Um novo tipo de variação linguística

Já faz algum tempo que nas aulas de Língua Portuguesa se ensina sobre variação e mudança linguísticas. Trata-se de mostrar aos estudantes que a mesma língua se fala ou escreve de formas diferentes conforme o lugar, a época, o ambiente, o meio de comunicação… A sociolinguística, disciplina que estuda esse fenômeno, costuma reconhecer cinco tipos de variação: a diatópica, que é a que a língua sofre de uma região para outra e que se caracteriza principalmente pela pronúncia (o chamado sotaque) e pelo vocabulário (os chamados regionalismos); a diacrônica, mudança que a língua sofre ao longo do tempo, por força da evolução histórica, e que se percebe na pronúncia e no vocabulário de pessoas de diferentes faixas etárias; a diastrática, ou variação da língua de acordo com a classe social do falante, na medida em que todos nós tendemos a falar de modo semelhante aos nossos iguais, isto é, aos membros de nossa própria comunidade linguística e de nosso próprio grupo social; a diafásica, isto é, o modo como nos expressamos dependendo da situação de comunicação em que nos encontremos (uma conversa informal, uma palestra, uma entrevista de emprego, etc.); e a diamésica, último tipo de variação a ser reconhecido, que tem a ver com o meio de comunicação empregado, ou seja, a fala, um documento escrito, um e-mail, uma mensagem no WhatsApp, e assim por diante.

De fato, nossa pronúncia, nossa gramática e nosso léxico mudam em função de todos esses parâmetros (nas mensagens eletrônicas até a grafia muda!). É por isso que não se fala no Rio de Janeiro como se fala na Paraíba, é por isso que um idoso não fala como um adolescente, um morador da periferia não fala como um dos Jardins, não falamos com nosso chefe como falamos com nossos filhos, nem escrevemos como falamos ou redigimos um SMS como redigimos um ofício.

Até aí, tudo muito claro, lógico e natural. Mas acontece que a língua também pode variar no mesmo falante no mesmo ato de comunicação, isto é, no mesmo enunciado. E pode variar em termos de pronúncia, léxico ou gramática. É o que vou chamar aqui em primeira mão de variação diatática (do grego taktós, “ordenado, posicionado”).

O presidente Michel Temer, por exemplo, costuma pronunciar o r de “rua” à maneira dos sulistas, isto é, vibrando a língua na região dos alvéolos (aquelas bolinhas que temos entre a gengiva e o palato atrás dos dentes incisivos superiores) – trata-se da chamada vibrante alveolar múltipla, que se transcreve foneticamente como [r]. Já a maioria dos brasileiros pronúncia o r como uma fricativa velar, uvular ou glotal – é o chamado “erre carioca”, que pode ser transcrito como [ɣ], [ʁ] ou [h] (na verdade, essas três transcrições correspondem a três variantes desse tipo de erre).

Acontece que nosso presidente alterna os dois tipos de pronúncia, que estamos aqui chamando respectivamente de “sulista” e “carioca”, às vezes numa mesma frase ou em frases de um mesmo discurso. Tudo depende de se o r está no início ou final da frase, se é precedido de consoante ou de vogal, se a palavra é pronunciada com mais ou menos ênfase, além de alguns outros fatores difíceis de detectar (nível de cansaço, tensão emocional, secura da boca).

Na verdade, a maioria dos falantes de São Paulo, Sul e Centro-Oeste do Brasil que utilizam o erre “sulista” costumam misturá-lo ao “carioca” em sua fala. Sendo a variante sulista a natural dessas pessoas, a outra entra justamente naquelas posições do enunciado em que a vibração da língua nos alvéolos costuma falhar ou ser mais difícil. Já o contrário quase nunca ocorre: um falante do Sudeste, Norte ou Nordeste que tem o erre carioca como padrão dificilmente o trocaria pelo sulista, a não ser por brincadeira.

Mas há também pessoas que empregam indiferentemente “louro” e “loiro”, “catorze” e “quatorze”, “éxtra” e “êxtra”, “Rorãima” e “Roráima”… E a maioria de nós mistura na mesma frase “nós” e “a gente”, “teu” e “seu”, “seu” e “dele”, “dez reais” e “dez real”, e por aí vai. Ou seja, a pronúncia, o vocabulário e a gramática mudam na mesma pessoa, no mesmo ato de fala. Às vezes temos a tendência, consciente ou inconsciente, de adequar a nossa fala à do nosso interlocutor. Por isso, se costumo pronunciar “catorze”, mas a pessoa com quem converso repete o tempo todo “quatorze”, posso acabar pronunciando “quatorze” por influência dela – especialmente se estou falando com alguém a quem respeito muito.

