Que tal uma linguagem neutra de número?

Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:

Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.

E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.

Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.

Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)

Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:

  • Ar duar salar estão ocupadar.
  • Minhar mãor estão sujar.
  • Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
  • Meur doir filhor vão se formar médicor.
  • Comprei um par de sapator.
  • Ambar ar respostar estão corretar.

Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?

É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?

Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.

Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!

Brasileiro fala errado?

Já ouvi diversas vezes a afirmação, feita em tom de reprovação e mesmo de desprezo, principalmente por nossos irmãos lusitanos (mas também por muitos brasileiros), de que “brasileiro não sabe falar português” ou então de que “brasileiro fala português errado”. Ao que os linguistas contestam afirmando que nenhum povo fala errado a própria língua, já que é falante nativo dela. O que essas críticas querem dizer é que o modo como falamos no dia a dia se afasta muito do que prescreve a gramática normativa. Portanto, se falar certo uma língua é afastar-se o menos possível do padrão culto, então de fato falamos errado. Mas por que falamos assim? Para compreender, é preciso visitar a história do português falado no Brasil.

Como se sabe, nosso país surgiu de alguns colonos portugueses que aqui vieram a partir do século XVI, muitos não com a intenção de fincar raízes, mas sim de “fazer a América”, isto é, ganhar o máximo possível de dinheiro e então retornar a Portugal. Aqueles que aqui ficaram tornaram-se proprietários de terras e escravizaram índios e posteriormente negros. Portanto, durante o período colonial, havia uma minoria de brancos (portugueses ou seus descendentes) e uma maioria de indígenas e africanos que, obviamente, não eram falantes nativos de português. Tanto que, até meados do século XVIII, a principal língua falada em nosso território foi a chamada língua geral, uma espécie de tupi modificado: o português só se consolidou como língua oficial do país a partir da proibição do uso da língua geral pelo Marquês de Pombal.

Como consequência, o português foi, até poucos séculos atrás, uma língua “estrangeira” no Brasil, e os negros e índios só falavam português quando tinham de comunicar-se com os brancos. Não sendo falantes nativos, é natural que falassem com uma pronúncia estranha ao português; por exemplo, o r “caipira”, especialmente em substituição ao l (pranta, arface, etc.) viria da pronúncia dos índios, que não tinham o fonema l em sua língua. Mas também é natural que falassem com uma gramática simplificada, como ocorre em geral com as chamadas línguas crioulas (cruzamento da língua dos colonizadores com as línguas dos colonizados). É daí que surge o “nós foi”, “a gente somos”, “eu ponhei”, etc. O mesmo fenômeno se registra em todos os lugares em que um idioma estrangeiro se impôs a uma população que já tinha sua própria língua, especialmente se essa população não era escolarizada, como foi o caso dos nossos negros e índios.

Portanto, o português brasileiro que falamos hoje é o resultado da disseminação a toda a população, inclusive a mais culta, de uma língua que nasceu crioula, resultado da tentativa de estrangeiros não alfabetizados, bem como sujeitos a condições precaríssimas de vida, de falar português. Quando nos estabelecemos como nação, no século XIX, o português padrão era a língua de cultura das elites, mas mesmo estas, quando se dirigiam aos subalternos (escravos, serviçais, comerciantes, ambulantes, mendigos), usavam o linguajar popular, e foi esse o que se generalizou. Com a decadência progressiva da nossa educação, hoje até as elites altamente escolarizadas falam um português que os mais críticos poderiam chamar de “estropiado”.

Vejam um exemplo. Transcrevo abaixo a fala de uma nutricionista e professora universitária (portanto, uma pessoa com formação superior) a um programa de TV. Trata-se evidentemente de um exemplo isolado, mas creio que não difira muito do modo como a maioria dos brasileiros, inclusive os mais escolarizados, fala.

Então, nós precisamos ter em mente que a gente, pra ter saúde, precisa se alimentar direito. […] Você precisa comer aquilo que te faz bem e não só o que é gostoso. […] As pessoas deveriam se alimentar de três em três horas e não só comerem no café da manhã, almoço e jantar. […] O nosso organismo ele é uma máquina muito complexa e precisa ser bem cuidada pra funcionar bem. […] A pessoa que ela se alimenta mal vai ter uma má qualidade de vida, já as pessoas melhores nutridas vão viver muito mais. […] A gente também precisa ter em mente de que quantidade não é qualidade. […] Se eu pôr no prato muito carboidrato e pouca proteína, vou gerar muita massa gorda e pouca massa magra. […] Nós podemos comer tudo que a gente quiser, desde que com bom senso. […] Nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só se alimentar de comida processada. […] Olha, eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante: não acreditem nessas dietas milagrosas. […] A comida, a gente tem que ter muito respeito por ela. […] A finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente. […] Não adianta perder muito peso com uma dieta muito restritiva se, depois de alguns meses, esse peso não se manter. […]

Nesse pequeno excerto, podemos constatar uma série de características (não vou dizer “erros” para não cometer o famigerado “preconceito linguístico”) típicas da fala brasileira, que vou enumerar a seguir.

  1. nós precisamos ter em mente que a gente…” — mistura de nós e a gente no mesmo período;
  2. você precisa comer aquilo que te faz bem” — mistura de você e tu no mesmo período;
  3. “as pessoas deveriam se alimentar […] e não só comerem” — deveriam se alimentar x deveriam comerem (mau uso do infinitivo pessoal);
  4. “o nosso organismo ele é…” — o organismo ele (duplicação do sujeito);
  5. “precisa ser bem cuidada” — verbo transitivo indireto na voz passiva;
  6. “a pessoa que ela se alimenta” — novamente duplicação do sujeito, desta vez com a redundância do pronome relativo que;
  7. “as pessoas melhores nutridas” — flexão indevida do advérbio melhor; aliás, o mais adequado aí seria “as pessoas mais bem nutridas”;
  8. “…precisa ter em mente de que…” — o famoso dequeísmo, ou uso de de que com verbos ou nomes que não demandam a preposição de;
  9. “se eu pôr…” — o uso comuníssimo do infinitivo como futuro do subjuntivo (o certo é “se eu puser…”);
  10. nós podemos comer tudo que a gente quiser” — novamente mistura de nós com a gente;
  11. nós deveríamos ingerir […] e não só se alimentar…” — uso do pronome reflexivo se em lugar de nos: “nós deveríamos ingerir mais alimentos naturais e não só nos alimentar…”;
  12. “eu vou falar pra vocês uma coisa muito importante” — além de usar o verbo falar no sentido de dizer, temos a preposição para (pra) no lugar de a: “eu vou dizer a vocês”, ou, o que seria melhor ainda, “eu vou lhes dizer”;
  13. a comida, a gente tem que ter muito respeito por ela” — aqui temos a chamada topicalização: em vez de uma oração com sujeito e predicado, apresenta-se um tópico isolado (a comida) e a seguir se faz uma declaração sobre ela cujo sujeito é outro (no caso, a gente); essa construção sintática é típica de idiomas como o chinês e o japonês, não de línguas europeias;
  14. “a finalidade da nutrição não é proibir as pessoas de comerem, mas orientar elas a comerem corretamente” — aqui temos dois problemas: primeiro, orientar elas em vez de orientá-las; segundo, proibir de comerem, orientar a comerem (mau emprego do infinitivo pessoal);
  15. “se […] esse peso não se manter” — mais uma vez o uso do infinitivo pelo futuro do subjuntivo; o correto seria “se esse peso não se mantiver”.

