ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.
Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.
A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.
Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.
A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.
Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.
O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.
Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.
Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.
Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.
Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?
Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?
Também se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.
Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.
Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…
Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.
Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.
Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.
É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.
Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.
Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.
Texto claro e sobretudo civilizado, mercadoria rara na prateleira nacional nos dias de hoje. Bravo!
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Mais uma vez, um excelente texto. Meus parabéns e muito obrigada! Textos como o seu são essenciais nos dias de hoje, em que se tornou necessário explicar detalhadamente o óbvio para proteger as pessoas de tanta manipulação.
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Sem outras palavras a não ser… Parabéns pelo lindo artigo!
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Eu sou linguista de carteirinha e sempre tive claro que a língua como um fato social se ajusta à sociedade. Nesse sentido, a norma padrão é um fato social. Contudo, como diversos autores já mostraram, o padrão pode mudar com o tempo. Há um brilhante texto do Emilio Pagotto de 1998 chamado Norma e condescendência, que discute a norma linguística no século 19. Um problema dessa discussão sobre norma é achar que a língua sempre foi assim e agora está se corrompendo. Dificilmente um falante que domine o padrão da língua portuguesa hoje seria capaz de ler um texto (mesmo editado) do século XV. É bom lembrar que as gramáticas normativas das línguas românicas surgem justamente quando os estados-nação comecam a ser formados. Até essa época, o que se tinha era uma enorme variação textual, incluindo ortográfica.
Eu vou apoiar quase todas as críticas ao Marcos Bagno, porque do ponto de vista da ciência ele falta com ética ao escrever mentiras nos seus textos, induzindo leitores ao erro, como já apontei.
Você só erra ao assumir a postura da isenção. Nenhum dado é autointerpretado. Não existe imparcialidade em ciências, especialmente em humanidades. Tudo é analisado e interpretado por um sujeito, que tem ideologia. Não há sujeito sem ideologia. E sua posição é, como não poderia ser diferente, uma posição ideológica.
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Prezado Carlos, se você reconhece que Marcos Bagno escreve mentiras em seus textos, então é de fato um linguista de carteirinha e não apenas um portador do diploma de Linguística.
Para você ter uma ideia, ele recentemente postou no blog da Editora Parábola (que ganha muito dinheiro com a venda dos livros dele) um artigo (https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/linguagem-neutra-e-fascismo) em que associa as críticas tecnicamente fundamentadas que se fazem à chamada linguagem neutra de gênero ao fascismo. Num vídeo recente (https://www.youtube.com/watch?v=8vbHbAxHKgE), o filósofo Luiz Felipe Pondé fala sobre como reconhecer um intelectual impostor. Dê uma olhada e veja se não reconhece o perfil de Bagno. Em minha visão, ele defende teses demagógicas porque sabe que isso gera prestígio e engajamento (leia-se venda de livros e palestras), especialmente entre professores de Letras, História, etc., em resumo, ciências humanas (que você erroneamente confunde com as humanidades), os quais têm majoritariamente um perfil ideológico de esquerda e são militantes e eleitores incondicionais do PT a despeito de todos os mensalões e petrolões.
Quanto à ideologia, como linguista tenho consciência de que todo discurso humano é ideológico no sentido de visão de mundo, tal como proposto por Wilhelm Dilthey. No entanto, como linguista, você sabe muito bem que é possível analisar dados e descrevê-los de maneira neutra, não enviesada. Por exemplo, é perfeitamente possível fazer uma estatística sobre a ocorrência de construções do tipo de “eu vi ela” em textos escritos cultos formais e constatar que sua frequência é praticamente nula.
No entanto, quando critico a interferência ideológica nos escritos e falas de Bagno, estou me referindo a ideologia em seu sentido marxista de “ocultação da realidade” e “posição no espectro político”. Quanto a mim, é evidente que tenho uma ideologia política — de centro —, que coincide, aliás, com a minha postura diante da vida: “a virtude está sempre no meio”. Por isso, sinto-me à vontade para criticar todo tipo de extremismo e populismo, seja de esquerda ou de direita. Mas, em se tratando de analisar fatos de língua à luz da ciência, o que prevalece em mim não é a ideologia política, que eu procuro filtrar, é a ideologia de vida, “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Isso significa que peso os prós e os contras, ouço ambos os lados, sopeso todos os argumentos e me pauto pela moderação e pela razoabilidade.
