurar os dicionários com o objetivo de banir certas acepções consideradas demeritórias a certos grupos. Ora, o dicionário é um espelho da língua: se certos sentidos existem nele é porque existem na língua. Aqui vale o velho adágio: “Não culpes o espelho se tua cara é torta”. Acima de tudo, minha crítica se dirige à hipocrisia de setores políticos que acham que, mudando a linguagem, mudam a realidade. Nesse aspecto, prefiro, por exemplo, continuar chamando os índios de índios, mas vê-los ser tratados com a dignidade que merecem (o que, diga-se de passagem, nunca o foram, e menos ainda neste atual governo) a chamá-los de indígenas ou povos originários e continuar tratando-os com o mesmo descaso histórico como os tratamos atualmente.

Pois bem, um dos efeitos mais deletérios da chamada linguagem politicamente correta (ou linguagem PC, para os íntimos) é o mascaramento da realidade, como se dar nomes bonitos e pomposos a coisas feias as tornasse menos feias. Ou seja, o PC não deixa de ser uma forma dissimulada de manipulação por meio das palavras, e as pessoas comuns, especialmente aquelas que não se deixam influenciar por ideologias (políticas, publicitárias, religiosas, etc.) percebem isso. O cidadão idoso que sempre chamou os afrodescendentes de pretos sem nenhuma conotação pejorativa tem razão de sentir-se perplexo quando agora é advertido de que sua maneira de expressar-se é inadequada, politicamente incorreta ou, o que é pior, racista.

Uma das reações ao patrulhamento ideológico que tenta impor essa novilíngua é a zombaria: expressões PC acabam ganhando sentido bem-humorado (por exemplo, diante de uma tempestade iminente, dizer que o céu está cheio de nuvens afrodescendentes). Expressões politicamente corretas logo produzem versões humorísticas ou paródias, como chamar o careca de “portador de deficiência capilar” ou o baixinho de “pessoa verticalmente deficiente”.

O mais novo rebento desse humor politicamente incorreto (aliás, humor politicamente correto não tem graça nenhuma) decorre da atual – e, a meu ver, acertada – política educacional de incluir nas salas de aula regulares alunos com deficiência cognitiva ou intelectual (outrora deficiência mental), como autistas, portadores da síndrome de Down e outros.

Como se trata de uma política de inclusão social (e a própria legislação educacional assim a denomina), eis que surge a gíria maliciosa entre os profissionais da educação pública: qualquer pessoa que pareça lelé da cuca agora é “inclusão”. A Maria pôs a marmita no micro-ondas e se esqueceu de ligá-lo? Tá na cara que ela é inclusão! O Antônio considera Bolsonaro um defensor da democracia? Só pode estar inclusão! João acredita na honestidade dos políticos do Centrão? Xi, inclusão sem sombra de dúvida!

Como o humor é sempre mais inteligente que o patrulhamento das consciências (o semanário francês Charlie Hebdo que o diga!), não importa quantos termos estrambóticos e rebuscados a linguagem PC invente, o povo vai sempre achar um uso bem-humorado para eles. Mesmo que criado com boas intenções, o PC logo se torna ridículo, e as pessoas cuja fala espontânea não tem maldade nem preconceito utilizam da comicidade como instrumento de defesa contra a “assepsia da linguagem” promovida por esse nosso admirável mundo novo.

Afinal, o que é o Ocidente?

Nesta última terça-feira, o Vice-Presidente do Conselho de Segurança da Rússia,  Dmitri Medvedev, escreveu em sua conta na rede social Telegram: “Eu odeio os ocidentais. Eles são bastardos e degenerados. Querem a morte para nós e para a Rússia. E, enquanto eu estiver vivo, farei todo o possível para fazê-los desaparecer”. Como temos visto, desde que a guerra na Ucrânia começou, tem havido uma constante e crescente tensão entre a Rússia e o chamado Ocidente. E fica claro que os russos – pelos menos os que estão no poder – não se consideram parte desse Ocidente. No entanto, a Rússia é um país europeu, em que pese ter grande parte do seu território na Ásia, fruto de conquistas ao longo da História. Afinal de contas, o berço do povo russo é a Europa oriental, mais precisamente o reino medieval chamado Rússia de Kiev, que existiu do século IX ao XIII e foi fundado por vikings suecos. O próprio nome Rússia deriva de rus ou russi, palavra do antigo nórdico, língua que deu origem  ao sueco, norueguês, dinamarquês e islandês. E os russos são eslavos, povo de origem indo-europeia surgido no Leste europeu, onde se encontram até hoje.

