Ainda sobre Marcos Bagno e sua gramática

ALERTA: se você não tem paciência para ler textos longos, desconsidere esta postagem.

Na semana passada, publiquei aqui neste blog uma crítica ao linguista Marcos Bagno por suas ideias equivocadas sobre o ensino da norma-padrão e sobretudo por sua reação destemperada e incivilizada contra um de seus críticos, o gramático Fernando Pestana, que, como eu, também aponta os erros metodológicos, incoerências e contradições de suas propostas e atitudes. Como resultado, recebi muitos comentários, tanto de apoio quanto de discordância à minha crítica, e é a estes últimos que quero responder aqui para tornar mais clara a minha posição.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a diferença entre dois conceitos que são frequentemente confundidos e por vezes utilizados um pelo outro, que são norma-padrão e norma culta.

A norma-padrão, preconizada pela gramática normativa, é o modelo de uso da língua que deve ser adotado na redação de textos formais, como livros, jornais, documentos, contratos, relatórios, manuais, textos acadêmicos, jurídicos, técnicos, etc. Portanto, é um modelo sujeito a normatização (como, de resto, muitas atividades profissionais estão igualmente sujeitas a normas técnicas, algumas até com poder de lei) justamente para garantir a intercomunicação eficiente e não ambígua em atividades profissionais e oficiais.

Já a norma culta é o conjunto dos usos linguísticos das pessoas de maior escolaridade, tanto falados quanto escritos, tanto formais quanto informais, isto é, coloquiais. E é importante frisar que as pessoas cultas em geral não escrevem do mesmo modo como falam; mesmo ao escrever num registro mais informal (como num e-mail a um amigo), evitam construções como “pra mim fazer”, “vamo se encontrar”, “eu tava”, “dez real”, etc., que normalmente usam em sua fala cotidiana.

A questão é que Bagno critica a atual norma-padrão da língua portuguesa (o que, por sinal, eu às vezes também faço, mas não pelas mesmas razões que ele), e até prega que não se a ensine nas escolas, com base numa definição dessa norma que não corresponde à realidade. Para Bagno, a norma-padrão é uma linguagem artificial e idealizada, baseada nuns poucos escritores de ficção de maior prestígio, sobretudo do passado e sobretudo lusitanos. Para ele, os gramáticos escolhem arbitrariamente alguns autores tidos como exemplares e, mesmo assim, selecionam apenas certos usos desses autores, deixando outros de lado. Portanto, os gramáticos seriam uma espécie de ditadores da língua, que impõem determinados padrões de maneira totalmente arbitrária e segundo seus caprichos pessoais. De fato, alguns gramáticos fazem isso — ou melhor, fizeram, pois escreveram suas gramáticas há quase 100 anos, numa era pré-científica, e já estão todos mortos.

Atualmente, as gramáticas normativas são elaboradas seguindo uma metodologia própria e rigorosa, que se baseia em textos escritos formais de ficção e também de não ficção (acadêmicos, jurídicos e jornalísticos, dentre outros) sobretudo dos últimos 50 anos (portanto, a partir de aproximadamente 1970). Além disso, as gramáticas normativas só abonam usos que estejam efetivamente disseminados na escrita culta e formal, isto é, ocorram com frequência significativa o suficiente para que se possa atestar que já fazem parte do português escrito formal contemporâneo. Isso significa que, mesmo que um contrato redigido por um advogado mal escolarizado contenha coisas como “se o interessado propor” ou “quando houverem as negociações”, isso não entrará na norma-padrão, pois, por enquanto (pode ser que no futuro mude), é um desvio devido à má formação escolar e não um uso generalizado pelas pessoas cultas em seus textos profissionais.

O fato é que Bagno se insurge contra uma gramática normativa que só existe em sua cabeça; ele desconhece o processo sério, metódico e criterioso como são elaboradas as modernas gramáticas normativas e as ataca a partir de uma visão equivocada e preconcebida do que sejam elas. Além disso, ele comete um erro metodológico grave a alguém que tem formação acadêmica ao tomar como uso corrente na escrita formal construções que fazem parte da norma culta falada, mas não da escrita, e ao propor que essas construções sejam incorporadas à norma-padrão. Criticando os gramáticos por serem, em sua visão, arbitrários, ele é que é arbitrário ao querer estabelecer, segundo critérios em grande parte pessoais, uma nova norma, que não corresponde ao uso efetivo que fazem as pessoas cultas ao redigir textos profissionais ou oficiais.

