Os cães e a comunicação

O que cachorros passeando têm a ver com a comunicação humana? Pois estava eu, certo dia, bem antes da pandemia, passeando na rua com os meus dois “filhos” de quatro patas quando me dei conta de que, guardadas as devidas proporções, cães e homens têm muito em comum, inclusive em seus interesses sociais. Durante um passeio, os cães basicamente farejam tudo à sua volta em busca de indícios da passagem de outros cães pelo mesmo local. Aliás, cachorros deixam seu rastro de xixi nos postes e troncos das árvores para marcar território, ou seja, para que outros animais saibam que eles passaram por ali. Quando um cão encontra outro na rua (e eles não se estranham logo de cara), é normal que um cheire a glândula anal e os órgãos sexuais do outro. Esse comportamento permite saber algo da vida do novo conhecido: se é macho ou fêmea, se é castrado, que tipo de alimento come, se é amistoso…

Ora, nós humanos nos comunicamos fundamentalmente pelo mesmo motivo – para saber da vida alheia. Algumas teorias sobre a origem da linguagem especulam, por sinal, que a aptidão linguística do homem teria se desenvolvido graças a uma prática cada vez mais comum no tempo das cavernas: a fofoca. Isso mesmo, a fofoca! Falar do outro – bem ou, principalmente, mal – sempre foi o nosso esporte preferido.

Pois a comunicação, especialmente a de massas, existe para nos informar da vida alheia – e não estou falando só das revistas e programas de mexericos sobre celebridades. Se pensarmos bem, tudo o que lemos, ouvimos ou vemos nos meios de comunicação nos conta o que os outros estão fazendo. Seja as notícias dos jornais, as entrevistas da TV e até mesmo as obras de ficção (porque nossa curiosidade sobre a vida alheia é tanta que mesmo a vida de personagens inventados nos interessa e prende nossa atenção), tudo nos mostra, voyeuristicamente, o que se passa com o outro. Parece que temos a crença de que a vida alheia é sempre mais excitante do que a nossa. Até quando descobrimos que a vida privada dos artistas também tem momentos de tédio, isso nos conforta e alivia o nosso próprio tédio.

Além disso, assim como os cães deixam suas marcas urinárias para que os demais saibam de sua existência, nós humanos temos uma necessidade muito grande de ser conhecidos. Aquela artista famosa que se queixa de não poder ir à praia em paz, tão assediada que é pelos paparazzi, está simplesmente blefando: ela fica realmente preocupada quando, por mais de duas semanas, não sai nenhuma nota sobre a sua pessoa na imprensa. Algumas celebridades até convocam os indiscretos fotógrafos para flagrá-las em situações íntimas – mesmo que depois ameacem processá-los por invasão de privacidade, ameaça aliás nunca levada adiante.

O fato é que precisamos desesperadamente saber da vida alheia, assim como precisamos que os outros saibam da nossa. Talvez até esta crônica seja, no fundo, uma forma de eu me mostrar. É, nós e os cachorros temos mesmo muito em comum…

Quais vidas importam: as pretas ou as negras?

O assassinato do cidadão afro-americano George Floyd por um policial branco em Minneapolis, EUA, há cerca de duas semanas não só detonou um movimento mundial contra o racismo como também suscitou uma dúvida linguística. É que esse movimento antirracista tem como palavra de ordem a frase black lives matter, que aqui no Brasil tem sido majoritariamente traduzida como “vidas negras importam”. Entretanto, alguns jornalistas e outras personalidades formadoras de opinião apresentaram aqui e ali a tradução alternativa “vidas pretas importam”. E aí, qual é a tradução mais correta?

Para responder, precisamos entender o significado das palavras “preto” e “negro” em português, bem como de “black” em inglês.

Primeiramente, é preciso dizer que, das línguas europeias mais difundidas, só o português tem duas palavras, “preto” e “negro”, para designar a cor mais escura da gama cromática. E isso causa certo embaraço aos estrangeiros que aprendem português, bem como às crianças pequenas, que também estão começando a familiarizar-se com as sutilezas do idioma. Tanto que não é raro criancinhas dizerem “lápis negro” ou “blusa negra” e estrangeiros, “Mar Preto” ou “lista preta”.

Até o despertar da consciência negra, primeiro nos EUA com o movimento pelos direitos civis da década de 1960, depois também no Brasil, o termo mais usado para designar a raça oriunda da África era “preto”. Por exemplo, a santa padroeira dos escravos no período colonial era Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Em Portugal, os negros são chamados até hoje de pretos.

Já o IBGE (confira, por exemplo, www.diferenca.com/preto-pardo-e-negro) divide nossa população em cinco grupos étnicos, ou “raças”: branco, preto, pardo, amarelo (ou oriental) e indígena (ou índio). Trata-se de uma simplificação grosseira, mas necessária em virtude do tratamento estatístico por que passam os dados. Por exemplo, tanto o mestiço de branco e preto quanto o de branco e índio são considerados pardos (no senso comum, muitos dos chamados mamelucos ou caboclos são vistos como brancos). E onde fica o mestiço de branco e amarelo? Embora raras, essas pessoas teriam de enquadrar-se como brancas ou como amarelas, dependendo de quão puxados são seus olhos.

Mas o cerne da questão aqui é: “preto” ou “negro”, o que é melhor usar. Ou, dito de outro modo, qual das duas denominações é politicamente correta. Aqui surgem os mal-entendidos. No Brasil de hoje, “preto” em relação à cor da pele é considerado depreciativo; o politicamente correto recomenda dizer “negro”. Só que, para o IBGE, “negro” inclui “preto” e “pardo”, ou seja, é a soma de ambos os grupos. Numa simplificação bem reducionista, poderíamos dizer que negros são todos os afrodescendentes, sejam eles pretos puros (sem mistura) ou mestiços. Só que, como vimos, os pardos incluem mulatos (mestiços de branco e preto), cafuzos (preto e índio), caboclos (branco e índio) e ainda os mestiços de branco, preto e índio, cuja designação étnica no vernáculo este cronista desconhece.

