Ainda sobre Marcos Bagno e sua gramática

ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.

Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.

A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.

Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.

A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.

Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.

O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.

Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou  não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.

Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.

Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.

Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?

Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?

Também  se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.

Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.

Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…

Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.

 Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.

Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.

É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.

Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.

Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.

Língua oral ou língua escrita: qual é melhor?

Imagine que a língua portuguesa é um idioma desconhecido e que você é um linguista tentando descrevê-la, isto é, decifrar sua gramática e assim revelar sua estrutura. Imagine também que você tem duas amostras da língua para usar em sua análise: um discurso oral e um texto escrito. Observe primeiramente o discurso oral abaixo.

Amostra 1 (língua oral): Bom, a Maria ela foi na… é… eu acho que ela fo-foi na farmácia, qué dizê, na drogaria, né? Ela falô pra mim que, tipo assim, ela ia comprá uns remédio, num sei que remédio é. Agora, ãh… se ela… se ela foi mesmo só na farmácia… na na… drogaria, né?, então eu acho que ela num vai demorá pra voltá, tá ligado?

Analise agora a segunda amostra, desta vez de um texto escrito.

Amostra 2 (língua escrita): Ao que parece, Maria foi à drogaria comprar alguns remédios que eu não sei quais sejam, mas, se de fato ela tiver ido somente lá, provavelmente não demorará a voltar.

Então, se o seu objetivo como linguista é descrever a estrutura gramatical dessa língua, reconhecendo a ordem dos elementos na frase, as flexões, as concordâncias e regências, o encadeamento das palavras no sintagma, dos sintagmas nas orações e das orações nos períodos, qual das duas amostras acima lhe seria mais útil?

A linguística do século XX, a partir de Saussure, postulou que seu objeto de estudo é a linguagem verbal em sua modalidade oral, até porque a maioria das línguas do mundo não tem expressão escrita – são as chamadas línguas ágrafas. Portanto, quando etnolinguistas se deparam com uma língua recém-descoberta desse tipo, eles têm de analisar amostras cheias de anacolutos, topicalizações, interrupções, gaguejos, marcadores conversacionais (os famosos “ééé…”, “ããh…”, “entendeu?”, “sabe?”, “né?”), etc. Mesmo assim, eles buscam construir um modelo teórico de “língua ideal”, ou seja, aquela que seria falada se o falante não fosse um ser humano dotado de emoções e sim uma máquina de produzir enunciados a partir das regras gramaticais de base do idioma. Nas línguas de cultura, a escrita culta é essa língua ideal, também chamada pelos gramáticos de língua exemplar.

Quando aprendemos um idioma estrangeiro numa escola, normalmente aprendemos a gramática “ideal” (isto é, normativa) do idioma paralelamente a diálogos bastante artificiais desprovidos de qualquer cacoete. Algo do tipo: “Onde está o livro? O livro está sobre a mesa.”. É o famoso método The Book Is on the Table.

Já quando aprendemos o idioma na prática (por exemplo, quando passamos uma longa temporada num país estrangeiro para o qual fomos sem saber falar uma palavra sequer da sua língua nativa), é a língua oral que vamos aprender. Mesmo assim, nosso cérebro consegue filtrar todos os cacoetes da oralidade (quebras de continuidade, gaguejos, hesitações, gírias) e montar intuitivamente a gramática da língua. É por isso que, mesmo quando aprendemos na prática (ou “na raça”, como se diz), nos tornamos capazes de criar novos enunciados, que nunca proferimos nem ouvimos antes: é que nossa gramática interna, deduzida intuitivamente, nos guia mesmo sem termos consciência dela.

Atualmente, nosso objeto de estudo não é mais tão estreito quanto o da linguística estruturalista do século passado, pois sabemos que, mesmo que noventa por cento do uso que se faz da língua seja na modalidade oral informal, a mente trabalha com uma gramática interna de regras bem definidas (o que Chomsky chama de competência linguística), não necessariamente as regras da gramática normativa, que só quem frequenta a escola aprende (se é que aprende, né?), mas ainda assim regras rígidas, quase computacionais.

O que a linguística atual faz é estudar e compreender todas as marcas da oralidade – que, por incrível que possa parecer, também têm suas regras – e incorporá-las à gramática interna da língua.

Nesse sentido, o estudo da norma culta é tão importante quanto a análise dos discursos orais de todos os falantes de todos os grupos sociais. E o estudo da língua escrita formal é tão relevante para a pesquisa e o avanço do conhecimento científico na área quanto o estudo da língua oral coloquial das classes menos escolarizadas.