Alguns dos comentários que recebi afirmam que a gramática de Bagno não é normativa, é descritiva e pedagógica. E que é uma referência internacional em matéria de língua portuguesa. Primeiramente, e é preciso ser justo, a gramática de Bagno faz uma boa descrição do português brasileiro contemporâneo falado e escrito e é útil aos estudos sobretudo do português falado. Mas, quando se trata de descrever o português escrito formal, ela falha fragorosamente, atestando, contra todos os dados empíricos disponíveis, usos que não são correntes nesse registro e nessa modalidade. Além disso, essa gramática não é acadêmica, voltada exclusivamente aos estudiosos do idioma, e sim pedagógica, portanto um guia sobre o que os professores do ensino básico devem ou  não ensinar. E ele prega que não se ensine mais a diferença entre este e esse, que se chancele o uso de “eu vi ela”, “existe muitas pessoas”, “aconteceu várias coisas”, e assim por diante.

Em segundo lugar, Bagno sustenta que se adote a norma culta (falada e escrita, bem entendido), isto é, o uso linguístico dos mais escolarizados, como parâmetro para uma nova norma-padrão. Ao mesmo tempo, ele fala o tempo todo na necessidade de promover a inclusão social dos menos favorecidos por meio da linguagem. Só que, do ponto de vista dos menos favorecidos, essa norma culta é tão elitista quanto a norma-padrão oficial, pois, embora contemple a não distinção entre este e esse, ainda está muito distante da língua dos excluídos, das periferias, em que o padrão é “nós foi”, “a gente somos” e “pobrema”. Aliás, teríamos de abonar também os erros de pontuação, como, por exemplo, separar sujeito de predicado por vírgula, e de ortografia, já que a inclusão por meio da linguagem tem de ser total e não apenas gramatical.

Na verdade, o que se critica em Marcos Bagno, além de seus inadmissíveis erros metodológicos, é uma postura militante, que mistura ciência com política e prega uma determinada pedagogia da língua portuguesa calcada em pressupostos de justiça social e emancipação dos menos favorecidos — o que é uma causa, sem dúvida, muito justa —, porém alicerçada em certos dogmas que não condizem com a realidade. Como respondi a uma professora que me escreveu, é preciso levar educação de verdade a quem não tem acesso a ela, pois só assim esses brasileiros serão emancipados, conquistarão a verdadeira cidadania, e o Brasil se desenvolverá, tornando-se um grande país e não apenas um país grande, como é hoje. Só que a proposta de Bagno é exatamente o contrário disso: é nivelar por baixo, rebaixando a norma-padrão ao nível do linguajar dos menos escolarizados. Fazendo uma analogia com a economia, é como, em vez de lutar para que todos sejam ricos, almejar um país em que todos sejam iguais na pobreza.

Será que, se as gramáticas normativas passassem a abonar “eu vi ela”, e, portanto, por um mero truque de manipulação da norma, o linguajar dos botequins passasse a ser considerado aceitável em textos formais, isso emanciparia os mais pobres, isso lhes abriria portas no mercado de trabalho, isso tornaria o Brasil um país desenvolvido e menos desigual?

Outro argumento é o de que é preciso conhecer o Brasil em sua diversidade linguística, o Brasil profundo, de escolas públicas sucateadas e violentas, de professores desassistidos, e, portanto, é preciso empregar uma sociolinguística educacional que funcione na prática. Que o aluno precisa de fato dominar a gramática normativa, mas que, para tanto, há etapas nessa construção. O que isso quer dizer? Que devemos no ensino fundamental ensinar que é correto escrever “eu vi ela” num trabalho escolar para só no ensino médio explicar que o correto é “eu a vi”? Devemos então reforçar a variedade que o aluno traz de casa — porque dizer que ele fala “errado” é preconceito linguístico, causa evasão escolar, afeta a autoestima do aluno, etc. — para, só quando essa variedade já estiver petrificada, revelar-lhe que, escrevendo assim, ele jamais conseguirá um emprego decente?

Também  se argumenta que é preciso respeitar a linguagem do aluno, como de resto a de todas as pessoas, por menos letradas que sejam, o que é verdade e um princípio de civilidade. Mas respeitar não é o mesmo que considerar correto e aceitável em situações formais, especialmente acadêmicas e profissionais.