Por outro lado, nos EUA, onde o racismo sempre foi mais declarado que no Brasil, o termo usual é black, ou seja “preto”, pois negro (pronunciado “nígrou”) é altamente ofensivo, significando algo como “negão”. Há ainda uma palavra mais injuriosa em inglês: nigger, corruptela de negro.

É interessante que, com exceção do espanhol, que só conhece a palavra negro tanto para cor quanto para raça, as demais línguas têm, como o português, duas palavras. Em francês, noir e nègre; em italiano, nero e negro; em alemão, schwarz e Neger; e assim por diante. A segunda de cada uma dessas designações é exclusiva de raça.

Portanto, no lema “black lives matter”, quais vidas importam: as pretas ou as negras (pelo critério do IBGE, bem entendido)? Penso que o racismo atinge não só os pretos puros e retintos, mas também os pardos, especialmente os mais escuros (há até a teoria do colorismo ou pigmentocracia, segundo a qual, quanto mais melanina, mais preconceito).

Nos EUA, não há meio-termo: quem não é branco puro, especialmente de origem anglo-saxônica, é black. Portanto, a melhor tradução em português é “vidas negras importam”, até porque o português brasileiro tem diversos termos eufemísticos (“moreno”, “moreninho”, “escurinho”, “de cor”, “queimado de sol”, “da cor do pecado”, etc.) que buscam pôr no mesmo balaio todos os afrodescendentes, tanto os puros quanto os mestiços.

As duas maneiras de sofrer

Neste exato momento, o Brasil sofre com três crises: sanitária, política e econômica. Muitos sentem na pele – e principalmente nos pulmões – os efeitos da covid-19, outros padecem a perda de entes queridos, e muitos mais sofrem com o isolamento forçado. Mas, diante de tanto sofrimento, vocês sabiam que em português há duas maneiras de sofrer?

A palavra “sofrer” chegou ao português por herança do latim sufferre, passando pelo estágio intermediário sufferere (ou sufferrere) no latim vulgar. Os dicionários registram basicamente duas acepções para essa palavra: padecer, ter dor física ou moral (“Meu avô sofreu muito antes de morrer”; “Ele está sofrendo por amor”); e suportar, ser submetido a, passar por (“Meu avô sofreu uma cirurgia”; “Meu time sofreu uma fragorosa derrota” “Os vírus sofrem mutação”).

A primeira acepção é geralmente intransitiva e admite o substantivo deverbal (isto é, derivado de um verbo) “sofrimento”. A segunda é transitiva e não tem deverbal. Pode-se até pensar que quem sofre uma cirurgia ou uma derrota de alguma forma tem dor. Talvez por isso tal verbo, que em latim significava originalmente “sustentar”, tenha assumido também o sentido de “padecer”.

O latim sufferre é formado de sub- (sob, embaixo, de baixo para cima) e ferre (levar, transportar). Portanto, significa levar algo sobre si, estando embaixo da coisa transportada. Como carregar coisas – especialmente pesadas – não é tarefa das mais agradáveis, sufferre logo passou a ter o sentido de “padecer”, para o qual o latim já dispunha do verbo pati (no latim vulgar, patere), do qual derivaram palavras como “paixão”, “passivo”, “paciente”, etc. Em Valério Máximo temos stuprum pati coacta (forçada a sofrer estupro). E em Sêneca, iniuriam pati (sofrer uma injúria).

No entanto, o latim também tinha um terceiro verbo com o mesmo significado: subire, formado de sub- e ire (ir para debaixo de, portanto, submeter-se ou ser submetido a), que também significa “subir” (isto é, “ir de baixo para cima”), sentido que passou ao português.

Curiosamente, outras línguas europeias usam dois verbos diferentes para as acepções “padecer” e “submeter-se”, em geral empréstimos respectivamente de sufferre e subire. No francês temos souffrir e subir; no italiano, soffrire e subire; no inglês suffer e undergo, este último tradução de subire (under = sub, go = ire).

O que se nota é que tanto sufferre quanto subire contêm o prefixo sub-, que significa “embaixo, de baixo”. Assim, em ambos os casos há a ideia de rebaixamento, inferioridade, submissão. Metaforicamente, quem padece uma dor ou se submete a uma experiência está debaixo de algo. Podemos pensar no escravo que sofre ao carregar peso ou que sofre um castigo. No paciente (do latim patiens, “aquele que padece”) que sofre uma cirurgia, situação em que está deitado e tem os cirurgiões trabalhando por cima. Na coluna que suporta (do latim supportare, “levar, portar embaixo”) o edifício. Ou ainda no trabalhador que sustenta (do latim sustentare, forma intensiva de sustinere, “segurar por baixo”) a família.

Consequentemente, o sentido básico de ambos os verbos sufferre e subire é o de suportar, sustentar, isto é, ficar embaixo de algo, resistindo para não deixar cair. Como o velho Atlas, mítico rei da Mauritânia que, segundo a lenda, tendo-se recusado a hospedar Perseu, foi por este metamorfoseado em montanha – o monte Atlas, no norte da África. Como essa montanha era a mais alta dentre as conhecidas pelos gregos, surgiu o mito de que Atlas suportava o céu sobre os ombros. Não por acaso, as estátuas que representam esse personagem o mostram com uma fisionomia sofredora.