Um bolo de significados

Muitos já devem ter notado a semelhança entre as palavras “bolo”, “bola”, “bula”, “bolha”, e talvez até tenham intuído alguma relação com “bulir” e “ebulição”. Pois é, todas essas palavras são aparentadas, embora nos tenham chegado pelos mais diversos caminhos.

A mais antiga delas é “bola”, herdada diretamente do latim bulla, “bolha”, assim como o francês boule, o italiano bolla e o espanhol bolla. Aliás, foi esta última forma o étimo do português “bolha”. Em compensação, o espanhol bola veio do português, num empréstimo recíproco.

Já “bula”, tanto a papal quanto a de remédio, é empréstimo do latim bulla por via culta (por isso, o u se manteve, enquanto em “bola” transformou-se em o). É que bulla também era o selo em forma de bola com que o papa selava seus decretos. Por metonímia, passou a designar o próprio decreto papal (e depois, por extensão de significado, o impresso que acompanha os medicamentos).

De “bola” saiu, por mudança de gênero, “bolo”, no sentido culinário da palavra (bolo de aniversário, etc.). Curiosamente, o bolo alimentar, fecal, assim como o bolo de dinheiro (e, por consequência, a “bolada”, no sentido monetário), provém do grego bôlos, da mesma raiz que deu “êmbolo”, “símbolo”, “emblema”, “problema”, “bólido”, “parábola” “diabo” (diábolos), etc. Portanto, nada a ver com o latim bulla.

Essa palavra, aliás, produziu os derivados bullire e ebullire (de ex-, “para fora” + bullire), “ferver, borbulhar, fazer bolhas”. Deste último saiu ebullitio, que nos deu, por via culta, “ebulição”. Já “bulir”, de bullire, nos chegou por via popular: algo que bole (isto é, ferve) é algo em constante movimento. Daí que “bulir” passou a significar “mexer”. No Nordeste brasileiro, por sinal, “bulir” tanto se refere ao movimento de misturar a comida que ferve na panela quanto ao mexer em algo (“Posso bulir no seu livro?”) ou em/com alguém (“Pare de bulir comigo, seu menino!”).

Quanto a bol, palavra com que cada vez mais se designa um certo tipo de tigela nos meios chiques, vem do francês bol, que por sua vez provém do inglês bowl, “tigela, bacia, cuia”, palavra de origem germânica. Já o bule não tem nada a ver com bulla (embora o café ferva dentro dele) nem com bowl (não, o bule não é um parente distante da tigela!), mas sua origem é o malaio buli, palavra que os portugueses incorporaram em seus contatos com o Oriente no tempo das navegações.

Finalmente, o “bullying” tampouco faz parte dessa família de palavras (já tratei deste assunto anteriormente), embora alguns desavisados se queixem de estar sofrendo “bule” dos colegas.

Deve-se ensinar alta literatura a adolescentes?

A polêmica da semana é a postagem do digital influencer Felipe Neto, segundo a qual “forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco”. E acrescentou: “o fato de VOCÊ ser, ou ter sido, um adolescente fora da curva que ama romantismo e realismo brasileiro não significa nada perto do mar de jovens odiando livros por aí. E um dos motivos é justamente a forma como a maioria das escolas aplica a literatura como matéria”.

Sem dúvida, em um país que pouco lê e cuja cultura letrada, mesmo entre as classes mais abastadas, é bem baixa, questionar o ensino de literatura é algo bastante temerário e até mesmo iconoclasta. (Bem, talvez tenha sido realmente essa a intenção do famoso e controverso youtuber.)