Falo vários idiomas e tenho facilidade em entender o que os falantes desses idiomas dizem. Como passatempo e também para treinar meu ouvido, costumo assistir a canais de TV estrangeiros e percebo que o modo como as pessoas entrevistadas, mesmo as não tão letradas, falam seus idiomas se distancia relativamente pouco da norma-padrão. É claro que em nenhuma língua as pessoas falam informalmente do mesmo modo como escrevem formalmente. Um falante do inglês, por exemplo, dirá descontraidamente I ain’t got no money, mas redigirá I do not have any money. Isso é natural e não tem nada de errado. No entanto, quando estudamos inglês numa escola de idiomas e aprendemos a gramática “oficial” da língua de Shakespeare e depois ouvimos um falante nativo do inglês, não percebemos tanta diferença entre o que estudamos e o que estamos ouvindo: a flexão dos verbos e nomes, a colocação pronominal, a ordem das palavras na frase, tudo parece bater. Mesmo os portugueses parecem falar de forma mais próxima à gramática normativa. Alguns dirão que é porque a gramática normativa é elaborada com base no português lusitano, o que é pura bobagem. O que se espera de qualquer língua de cultura é que ela tenha uma única gramática e que seja seguida em todos os países que a falam. Quando estudo inglês, a gramática que aprendo na escola se aplica igualmente aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha, à Irlanda, à Austrália, e assim por diante. O mesmo vale para o espanhol, o francês, o alemão…

Quando se pensa na língua portuguesa, é no português padrão ou em algo bem próximo dele que se pensa, não em coisas como essas misturas de tu e você, nós e a gente, duplicação de sujeito, falta de concordância, etc. Das línguas que conheço, fenômenos sintáticos como os que assinalei na transcrição acima só tenho encontrado em português brasileiro.

No entanto, aqui no Brasil temos linguistas que defendem a chamada “língua brasileira”, algo distinto do português, a qual teria sua própria gramática. Por sinal, esses linguistas lutam para tornar oficial essa gramática em contraposição àquela que até hoje temos estudado nas escolas. Tenho falado muito sobre isso aqui neste espaço e apontado a insensatez dessa proposta. Entretanto, não há como negar que o modo como falamos é muito peculiar até aos falantes de português de outros países lusófonos — e não se trata apenas de falarmos de modo diferente: falamos com uma gramática cheia de fenômenos estranhos às demais línguas europeias, como pudemos ver na transcrição da fala mais acima.

O fenômeno da crioulização linguística não é exclusivo do Brasil, pois ocorreu em praticamente todos os países que foram colonizados pelos europeus. Assim, também há nos Estados Unidos o chamado Black English, um inglês fortemente influenciado pelas línguas africanas dos escravos para lá levados, mas esse dialeto (sim, trata-se de um dialeto) até o momento está restrito aos falantes negros de classe baixa; só pouco a pouco ele começa a penetrar algumas letras de canções feitas por brancos ou a fala de alguns jovens brancos que querem “se enturmar” com os negros.

Do mesmo modo, o espanhol platino tem algumas peculiaridades, como o pronome vos no lugar de ou usted, bem como o uso de uma segunda pessoa do plural terminada em ‑ás ou ‑és em lugar do canônico ‑áis ou ‑éis (por exemplo, hablás e hacés por habláis e hacéis). Mas as divergências em relação ao espanhol padrão não vão muito além disso.

Acima de tudo, o que percebo (mas posso estar equivocado, é claro) é que, enquanto em outros idiomas esses desvios, que chegam em alguns casos a configurar dialetos ou etnoletos (falares de grupos étnicos específicos), estão restritos a certos grupos, especialmente de raça ou classe social, no Brasil estão generalizados por toda a população, inclusive a mais escolarizada.

Certamente, o modo como falamos decorre da própria história do português brasileiro e do modo como a língua portuguesa foi implantada no Brasil, mas, sem dúvida, tem a ver também com nossa escolarização cada vez mais indigente, somada a uma certa ideologia de que esse modo de falar é um patrimônio cultural imaterial que deveríamos preservar, pois revela o “jeitinho brasileiro” de falar, espelho de nosso “jeitinho” de ser (sobre esse “jeitinho”, já falei em outra postagem). De fato, o modo como falamos revela, sim, muito do que somos. Resta saber se o que somos é realmente motivo de orgulho.

Index Verborum Prohibitorum Parte 2 — A Missão

DISCLAIMER: Este texto contém ironia.

Eu não disse que voltava? Pois é, voltei! Dando prosseguimento à minha lista de palavras e expressões que devem ser banidas da língua portuguesa ou reformuladas por serem politicamente incorretas e ofensivas a grupos sociais minoritários, trago hoje as seguintes:

• “ameríndios”: se não há índios e sim indígenas ou povos originários, por coerência os ameríndios terão de ser agora chamados de “amerindígenas” ou “ameroriginários”;
• “bolo nega maluca” e “Samba do Crioulo Doido”: diante do desrespeito tanto a uma etnia quanto a uma condição de saúde, o confeito deve passar agora a ser denominado “bolo mulher afrodescendente com distúrbios cognitivos” e o famoso samba composto pelo cronista e humorista Estanislau Ponte Preta deve ser rebatizado para “Samba do Afrodescendente com Problemas Psiquiátricos”;
• “rainha da cocada preta”: com base nos exemplos anteriores, deixo aos leitores a tarefa de deduzir a nova versão dessa expressão racista;
• “pneu careca”: em respeito aos calvos, será chamado de “pneu com deficiência capilar”;
• “olho gordo”: para evitar gordofobia, o chamado mau-olhado passaria agora a ser conhecido como “olho portador de obesidade” (ou “de sobrepeso”, se preferirem).
• “Terça-Feira Gorda”: pelo mesmo motivo da expressão anterior, passa a ser agora “Terça-Feira Plus Size”;
• “Branca de Neve e os Sete Anões”: já que anão passou a ser termo depreciativo, teremos “Branca de Neve e as Sete Pessoas com Nanismo”;
• “matar as bichas”: além de homofóbica, essa expressão incita à violência contra os homossexuais; portanto, não pode sequer ser substituída, deve ser banida mesmo;
• “gesto nobre”: será que só os portadores de título de nobreza é que têm bom coração? Isso é uma discriminação contra quem não tem sangue azul. Portanto, a expressão agora será “gesto plebeu”.

Também alguns nomes próprios terão de ser alterados, em alguns casos até em respeito póstumo aos seus portadores. É o caso do escultor mineiro Aleijadinho, que a partir de agora figurará nos livros de história como Pessoinha com Deficiência ou então Portadorzinho de Necessidades Especiais. Do mesmo modo, o Negrinho do Pastoreio passará obviamente a ser o Afrodescendentezinho do Pastoreio. Igualmente, o Rio Negro, no estado do Amazonas, será agora o Rio Afrodescendente (essa mudança incluiria o nome artístico daquele famoso cantor sertanejo que faz dupla com o Solimões). O Rio das Velhas, em Minas Gerais, se tornará o Rio das Senhoras Idosas ou então o Rio das Senhoras da Terceira Idade. Já a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas, terá seu nome mudado para Palmeira dos Povos Originários. Finalmente, o Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, terá de receber outra denominação para que não pensem que o nome é uma alusão racista aos moradores do referido morro.