Obrigado por seu comentário.
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A respeito do artigo citado nos comentários, procurei no meu Aurélio que tenho no celular ‘Bode’. Obtive: 01. O macho da cabra.
Acabou-se o argumento de bois e vacas do Marcos Bagno.
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Complementando minha resposta anterior, é evidente que a norma-padrão muda com o tempo desde que passou a existir uma (como você bem lembrou, até o século XV ou XVI não havia normatização). E que, portanto, o modo como escrevemos hoje é bem diferente daquele como se escrevia em séculos passados. Mas essa norma mudou naturalmente, com a evolução linguística; não foi necessária a existência de nenhum Marcos Bagno para impulsionar essa mudança. E isso continua acontecendo nos dias de hoje — naturalmente e não por decreto de um governo, de um partido político, de uma minoria ou de um pseudointelectual.
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O texto apresenta questões éticas sensíveis, e que deveriam chamar à consciência o linguista, que é um sujeito político e ideológico como qualquer outro. A questão à qual vou me ater, muito brevemente, remete à pressuposição de que a população periférica, majoritariamente negra, encontrará no aprendizado da norma padrão um caminho de civilidade e liberdade. Este posicionamento, do ponto de vista da historicidade de um país no qual foi empreendida a engenharia colonial, representa pelo menos racismo. Explico o porquê. Quando da vinda de mais de 4 milhões de indivíduos de África, no colonialismo, para o Brasil, os signos linguísticos que vieram junto, nos falares dos negros, foram violentados em função da afirmação da língua do branco como signo de referência; como signo de civilidade. Ou seja, o negro, historicamente, neste país, tem de apresentar posição em relação à língua do branco, em função da ideologia do racismo, segundo a qual o negro, no contexto em questão, é concebido como “não-ser”. Esta negação ontológica do negro, que coisifica a pessoa negra e legitima a escravatura, se estende, por consequência, aos falares dos negros. A propósito, Dante Lucchesi e demais pesquisadores da história social da língua, documentam bem a história de violência linguística em questão. O discurso que o linguista Aldo Bizzocchi usa em seu texto é justamente o discurso colonialista segundo o qual a língua de referência, trazida pelo branco, é caminho, para o marginalizado, de sua própria salvação. É a manutenção da ideologia e da política linguística do colonizador nas palavras do linguista moderno. Como diz a história, nada mais político e ideológico do que a negação da política e da ideologia. Mas tudo bem, é compreensível que o linguista moderno vise autorizar seu conhecimento a partir de um lugar que o próprio linguista diz ser “neutro”. É compreensível porque assim surgiu a linguística moderna: ignorando as estruturas sociais onde estão as pessoas reais, suas dores, suas felicidades e suas línguas. O fato é que, do ponto de vista de uma história na qual pessoas reais são violentadas em termos de língua, deveria caber ao linguista uma revisão ética de sua atitude “científica” de ignorar as condições estruturais e históricas de uso linguístico num país colonizado, e de se contentar a tão somente reafirmar a política linguística do colonizador.
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Prezado Pedro, diante de seu comentário e da afirmação de que minha posição é racista, preciso fazer algumas (várias) considerações.
Em primeiro lugar, sempre temos a tendência a analisar a história de um ponto de vista emocional quando deveríamos ser racionais. Isso nos leva a medir o passado pela régua do presente, julgando (portanto, fazendo juízos de valor e não de verdade) o comportamento de nossos antepassados segundo nossa ética atual, o que é perigoso, pois também seremos julgados pelas gerações futuras segunda a ética delas. Por exemplo, hoje a maioria de nós come carne sem culpa e muitos até zombam do veganismo. No entanto, é bem provável que daqui a cem ou duzentos anos toda a humanidade se torne vegana. Seremos, portanto, julgados canalhas por estarmos comendo carne hoje.
