De onde surgiram as palavras que marcam as festas de fim de ano?

Semana passada, falei sobre a origem da palavra Natal. Mas faltou dizer que, enquanto o português denomina essa data com uma palavra de origem culta, tomada de empréstimo ao latim Natalis, outras línguas empregam termos hereditários, que sofreram ao longo dos séculos todo o processo da evolução fonética. É assim com o galego Nadal, em que o t intervocálico do latim se transmutou em d num fenômeno evolutivo bem conhecido. A mesma palavra latina deu o francês Noël, cuja mutação fonética foi ainda mais severa que em galego. Em espanhol, temos Navidad, do latim Nativitatem, a natividade de Jesus.

Nas línguas germânicas, as origens da palavra para Natal são diversas: em inglês, Christmas provém de Christ mass, a missa de Cristo; o alemão Weihnachten significa “noites sagradas” e refere-se às noites de inverno que já eram celebradas pelos antigos germanos antes do cristianismo, assim como o sueco Jul (e também o inglês Yule), festa nórdica pagã que depois assumiu o sentido cristão atual.

Nosso Papai Noel veio do francês Père Noël, literalmente o Pai Natal (por sinal, é assim que o bom velhinho é chamado em Portugal). Na Inglaterra, ele é o Father Christmas, expressão em tudo equivalente às portuguesas e à francesa. Já nos Estados Unidos, prevaleceu Santa Claus, corruptela do holandês Sinter Klaas ou Sinter Klaes (São Nicolau) devido à grande influência que os holandeses tiveram na colonização americana. Em alemão temos Weihnachtsmann, o homem do Natal.

Já que falamos em Papai Noel, é curioso que aqui no Brasil utilizemos o nome francês da data natalina enquanto os portugueses parecem mais nacionalistas a esse respeito. Igualmente, a palavra Réveillon é muito usada no Brasil e na França (claro, os franceses são os criadores do termo!). Em outros países, preferem-se outras denominações, como o inglês New Year’s Eve (Véspera do Ano Novo). O francês Réveillon vem do verbo réveiller (acordar, ficar acordado) e designava, originalmente, o jantar da noite de Natal; depois passou a referir-se à ceia da véspera do Ano Novo e, finalmente, à própria virada do ano.

Então feliz 2021 a todos! Que no novo ano tenhamos a cura da pandemia, mas principalmente a cura do egoísmo que leva pessoas a se aglomerar em festinhas e nações a comprar mais vacinas do que o necessário para vacinar toda a sua população.

A história da palavra “Natal”

Depois de amanhã é Natal, e parece que o fim de um ano nunca foi tão esperado quanto agora. Enfim, sobrevivemos, embora muitos não tenham tido a mesma sorte. E, já que chegamos até aqui, resolvi republicar o post que lancei no ano passado nesta mesma época. É o que segue.

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Que Natal tem a ver com nascimento, todos sabemos. No entanto, estamos tão acostumados a ver essa palavra associada ao nascimento de Jesus Cristo que a longa história desse termo acaba obscurecida. Por isso, vale a pena revisitá-la.

O latim natalis surgiu como adjetivo derivado do substantivo natus, “nascimento”, mediante o sufixo -alis. Portanto, significava “relativo ao nascimento”. Exemplos desse uso são as expressões natalis humus, “terra natal”, e natale solum, “solo natal”, ambas referentes à pátria (também chamada de natio, “nação”, do mesmo radical). Nesse mesmo sentido, temos também dies natalis, o dia do nascimento de alguém (por isso, o aniversário natalício, que aqui no Brasil reduzimos para aniversário, chama-se em Portugal natalício). Finalmente, natale astrum é o astro que preside o nascimento, portanto relacionado aos signos do zodíaco.

Aqui cabe mencionar que o substantivo natus deriva do radical do particípio natum, do verbo nascor, “nascer”, que por sua vez remonta à raiz indo-europeia *ĝenh1, cujo grau zero (isto é, sem a vogal) acrescido do sufixo incoativo -sk- deu *gnasco em latim arcaico e nascor no clássico. Do mesmo grau zero com redobro do radical saiu gigno, “gerar, parir”. Logo, nascor significava originalmente “ser gerado”. Da mesma raiz indo-europeia temos também o grego génesis, “criação, geração”, palavra de grande simbolismo.