Mas a questão é bem complexa e delicada, já que envolve vários aspectos, e o próprio ponto de vista dos estudantes não pode deixar de ser levado em conta. O filósofo e historiador Leandro Karnal afirma em seu Instagram que

Machado é um gênio, talvez o maior na prosa. É bom forçar um adolescente a ler Dom Casmurro para fazer uma prova? Acredito que isto precisa ser muito debatido. A diferença entre remédio e veneno é a dose. Como professor e amante da obra de Machado, eu diria: a) primeiro textos curtos e sedutores; b) avaliar idade e maturidade de cada turma; c) preparar o ambiente e trabalhar, talvez, O Alienista ou um conto curto; d) valorizar mais a ideia e as ironias, um pouco menos as personagens em uma avaliação. A questão está na gradação, no método, no prazer e na capacidade crítica. Eu começaria mostrando uma imagem tradicional de Machado “embranquecido” e o Machado real e perguntaria: “por que o gênio foi mudado na aparência?” Talvez, preparando O Alienista, lançaria o debate: “quem é louco para vocês?”. Dar uma obra densa, explicar que é realista e marcar uma prova é o caminho para despertar a raiva ou o tédio… De novo: ensinar alunos jovens é um desafio gigantesco.

O saudoso Rubem Alves diz em seu artigo O prazer da leitura:

Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a história. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. (…) [A criança] Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.
Num primeiro momento, as delícias do texto encontram-se na fala do professor. (…) Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas lembro-me com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professora lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos, extasiados. Ninguém falava.
Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia exames sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa da leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder a questionários de interpretação e compreensão.

Devo confessar que eu próprio sou uma das vítimas desse ensino equivocado de literatura. Sempre gostei de escrever, amo as línguas desde que me entendo por gente – ou, pelo menos, desde descobri que há muitas línguas no mundo. Abandonei o curso de física no quinto semestre para me dedicar à linguística por amor à palavra. No entanto, ter sido obrigado a ler Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego, ou, pior ainda, A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, e O Cabeleira, de Franklin Távora, provocaram em mim um trauma que carrego até hoje: sou totalmente avesso à prosa de ficção. Na verdade, leio muito, desde filosofia, passando por divulgação científica, história, biografias, atualidades, política, crônica, música, até humor e poesia, mas há anos não pego nas mãos um romance ou livro de contos. Não que eu desmereça a literatura ou não tenha consciência de sua importância artística e cultural. Pelo contrário, admiro muito as pessoas que têm a paciência de ler a descrição de um ambiente ou do vestido da heroína feita em três longas páginas, cheias de figuras de linguagem e torneios sintáticos inusitados! Assim como admiro as pessoas que, lendo uma narrativa ficcional, conseguem transportar-se mentalmente aos ambientes que ela visita e conseguem visualizar as feições dos personagens sem associá-las a atores de televisão. Mas admito que, em matéria de ficção, sou de uma geração mais imediatista, que de fato achava um saco passar dias e dias lendo uma estória quando o cinema nos conta essa mesma estória em pouco menos de duas horas, com trilha sonora, recursos audiovisuais, maravilhosos cenários, belos atores e atrizes e, em alguns casos, até narrador (aquela voz em off que fala com o espectador como o narrador onisciente ou como um dos personagens contando sua própria história).

Lembro-me que no ano de 2000 publiquei um artigo na Folha de S. Paulo com o título Repensando o ensino de literatura. Nele, eu dizia:

[o] ensino de literatura portuguesa e brasileira faz parte do currículo escolar de primeiro e segundo graus, e o conhecimento dessas literaturas é exigido na maioria dos concursos vestibulares. A justificativa para o ensino dessas disciplinas é a necessidade de nossos jovens tomarem contato com a literatura e, assim, com a língua portuguesa escrita em sua mais alta expressão. Em suma, o conhecimento literário faz parte da formação geral e humanística que se espera de qualquer cidadão escolarizado.
No entanto, o ensino de literatura nas escolas tem-se restringido, as mais das vezes, à história da literatura brasileira e portuguesa, exigindo do aluno, por exemplo, que decore o fato de que o início do Romantismo no Brasil se deu com a publicação, em 1836, de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, ou que o barroco se caracterizava, dentre outras coisas, pelo teocentrismo. Paralelamente, exige-se a leitura de alguns livros enfadonhos (…).
Ora, a literatura é uma arte como qualquer outra, como a música, a pintura, a escultura, o teatro… Entretanto, o ensino de educação artística nas escolas não se restringe à história da arte, mas, antes, procura incentivar a criatividade dos alunos por meio da elaboração de trabalhos manuais. Igualmente, o ensino de música (nas escolas onde ele existe) não objetiva fazer os alunos saberem em que ano nasceu Beethoven, mas sim transmitir a eles os rudimentos de teoria musical e de prática de algum instrumento. Note-se que nem o conhecimento de música nem o de artes é exigido nos vestibulares (exceto, é claro, para as carreiras de música e de artes plásticas).