Desigualdades sociais, desigualdades linguísticas

Toda sociedade complexa é bastante heterogênea, porque formada de indivíduos muito diferentes entre si. E essa diferença, que em princípio seria apenas de natureza, logo tende a tornar-se de valor. O Brasil, que, segundo dados recentemente divulgados, é a quarta nação mais desigual da América Latina, vive uma verdadeira luta de classes, permeada por todo tipo de preconceito e intolerância. E o que vale para a desigualdade social vale para a diversidade linguística, vista entre nós também como desigualdade: assim como há classes sociais dominantes e dominadas, certas variedades linguísticas são tidas como superiores, outras como inferiores.

Diante da desigualdade social, há três atitudes políticas possíveis: uma atitude conservadora, que procura manter tudo como está e estimula o preconceito contra os menos favorecidos; uma atitude pseudoprogressista,que valoriza a carência e trata a pobreza como virtude, como se ignorância,subnutrição, falta de recursos, fome e desestruturação familiar fossem um patrimônio cultural a ser preservado; e, finalmente, uma atitude verdadeiramente progressista que, reconhecendo o problema, procura saná-lo,atuando para que os pobres possam pouco a pouco sair da pobreza e usufruir os mesmos bens da civilização que as elites.

Em termos de língua, a atitude conservadora consiste em tachar aqueles que não dominam a norma culta como ignorantes e analfabetos,exercendo sobre eles o famoso preconceito linguístico (cerceamento do acesso a direitos, exclusão social, chacota, etc.), mas nada fazendo para mudar a situação. Já pseudoprogressista é afirmar que todas as variedades linguísticas,inclusive as de menor prestígio, devem ser respeitadas e estimuladas, que não se deve corrigir o aluno que diz “menas” ou “pobrema”, e que é legítimo que cada um fale como queira ou possa em qualquer situação. Esse tipo de atitude se assemelha muito a certas políticas demagógicas que, a pretexto de tirar crianças carentes de situações de risco, as ensinam a tocar tambor ou a cantar funk proibidão sob a alegação de que se trata de uma forma de inserção social e de incentivo à cultura. Resta saber em qual sociedade essas crianças serão inseridas e que tipo de cultura é essa que se está incentivando?

Realmente progressista num caso como esse não seria dar às crianças a possibilidade de aprender música de qualidade (um instrumento melódico, partitura, solfejo)? Não seria dar-lhes a chance de ter acesso a outras realidades (musicais, culturais e sociais) que abram sua cabeça e as portas de uma vida mais feliz e mais plena, inclusive de oportunidades?

Infelizmente, para certos setores que se dizem de esquerda (mas cuja ideologia de endeusamento da miséria – principalmente da espiritual – é de fato reacionária, já que só faz preservar a penúria), a pobreza é uma virtude (talvez porque renda votos) e o importante é elevar a autoestima do cidadão carente e não libertá-lo da carência.

Não há dúvida de que os pobres merecem respeito como cidadãos e seres humanos, mas respeitá-los em sua pobreza é uma coisa, tentar resgatá-los dessa condição é algo bem diferente.

Que a língua varia todos sabemos e a linguística já o provou há muito tempo: é uma verdade científica. Que a variação linguística é coextensiva da heterogeneidade social também já está provado. E, assim sendo, a variedade é natural (porque pessoas diferentes não podem se expressar de modo igual), irreprimível (pois não há como obrigar todos os cidadãos a ter um mesmo comportamento) e benéfica para a comunicação, já que só se pode dar conta de determinadas experiências em certas variedades. Também é fato que a diversidade linguística é um prato cheio para os cientistas da linguagem. Mas isso não quer dizer que os linguistas sejam contra a escolarização e o ensino da norma culta nas escolas – ainda que com todas as críticas que nossa gramática normativa merece e tem recebido. Dizer que “nós foi” e “teje” é algo que deva ser preservado e que reprimir tais usos com intuito educativo é intolerância linguística constitui uma postura obscurantista. Assim como o desejável não é respeitar, mas sim erradicar a pobreza, dando aos excluídos a possibilidade de ascender socialmente por meio da educação, o verdadeiro progressismo está em levar a todos o conhecimento das formas mais prestigiosas da língua, até para que se possa decidir com bom senso em que momento usá-las ou não. Do contrário,estaremos ensinando crianças carentes a bater tambor e a gostar de funk sob a alegação de que piano e violão são instrumentos pequeno-burgueses e de que Beethoven e Tom Jobim representam a música das elites dominantes e opressoras.Ou seja, em nome de um esquerdismo de salão, estaremos é sendo fascistas.

A cultura da evolução livre

Por muitos séculos, um desvio da norma gramatical foi considerado um erro e ponto final. A sociedade dividia-se, portanto, entre os que sabiam falar a própria língua e os que não sabiam.

Com o advento da linguística evolutiva, da sociolinguística e sobretudo dos estudos de William Labov sobre variação, o chamado erro gramatical passou a ser visto como um fato natural da linguagem. Remonta, por sinal, aos linguistas histórico-comparativos do século XIX o lema de que o erro de hoje poderá ser a norma gramatical de amanhã.