Mas o adjetivo natalis passou a atuar também como substantivo comum, num processo chamado conversão (ou derivação imprópria). É que dies natalis foi reduzido a natalis por economia linguística (assim como o já citado “aniversário natalício” encolheu para “natalício”). E, nessa acepção, natalis era o dia do nascimento de uma pessoa, o próprio ato de nascer e ainda o ano da fundação de Roma.

Mas natalis ganharia ainda dois outros empregos pagãos antes de ser incorporado pelo cristianismo: como designativo do gênio ou deus que preside o nascimento de uma pessoa e a acompanha durante toda a vida (algo como o nosso anjo da guarda) e como nome próprio masculino (em português também temos pessoas chamadas Natal).

Mas foi na acepção de “nascimento” que Natalis se especializou como denominativo do nascimento de Jesus e, por conseguinte, da festa cristã que comemora esse evento. Tanto que jamais usamos tal substantivo fora desse contexto, para falar do nascimento de outras pessoas que não a figura central do cristianismo.

Dito isto, só me resta agora desejar votos de felicidades a todos os amigos leitores e seguidores do nosso blog e do nosso canal no YouTube que nos acompanharam ao longo de mais um ano, por sinal, um ano bem difícil. Feliz Natal!

“Milhões” tem flexão de gênero?

Bom dia, Prof. Aldo! Tenho ouvido várias vezes no rádio e na TV jornalistas dizerem “duzentas milhões de pessoas”, “quinhentas milhões de vacinas”, etc. Essa concordância está correta? É que soa mal aos meus ouvidos. Obrigado.
Raul Teixeira de Mello

Caro Raul, também soa mal aos meus ouvidos. Mas a questão não deve ser se essa concordância soa bem ou mal e sim se ela tem justificativa gramatical ou não. Quando algo soa mal aos nossos ouvidos, isso pode ser indício de que, de fato, há um erro gramatical. No entanto, uma força tão poderosa quanto a escola e seu ensino de gramática normativa são os modismos linguísticos.

De fato, de algum tempo para cá pessoas andam fazendo essa concordância estranha entre numeral e substantivo. E como a evolução linguística começa sempre com uma inovação feita por um único falante que vai pouco a pouco contagiando os demais até tornar-se onipresente, não dá para prever se essa nova maneira de concordar se generalizará e virará norma ou se será apenas mais um modismo passageiro como tantos que já tivemos.

O fato é que alguns numerais em português admitem flexão de gênero e por isso concordam com o substantivo que quantificam. É o caso de “um/uma”, “dois/duas”, “duzentos/duzentas”, “trezentos/trezentas”… até “novecentos/novecentas”. Também os milhares admitem essa flexão, já que um milhar é formado por um numeral entre “um” e “novecentos e noventa e nove” seguido da palavra “mil”. Temos então “dois mil/duas mil”, “duzentos mil/duzentas mil”, e assim por diante.

No entanto, até o momento nenhuma gramática admite o mesmo tipo de flexão quando se trata de “milhão/milhões”, “bilhão/bilhões”, etc. É por isso que não dizemos “uma milhão de pessoas”, ou seja, o cardinal entre “um” e “novecentos e noventa e nove” deve concordar com a palavra “milhão/milhões” e não com o substantivo subsequente.

Ora, se é errado dizer “uma milhão”, é igualmente errado dizer “duas milhões” ou “duzentas milhões”. Afinal, “duas” ou “duzentas” neste caso quantifica “milhões” e não “pessoas” ou “vacinas”.

No entanto, é bem provável que esse modismo se espalhe, ainda mais que está sendo impulsionado por formadores de opinião como os jornalistas, e qualquer dia desses venha a ser abonado por algum gramático. É que muitos gramáticos normativos não entendem que a norma-padrão da língua, por ser uma variedade artificialmente construída apenas para uso formal (ou, dito de outro modo, ninguém fala no dia a dia conforme essa gramática), esta deveria primar pela simplicidade, racionalidade, uniformidade e generalidade das regras, evitando exceções desnecessárias. Em vez disso, tais gramáticos acabam abonando certos usos injustificáveis segundo a lógica apenas porque se tornaram difundidos.

Felizes são os falantes de línguas como, por exemplo, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, que não admitem flexão de gênero em numerais exceto para “um/uma” (em inglês nem isso).