Minha tese, que ainda sustento, é que o contato com a leitura deve ser prazeroso e que o aluno deveria ter a liberdade de escolher o que ler, seja ficção ou não ficção, seja nacional ou estrangeiro. Pois a cultura geral do cidadão não se faz apenas com narrativas de ficção, mas também e principalmente com a leitura de grandes intelectuais e pensadores, e o conhecimento que forma a cultura não está restrito a autores de língua portuguesa. Aliás, venhamos e convenhamos que a literatura de língua portuguesa goza de bem pouco prestígio em termos mundiais, o que parece indicar que há muito mais coisas boas a serem lidas lá fora do que aqui dentro.

Por isso, naquele artigo eu também defendia que,

[s]e o objetivo do ensino de literatura na escola média é estimular no aluno o hábito da leitura, então por que, em vez de obrigá-lo a ler obras de ficção de séculos passados, não se propõe a ele a leitura de obras importantes de não ficção da atualidade, como os livros de Sérgio Buarque de Hollanda e Milton Santos, por sinal muito bem escritos, ou os de Carl Sagan, que possuem, aliás, excelentes traduções em português? Será que o estudo de obras, nacionais ou estrangeiras, que tratam de questões reais do mundo contemporâneo, como a globalização e a poluição, por exemplo, não é mais relevante que o estudo de obras ficcionais?

Ou seja, eu considerava que a literatura de ficção, como arte, deve ser, sim, conhecida e apreciada, e que, para isso, é preciso educar a mente assim como se educam os ouvidos para apreciar boa música ou o paladar para degustar um bom vinho. E que o modo como essa literatura vinha – e pelo jeito ainda vem – sendo ensinada simplesmente desestimula o estudante a ler, mata-lhe a capacidade da fruição estética e o enche de enfado e tédio. Finalmente, a cobrança dessas leituras em concursos vestibulares favorece o surgimento de cursinhos e sites que fornecem resumos, de modo que o candidato possa responder às questões da prova sem ter passado pelo suplício de ler as obras.

À época, recebi muitas cartas de apoio (os e-mails ainda estavam engatinhando; comentários e likes nem sonhavam em existir). Mas também fui detonado por dois ou três professores de literatura de universidades renomadas, que, defendendo seu feudo, chamaram meu arrazoado de “barbárie”.

Portanto, não espero que você, leitor, concorde comigo, mas que reflita sobre a problematização que fiz. E que não pegue o atalho fácil de sair malhando essa ou aquela celebridade que posta alguma opinião polêmica nas redes sociais sem ter analisado a fundo a questão. Às vezes, até um Felipe Neto da vida pode dizer algo que faça sentido. Ou propor um debate que valha a pena.

Todos os indígenas são índios?

A campanha de vacinação contra a covid-19, iniciada tardiamente e ameaçada de não ter continuidade por causa do isolacionismo diplomático em que nosso presidente coloca o Brasil, prioriza, neste primeiro momento, os profissionais de saúde que lutam na linha de frente, os idosos e os indígenas – estes últimos, também popularmente conhecidos como índios. A semelhança fonética entre “índio” e “indígena”, somada à semelhança de significados, nos induz logo a pensar que se trate de palavras aparentadas, o que não é verdade: trata-se, antes, de uma dessas coincidências capciosas, uma peça que a língua nos prega.