No entanto, essa visão mais benevolente do desvio levou em alguns casos a uma confusão entre erro e evolução: o desvio pode vir a tornar-se norma, mas não necessariamente se tornará. Como numa reação contra séculos de doutrinação gramatical e estigmatização da fala dos menos instruídos, alguns teóricos passaram equivocadamente a supervalorizar o erro e a relativizar a importância da língua padrão.

Acontece que a dinâmica da evolução linguística é mais complexa do que parece à primeira vista. A língua se apoia numa tensão dialética entre a conservação e a mudança: a todo momento, por força do próprio uso, algo muda na língua, mas a maior parte de seus elementos se conserva. Se nada mudasse, a língua seria estática, a fala ficaria “engessada”, e o sistema rapidamente rumaria para a obsolescência; se tudo mudasse o tempo todo, ninguém mais se entenderia.

As forças da conservação e da mudança travam uma queda de braço permanente: toda inovação, seja ela lexical, sintática ou semântica, gera uma nova forma que tem de competir com as já existentes. Essa luta pode se arrastar por décadas ou séculos. Ao final, a forma inovadora pode derrotar as até então estabelecidas, assim como pode acabar derrotada por elas, isto é, abandonada, como é o caso de muitas gírias efêmeras.

Recorrendo mais uma vez à metáfora biológica, a inovação linguística (incluindo o “erro” gramatical) é como uma mutação genética. Toda mutação surge num pequeno número de indivíduos; se estes conseguirem transmitir o gene mutante às gerações seguintes, e se a característica física determinada por ele for vantajosa à sobrevivência, esse traço possivelmente se espalhará por cada vez mais indivíduos, de modo que, após muitas gerações, o gene mutante, até então recessivo, se tornará dominante.

girafas

No passado, todas as girafas tinham pescoço curto. Os primeiros espécimes a nascer com pescoço longo eram, portanto, um “erro” da natureza. Mas como essa aparente aberração permitia apanhar folhas e frutos das árvores mais altas, tais indivíduos logo passaram a ter uma vantagem competitiva em relação aos seus pares de pescoço curto. Com o tempo, a maioria das girafas de pescoço comprido sobreviveu e se reproduziu, enquanto as de pescoço curto morreram antes de deixar descendentes. Por isso, as girafas atualmente têm pescoço longo: trata-se do resultado de um lento processo de seleção natural, em que o erro virou norma.

Consequentemente, a mutação não se confunde com a evolução, ela é apenas o primeiro passo de uma possível evolução – isso se a mutação vingar: a maioria delas gera apenas indivíduos defeituosos e sem condições de sobrevivência.

Há ainda outro aspecto a ser considerado: na selva, a evolução biológica segue as leis do acaso e da seleção natural espontânea, logo é um processo aleatório. Já numa fazenda, as espécies estão sujeitas a um melhoramento genético artificial promovido pelos criadores/plantadores, que interferem no curso natural da evolução a fim de produzir espécimes mais resistentes a pragas e doenças ou mais nutritivos.

Do mesmo modo, a fala popular, assim como as línguas ágrafas e os dialetos, evolui de modo livre; já as chamadas línguas de cultura (dotadas de escrita formal) estão sujeitas à engenharia genética operada por escritores, jornalistas, intelectuais, gramáticos e professores.

Num primeiro momento, a forma não padrão (errada, segundo a gramática normativa; recessiva, em termos evolucionários) constitui uma mutação que deve competir com a forma culta estabelecida (que um dia também foi recessiva). Se ela se disseminar por cada vez mais falantes e for aumentando de frequência a cada nova geração, chegará o dia em que escritores e outros formadores de hábitos linguísticos passarão a empregá-la de modo corrente. Quando isso ocorre, os gramáticos acabam por render-se ao triunfo dessa forma e passam a aboná-la ao lado da já consagrada. Num momento seguinte, a forma até então dominante poderá ter seu uso diminuído até tornar-se um arcaísmo e, por fim, sair do sistema (é a extinção dessa forma). Somente ao final desse processo a evolução linguística estará concluída.

Em resumo, o desvio da norma, incluindo o chamado erro gramatical, não é bom nem mau – nem uma evidência da inferioridade intelectual do povo nem um instrumento de luta contra as classes dominantes –, é apenas um fato natural a ser estudado cientificamente.

Português brasileiro atual: uma língua indigente?