É evidente que a escravidão foi terrível em todos os sentidos, assim como também o eram os sacrifícios humanos praticados em honra aos deuses na Antiguidade — e ainda o são hoje os sacrifícios de animais feitos por algumas religiões, especialmente as africanas. Mas, a escravidão vai contra nossa ética atual, não contra a ética de quando ela foi praticada. No Brasil do século XIX, assim como na Grécia de Sócrates e Aristóteles, a escravidão era normal e socialmente aceita, logo não podemos lançar nossa ira contra nossos antepassados sem compreender o contexto cultural em que viveram. A própria ética muda em função do tempo e do lugar: não existe ética universal, toda ética e toda moral são relativas e convencionais.
Dito isso, outro fato inerente à espécie humana e que perpassa toda a história da humanidade — e que, portanto, deve ser vista de forma objetiva, sem passionalismos — é que, quando uma cultura tecnologicamente mais avançada se defronta com outra menos avançada, alguém se dá mal, no caso, a cultura menos avançada. Nesse sentido, é óbvio que os europeus subjugaram os negros africanos, procuraram eliminar suas tradições e suas línguas e lhes impuseram uma cultura branca, europeia e cristã. É claro que, apesar disso — e felizmente, quero frisar —, aquilo que chamamos de Civilização Ocidental não ficou imune à influência de muitas outras culturas, inclusive a africana. Mas o fato é que nosso país faz parte dessa civilização cujo núcleo é fundamentalmente europeu: para vivermos no mundo ocidental, precisamos utilizar o tempo todo os bens materiais e culturais dessa civilização. É por isso que hoje em dia até os índios andam de caminhonete e usam telefone celular, mesmo procurando, tanto quanto possível preservar sua cultura.
Assim sendo, é óbvio que, na nossa sociedade, qualquer um que pleiteie um emprego mais qualificado, mesmo que seja descendente de escravos, precisa dominar a norma-padrão vigente, que foi estabelecida segundo um modelo predominantemente europeu. Na verdade, não são gramáticos brancos, homens, cisgênero, heterossexuais e de direita que estão impondo tal norma com o objetivo de “coisificar” os negros pobres das periferias; somos todos nós (exceto, é claro, Marcos Bagno e seus seguidores), INCLUSIVE VOCÊ, que, ao escrevermos, adotamos essa norma por razões consensuais.
Logo, não entendi o que exatamente você propõe: que, em respeito aos negros descendentes de escravos e “coisificados” pela nossa civilização branca, europeia e cristã, adotemos “eu vi ela” como padrão normativo? Mas, na sua visão, “eu vi ela” é uma construção gramatical legitimamente “negra”, ao passo que “eu a vi” é sintaxe de branco racista opressor?
Não quero me alongar ainda mais, mas você realmente acredita que a cruzada de Bagno em prol dessa norma-padrão “inclusiva” tem alguma chance de prosperar? Que gramáticas “alternativas” começarão a ser publicadas pelas editoras e adotadas nas escolas, que as empresas passarão a admitir essa sintaxe em seus processos seletivos e em suas comunicações tanto internas quanto com seus clientes? Que os vestibulares e concursos públicos passarão a aceitar essa linguagem? Que jornais, revistas e livros começarão em breve a ser redigidos dessa maneira? E que os leitores aceitarão essas publicações?
Meu caro, a realidade muda o tempo todo, às vezes para melhor, às vezes para pior, já não temos escravidão nem sacrifícios religiosos humanos, e a língua também está em constante mudança, aliás sempre esteve. Certamente um dia “eu vi ela” será padrão normativo, mas não por imposição de Marcos Bagno nem pela gritaria de seus discípulos. Em resumo, esta é a sociedade em que vivemos, goste-se ou não. E esclareço: como cidadão e como ser humano, tenho, sim, compaixão pelas “pessoas reais, suas dores, suas felicidades e suas línguas” (o que, aliás, muitos cidadãos e seres humanos não têm), mas, como cientista, analiso fatos objetivos, sem maniqueísmos, sem passionalismo e sem juízos de valor de bom ou mau ou viés político-partidário.