Aproveitando a oportunidade, também sugiro as seguintes alterações em expressões correntemente usadas no dia a dia, as quais ninguém até agora percebeu que são sexistas:

• “o pai ou responsável pela criança” → “o pai, a mãe (ou “e pãe”, no caso de pessoa não binária) ou responsável pela criança”;
• “o dinheiro do contribuinte” → “o dinheiro do contribuinte e da contribuinta”;
• “Dia dos Namorados” → “Dia dos Namorados, Namoradas e Namorades”;
• “título de eleitor” → “título de eleitor, eleitora e eleitore”.

Só assim teremos um Brasil mais justo e inclusivo.

A decadência da Academia Brasileira de Letras

Todas as grandes línguas de cultura têm academias de Letras. As primeiras, como a Academia Francesa e a Real Academia Espanhola, surgiram ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as línguas nacionais começavam a se firmar como idiomas de prestígio e a fazer frente ao até então todo-poderoso latim. A nossa Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1897 por iniciativa do grande mestre Machado de Assis e de Lucio de Mendonça, e seu lema é Ad Immortalitatem, “Para a Imortalidade”, donde seus membros serem conhecidos como “imortais”.

Desde sua fundação, a Academia tem sido reconhecida de maneira inconteste como a guardiã da língua portuguesa no Brasil e de sua literatura. Embora seja uma instituição de cunho privado, ao contrário de outras academias do gênero, sua influência penetra na esfera estatal, como, por exemplo, por ocasião das reformas ortográficas de 1943 e 1990, que se transformaram em leis. Na esteira da legislação sobre a ortografia, coisa que a maioria das grandes línguas do mundo não tem, a ABL publica também o VOLP — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Ilustres literatos e pensadores brasileiros, bem como grandes cultores do idioma pertencentes a outras áreas do saber, como médicos, professores, juristas e jornalistas, pertenceram às suas fileiras, tais como Ruy Barbosa, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, Oswaldo Cruz, Clovis Bevilacqua, Silvio Romero, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, Aloysio Azevedo, Euclydes da Cunha, Laudelino Freire, Vianna Moog, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, e muitos outros.

No entanto, de tempos para cá, a Academia passou a acentuar uma prática que já era algo costumeira desde seus primórdios: eleger membros que pouco ou nada contribuíram para o enriquecimento do idioma e de sua literatura, mas apenas exerciam influência política ou popular. Basta dizer que até Getulio Vargas e Ivo Pitanguy foram imortais.

A eleição de figuras pouco representativas em termos de língua vem desde as origens: os fundadores da ABL decidiram escolher patronos para suas cadeiras, coisa que não existia em outras academias mais antigas, e, como apontou ainda em 1923 o acadêmico Afranio Peixoto num discurso na própria Academia, muitos desses fundadores escolheram como seus patronos nomes de qualidade literária duvidosa, como Adelino Fontoura e Pardal Mallet.

Mais recentemente, a ABL elegeu os ex-presidentes da república José Sarney, autor de Marimbondos de fogo, grande monumento de nossas letras (atenção: aqui há ironia), e Fernando Henrique Cardoso, autor da grande obra literária chamada Plano Real (ironia novamente). A indicação de Sarney deveu-se a Josué Montello, seu conterrâneo, que quis privilegiar — ou garantir uma reserva de mercado — ao Estado do Maranhão. Já FHC escreveu muitos textos acadêmicos (os quais ele posteriormente pediu que fossem esquecidos), mas, a meu ver, nenhum que tenha lustro em termos de apuro linguístico ou qualidade literária.

A seguir, veio o controverso letrista, escritor, místico e ex-hippie Paulo Coelho, aquele que não permite que os revisores corrijam seus (muitos) erros gramaticais e ortográficos porque, segundo sua visão místico-mercadológica, “Deus pode estar num erro de português”.

Então, seguindo o (mau) exemplo da Academia Sueca, que resolveu conceder o prêmio Nobel de literatura ao cantor e compositor americano Bob Dylan, a ABL admitiu mais recentemente os letristas de MPB Geraldo Carneiro, Antônio Cícero e Gilberto Gil, e também a atriz Fernanda Montenegro, o cineasta Cacá Diegues e o jornalista e comentarista “global” Merval Pereira, atual presidente da casa, que, à época de sua eleição, tinha apenas dois livros publicados (hoje tem três), sendo um deles uma coletânea de artigos e o outro uma série de reportagens feitas em coautoria.

Não nego o talento de alguns desses nomes ou o valor artístico de suas obras. No entanto, é preciso fazer algumas considerações. Primeiramente, se a Academia visa a contemplar perfis que muito contribuem ou contribuíram para o engrandecimento do idioma e de sua produção literária, então ela deveria agraciar os produtores de textos e não os simples reprodutores, como é o caso da atriz Fernanda Montenegro, que nunca escreveu uma linha em termos literários (seu único livro é uma autobiografia) e apenas reproduziu oralmente nos palcos e estúdios os textos de outrem.

O segundo ponto é que a ABL é uma academia de Letras, portanto voltada à linguagem verbal, sobretudo à escrita. Então, que sentido tem admitir produtores de discursos musicais ou audiovisuais, em que a linguagem verbal tem aspecto secundário e, por vezes, pouco importante? Em que pese a qualidade dos versos de Gil, seu registro escrito se encontra basicamente nos encartes de seus LPs e CDs (hoje em dia, com as plataformas de streaming, as letras das canções sequer têm versão escrita). Já Antônio Cícero teria sido eleito por versos como os de Fullgas? E por que Chico Buarque, nosso maior letrista e quem sabe maior poeta, vencedor do prêmio Camões, não está na Academia? Por que Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meirelles, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Mario Quintana nunca estiveram?

Este ano, o cartunista Mauricio de Sousa quase se tornou imortal; seria mais um criador cujo foco não é a língua e sim uma linguagem visual (o desenho) e cujos textos, voltados às crianças e vendidos em bancas de jornais, são propositalmente simplórios (ou “simplólios”, como diria o Cebolinha). Com todo o respeito ao brilhante cartunista, um de nossos orgulhos nacionais, em boa hora a Academia preferiu Ricardo Cavaliere, este sim um literato, estudioso e cultor do idioma, autor de relevantes contribuições à língua portuguesa.

Se o lema da Academia faz alusão à imortalidade, e se essa imortalidade é sobretudo da obra e não de seu autor, por que se privilegiam autores de obras descartáveis, como canções populares, filmes já datados ou romances soníferos?

Não há nenhum problema em que autores não ficcionistas, como cientistas, filósofos, filólogos, linguistas, gramáticos, juristas e jornalistas, façam parte da Academia, mas é preciso que tenham produzido obras de relevo em termos linguísticos e/ou culturais, que tenham dado contribuição significativa ao idioma. Entretanto, quer me parecer que o atual critério de escolha dos novos membros é mais político ou mercadológico do que de mérito acadêmico-cultural.