É que “indígena” provém do latim indigena, formado de indu, “dentro”, e geno, “gerar, dar à luz”, significando “natural do próprio país, nativo”. Ou seja, na Roma antiga, indígenas eram os próprios romanos (no Império Romano obviamente não havia índios). Por outro lado, na Renascença a palavra “índio” designava (e em espanhol ainda designa) os indianos; a confusão entre “índio” e “indiano” se deu justamente porque, segundo reza a lenda, os primeiros europeus a chegar à América, com a expedição de Cristóvão Colombo, acreditavam ter chegado às Índias. (Por causa disso, até hoje, a palavra inglesa Indian denomina tanto os indianos quanto os índios.)

Por outro lado, os índios não deixam de ser os nativos do continente americano, portanto legítimos indígenas. E aí está feita a confusão! Embora não seja usual, a palavra “indígena” seria perfeitamente aplicável a qualquer população nativa em relação aos exploradores europeus: nativos africanos, aborígines australianos, esquimós, habitantes das estepes siberianas, etc. Só que o uso reiterado de “indígena” em relação ao ameríndio e somente a este acaba reforçando a ilusão de parentesco entre palavras cuja similitude é puramente fortuita.

Quanto aos termos “índio” e “indiano”, suas origens remontam à Índia, terra assim chamada por causa do rio Indo, cujo nome no antigo persa era Hinduš. Essa denominação veio, por sua vez, do sânscrito Sindhu. É do persa, por meio do grego, que se origina o nome “hindu”, designativo de uma das religiões da Índia, e que muitos confundem com a própria etnia indiana. Como, na Antiguidade, muitas civilizações cresceram em torno de religiões, não é absurdo falar-se de uma civilização hindu, já que, naquela época, etnia e religião andavam juntas; entretanto, nos dias de hoje, é mais adequado nos referirmos à Índia como estado ou governo indiano do que estado ou governo hindu – até porque a nação indiana é composta de um sem-número de comunidades religiosas, das quais a hindu é a maior, mas não a única.

O atual uso dos pronomes pessoais oblíquos “o/a” e “lhe”

O emprego dos pronomes pessoais oblíquos em português brasileiro contemporâneo falado (e às vezes também escrito) tem sido um daqueles complexos problemas da nossa língua. É que, em primeiro lugar, temos a tendência a substituir os pronomes átonos o/a/os/as/lhe/lhes pelos tônicos ele/ela/eles/elas: “Eu não vi ele hoje”; “Eu dei o livro pra ele”. Em segundo lugar, muitas vezes omitimos o objeto direto quando este é um pronome: “Você viu o Zé? Não vi, não”. Em terceiro lugar, o uso do pronome pessoal reto você, que exige os oblíquos o/a/os/as/lhe/lhes, em lugar de tu, acaba criando ambiguidades: “Eu não o conheço!” (não conheço você ou ele?). Por isso, costumamos desfazer a ambiguidade por meio das formas “Não te conheço” (informal) ou “Não lhe conheço” (formal) em oposição a “Não conheço ele”.

No exemplo acima, é possível perceber que, ao nos dirigirmos a uma pessoa com quem não temos intimidade, ao mesmo tempo evitamos o uso de te e do pronome objeto direto o/a, utilizando em seu lugar o pronome objeto indireto lhe: “Não lhe conheço!”.

Só que agora está surgindo o uso exatamente inverso a esse, isto é, a substituição do pronome objeto indireto lhe pelo direto o/a. Tenho visto cada vez com mais frequência construções do tipo “Eu quero proporcioná-lo a melhor qualidade de vida possível” ou “Recebeu o amigo e o ofereceu um drinque”.