O fato é que todos nós sofremos essas flutuações em nossa fala sem nos darmos conta. E, que eu saiba, parece que os sociolinguistas também não se deram conta ainda. É a tal variação diatática.

O Iluminado

Hoje não posso deixar de prestar homenagem a um dos meus grandes ídolos, um dos caras que mais me fizeram ter amor pela ciência e pela popularização da ciência: o iluminado Stephen Hawking.

Iluminado sim, pois sua mente prodigiosa, mesmo aprisionada num corpo paralisado, nos auxiliou a compreender melhor os mistérios da nossa existência. Considerado o físico mais importante de nosso tempo e o mais insigne depois de Newton e Einstein, Hawking de certo modo complementou a obra desses outros dois gênios. Seu trabalho consistiu em explicar como o Universo surgiu e como evoluiu desde então, e por que as leis da física são como são.

Mais do que isso, seu pensamento tocou em questões ontológicas que perturbam a todos os que somos dotados de alguma curiosidade e temos espírito aberto: por que existimos? por que a realidade existe em vez do nada? poderia o nada existir? se o Universo existe, é porque ele foi criado?

Ateu convicto, Hawking tinha respostas convincentes a todas essas questões, embora sua modéstia, típica dos sábios, o levasse a nunca afirmar nada peremptoriamente. Afinal, diferentemente da religião, que tem respostas prontas para tudo (e sempre as mesmas respostas ao longo de milênios), a ciência não se baseia em argumentos de autoridade ou em verdades pretensamente reveladas, mas em pesquisa, isto é, observação meticulosa, investigação, experimentação e raciocínio lógico. Hawking sabia como ninguém que não existem verdades prontas e acabadas, o que existe é a possibilidade de o engenho humano descobrir mais e mais, chegando sempre mais perto da verdade sem jamais atingi-la por completo. Uma de suas frases célebres diz: “há uma diferença fundamental entre a religião, que se baseia na autoridade, e a ciência, que se baseia na observação e na razão. A ciência vai ganhar porque ela funciona”. É o que vemos todos os dias: a ciência provando suas teorias e demolindo as crenças religiosas. Pena que ela seja acessível a poucos.

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Por isso mesmo, o iluminado Hawking também teve a generosidade de partilhar conosco, simples mortais, suas descobertas e seu conhecimento. Ele foi um incansável e magistral divulgador da ciência, e sua paixão pela comunicação do saber o fez transpor as limitações de sua condição física, jamais deixando de escrever para o público leigo e de dar palestras em todo o mundo, mesmo tendo de usar um sintetizador de voz para falar. Seus livros tornaram-se best-sellers e ele, uma celebridade pop, digna de aparecer nos Simpsons, no Laboratório de Dexter, em The Big Bang Theory, em Star Trek, e de ter sua vida retratada em filme (A Teoria de Tudo, 2014).

Seu trabalho incansável de divulgador científico levou milhares de jovens a se apaixonar pela ciência e a abraçá-la como carreira, bem como iluminou a mente de muitas pessoas, livrando-as do obscurantismo da crendice e da superstição. Para mim, que tento ser um divulgador da ciência da linguagem e milito no campo das Humanas, às vezes tão avesso ao método científico, tão apegado ao dogmatismo marxista, Hawking é uma inspiração, alguém que me motiva a seguir adiante apesar de todas as diversidades.

Mas a vida de Stephen Hawking também tem a mística da trajetória dos grandes homens. Nascido no dia em que se completavam 300 anos da morte de Galileu e no ano em que se comemorava o 300º aniversário de nascimento de Newton, faleceu no dia do aniversário de nascimento de Einstein, no qual também é celebrado o Dia do Pi, a famosa constante matemática 3,14… (é que 14 de março se escreve em inglês como 3/14). E faleceu aos 76 anos, como o gênio alemão. Todas essas coincidências – ou sincronicidades, se preferirem – são peças que a realidade nos prega, talvez tentando nos revelar seus caprichos mais sutis. Pois, como disse Einstein, a natureza é sutil, mas não maliciosa.

Além de tudo, ele teve a grandeza moral dos fanais da humanidade. Preso a uma cadeira de rodas, ele viu melhor que ninguém e nos mostrou mais claramente o mundo que habitamos, qual um Beethoven tirando a mais bela música do silencio da surdez, qual um Aleijadinho que, sem mãos, esculpiu na pedra o orgulho da nossa nacionalidade, qual um Homero cego cantando a Ilíada.

Caro Steve, você fará uma baita falta!