Com isso, a Academia Brasileira de Letras reproduz o que é o próprio Brasil: um país de privilégios, de pessoas “cordiais” (no sentido dado por Sergio Buarque de Holanda), em que amizade e compadrio valem mais do que conquistas pessoais e profissionais, enfim, um país pas sérieux. A ABL é hoje uma triste sombra do que um dia foi — se é que foi.

Que tipo de país queremos?

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para se referir à realidade brasileira, um misto de Bélgica e Índia, um país com leis e impostos de Primeiro Mundo e com serviços e realidade social de Terceiro. A seguir, esse conceito foi estendido para dar conta de um Brasil contraditório, cuja sociedade tem ao mesmo tempo aspectos de Primeiro e Terceiro Mundos: de um lado, uma elite rica e culta, megacidades com infraestrutura de países desenvolvidos, grande parque industrial, importantes universidades produzindo pesquisa de ponta, recordes de produção agrícola, recordes em número de helicópteros e de cirurgias plásticas per capita, produção artística tipo exportação, e, de outro, fome, miséria, analfabetismo, doenças endêmicas, latifúndios improdutivos, muita corrupção, péssimos serviços públicos, comunidades ilhadas no meio de florestas, aonde só se chega de barco, e assim por diante.

Talvez hoje o termo Belíndia já não seja mais tão adequado, visto que a Índia, embora continue a ser um país com população majoritariamente pobre, é uma das nações emergentes e a quinta maior economia global, que também já conta com ilhas de excelência em vários campos, estando, por sinal, em alguns deles mais adiantada que o Brasil. Noutros termos, a própria Índia é hoje uma Belíndia. Por isso, penso que hoje o termo mais adequado para definir o Brasil e a Índia seja Beláfrica. Afinal, o continente africano segue sendo o mais atrasado do planeta em termos políticos, econômicos, sociais e educacionais. É lá que ainda estão os problemas mais graves da humanidade em termos de fome, miséria, superpopulação, educação precária, péssimas condições de saúde e higiene, pouquíssimo desenvolvimento industrial, infraestrutura deficiente, costumes retrógrados, fanatismo religioso, ditadores tirânicos e corruptos, guerras tribais intermináveis, etc. É claro que lá também há bons exemplos de progresso material e cultural, logo nem tudo é pobreza na África. No entanto, em termos gerais de desenvolvimento, especialmente aquele medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano —, a África permanece em último lugar na média dos continentes.

Portanto, se somos uma Beláfrica e não queremos permanecer nesse estado, temos dois caminhos a seguir: ou nos aproximamos da Europa, onde estão os países mais desenvolvidos do mundo, ou nos aproximamos da África, onde estão os mais atrasados. Deveria ser consenso que o modelo a ser seguido é o europeu, com sociedades altamente industrializadas, democracias sólidas e a maior parte da população situada na classe média ou alta e portadora de escolaridade superior. No entanto, certos grupos ideológicos parecem querer que o Brasil rume na direção oposta. Embora façam um discurso aparentemente bem-intencionado (“lacrador” eu diria), polvilhado de um bom-mocismo que soa bem a muitos (especialmente aos que fazem parte de sua “bolha”), o que eles pregam é uma divisão do país em que uma das partes precisa aniquilar a outra. Trata-se da famosa oposição “nós x eles”, que dividiu e polarizou o Brasil.

Somos uma nação plural, somatório de muitas culturas, e essa é nossa grande vantagem estratégica. Nossa diversidade cultural é nosso grande capital, que, somado ao nosso potencial natural (imenso e rico território, riquezas minerais e vegetais, clima favorável, ausência de cataclismos), pode fazer de nós uma potência mundial. No entanto, para esses grupos ideológicos, a cultura brasileira dominante é fundamentalmente branca e europeia e, portanto, exclui a maior parte da população, de origem africana e/ou indígena. Na visão desses grupos, para incluir socialmente essa maioria preta ou parda e sobretudo pobre, é preciso mudar radicalmente nossos paradigmas culturais, não propriamente somando à cultura branca europeia as valiosas contribuições dos indígenas e afrodescendentes, mas erradicando aquela cultura e substituindo-a por esta.

Tenho falado muito aqui sobre o absurdo que é a proposta de alguns linguistas de substituir nossa norma-padrão supradialetal e fundada em longa tradição escrita e literária pelos usos do português brasileiro contemporâneo falado informal, isto é, o linguajar coloquial das ruas. Segundo esses linguistas, a gramática normativa do português é elitista, excludente, opressora, elaborada por homens brancos, burgueses, conservadores, heterossexuais e misóginos, logo precisa ser destruída, num ato revolucionário análogo talvez à Revolução Bolchevique ou à Revolução Cultural chinesa. Vejam o que diz, por exemplo, o livro Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores, organizado por Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (p. 41): “Assim, a emergência de um novo paradigma de gramatização exige a destruição em larga escala do paradigma tradicional e grandes alterações nos problemas e técnicas arraigados historicamente no nosso fazer gramatical, algo próprio do caráter revolucionário” (grifos meus).

Sem dúvida, a linguística pode contribuir e muito para o fazer gramatical, e eu mesmo tenho sempre reiterado que o modelo de análise da língua baseado na gramática grega de Dionísio o Trácio precisa ser superado. Mas a elaboração de gramáticas normativas tem sua lógica própria, que esses linguistas aparentemente desconhecem. Eles criticam aquilo que nem sequer entendem. E elaborar novas gramáticas utilizando o ferramental da linguística é uma coisa, já substituir arbitrariamente um padrão linguístico estável e estabelecido por outro que só é usado na fala descontraída sob o pretexto da inclusão social dos menos favorecidos é pura demagogia. Em vez de levar educação de qualidade aos mais pobres, opta-se por mantê-los na situação em que estão, normalizando sua pobreza material e intelectual. Aos pobres, uma educação igualmente pobre.

Sem dúvida, a norma-padrão que utilizamos baseia-se numa variedade de português calcada no falar das elites culturais da “corte” — seja a Lisboa monárquica seja o Rio de Janeiro imperial. Mas isso é assim em qualquer idioma de cultura: o francês padrão nada mais é do que a língua falada pelos reis e nobres franceses de antanho; o italiano padrão é o dialeto da antiga corte de Florença, e assim por diante. É natural que a classe dominante de uma sociedade imponha a ela seus costumes e também sua língua. Assim como é natural nas sociedades complexas (isto é, as que passaram do estágio tribal ao civilizado) que haja hierarquia, classes sociais distintas e disputas de poder entre elas. No entanto, o que se vê historicamente é que, quando uma classe oprimida depõe o grupo dominante e toma o poder, é ela que passa a ser a classe opressora. Até costumo dizer que, se os europeus tivessem se mantido tribais e os africanos tivessem desenvolvido uma civilização altamente tecnológica, teriam sido os negros a escravizar os brancos. Afinal, o homem é o lobo do homem.