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O autor prossegue com questões éticas sensíveis, para ser eufêmico. Naturaliza, em seu discurso, a sociedade em que vivemos. Como gostar de um mundo no qual pessoas periféricas sofrem cotidiana violência por parte do estado? Esta é a sociedade em que vivemos, gostemos ou não, diz Aldo.
Mas a coisa é pior: na comparação da prática da escravidão ao sacrifício de animais, equiparando a ambos: pessoas e animais. E segue, o autor, dizendo que é inerente ao ser humano a prática de horror que implica a escravidão no sentido de uma cultura tecnologicamente superior se sobrepor a outra. Isso é fato ou fetiche?
Ademais, Aldo apresenta desconhecimento de aspectos relativos à relação do estado com línguas. Quando me questiona sobre o que eu proponho e menciona a eventual reação de uma série de campos da atividade humana (jornal, escola) e de indivíduos em termos da aceitação linguística para leituras de jornais, por exemplo, o autor ignora que tais campos estão historicamente atravessados por deveres linguísticos instituídos por políticas linguísticas dos estados nacionais, que atuam através de planejamento de corpus linguistico, de status linguístico e de aquisição linguística. Observe que os jornais, para funcionarem, são obrigados a operar criações linguísticas em sentido monolíngue. Isso foi, inclusive, um dos fundamentos de regulamentação dos jornais na modernidade, sobretudo a partir dos mercados de impressos no século XVIII na Europa e aqui posteriormente. Assim sendo, em termos de proposição, penso que o Brasil precisa atuar sobre seus planejamentos linguísticos em sentido decolonial, de modo a reestruturar as condições e divisões linguísticas da sociedade. Isto baseado numa ética do plurilinguismo. Mas este debate é amplo e demanda política, já que demanda diálogos entre cientistas, a sociedade, os campos ideológicos em geral sobre qual coletividade linguística e social queremos para o Brasil, considerando a ética que historicamente atravessa a condição de vida das pessoas marginalizadas, que são majoritariamente negras e que moram em condições muitas vezes desumanas.
E entro noutra questão, que você traz. Uso, aqui, a norma linguística que me parece ser de dever neste espaço, para que meu dizer seja valorizado por você e seus leitores. Porque, Aldo, me parece, se o uso linguístico aqui, de minha parte ou da parte de qualquer outra pessoa, fosse outro, talvez não houvesse relação de valor que autorizasse a existência de meu dizer. Nas estruturas sociais, os usos linguísticos se instituem em relações de direito e de dever, como já bem frisa a declaração universal dos direitos linguísticos. Nem todo uso é de direito, e isso não é natural. Isso é construção coletiva e histórica. Aos instrumentos que constituem planejamentos de corpus (gramáticas, dicionários, demais tecnologias) não está pressuposta uma moral. Mas o uso do instrumento, e seu próprio processo de criação, implica uma atitude ética, já que visa operar sobre os comportamentos linguísticos dos indivíduos, sobre direitos e deveres linguísticos na estruturação das condições de existência coletiva. Portanto, ainda que não intencionalmente, os gramáticos normativos, como também os próprios gramáticos linguistas, representam o lugar de quem reflete e sistematiza usos linguísticos com sentido monolíngue (“a língua nacional”, “o português brasileiro”), porque a força do monolinguismo operada a partir do colonialismo é força dominante numa cultura nacional como a nossa, que está atravessada pelo trauma do colonialismo. O que entra em questão no gesto de sistematização é a unificação linguística, à qual estão pressupostas violências linguísticas diversas, como já mencionei anteriormente.
Por fim, sigo chamando à consciência o linguista que faz política quando faz ciência, mas não se permite ver, porque é fronteirado no mundo científico pela ideologia da neutralidade.