Se os russos não se sentem ocidentais, e mesmo muitos ocidentais não os consideram como tal, então convém definir o que se convencionou chamar de Ocidente, Mundo Ocidental ou ainda Civilização Ocidental.

O embrião da nossa civilização foi a Grécia antiga, onde, por volta do século VI a.C. surgiu a primeira civilização do homem, isto é, que colocava o ser humano e sua capacidade de raciocínio no centro da realidade. O pensamento racional por oposição ao misticismo foi a primeira grande marca da cultura ocidental, que a distinguiu das culturas orientais.

Esse modelo de cultura pouco depois se espalhou para Roma, misturando-se em parte a tradições locais e resultando no que chamamos hoje de cultura greco-romana. A partir do século I d.C., Roma passou a sofrer a influência do cristianismo e sua moral de origem judaica, tendo mesmo adotado essa religião como oficial do Império Romano em 325 d.C. Agora, a civilização greco-romana era civilização greco-romano-judaico-cristã. Para muitos historiadores, Civilização Ocidental é sinônimo de Civilização Cristã; logo, pertenceriam ao mundo ocidental todos os povos majoritariamente cristãos, incluindo os russos.

O Império Romano nunca foi uma unidade étnica e, desde que conquistou a Grécia, a parte oriental do Império sempre foi mais grega do que latina. Em 395 d.C., o imperador romano Teodósio dividiu o Império em dois: Império do Ocidente, cuja capital permaneceu sendo Roma, e Império do Oriente, com capital em Constantinopla (atual Istambul).

Com o esfacelamento do Império Romano, outro povo incorporava sua cultura a esse substrato: os germanos. Com eles, veio o feudalismo, o direito consuetudinário, que ainda prevalece nos países nórdicos, a cavalaria medieval e sua ética cavalheiresca, os castelos, etc. É a partir dessa época, chamada de Alta Idade Média, que surgem os reinos que depois se transformariam nos atuais Estados europeus: França, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Espanha, e assim por diante. É também o momento em que línguas como o francês, o inglês e outras produzem seus primeiros registros escritos e suas primeiras obras literárias. Como mencionei acima, é nessa época também que surge a Rússia.

Enquanto isso, o Império do Oriente sobreviveria ainda por mil anos com o nome de Império Bizantino. Sua cultura era eminentemente grega.

Em 1054, o Grande Cisma do Oriente provoca uma ruptura no seio do cristianismo, dando origem a duas igrejas: a Católica Apostólica Romana, com sede em Roma, e a Católica Apostólica Ortodoxa, sediada em Constantinopla, atual Istambul. Essa ruptura aumentou a distância cultural que já havia na Europa: é nesse momento que os europeus mais a oeste, que permaneceram fiéis à Igreja de Roma e submetidos à influência da língua latina, passam a ver os europeus do leste, ortodoxos e influenciados pela língua e pela cultura gregas, como algo que já não fazia parte de sua civilização.

O Renascimento e sua retomada dos valores culturais e artísticos greco-romanos, que não chegou ao Leste europeu, aprofundou ainda mais a diferença entre as duas Europas. Embora continuasse a haver um mundo cristão em oposição ao mundo muçulmano que o ameaçava, começava a haver também dois conceitos de Ocidente: o conjunto de toda a cristandade ou somente a cristandade católica.