Se, como pregam alguns de meus colegas linguistas que não conseguem analisar o fenômeno “língua” sem projetar nele suas ideologias políticas pessoais, a gramática normativa em vigor é opressiva e reforça o preconceito linguístico, fazendo com que a população menos favorecida sinta que fala “errado”, substituí-la por uma nova gramática, baseada em outra variedade do português (a preferência desses linguistas é pelo padrão das pessoas pouco ou nada letradas) vai apenas trocar uma opressão por outra. Pois, se a gramática é normativa, portanto seu uso é uma injunção em textos formais, qualquer que seja ela, desrespeitá-la configurará erro, que estará decerto sujeito ao preconceito linguístico (mais uma vez, “o homem é o lobo do homem”).

Sob o pretexto de que nossa cultura e nosso padrão linguístico são eminentemente brancos e europeus, o que se propõe não é acrescentar ao estudo da história das civilizações da Europa e Ásia o estudo da história da África (por sinal, eminentemente oral, uma mistura de fatos e mitos), como, aliás, já vem sendo feito, e sim substituir uma pela outra. Em vez de filosofia grega, estudaremos os orixás africanos (a pergunta que faço é: ser versado em história e cultura africanas abre as portas do mercado de trabalho mais qualificado a alguém?). Em vez de permitirmos que jovens pretos e pardos das periferias tenham acesso à cultura letrada por meio do domínio da norma supradialetal, oficializaremos “eu vi ela” e “vamos se encontrar” como padrão culto.

A lógica desses grupos, que paradoxalmente incluem pessoas de alta cultura e muito bem informadas, é a de que só se combate uma sociedade patriarcal instituindo o matriarcado, que só se apaga a chaga do racismo contra os negros discriminando os brancos, e assim por diante. Numa palavra, o que eles propõem não é justiça social, é uma mera inversão de papéis, em que opressores se tornem oprimidos e oprimidos se tornem opressores. Era mais ou menos essa a lógica dos comunistas de 1917: o proletariado governando a burguesia. O que querem fazer com a língua é uma espécie de vingança dos iletrados sobre os que tiveram a chance de estudar.

Em suma, o que está em jogo é que tipo de país queremos ser: queremos ser como a Bélgica ou como a África? É bom lembrar que até o final do século XIX o Brasil era um país escravocrata, quase exclusivamente rural, sem indústrias, com uma população quase totalmente formada de africanos e indígenas e seus descendentes e governada por uma pequena elite latifundiária composta por descendentes dos primeiros portugueses que nos colonizaram. Foi com a chegada dos imigrantes europeus e asiáticos em fins do século XIX e princípios do XX, logo após o fim da escravidão, que começou nossa industrialização, surgiram as primeiras universidades e a sociedade brasileira foi progressivamente se urbanizando. É que esses imigrantes, mesmo aqueles que foram trabalhar na lavoura em substituição aos escravos, tinham uma cultura urbana e valores milenares de civilização, além de um espírito empreendedor e grande apreço pela educação. Tanto que, duas ou três gerações após sua chegada, seus descendentes, inclusive de muitos que eram analfabetos, já estavam na universidade. E vejam que esses imigrantes sofreram quase tanto racismo quanto os negros e os índios.

Vários de nossos intelectuais de esquerda criticam esse processo de “embranquecimento” da população brasileira promovido pela República Velha como se isso tivesse sido uma violência contra nossa nacionalidade quando, na verdade, esses imigrantes só vieram somar a essa nacionalidade. Não tivesse havido essa onda imigratória, seríamos provavelmente ainda hoje um país predominantemente agrícola e rural, dominado por oligarcas latifundiários, como éramos à época do Império. Mas parece que é exatamente isso que esses ideólogos gostariam que fôssemos.

Aliás, de maneira contraditória e incoerente, esses intelectuais críticos à política de imigração são eles próprios descendentes de imigrantes e certamente não estariam aqui no Brasil nem muito menos ocupando cargos nas universidades não fosse essa política que tanto criticam.

É evidente que a República Velha falhou em dar aos negros recém-libertos condições de emancipação econômica como cidadãos, o que os fez trocar a senzala pela favela. Mas, quase um século e meio após a Abolição, o que o Estado Novo, a República Nova, o regime militar e a Nova República fizeram por essas pessoas e seus descendentes? Já tivemos muito tempo para curar essas feridas, mas tudo que foi feito foram leis e políticas demagógicas, que nada resolvem. Tudo que se faz é um discurso hipócrita de inclusão social, entoado por uma elite acadêmica branca, eurodescendente e de classe média alta.

O fato é que se instalou em nosso meio intelectual, inclusive nas universidades, que deveriam primar pela racionalidade, pelo bom senso e pelo apego à verdade, uma ideologia iconoclasta, que vê tudo que é branco, europeu, ocidental, capitalista, judaico-cristão e, mais, masculino, heterossexual e cisgênero como negativo, opressor, excludente, elitista, quando não fascista. Temos, de fato, uma longa história de dominação de brancos sobre negros e índios, de europeus sobre africanos e outros povos aborígines, mas é preciso ter em mente que o Brasil está inserido no mundo ocidental, que é culturalmente oriundo da civilização europeia e cristã. Logo, apegarmo-nos a tradições africanas e indígenas em detrimento de conhecimentos científicos e filosóficos europeus não vai nos conduzir ao progresso que almejamos. Se queremos nos integrar cada vez mais ao mundo desenvolvido e incluir cada vez mais nossa população nas classes médias e altas da sociedade, não podemos renunciar ao patrimônio de cultura que nos foi legado desde a era greco-romana nem ao padrão linguístico que produziu todo o acervo literário de que dispomos.

Que se valorizem todas as culturas que formaram nosso país, que se acabe com o pernicioso racismo que nos assola, que se ajustem as contas com nosso passado escravista, que se respeitem as culturas nativas, que se estabeleça uma verdadeira justiça social em nosso país é o que todos queremos. Mas esse desideratum só se conquista somando e não subtraindo ou dividindo.

O “jeitinho brasileiro” de falar

Volta e meia, surgem na imprensa matérias sobre a “língua brasileira”, o nosso modo particular de falar português, em geral análises feitas por jornalistas (menos frequentemente por especialistas), além do depoimento de escritores e outros usuários privilegiados — embora não estudiosos — da língua. Com raras exceções, esses textos assumem um tom ufanista em relação ao português tupiniquim, exaltando a nossa criatividade linguística, um jeito malandro, próprio da identidade nacional, que se refletiria no idioma. Segundo esses analistas, o português brasileiro é a perfeita simbiose da mais bela das línguas com o mais versátil dos povos.

Esse tipo de avaliação, além de extremamente subjetivo e questionável pelo seu chauvinismo (já se disse até que só é possível poetar em português, assim como só é possível filosofar em alemão), peca por desconsiderar os fatos: aqueles que enaltecem o “jeitinho brasileiro” de falar nunca empreenderam um estudo sério e sistemático sobre o assunto. Se o fizessem, chegariam a conclusões bem diferentes.

