Como todos sabemos e sentimos, o Brasil atravessa uma excruciante polarização política entre extremos. Cada uma de seu lado, esquerda e direita se digladiam em defesa de suas ideologias enquanto a maioria silenciosa, adepta da moderação e do equilíbrio, permanece tal, silenciosa – ou melhor, silenciada pela grita histérica que se eleva das extremidades do espectro político.
Pois a mesmíssima coisa está ocorrendo neste momento no âmbito da língua. Temos de um lado uma esquerda radical, com sua neutralização de gênero, seu “todos, todas, todes e todxs”, sua defesa incondicional do “se deu pra intendê, tá tudo certo” e outras bandeirolas ideológicas; de outro, temos os guardiães da tradição, que veem a norma-padrão do idioma como entidade metafísica, sacrossanta, impoluta e inquestionável, e que advoga a normatização gramatical com base na tradição pré-científica que remonta à Grécia antiga e no uso da arte literária em lugar da ciência como parâmetro para essa normatização.
O grande “muso” da extrema esquerda, o super-herói defensor dos fracos e oprimidos da língua é Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília, que, embora o negue, é o paladino do vale-tudo linguístico, o salvador das variedades estigmatizadas, vítimas do preconceito linguístico (conceito que ele mesmo criou), um sujeito que diz coisas como “o ensino explícito da gramática, como objeto de reflexão e teorização, deve ser abandonado” ou “toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o fascismo”, ou ainda “a norma culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! Saber falar o ‘bom português’ nunca permitiu a ascensão social de ninguém, ao contrário do que prega a propaganda enganosa da pequena, pequeníssima burguesia”.
No outro extremo, cujo pontífice é o finado Napoleão Mendes de Almeida, temos os gramáticos normativos tradicionalistas, cujo método de descrição gramatical remonta a Dionísio, o Trácio (séculos II-I a.C.) e sua Tekhné Grammatiké (“Arte Gramatical”), e cujo corpus de onde extraem os modelos de “língua exemplar” são as obras dos grandes literatos, especialmente os clássicos.
Para esses gramáticos puristas, a palavra de ordem é tradição; ou seja, devemos falar e escrever como nossos antepassados o fizeram e como o fazem os mais ilustres prosadores de nosso idioma, especialmente os ficcionistas, aqueles que levam a língua ao “estado mais puro de arte” e fazem malabarismos linguísticos como “fá-lo”, “fê-lo”, “fi-lo”, “pô-lo”, “pu-lo” ou mesmo “qué-lo” (outra variante seria “quere-o”), sem falar nas mesóclises do tipo “dar-lho-ás” e “dir-no-los-ia”.
Enquanto isso, os pobres mortais que apenas desejam – ou pior, têm por obrigação – redigir textos formais e para os quais a norma-padrão tem valor meramente operacional, isto é, como ferramenta de trabalho e não de criação artística, se veem diante de um emaranhado pouco lógico de regras e exceções, de definições francamente falhas porque não científicas (“sujeito é aquele de quem se declara algo” ou “é o autor da ação”; “os termos essenciais da oração são sujeito e predicado” – só que existem orações sem sujeito, e por aí vai).
Ou seja, para uma maioria “de centro”, tanto política quanto linguisticamente, nem tanto ao mar nem tanto à terra: nem a abolição total da norma-padrão e sua substituição pelo “cada um fala como pode e como qué” nem a idolatria de uma norma anacrônica, pedante mesmo, vista como sagrada.
O fato é que as línguas mudam com o tempo (a isso se chama evolução), e a norma-padrão também precisa ser atualizada periodicamente. Como instrumento de comunicação formal que deve ser, sobretudo, funcional, ela tem de ser estabelecida com base no conhecimento científico e não nos arroubos estéticos de escritores que, por mais prestigiados que sejam, também erram (José de Alencar, por exemplo, costumava separar sujeito e predicado por vírgula). Ela deve ter como norte a simplicidade, regularidade e racionalidade. Nesse sentido, gramáticos que abonam certas construções que tornam a regra mais complexa e criam exceções de difícil explicação apenas porque um grande literato as usou prestam um grande desserviço à língua e seus usuários.
Da mesma forma, linguistas “progressistas” que defendem a incorporação à norma de certos usos populares que irregularizam o que até então era regular apenas porque tais usos são isso mesmo, “populares” – e é preciso valorizar a fala do povo para ser um verdadeiro democrata, não é mesmo? – igualmente mais atrapalham do que ajudam.
A realidade é que nossa norma-padrão precisa, sim, ser atualizada, racionalizada e simplificada, da mesma maneira como o fizeram nos últimos cem anos outras línguas neolatinas, notadamente o espanhol e o italiano. Precisamos, sim, de gramáticas normativas que incorporem o método científico e substituam definições, categorias e terminologias ultrapassadas por outras, sustentadas por dados e modelos fornecidos pela ciência.
Mas também é fato que precisamos da norma-padrão, pois nenhuma língua de cultura existe sem ela, e é ela que garante a intercomunicação dos variados grupos que constituem a sociedade sem que haja mal-entendidos, seja em nível profissional, acadêmico ou mesmo prático, como num manual de instruções, por exemplo. É ela que nos dá acesso a direitos e à cidadania; é ela que permite ascensão social a quem não sabe jogar futebol nem cantar pagode; é ela que nos possibilita ler e entender o que lemos; é ela que nos permite redigir e ser compreendidos.
Por via de consequência, a posição “centrista”, de bom senso, livre de extremismos demagógicos, é a que defende ambos os movimentos: de um lado, através da educação, a aproximação dos falantes à gramática normativa; de outro, por meio da reforma desta, a aproximação da gramática aos falantes. É pena que, nesse ambiente radicalizado em que vivemos, a voz da sensatez e da razoabilidade não esteja sendo ouvida.