No século XVI, um novo cisma religioso abalaria a Europa: a Reforma Protestante, que separaria os países do norte, fundamentalmente germânicos, daqueles do sul, predominantemente latinos. Entretanto, esse novo cisma não seria suficiente para romper com o conceito mais restritivo de Ocidente: a ruptura religiosa não representava uma ruptura cultural, e os europeus do norte e do sul continuaram a intercambiar literatura, arte, ciência, filosofia, além de mercadorias. As revoluções da Idade Moderna – a Comercial, a Científica, a Francesa e a Industrial – afetaram toda essa região, mas não chegaram ao extremo leste da Europa. Somente no século XVIII, o czar russo Pedro o Grande promoveu a ocidentalização da Rússia, forçando sua corte a adotar costumes sobretudo franceses. Nesse momento, pode-se dizer que a Rússia voltava a fazer parte do Ocidente.

Os Grandes Descobrimentos do século XVI ampliaram o conceito de Ocidente, incluindo agora também as Américas. O descobrimento da Austrália e da Nova Zelândia no século XVIII levava essa civilização até o Oceano Pacífico. E em 1861 o Japão se abria ao Ocidente, adotando sua cultura. Apesar de manter algumas de suas tradições, pode-se dizer que hoje a terra do Sol nascente também é uma nação ocidental, assim como a Coreia do Sul e também Israel.

A Revolução Bolchevique de 1917, que fundou a União Soviética e inaugurou o comunismo como regime de governo, criou novo fosso entre leste e oeste. Agora o Ocidente era capitalista e o Oriente, ainda mais com a Revolução Chinesa de 1949, socialista. Surgiam o chamado Mundo Livre e a Cortina de Ferro.

A queda do muro de Berlim e o subsequente fim da União Soviética fez com que os países do Leste europeu novamente se aproximassem do Oeste, adotando o capitalismo, a democracia liberal e os costumes e o estilo ocidentais na moda, na música, no cinema, etc.

Agora, Vladimir Putin parece querer distanciar novamente a Rússia da Europa ocidental e dos Estados Unidos e, com a guerra na Ucrânia, parece querer também arrastar os antigos países satélites da extinta URSS para junto de si. O que move Putin a esse intento é sua filiação ideológica ao chamado eurasianismo, movimento político surgido em princípios do século XX, inicialmente inspirado nas ideias de Konstantin Leontiev e liderado, dentre outros, pelo príncipe Nikolai Trubetzkoy, que por sinal era linguista e foi o fundador da fonologia, ou estudo dos fonemas da língua.

O eurasianismo prega que a Rússia não pertence nem à categoria “europeia” nem à “asiática”, mas constitui o conceito geopolítico de “Eurásia”. Situando-se geograficamente entre os dois continentes e tendo em seu território populações de origem tanto europeia, sobretudo eslava, quanto asiática (turcos, fino-úgrios, cartvélios, sino-tibetanos, dentre outros), bem como tendo toda uma história em que se sucedem momentos de aproximação e de afastamento em relação à Europa ocidental, é natural que pelo menos parte dos russos não se sinta realmente pertencente ao mundo ocidental. O nacionalismo russo, que sempre esteve presente, também joga um papel importante nesse posicionamento.

Em seu livro Choque de civilizações, de 1996, o cientista político americano Samuel Huntington define Ocidente como toda a Europa católica e protestante (mas não a ortodoxa, o que exclui até a Grécia, berço de nossa civilização), os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Curiosamente, ele distingue a América Latina do Ocidente, embora nossa cultura seja predominantemente ocidental (contribuições africanas e ameríndias existem também nos Estados Unidos e Canadá).

Já a definição clássica de Ocidente compreende toda a Europa, inclusive a Rússia europeia, toda a América, a África do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. E há ainda algumas outras definições, baseadas em critérios políticos, como, por exemplo, pertencimento ou não à OTAN.

Como vimos, não há um conceito único de Ocidente, mas conceitos apenas parcialmente coincidentes, de modo que a única parte do globo terrestre que está presente em todos é a chamada Europa ocidental, basicamente católica ou protestante e, em termos étnico-linguísticos, fundamentalmente latino-germânica. Mas o Ocidente que Putin e Medvedev querem destruir se chama simplesmente Estados Unidos – a Europa ocidental e, mais ainda, América Latina e Oceania são para eles meros satélites que cairiam junto com o Tio Sam.