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Diferentemente de você, que fala sobre mim, mas não comigo, vou falar diretamente a você. Você insiste em falar sobre ética como algo universal mesmo sabendo que ética é algo relativo, tanto que Aristóteles, o sujeito que escreveu um tratado sobre ética que é referência até hoje, tinha escravos e nenhum drama de consciência sobre isso.
Você fala sobre ética, mas sustenta, por exemplo, que vidas humanas são mais importantes que as dos animais, utilizando uma ética antropocêntrica, em que definimos bom e mau a partir de nosso próprio ponto de vista e de nossas próprias conveniências. Africanos podem ser cruéis com animais, mas europeus não podem ser cruéis com africanos, certo? Essa sua “ética” que coloca o homem como o ser supremo, o centro da Criação, em nome do qual tudo se justifica, é uma forma de preconceito chamada especismo. E depois você vem me chamar de racista! Faça-me um grande favor: guarde sua hipocrisia para você e deixe de me seguir!
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O autor, enfim, comportou-se como Marcos Bagno. Animais são tão valiosos quanto seres humanos, que são também natureza e este ensinamento aprendi com as religiões de matriz africana. Mas não se perturbe, sempre é tempo de se estar aberto a revisões de conceitos e percepções. Abraço.
PS: não te sigo, não te conhecia, mas teu artigo apareceu como indicação do Google pra mim e não pude deixar de ler e comentar.
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Sou negro e de periferia, ainda por cima do norte do país, a região mais pobre e com menor IDH do país. A educação é libertadora e abre portas.
Sou Médico de faculdade particular e, muito embora deteste a falácia do apelo a autoridade, o dito “lugar-de-fala”, que desequilibra o debate e o valor dos argumentos, devo dizer que não fossem boa escolarização seguiria o mesmo caminho que meu vizinhos pobres que mal completaram o ensino médio.
Vocabulário, linguagem, CÓDIGOS, são necessários em todos os níveis de comunicação. Ainda mais quando, em ambiente profissional, se faz necessário a padronização do falar e escrever pra boa compreensão de todos os semas propostos e necessários a qualquer relação interpessoal e ofício. Por isso que padrão na língua é mister. E, nesse caso, a norma padrão.
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Errata: fiz faculdade pública.
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Por falar nisso, lugar de fala é em verdade um lugar-comum que se recorre todas as vezes que alguém procura desequilibrar a arguição a seu próprio favor. Sem apresentar nada pertinente à matéria em discussão
Em resumo, é uma evidência anedotal em detrimento de evidência científica acerca de um assunto.
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Que massa que você conseguiu ser médico. E quem está falando sobre lugar de fala é você.
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Sim, falei de lugar-de-fala. É o discursinho pronto que está engatado na tua segunda marcha. Afinal, não vociferas o direito de pobres negros excluídos a poder manter o seu dialeto diastrático em ambiente acadêmico e que assim seja considerado padrão também.
Conte-me outra.
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Você sintetizou bem o que eu “vocifero”.
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Maravilhosa exposição! Sou preparador e revisor de textos atuante há mais de vinte anos no mercado editorial, por isso minha lida com a língua portuguesa é diária. Sempre fiquei com um pé atrás em relação às ideias de Bagno, mas esta exposição me dá clareza de que eu necessitava para entender seus pontos de vista, no mais das vezes, equivocados.
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Prof. Aldo, gostaria de lhe agradecer por este artigo e também pelo anterior. Infelizmente, por causa do linguista Bagno, muitos professores de Português deixaram de ensinar gramática na escola ou mesmo a língua padrão. As universidades e as secretarias de educação de estados e municípios estão cheias de pessoas que pensam como ele, assim o ensino de língua portuguesa está indo de mal a pior. Ainda temos grandes linguistas, filólogos, gramáticos no Brasil, mas muitos já morreram. Tenho medo de que mais alguns morram e não possamos combater esse ensino deturpado da língua e as mudanças propostas por esse senhor. Já se disse para deixar nossa ortografia em paz. Gostaria também que deixassem nossa gramática normativa em paz, haja vista que, como o senhor mesmo afirmou, as mudanças ocorrem e devem ocorrer naturalmente.
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