Extremismos na língua e o “caminho do meio”

Como todos sabemos e sentimos, o Brasil atravessa uma excruciante polarização política entre extremos. Cada uma de seu lado, esquerda e direita se digladiam em defesa de suas ideologias enquanto a maioria silenciosa, adepta da moderação e do equilíbrio, permanece tal, silenciosa – ou melhor, silenciada pela grita histérica que se eleva das extremidades do espectro político.

Pois a mesmíssima coisa está ocorrendo neste momento no âmbito da língua. Temos de um lado uma esquerda radical, com sua neutralização de gênero, seu “todos, todas, todes e todxs”, sua defesa incondicional do “se deu pra intendê, tá tudo certo” e outras bandeirolas ideológicas; de outro, temos os guardiães da tradição, que veem a norma-padrão do idioma como entidade metafísica, sacrossanta, impoluta e inquestionável, e que advoga a normatização gramatical com base na tradição pré-científica que remonta à Grécia antiga e no uso da arte literária em lugar da ciência como parâmetro para essa normatização.

O grande “muso” da extrema esquerda, o super-herói defensor dos fracos e oprimidos da língua é Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília, que, embora o negue, é o paladino do vale-tudo linguístico, o salvador das variedades estigmatizadas, vítimas do preconceito linguístico (conceito que ele mesmo criou), um sujeito que diz coisas como “o ensino explícito da gramática, como objeto de reflexão e teorização, deve ser abandonado” ou “toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o fascismo”, ou ainda “a norma culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! Saber falar o ‘bom português’ nunca permitiu a ascensão social de ninguém, ao contrário do que prega a propaganda enganosa da pequena, pequeníssima burguesia”.

No outro extremo, cujo pontífice é o finado Napoleão Mendes de Almeida, temos os gramáticos normativos tradicionalistas, cujo método de descrição gramatical remonta a Dionísio, o Trácio (séculos II-I a.C.) e sua Tekhné Grammatiké (“Arte Gramatical”), e cujo corpus de onde extraem os modelos de “língua exemplar” são as obras dos grandes literatos, especialmente os clássicos.

Para esses gramáticos puristas, a palavra de ordem é tradição; ou seja, devemos falar e escrever como nossos antepassados o fizeram e como o fazem os mais ilustres prosadores de nosso idioma, especialmente os ficcionistas, aqueles que levam a língua ao “estado mais puro de arte” e fazem malabarismos linguísticos como “fá-lo”, “fê-lo”, “fi-lo”, “pô-lo”, “pu-lo” ou mesmo “qué-lo” (outra variante seria “quere-o”), sem falar nas mesóclises do tipo “dar-lho-ás” e “dir-no-los-ia”.

Enquanto isso, os pobres mortais que apenas desejam – ou pior, têm por obrigação – redigir textos formais e para os quais a norma-padrão tem valor meramente operacional, isto é, como ferramenta de trabalho e não de criação artística, se veem diante de um emaranhado pouco lógico de regras e exceções, de definições francamente falhas porque não científicas (“sujeito é aquele de quem se declara algo” ou “é o autor da ação”; “os termos essenciais da oração são sujeito e predicado” – só que existem orações sem sujeito, e por aí vai).

Ou seja, para uma maioria “de centro”, tanto política quanto linguisticamente, nem tanto ao mar nem tanto à terra: nem a abolição total da norma-padrão e sua substituição pelo “cada um fala como pode e como qué” nem a idolatria de uma norma anacrônica, pedante mesmo, vista como sagrada.

O fato é que as línguas mudam com o tempo (a isso se chama evolução), e a norma-padrão também precisa ser atualizada periodicamente. Como instrumento de comunicação formal que deve ser, sobretudo, funcional, ela tem de ser estabelecida com base no conhecimento científico e não nos arroubos estéticos de escritores que, por mais prestigiados que sejam, também erram (José de Alencar, por exemplo, costumava separar sujeito e predicado por vírgula). Ela deve ter como norte a simplicidade, regularidade e racionalidade. Nesse sentido, gramáticos que abonam certas construções que tornam a regra mais complexa e criam exceções de difícil explicação apenas porque um grande literato as usou prestam um grande desserviço à língua e seus usuários.

Da mesma forma, linguistas “progressistas” que defendem a incorporação à norma de certos usos populares que irregularizam o que até então era regular apenas porque tais usos são isso mesmo, “populares” – e é preciso valorizar a fala do povo para ser um verdadeiro democrata, não é mesmo? – igualmente mais atrapalham do que ajudam.