Em primeiro lugar, o português é, das línguas da Europa ocidental (românicas e germânicas), uma das mais difíceis. Claro, os críticos dirão que todas as línguas têm suas complexidades, que nenhuma língua é fácil, etc. etc. Mas, comparando item a item cada um dos aspectos gramaticais (número de tempos verbais, colocação pronominal, flexão verbal e nominal…), veremos que o português é muito mais complexo que o espanhol, francês, italiano ou inglês, por exemplo. Em nível de dificuldade, nossa língua se equipara ao romeno e ao islandês. Mesmo o alemão, tido por muitos como uma língua complicada, é mais simples que o português. Isso porque nossa língua se apoia no binômio complexidade-irregularidade (isto é, muitas regras e muitíssimas exceções); já o alemão tem menos regras que o português, e estas têm poucas exceções.

É óbvio que nenhum povo fala exatamente como dita a norma-padrão, mas qualquer brasileiro que viaje ao exterior — inclusive a Portugal — e conheça outras línguas perceberá que a distância entre como se fala nas ruas e o que estudou nos cursos de idiomas é menor do que no Brasil. Exceção talvez seja o espanhol platino, mas mesmo nesse caso dados empíricos precisam ser examinados.

Em segundo lugar, o “jeitinho brasileiro” de falar é a tentativa de um povo etnicamente heterogêneo, com os mais variados substratos linguísticos, de baixa ou baixíssima escolaridade e espalhado por um território continental de falar uma língua complexa e cheia de irregularidades. Sem dúvida, o português popular tem o mérito de tentar simplificar um sistema que causa embaraço até aos eruditos. Mas as soluções encontradas pela fala do povo nem sempre são as melhores. Às vezes, troca-se uma regra ilógica por outra idem.

Há duas forças cegas atuando sobre a língua: a mutação, que rompe a regularidade, e a analogia, que tenta (mas nem sempre consegue) restabelecê-la. Se o português tem dois tipos de infinitivo (impessoal e pessoal) quando as demais línguas têm apenas um, há necessidade de uma regra disciplinando o uso de um e de outro. Como há uma infinidade de casos dúbios (“os alunos levam tempo para aprender” ou “para aprenderem”?), e, de quebra, existe uma pressão social para falar corretamente (isto é, segundo o padrão culto), os falantes acabam metendo os pés pelas mãos e misturando as formas de maneira pouco lógica e pouco prática (certa vez ouvi um porteiro de casa noturna dizer: “Vocês vão entrarem agora ou preferem esperarem mais um pouco?”).

Objetivamente falando, isto é, deixando de lado as paixões e atendo-nos estritamente aos dados observáveis, o português nada tem de belo ou perfeito. A rigor, nenhuma língua é intrinsecamente bela ou boa, a não ser do ponto de vista particular e tendencioso de quem a contempla. O mesmo sentimento ufanista que nutrimos por nossa língua os falantes de todos os idiomas também têm. É tão possível poetar em turcomeno quanto em português. Excetuando-se os dados objetivos, que o estudo comparado de línguas guiado pelo método científico produz, tudo o mais são fanfarronices patriotescas que em nada contribuem para a real compreensão da língua e de seus impasses.

Dito de outro modo, só podemos resolver problemas se tivermos consciência de que eles existem. A defesa apaixonada do “jeitinho brasileiro” de falar surte o mesmo efeito que a exaltação do jeitinho brasileiro de lidar com a lei, a política, a cidadania. Se quisermos ser de fato uma nação desenvolvida, precisamos ser menos autocondescendentes e parar de tratar o vício como virtude. Todas as línguas têm defeitos e qualidades, umas mais, outras menos; todos os povos têm seus pontos positivos e negativos, inclusive no trato com o idioma. O tal “jeitinho”, como já assinalado por inúmeros antropólogos, nada mais é do que a forma como tentamos contornar, às vezes de modo desonesto, as dificuldades oriundas de nossa própria formação moral e cultural deficiente: um estado oligárquico e profundamente burocrático, leis classistas, educação e saúde precárias, as exigências de um mundo globalizado e altamente tecnológico, e assim por diante. Um dos desafios que enfrentamos e para o qual não estamos bem preparados é justamente a língua portuguesa padrão, um sistema tão emperrado quanto os demais. Por isso, diante dos entraves do idioma, também temos de nos virar. E dá-lhe jeitinho!

Tudo bem, que estejamos conseguindo nos comunicar com eficiência e criatividade apesar de todos os pesares não deixa de ser louvável, mas daí a acharmos que nosso sistema de comunicação é nota dez vai uma grande distância. Talvez repetir o senso comum, praticar o bom-mocismo e engrossar o coro dos contentes (numa palavra, “lacrar”), dizendo o que todos querem ouvir, seja uma estratégia politicamente mais inteligente do que provocar polêmica pondo o dedo em certas feridas. Mas nunca sairemos do subdesenvolvimento enquanto ficarmos legitimando os nossos erros em vez de corrigi-los.

Qual é o correto: pulso ou punho?

Certa vez, tive uma dor no pulso, provavelmente causada pelo uso do computador, e procurei um ortopedista, que me corrigiu dizendo que eu não tinha dor no pulso e sim no punho, pois pulso é a pulsação cardíaca, que antigamente se media apalpando o punho (alguns médicos ainda fazem isso hoje).

Respeito muito a terminologia médica, embora ainda não tenha assimilado muito bem o porquê de certas mudanças, como a de rótula para patela ou de aparelho digestivo para sistema digestório, mas isso é outra conversa. Também compreendo que os médicos não queiram confundir o pulso, no sentido de pulsação, com o punho, parte do antebraço que se liga à mão. Mas o fato é que eu não estava errado ao chamar o punho de pulso, pois, primeiramente, os dicionários efetivamente registram no verbete pulso a acepção de “parte do antebraço”. Em segundo lugar, quase toda designação tem uma origem metafórica ou metonímica. Assim, o pulso enquanto parte do corpo tem esse nome justamente porque é nele que os médicos verificam a pulsação cardíaca. Logo, tomar o pulso passou a significar tanto “tomar, pegar o punho do paciente” quanto “tomar (isto é, examinar) a pulsação cardíaca”. Na verdade, faz-se o primeiro para fazer o segundo. Se devêssemos rejeitar a denominação pulso enquanto parte do corpo por ser uma metonímia, então também deveríamos rejeitar punho, já que vem do latim pugnus, que significa “soco” e deriva do verbo pungere, “bater”. Aliás, daí vêm os verbos impugnar, repugnar e propugnar, bem como pungir, pungente e punção. Por fim, teríamos de renomear o relógio de pulso para relógio de punho. Será que pegaria?

Ainda sobre a norma-padrão e o ensino de gramática

Não sou gramático nem professor de português, tampouco faço pesquisas na área chamada Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, mas acho que os exatos 40 anos em que venho me dedicando à linguística e mais o estudo de línguas que empreendo desde a adolescência, somados ao meu posicionamento sempre ponderado diante de assuntos polêmicos, me conferem alguma autoridade para opinar sobre uma questão envolvendo nossa língua e nosso ensino que já tratei aqui algumas vezes e que volta e meia ressurge tanto no meio acadêmico quanto na sociedade: a adequação ou não de nossa atual norma-padrão, ditada pela chamada gramática normativa, e o consequente ensino dessa gramática em nossas escolas.