Por que isso acontece? Evolução linguística, dirão vocês. Eu, como linguista, não posso negar que isso seja uma inovação que poderá vir a tornar-se uso corrente e predominante. Ou seja, como cientista da língua, não posso deixar de observar o fenômeno como algo natural a que todas as línguas estão sujeitas.

Porém, como falante do português e amante da cultura letrada, tampouco posso deixar de apontar um fato desolador que, em meu diagnóstico, é a causa dessa mutação: nossa péssima educação escolar. Ou seja, o emprego padrão (isto é, normativo) dos pronomes pessoais em português é um tanto complexo, e, particularmente na variedade brasileira, o uso de pronomes de terceira pessoa com função de segunda traz certa ambiguidade que os falantes procuram contornar como podem. Mas, na hora de redigir é que o bicho pega, pois a maioria das pessoas não sabe usar tais pronomes no registro culto e acaba metendo os pés pelas mãos – ou melhor, acaba metendo o/a no lugar de lhe e vice-versa. Fatos como esses certamente não aconteceriam se as pessoas fossem mais bem escolarizadas e se o hábito da leitura fosse mais difundido. Aliás, desconfio que a própria preguiça que o brasileiro em geral tem de ler se deve à má escolarização, pois os livros, jornais e revistas costumam ser redigidos num linguajar bastante distante do usado no dia a dia, o que requer da parte de quem tem pouca afinidade com o léxico e a gramática um grande esforço intelectual. Ou seja, para essas pessoas, ler cansa.

Adestrar é o mesmo que amestrar?

Olá, mestre Aldo! Tenho uma dúvida sobre o uso das palavras ‘adestrar’ e ‘amestrar’. Elas são sinônimas? Tenho a ligeira impressão que não, mas gostaria de ouvir a sua opinião. Obrigado.
Iran Pereira Leme

A impressão de Iran está correta: embora muitos dicionários relacionem ambas as palavras como sinônimos, adestrar e amestrar são coisas diferentes. Adestrar é tornar destro (do latim dexter, “referente ao lado direito ou à mão direita” e, por extensão de significado, “hábil, habilidoso”), ao passo que amestrar é tornar mestre (do latim magister, “aquele que guia ou ensina, portanto alguém dotado de grande conhecimento e experiência”.

Assim, amestrar é mais do que adestrar, pois um operário pode ser treinado (isto é, adestrado) para executar uma certa tarefa; já para chefiar os demais operários, ele precisa ser um mestre de obras, alguém que conhece e sabe executar as tarefas de todos os seus subordinados e é capaz de reger a atuação destes como um maestro (do italiano maestro, “mestre”) rege uma orquestra.

É possível perceber a sutil diferença entre os dois termos no que se refere à educação de animais: um adestrador de cães ensina a sentar, deitar, ficar parado no lugar, fazer suas necessidades no lugar certo, não latir sem motivo, etc. Já um cão amestrado, desses que se exibem em circos, sabe dançar, dar piruetas e fazer slalom entre as pernas do domador, dentre muitos outros truques. Ou seja, um animal adestrado realiza tarefas básicas, enquanto um animal amestrado executa operações complexas e pouco naturais, dignas de um espetáculo.

Dos quatro tipos de professores pesquisadores

Em outro artigo, falei sobre a diferença que a língua inglesa faz entre as palavras teacher e professor. Apenas relembrando, teachers são professores de ensino básico, técnico e cursos livres, ao passo que professors são docentes de universidades, que, além de ensinar, fazem pesquisa, portanto são também e principalmente cientistas. É justamente devido a essa diferença que nem todo professor é pesquisador (na verdade, a maioria não é), mas quase todo pesquisador é também professor. Claro, pesquisadores que trabalham em institutos como o Butantan ou a Fiocruz não necessariamente dão aulas, mas, como a maioria dos cientistas está nas universidades e não em institutos de pesquisa (até porque estes são em bem menor número), é natural que eles dividam sua jornada de trabalho entre produzir e transmitir conhecimentos. Por isso mesmo, eles têm de desenvolver duas diferentes competências profissionais.