A realidade é que nossa norma-padrão precisa, sim, ser atualizada, racionalizada e simplificada, da mesma maneira como o fizeram nos últimos cem anos outras línguas neolatinas, notadamente o espanhol e o italiano. Precisamos, sim, de gramáticas normativas que incorporem o método científico e substituam definições, categorias e terminologias ultrapassadas por outras, sustentadas por dados e modelos fornecidos pela ciência.

Mas também é fato que precisamos da norma-padrão, pois nenhuma língua de cultura existe sem ela, e é ela que garante a intercomunicação dos variados grupos que constituem a sociedade sem que haja mal-entendidos, seja em nível profissional, acadêmico ou mesmo prático, como num manual de instruções, por exemplo. É ela que nos dá acesso a direitos e à cidadania; é ela que permite ascensão social a quem não sabe jogar futebol nem cantar pagode; é ela que nos possibilita ler e entender o que lemos; é ela que nos permite redigir e ser compreendidos.

Por via de consequência, a posição “centrista”, de bom senso, livre de extremismos demagógicos, é a que defende ambos os movimentos: de um lado, através da educação, a aproximação dos falantes à gramática normativa; de outro, por meio da reforma desta, a aproximação da gramática aos falantes. É pena que, nesse ambiente radicalizado em que vivemos, a voz da sensatez e da razoabilidade não esteja sendo ouvida.

Por que pomos os pingos nos is?

Um(a) leitor(a) que não se identifica me pergunta de onde veio a expressão “pôr os pingos nos is”. Aqui vai minha resposta.

A expressão “pôr os pingos nos is” significa organizar o que está confuso, discernir entre uma coisa e outra, definir o lugar de cada coisa, etc. Mas por que, quando queremos pôr ordem no caos, dizemos que vamos colocar os pingos nos is?

Originalmente o “i” não tinha pingo. Na época romana, só havia as letras maiúsculas. E, como se sabe, o “I” maiúsculo não tem pingo (aliás, parece que muita gente não sabe disso). Quando, séculos depois, inventaram as minúsculas para facilitar a tarefa dos copistas de reproduzir centenas de páginas manuscritas, surgiu um problema: como as letras cursivas, típicas da escrita manual, são todas ligadas entre si (e é exatamente por isso que esse sistema de escrita facilitava a vida dos copistas, já que eles não precisavam levantar a pena do papel para passar de uma letra a outra), dois “ii” se assemelhavam a um “u”, o que gerava ambiguidade, pois o latim tem muitas palavras com dois “ii”.

A solução foi criar um sinal distintivo, no caso, o pingo do “i”. É bem verdade que, posteriormente, com a invenção do trema, os dois “ii” passaram a se confundir com “ü”, mas agora o risco era menor: as línguas que tinham “ii” não tinham “ü” e vice-versa.

Conclusão: colocar um pingo no “i” foi a maneira encontrada pelos monges medievais que passavam a vida copiando livros para distinguir letras diferentes. Desde então, pôr os pingos nos is é sinônimo de distinguir, definir, determinar, e por extensão organizar, enquadrar, esclarecer…

Uma curiosidade: o alfabeto turco tem um “i” com pingo (i, İ) e outro sem pingo (ı, I), tanto na forma minúscula quanto na maiúscula. E as duas letras têm sons diferentes, ou seja, representam fonemas distintos. De quebra, o turco também tem “u” com trema (ü).

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Em tempos de Facebook, a onda é “curtir”. Seja foto, vídeo, piada, frase de efeito, convocação para passeata ou mesmo as informações mais inúteis (basta uma celebridade postar na web que adora sushi e pronto: milhares de “curtidas” dos fãs). Essa ferramenta aparentemente tola das redes sociais se tornou tão crucial às pessoas conectadas que, para muitas delas, ser curtível, isto é, receber muitos likes, é questão de vida ou morte. E já que ser curtido tornou-se objetivo de vida, não me admira que os profissionais de marketing tenham criado uma espécie de “Índice de Curtibilidade” que afere o grau de popularidade das nossas postagens – com possibilidade de ganharmos algum dinheiro em verbas de publicidade.