Quem acompanha minhas publicações, tanto aqui no blog quanto em meu canal de vídeos Planeta Língua, do YouTube, sabe que tenho críticas fundamentadas tanto ao excessivo conservadorismo da norma atual, especialmente em face das simplificações e racionalizações operadas nas gramáticas das demais línguas românicas no último século, quanto a propostas e posturas de alguns colegas linguistas que criticam essa norma de um ponto de vista muito mais ideológico do que científico, por vezes lançando mão até de inverdades e falsas acusações aos gramáticos, e propõem em seu lugar uma norma baseada na modalidade falada do português brasileiro, com total desconsideração em primeiro lugar do uso que efetivamente se faz da língua nos textos escritos formais da atualidade, em segundo lugar de toda a nossa tradição escrita, que seria subitamente rompida, e, em terceiro, de nossos laços com as demais nações de língua portuguesa. Por sinal, meu mais recente vídeo no supracitado canal trata exatamente disso.

Pois agora me chega às mãos um excelente artigo do Prof. Ricardo Cavaliere, da Universidade Federal Fluminense e da Academia Brasileira de Filologia, além de mais recente membro da Academia Brasileira de Letras, que aborda essa questão de forma magistral, tocando em todos os pontos correntemente em debate.

Como o artigo é longo e redigido em linguagem acadêmica, portanto nem sempre acessível ao leitor leigo, tomo aqui a liberdade de fazer um resumo do texto, ressaltando seus principais argumentos.

De início, o Prof. Cavaliere distingue duas competências que por vezes são confundidas: a competência linguística (saber falar a própria língua) e a competência discursiva (saber adequar seu discurso, portanto, seu vocabulário e sua gramática, às diversas situações de comunicação). Diz ele:

O indivíduo que se refere ao interlocutor com um “Você está de sacanagem!”, seja no ambiente de trabalho, numa conversa distensa ou numa cerimônia de colação de grau, revela que domina as estruturas linguísticas da língua para expressar-se em português, isto é, tem competência linguística, mas não detém competência discursiva, pois é incapaz de discernir sobre a adequação dos usos linguísticos nas distintas situações em que se constroem os atos de fala. Em outras palavras, para ele não importa a variabilidade dos fatores extralinguísticos do discurso, pois seu texto (aqui entendido no sentido estrito) está moldurado numa espécie de engessamento linguístico. É o homem de um texto só.

E prossegue:

A questão está em que o processo de aprendizagem que nos confere esta especial competência discursiva não se adstringe à aula de português. […] Não obstante, creio que se tivesse que eleger, por algum motivo, um único profissional dentro da sociedade contemporânea para cuidar dessa delicada questão da língua em uso e das variáveis do uso, decerto que elegeria o professor de língua materna. Assim, percebe-se uma definitiva mudança no perfil desse profissional no seio da sociedade contemporânea: antes, julgavam-no responsável pelo aprimoramento da competência linguística; hoje, julgamo-lo responsável pelo aprimoramento da competência discursiva.

O autor assinala que a controvérsia sobre o ensino de língua surgiu por culpa de um entendimento maniqueísta da questão, que situa o ensino da gramática normativa “como um atentado à liberdade de expressão, não raro qualificado como uma institucionalização do preconceito linguístico na escola”.

De fato, a partir da década de 1970, muitos intelectuais brasileiros estimularam um confronto entre a norma gramatical e a liberdade de expressão, acusando a primeira de representar um instrumento de censura e exclusão social. Convém lembrar que estávamos então sob a ditadura militar, o que muito contribuiu para uma radicalização de posições em que, do mesmo modo como se combatia a opressão e o arbítrio do regime, atacava-se o cânone gramatical ao ponto de se confundir incorreção gramatical com democracia linguística. Era como se respeitar a gramática fosse sinônimo de compactuar com a ditadura!

Por outro lado, uma certa visão deturpada do papel da linguística, que, como ciência, não faz juízos de valor de certo e errado, mas analisa os fatos como eles são, levou, de um lado, certos linguistas a legitimar o chamado “erro de português”, estigmatizando os gramáticos e filólogos, e, de outro, induziu estes últimos a deplorar a linguística como uma disciplina permissiva, uma verdadeira ameaça ao nosso vernáculo. Infelizmente, essa visão permanece em muitas mentes até os dias de hoje.

É nesse contexto de radicalização política e entendimento equivocado dos papéis da linguística e da gramática que surge a bandeira do chamado “vale-tudo linguístico”. Como diz Cavaliere:

Na ilusória empreitada de desagrilhoar a palavra política, muitos defenderam a nivelação do discurso escrito com o oral, rezando pela cartilha-chavão do vox populi vox dei e do “é proibido proibir”, esquecidos de que o aprimoramento do discurso escrito transcende as fronteiras da opinião política, podendo até ser simplesmente um mero exercício do prazer de escrever bem. E o que  se percebe é que tais juízos tiveram origem em cérebros absolutamente laicos em assuntos linguísticos, vindo a encontrar conveniente amparo em outros totalmente carentes de saber gramatical. (grifo meu)

Ele complementa: “Admitir que a norma oral deva servir de parâmetro para uma norma escrita é negar uma diferença de comportamento que não está propriamente nem no discurso nem na língua, mas no próprio homem social”. E ainda: “no seio da sociedade brasileira permeiam duas modalidades bem distintas de uso linguístico: a oral e a escrita. Também sabemos que a norma oral é em muitos pontos colidente com a escrita, a ponto de uma tornar-se intolerável quando invade o espaço da outra”. Como diria Evanildo Bechara, não se vai à praia de fraque nem de chinelos ao Municipal.

Alguns gramáticos mais puristas costumam dizer que “eu vi ela” e “vamos se encontrar” sequer é português, como se só a norma-padrão representasse o idioma. Numa crítica a esses gramáticos, alguns linguistas, como Mário Perini, afirmam que há duas línguas distintas: a que se escreve, chamada português, e a que se fala, que nem nome tem. A esse respeito, diz Cavaliere: “A rigor, não existe uma língua que se escreve e outra que se fala, mas uma língua em que há estruturas que se usam somente quando se escreve e outras que se usam apenas quando se fala. […] Em outros termos, tanto ‘eu o vi ontem’ quanto ‘eu vi ele ontem’ são produtos da mesma gramática da mesma língua”.

Outro importante ponto destacado pelo autor do artigo é o fato de que o que entendemos por modalidade oral, ou língua falada, é uma pluralidade de manifestações, correspondentes a diferentes localidades e classes sociais, de modo que não há uma única linguagem oral, mas várias. Há entre os falantes diferenças regionais e sobretudo de escolaridade que fazem com que um cidadão bem escolarizado se permita dizer “Tem um filme legal passando no cinema” ou “eu assisti ele ontem”, mas não “nós foi no cinema junto”.

Portanto, quando se prega adotar a modalidade oral como parâmetro para constituir uma nova norma-padrão, que oralidade se toma como modelo? Algumas construções típicas do discurso oral já aparecem na escrita formal e são até toleradas; outras ainda não. Quem deve estabelecer esses critérios ou fazer essas escolhas? Segundo Cavaliere, “[é] esta avaliação subjetiva que nos afasta do consenso e provoca tantas opiniões radicalizadas sobre o assunto. Como quem se ocupa de descrever e abonar as estruturas prestigiadas para uso em texto escrito é o gramático, no fim sobre ele recai o ônus do anacronismo e do preconceito linguístico”.