Mas, sendo essas competências bem diferentes entre si, é natural que nem todas as pessoas sejam aquinhoadas pela natureza com ambos os talentos. Daí decorre que há quatro tipos básicos de docentes universitários.

Em primeiro lugar, há aqueles que são grandes professores, donos de uma didática e de um cabedal de conhecimento incríveis, mas cuja produção científica é pífia ou, pelo menos, pouco relevante. Estes costumam ser a maior parte dos professores, ao menos nas grandes universidades.

Em segundo lugar, há aqueles (bem poucos) que são cientistas geniais, grandes produtores de saber e pensadores da realidade, mas que, na sala de aula, não se saem assim tão bem. Alguns desses gênios até têm certa preguiça de lecionar, já que sua verdadeira vocação é a ciência e não o magistério. Por isso, suas aulas são muitas vezes propositalmente displicentes.

O terceiro grupo (raríssimo) é o dos indivíduos que são ao mesmo tempo cientistas e intelectuais brilhantes e exímios educadores. Estes, aliás, costumam ser também grandes popularizadores do conhecimento científico, inspirando no público em geral a mesma paixão pela descoberta que eles próprios sentem.

Finalmente, há o grupo, infelizmente muito comum no Brasil, daqueles que não são bons nem na docência nem na pesquisa e estão em grandes universidades porque foram aprovados em concurso muito mais por razões políticas do que por mérito.

Vivi a experiência de ter na universidade professores de todos os tipos, exceto o terceiro. Já fui aluno de alguns luminares, mas também de vários medíocres. Alguns me fascinaram; de outros, nem me lembro direito. Alguns deles ficaram famosos, outros viveram na mais profunda obscuridade embora fossem bons professores e razoáveis pesquisadores. Muitos dedicaram sua vida predominantemente ao magistério e deixaram ternas lembranças em seus alunos, mas não ganharam projeção social. Outros fizeram fama e fortuna apesar de detestarmos suas aulas – ou pior, dormirmos nelas.

De todo modo, sou grato a todos eles, afinal me fizeram ser quem sou e chegar aonde cheguei. Alguns me mostraram com seu exemplo que tipo de profissional eu devia ser. Outros, também com seu exemplo, me mostraram o que eu jamais quero ser ou fazer.

A origem do nome do panetone

Semana passada, falei sobre a etimologia das palavras ligadas ao Natal e ao Ano Novo. Hoje vou falar sobre o panetone, essa guloseima indefectível nas mesas do Natal. Corre uma lenda, que vem até impressa em algumas embalagens de panetone, de que esse pão doce recheado de frutas cristalizadas (e hoje também de chocolate e outros ingredientes) teria sido criado na cidade de Milão, na Idade Média, por um confeiteiro chamado Tony, o qual teria dedicado seu invento à mulher amada. Daí o porquê do nome panetone: seria “o pão de Tony”.

Embora romântica, essa lenda não tem o menor fundamento. Primeiro, porque não há nenhuma evidência histórica que respalde essa versão. Segundo, porque é pouquíssimo provável que na Itália medieval houvesse alguém com o apelido de Tony. Trata-se da forma reduzida do nome inglês Anthony, e, como se sabe, a influência anglo-americana sobre o italiano só surgiu após a Segunda Guerra Mundial.

Na verdade, a palavra italiana panettone é aumentativo de panetto (pãozinho), e, portanto, nada tem a ver com um possível confeiteiro de nome Tony. O fato é que muitas vezes nos refugiamos nas lendas porque a realidade parece bem sem graça. A origem mítica do panetone, alimento símbolo do Natal, é, com certeza, mais sedutora ao nosso imaginário do que sua prosaica etimologia verdadeira. E, como os próprios italianos costumam dizer, “se non è vero, è bene trovato”: não é verdade, mas bem que poderia ser.

Feliz Ano Novo!