O curioso é que a palavra inglesa para “curtir” – em seu uso virtual, bem entendido – é o insípido like, literalmente “gostar”. Se pensarmos que “curtir”, no brasileiríssimo sentido de “aproveitar, adorar, deliciar-se”, se diz divertirse em espanhol, have fun ou have a good time em inglês e avoir le bon temps em francês, veremos que essa palavra, originalmente negativa (afinal curtir é deixar a carne ou a pele de um animal ao sol durante dias para que fique bem ressequida), tem conotações em português que escapam aos outros idiomas. “Curtir de montão” é bem diferente de “gostar muito” ou “aproveitar intensamente”. E curtir uma pessoa, é apenas gostar dela? Ou é sentir um prazer único em sua presença, rir com suas tiradas, admirar sua perspicácia? Portanto, ao traduzir like como “curtir”, o Facebook brasileiro conseguiu ser mais criativo que o original americano.

E tudo começou com a expressão “curtir uma dor” (ou “curtir uma fossa”, como se dizia lá pelos anos setenta), que veio substituir o tradicional “carpir a dor”. Por exemplo, o clássico do cancioneiro nacional Lábios que beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo, imortalizado na voz de Orlando Silva, diz a certa altura: “Passo os dias soluçando com meu pinho / Carpindo a minha dor, sozinho / Sem esperanças de vê-la jamais”. É o mesmo sentido do lema latino carpe diem (curta o dia de hoje). Mas por que curtir a dor? Talvez a ideia seja a de sofrer por muito tempo (às vezes meses ou anos) como o couro curtindo ao sol ao longo de dias. E assim como o couro seca e se torna rígido e impermeável, o coração de quem sofre se torna insensível, indiferente à dor.

Seja como for, nos dias de hoje, o cantor das multidões não carpiria, mas curtiria a sua dor. E não com seu pinho, isto é, seu violão, mas talvez com uma guitarra elétrica.

O particípio presente em português

Como se sabe, são três as formas nominais do verbo: o infinitivo, o gerúndio e o particípio, este dividido em particípio presente, de sentido ativo (amante, vivente, seguinte), e particípio passado, ou pretérito, de sentido passivo (amado, vivido, seguido). No entanto, o particípio presente não costuma ser considerado uma forma verbal legítima em português. Por quê?

Primeiramente, lembremos que as formas nominais do verbo servem para formar tempos compostos (vou fazer, estou fazendo, tenho feito). E não há nenhum tempo composto formado com particípio presente (algo como estou fazente). O próprio exemplo esdrúxulo que acabo de dar demonstra que a maioria dos verbos em português não tem particípio presente (alguns poetas, como Drummond, brincam com isso inventando particípios que não existem: “ser pensante, sentinte e solidário”). Tampouco há orações reduzidas de particípio presente em nossa língua.

Em muitos idiomas, o particípio presente é uma forma verbal genuína. As línguas germânicas, que, com exceção do inglês, não têm gerúndio, usam em seu lugar esse particípio. Em italiano e alemão, é possível e até corriqueiro dizer coisas como “todos os funcionários trabalhantes no setor de produção terão férias coletivas”. Em português, só se pode dizer “todos os funcionários que trabalham no setor” (mesmo a construção gerundiva “todos os funcionários trabalhando no setor” é condenada pela maioria dos gramáticos).

Outro indício de que o particípio presente não é uma forma verbal legítima do português é que muitos desses particípios têm etimologia diferente da do verbo a que correspondem (em geral, são empréstimos cultos, enquanto os verbos são palavras vernáculas). Vejamos alguns exemplos: ver/vidente, carecer/carente, sentir/senciente, cair/cadente, intervir/interveniente, etc. Se tais particípios derivassem de fato dos verbos, teríamos vente, carecente, sentinte, cainte, intervinte, etc.

Portanto, o particípio presente é, na verdade, um adjetivo formado a partir do verbo mediante o sufixo ‑nte, ou mesmo importado do latim, que, como adjetivo, pertence à classe dos nomes e não à dos verbos.

Portanto, nossa língua é bem pobre em matéria de tipos de particípio (só temos o particípio passado passivo), exceto pelo fato de que alguns verbos admitem dois tipos de particípio, o longo e o breve (aceitado/aceito, pagado/pago, etc.).