A analogia entre a língua e o vestuário já é uma metáfora desgastada, mas, ainda assim, é a mais perfeita que poderíamos usar, pois, de fato, o modo como falamos tem tudo a ver com a roupa que vestimos. E tem a ver com os costumes sociais de modo geral. Tanto que os tempos em que as pessoas falaram sem nenhum lastro na gramática normativa e em que a escolaridade foi mais precária – para não dizer inexistente – coincidiram com os períodos de maior decadência da civilização. Não à toa, a Alta Idade Média (séculos V a XI de nossa era), também conhecida como Idade das Trevas, foi o período histórico em que a língua latina sofreu a evolução mais rápida e mais radical, transformando-se nas atuais línguas românicas ou neolatinas. Durante os cinco séculos anteriores e os dez séculos posteriores a essa fase, a língua mostrou-se mais estável, evoluindo mais lentamente, justamente por obra da escola, da literatura e de outras instituições sociais que, voluntariamente ou não, diretamente ou não, exercem uma força contrária à evolução errática e acabam por preservar melhor a língua, pelo menos em seus registros mais elevados.

Se pegarmos jornais, revistas, filmes, gravações de rádio e livros escolares de 60 anos atrás ou mais, constataremos que a população em geral se expressava no dia a dia de modo mais consoante à norma culta do que se faz hoje em dia, mesmo reconhecendo que em nenhuma época a fala popular, mesmo das pessoas mais escolarizadas, coincidiu totalmente com a norma padrão encontrável nos textos formais. Mas o fato é que, hoje, até os documentos mais solenes, como teses acadêmicas, relatórios técnicos e textos jurídicos, são mais “informais” do que o eram em décadas passadas.

Similarmente, observamos que, nesses tempos idos, as pessoas não apenas se expressavam de modo mais formal do que hoje em dia – e olhe que, naquela época, pouquíssimas pessoas tinham escolaridade acima do atualmente chamado ensino básico – como também se trajavam mais formalmente. Nos anos 1940 e 50 era praticamente inadmissível que um rapaz fosse ao cinema sem paletó e gravata ou que uma moça fosse de calça comprida – bermudas, nem pensar!

Do mesmo modo como nossa sociedade se informalizou na vestimenta, e hoje é possível ir a praticamente qualquer lugar de regata e havaianas, também se informalizou na linguagem. Só que, devido ao sucateamento da nossa educação, a linguagem não apenas passou a andar mais “à vontade”, passou a vestir-se com indigência. A drástica redução do nosso vocabulário, com perda até de palavras gramaticais como “sobre”, “sob”, “cujo”, “tampouco” e os pronomes oblíquos átonos (quem ainda as emprega?), tragadas pelo buraco negro do desuso, aliada à nossa profunda crise moral (vide Mensalão, Petrolão, Lava-Jato) e estética (leia-se funk bandido, breganejo, Big Brother, etc.), parece indicar que estamos vivendo um momento de decadência civilizatória.

Pois revirando meus baús, encontrei outro dia livros, revistas e recortes de jornais do tempo em que meus pais eram jovens (e bota tempo nisso!). É admirável como qualquer publicação de banca de jornal daquela época empregava um vocabulário e tinha uma correção gramatical de fazer inveja às pessoas mais letradas de hoje em dia. O mais surpreendente é ver que livros de receitas, manuais de equipamentos e até cartilhas escolares eram escritos num português impecável – e o mais importante, as pessoas compreendiam! Isso sem falar da caligrafia das pessoas, uma verdadeira obra de arte.

Hoje, em que nem se escreve mais à mão, mas digita-se apenas com os polegares, quase ninguém sabe o que é caligrafia. No tempo de meus pais, os jovens vestiam seu melhor terno ou seu melhor vestido para ir ao baile no fim de semana, em que se tocavam fox trot, tango, valsa, samba-canção… Naquele tempo, os rapazes tiravam as moças delicadamente para dançar e, se “levavam tábua” (isto é, recebiam uma recusa da dama), desculpavam-se pela importunação. Naquele tempo, o namoro nascido no baile continuava no sofá da casa da moçoila, com a irmã mais nova “segurando vela”. Tudo muito diferente dos dias atuais, em que, nas baladas, rapazes de chinelos agarram garotas de shortinho pelo braço e as violentam se elas se recusarem a ficar pulando com eles ao som de um bate-estacas ou de um funk com letras obscenas, tudo regado a muita bebida e drogas. Hoje, os jovens transam no primeiro encontro, às vezes antes até de perguntar os nomes um do outro.

É claro que à juventude de hoje os costumes de antigamente parecerão “caretas”, assim como parecerá ultrapassado o linguajar da imprensa da época, mas, olhando para esse contraste com o mesmo distanciamento com que o historiador olha para a Idade das Trevas em relação à Grécia antiga ou à Europa da Belle Époque, compreendemos porque hoje até doutorandos em defesa de tese se sentem envergonhados de usar “nós” no lugar de “a gente”. Vive la décadence!