Não sou contra o ensino da variação linguística nas escolas, pois o próprio Evanildo Bechara, um dos gramáticos normativos a quem Bagno torce o nariz, afirma que temos de ser “poliglotas em nossa própria língua”, isto é, saber em que momento empregar a norma-padrão e em que momento não. Mas é preciso ter em mente que é a norma-padrão em vigor, mesmo com todas as críticas que possamos ter a ela, que liberta, emancipa e confere verdadeira cidadania. Portanto, é preciso tornar o estudante proficiente nela desde o primeiro momento em que pisa na escola. Eu, por exemplo, não estaria redigindo este texto se não dominasse essa norma.

Uma coisa que constato — e acho que não sou só eu — é que o domínio da língua culta pelas pessoas escolarizadas é cada vez menor (estão aí os resultados do PISA que não me deixam mentir). Antigamente, a maioria das pessoas que tinham acesso à educação formal — e que eram relativamente poucas — frequentava a escola pública (por incrível que possa parecer aos mais jovens, a escola privada abrigava aqueles que não se saíam bem no ensino público) e lá aprendia Língua Portuguesa desde os primeiros anos pela gramática tradicional (ninguém havia ouvido falar em linguística naquela época); essas pessoas, no entanto, tinham uma proficiência muito maior no português culto do que os jovens de hoje, educados pela moderna pedagogia variacionista. Penso que o problema da educação em nosso país não está propriamente no modelo teórico adotado, está nas drogas, na violência, no desrespeito ao professor, nos baixos salários dos profissionais da educação, no desinteresse dos pais pela educação dos filhos, na falta de infraestrutura das escolas, na falta de uma política educacional de Estado e não só de governo…

Outro argumento muito usado por Bagno é o de que o ensino de ciências é constantemente atualizado à medida que o próprio conhecimento científico avança. Por isso, não se ensina mais nas escolas que a Terra é o centro do Universo nem que animais surgem por geração espontânea. Enquanto isso, ensina-se gramática hoje do mesmo modo como se ensinava há 2.300 amos. De fato, concordo que deveríamos substituir as definições e a nomenclatura da gramática tradicional pelos modernos conceitos e terminologia da ciência linguística. Só que a gramática não é uma ciência, é uma normatização da linguagem formal escrita, portanto não está necessariamente obrigada a atualizações, embora as faça periodicamente. Há no Congresso Nacional uma norma antiquíssima determinando que parlamentares do sexo masculino são obrigados a trajar terno e gravata em suas dependências. Pode-se argumentar que a moda mudou muito desde que essa exigência foi estabelecida, que hoje em dia as pessoas vão de bermudas e chinelos aos mais diversos lugares e que, portanto, essa norma é obsoleta. No entanto, a obrigatoriedade do traje social no Congresso continua independentemente de qualquer mudança no estilo de vestir das pessoas comuns porque normas são normas e não ciências. O objetivo do ensino de gramática não é inculcar no aluno definições ou termos técnicos, é torná-lo proficiente na redação e leitura de textos formais. Definições e termos são um meio de aprendizagem e não um fim em si, portanto, para tal propósito, a NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) tem funcionado tão bem quanto a terminologia linguística.

 Ao contrário de muitos de meus colegas, não sou ideológico, sou pragmático, portanto defendo aquilo que comprovadamente funciona. Por não ser ideológico, não me apego a doutrinas e agendas políticas, mas sim a fatos concretos, comprováveis cientificamente. Logo, não sou dogmático, não me arvoro em dono da verdade e tenho o espírito aberto a revisar meus conceitos e opiniões desde que seja convencido por argumentos sólidos, sobretudo os baseados em dados colhidos por metodologia científica rigorosa. Qualquer um que tenha estudado com afinco uma disciplina chamada Metodologia Científica, indispensável na formação de qualquer pesquisador e obrigatória a quem faz mestrado ou doutorado, sabe que a obra acadêmica de Bagno é eivada de erros metodológicos, muitos deles propositais, que, como tenho assinalado, decorrem da interferência de sua agenda político-ideológica num trabalho que, por sua própria natureza científica, deveria ser neutro e objetivo. E é principalmente aos seus erros metodológicos e à sua pregação política baseada nesse viés que eu me oponho. Não sou intransigente como certos radicais que colocam suas ideologias, crenças e cartilhas acima da realidade fática nem sou arrogante, como disse aquela mesma professora, quando afirmo que Bagno divulga uma versão deturpada da linguística, pois a verdadeira linguística, como ciência que é, não faz juízos de valor, não milita em favor desta ou daquela causa social, por mais justa que seja, porque não é sua função, e essa postura pode até comprometer a validade do conhecimento que produz. Aliás, por sua condição metodológica de neutralidade e imparcialidade, a ciência não pode defender pautas políticas, sejam de esquerda ou de direita. Ou a ciência é apolítica ou não é ciência.