Ao contrário, línguas como o grego têm particípios ativos e passivos no presente, pretérito e futuro. O esperanto, idioma artificial criado para ser prático e lógico, segue esse padrão. Na língua inventada por Ludwig Zamenhof, a vogal temática -a- indica o presente, -i- o pretérito, e -o- o futuro. O sufixo -nt- representa a voz ativa, e -t- a voz passiva. Temos, então, para o verbo ami, “amar”:

  • amanta = que ama, que está amando;
  • aminta = que amou ou amava;
  • amonta = que amará;
  • amata = que é ou está sendo amado;
  • amita = que foi ou era amado;
  • amota = que será amado.

Em português, temos alguns adjetivos ou substantivos com sentido de particípio presente ativo (cambiante, reluzente, constituinte) e uns poucos com sentido futuro ativo (vindouro, duradouro, imorredouro) ou passivo (formando, reeducando). Por isso, usamos por vezes um particípio pretérito passivo em função não pretérita ou não passiva. Por exemplo, quando empregamos necessitado com significado de “pobre, carente”, note que o sentido é presente e ativo: a necessidade de ajuda existe hoje, e a pessoa em questão necessita, não é necessitada por alguém. Portanto, o indivíduo carente deveria ser necessitante e não necessitado.

Do mesmo modo, quando digo que um filme é divertido, não estou querendo dizer que ele foi divertido por mim (pretérito passivo) e sim que ele me diverte (presente ativo). Em italiano se diz no mesmo caso que o filme é divertente.

Ainda segundo essa lógica, o indivíduo malcheiroso não deveria ser fedido, mas fedente, o intrometido deveria ser abusante e não abusado, e assim por diante.

Essa ambiguidade no uso dos particípios em português é o que enseja trocadilhos como o do sujeito que, recusando o convite para almoçar, responde: “Obrigado, mas já estou comido”.

O nascimento de uma língua

Toda língua evolui. Este é um dos mantras da linguística desde os seus primórdios, ainda em princípios do século XIX. Na verdade, desde que a espécie humana começou a falar, nunca houve solução de continuidade na história da linguagem, portanto toda língua é a continuação histórica de algum sistema linguístico precedente, e um sistema se transforma em outro lenta e imperceptivelmente, num lavor de séculos ou milênios. Sendo assim, pode a qualquer momento surgir uma nova língua? É possível que uma comunidade humana invente um idioma sincronicamente, sem tê-lo herdado de seus antepassados?

Pois foi descoberto alguns anos atrás em Lajamanu, um pequeno vilarejo de 700 pessoas no norte da Austrália, um novo idioma, chamado warlpiri rampaku, ou warlpiri rápido, língua falada exclusivamente por menores de 35 anos.

A pesquisadora Carmel O’Shannessy, da Universidade de Michigan, que descobriu o idioma, afirma tratar-se realmente de um novo sistema linguístico, pois, embora majoritariamente composto por palavras e estruturas gramaticais de outros idiomas, esses elementos se combinam de modo sistemático e inovador, como numa língua natural que fosse produto da evolução.

Os habitantes de Lajamanu falam warlpiri (língua aborígine australiana), inglês e crioulo (mistura de warlpiri e inglês), mas, curiosamente, metade da população fala o warlpiri rápido, alguns como primeiro idioma.

Essa nova língua está sendo comparada à linguagem usada pelos adolescentes, com seus termos próprios, incompreensíveis aos adultos. Mas com a diferença de que, ao contrário do que acontece com as gírias infanto-juvenis, que são abandonadas à medida que os jovens crescem, neste caso os falantes continuam utilizando o mesmo código depois de adultos, e a próxima geração o aprende desde o nascimento.

Segundo O’Shannessy, o surgimento dessa língua deve ter-se dado porque os pais, sendo bilíngues, misturavam os idiomas ao falar com os filhos.

Em sua opinião, a aparição de novas línguas é mais comum do que se imagina, embora o fato nem sempre seja detectado por linguistas. Para ela, a ocorrência do fenômeno é mais provável em comunidades em que haja muitas pessoas multilíngues, especialmente jovens.

Apesar de recém-nascido em termos da escala evolutiva das línguas, o warlpiri rápido apresenta grande vitalidade. Como língua minoritária dentro da Austrália, não é possível saber por quanto tempo sobreviverá, mas o simples fato de estar sendo falada, inclusive como língua materna, por um número considerável de pessoas atesta que línguas podem, sim, ser criadas sincronicamente, e não como meros experimentos de laboratório, como é o caso dos idiomas artificiais, mas como sistemas efetivos de comunicação cotidiana.