Só que os gramáticos, especialmente os contemporâneos, têm métodos objetivos para determinar o que deve ou não ser abonado. Eles fundamentalmente abonam aquilo que já está no uso dos redatores de prestígio, sejam eles grandes escritores, juristas, acadêmicos, jornalistas de peso, etc. E estes, por sua vez, sendo dotados de grande cultura, seguem, ao escrever, os preceitos ditados pelas gramáticas — com exceção talvez de alguns ficcionistas que se permitem transgredir a norma em prol da literariedade, a chamada “licença poética”.

Em outros termos, tem-se um círculo vicioso: o gramático abona estruturas já consagradas e rejeita usos que, embora correntes na linguagem oral, incidem apenas marginalmente no texto escrito, ao passo que os redatores de textos formais que servem de base à abonação gramatical — inclusive os linguistas que pregam o rompimento com a gramática tradicional, assim como seus discípulos — não inovam em seus textos, mas repetem apenas as estruturas já consagradas.

Outra crítica feita pelos linguistas “modernosos” ao ensino de gramática, especialmente da norma em vigor, é que o importante é que o aluno aprenda a ler, escrever e falar bem. Com efeito, desde o advento na linguística do chamado pós-estruturalismo na década de 1970, passou-se a valorizar mais o texto e o discurso do que a língua que os produz. Se até então a tônica dos estudos linguísticos estava no processo, passou-se a praticamente ignorá-lo em detrimento de seu produto. Com isso, enfatiza-se muito hoje a leitura e a produção de textos, relegando a análise sintática a um segundo plano. Na verdade, os radicais sustentam mesmo que seu ensino seja abolido. Ouçamos mais uma vez Cavaliere:

Sabemos desde pelo menos 1915, quando Otoniel Mota publicou a primeira edição de suas Lições de português, que saber analisar sintaticamente uma sentença não garante boa redação a ninguém, mas daí a dizer que fazer análise sintática é algo absolutamente inútil implica avaliar restritivamente a validez dos conteúdos programáticos em língua materna.

Os que hoje trabalham com descrição linguística […] não conseguiriam decerto fazê-lo em nível avançado se em sua formação escolar básica se lhes tivesse sonegado o saber científico sobre a sintaxe e a morfologia da língua […].

Em parte, a culpa é do próprio modo como a gramática tem sido ensinada em nossas escolas, como se fosse um fim em si mesmo e não como um meio para a produção de bons textos. É isso o que municia os mais radicais ao exigir o fim de seu ensino. Na verdade, o que precisamos é repensar esse ensino com vistas ao aprimoramento da competência do aluno tanto linguística quanto discursiva e não sua abolição pura e simples e sua substituição pelo vale-tudo ou por uma norma calcada na oralidade: “a leitura diversificada revela-nos que no texto escrito não se pode contar com as inferências, nem se conformar com as lacunas típicas do texto oral. A leitura, a rigor, demonstra que a arquitetura do texto escrito, se pautada nas técnicas da oralidade, resulta na incoerência e na obscuridade”.

O bom ensino de língua portuguesa é o que dá ao estudante acesso a todas as variedades de uso do idioma, especialmente as que ele ainda não conhece ou domina. Este sim é o verdadeiro ensino democrático e inclusivo e não aquele proposto por indivíduos tão radicais em matéria de língua quanto de política e que impropriamente fazem da ciência uma seara para disseminar suas ideologias e sua militância política. Como conclui Cavaliere, “[n]ão há democracia mais deliciosa do que a do livre acesso às fontes do saber”.

Espera, expectativa e esperança

O verbo esperar tem vários significados em português. Pode-se esperar um ônibus, uma promoção no emprego ou um milagre. A cada um dos significados desse verbo corresponde um substantivo diferente. No caso do ônibus, temos espera; no da promoção, expectativa; no do milagre, esperança.

O verbo esperar proveio do latim sperare, derivado de spes, “esperança”, e teve como derivados espera e esperança. Já expectativa veio do latim expectare ou exspectare, formado de ex‑, “para fora”, e spectare, “assistir, olhar” (daí, os nossos espectador e espetáculo). Significava “olhar de longe, de fora”, mas podia significar também “olhar para fora”, como quando se olha pela janela à espera de alguém.

De fato, o latim fazia distinção entre sperare, “ter esperança”, e exspectare, “ter expectativa” ou mesmo “aguardar”. Essa distinção se conservou em algumas línguas irmãs do português, como o francês espérer x attendre e o italiano sperare x aspettare. As línguas germânicas também fazem tal distinção: por exemplo, o inglês to wait x to expect x to hope.

A diferença entre espera, expectativa e esperança é o grau de certeza que temos de que algo aconteça. A espera se dá por algo ou alguém que temos certeza de que virá, como o ônibus, por exemplo. A expectativa se refere a algo provável, mas não totalmente certo, como a promoção no emprego. Finalmente, a esperança recai sobre algo bastante improvável, como um milagre ou o fim da corrupção e da impunidade no Brasil.

Em muitas línguas, os verbos referentes a “esperar” estão semanticamente ligados ao ato de olhar, como em exspectare, derivado de spectare. O nosso aguardar provém de um verbo germânico *wardon, que queria dizer justamente “olhar, vigiar”. Tanto que “olhar” é regarder em francês e guardare em italiano. E, em português, guardar algo é manter sob vigilância (provavelmente para que não suma ou não roubem). Por essa mesma razão, o policial que vigia as ruas é chamado de guarda.

Por que o nome do signo de aquário está errado

Aquário, um dos signos do zodíaco, que supostamente rege as pessoas nascidas entre 21 de janeiro e 19 de fevereiro, tem a origem de seu nome no latim aquarius, que, como adjetivo, significa “relativo a água, aquático” e, como substantivo masculino, quer dizer “aguadeiro, escravo incumbido de abastecer de água as casas” e também “vendedor de água”. Por outro lado, o latim tinha o substantivo neutro aquarium, “aquário de peixes” e também “bebedouro do gado”.

O signo do zodíaco em latim era Aquarius e não Aquarium, tanto que, segundo os místicos, já estamos em plena era de aquário, uma era de paz e prosperidade, o que motivou aquela famosa canção Aquarius do musical Hair, cuja letra diz: “When the moon is in the Seventh House / And Jupiter aligns with Mars / Then peace will guide the planets / And love will steer the stars” (Quando a lua estiver na Sétima Casa / E Júpiter se alinhar com Marte / Então a paz guiará os planetas / E o amor guiará as estrelas). Parece que nada disso aconteceu ainda, e eu particularmente duvido que um dia aconteça, mas o fato que quero tratar aqui é que em português esse signo não deveria chamar-se Aquário e sim Aguadeiro.

Esse equívoco de tradução também é cometido pelo espanhol Acuario e pelo italiano Acquario, idiomas em que as palavras para “aguadeiro” são respectivamente aguador e acquaiolo. Já em francês, o signo se chama Verseau e em alemão, Wassermann, que corretamente significam “aguadeiro”. O inglês manteve o nome do signo em latim, Aquarius, fugindo, assim, do risco de cometer tal erro de tradução.