Tampouco sou a favor do linchamento moral (ou, como dizem hoje, do “cancelamento”) de quem quer que seja, pois é exatamente isso que fazem os radicais; de certa forma, é isso que o próprio Marcos Bagno faz contra os gramáticos normativos. O que faço é uma crítica fundamentada a uma descrição linguística falha e a uma proposta pedagógica equivocada. Minha questão não é pessoal, por isso mesmo não chamo meus opositores de calhordas nem dou carteirada neles.

É evidente que Marcos Bagno continuará sua pregação defendendo o indefensável e seguirá tentando legitimar sua metodologia e suas conclusões, assim como é evidente que seus admiradores continuarão a apoiá-lo incondicionalmente, pois ideologia é algo tão arraigado nas pessoas que é quase impossível mudar. Àqueles que dizem não ser seguidores cegos de Bagno e que reconhecem nele erros e acertos, eu digo que também aí me incluo: não faço tabula rasa da sua competência profissional, nunca afirmei que tudo o que ele diz é bobagem nem prego a sua desmoralização, mas, na vida acadêmica, em que se debatem ideias e fatos, todos estamos sujeitos a críticas (algumas às vezes até sem fundamento) e devemos rebatê-las com argumentos robustos ou, na falta deles, aceitá-las com humildade, sem rompantes de agressividade e destempero verbal.

Uma última consideração: apesar de toda essa celeuma, as pessoas continuam tentando escrever o mais próximo da gramática normativa que conseguem, e os gramáticos continuam fazendo seu trabalho sem dar a menor bola para o que diz Marcos Bagno. Os cães ladram, e a caravana passa.

Perdoem-me a prolixidade, mas espero ter sido claro.

Quem é o calhorda?

Desde o início do ano, o Prof. Fernando Pestana, meu colega colunista na página Língua e Tradição, vem publicando nessa página uma série de artigos comentando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do linguista Marcos Bagno, sobretudo apontando os erros metodológicos e as incoerências entre o que o autor prega e o que ele mesmo e os autores em que se apoia fazem em matéria de uso da chamada norma-padrão da língua portuguesa.

Antes de mais nada, convém situar o leitor sobre do que trata essa gramática. Nela, Bagno advoga que a atual norma culta do português brasileiro, isto é, o modo como os brasileiros altamente escolarizados falam e escrevem, está bastante distante da norma-padrão, aquela preconizada pela gramática normativa e ensinada nas escolas, a qual estaria, portanto, desatualizada e se teria tornado anacrônica, além de refletir mais o português lusitano do que o brasileiro. Como resultado, o autor propõe não só que se adote uma nova norma-padrão, que abone construções típicas do falar brasileiro, como também que se passe a ensinar essa nova norma nas escolas. É daí que vem o epíteto “pedagógica” do título da obra.

Bagno afirma, dentre outras coisas, que os pronomes demonstrativos este/esta/estes/estas não existem mais no português brasileiro, substituídos que foram por esse/essa/esses/essas em todos os casos. No entanto, o próprio autor emprega diversas vezes este/esta/estes/estas em sua obra, numa contradição com sua própria lição.

Ele também defende que construções como “eu a vi” quase não se usam mais e, portanto, deve-se a partir de agora abonar construções como “eu vi ela”. Seu argumento, coerente com o militante de esquerda que é, é o de que a norma-padrão vigente é elitista e excludente e que, para empoderar os menos favorecidos, é preciso chancelar o modo como eles se expressam.

Esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro, a verdadeira emancipação dos mais pobres e menos escolarizados se dá justamente pela educação, portanto pelo acesso dessa população a um ensino de qualidade, que a torne proficiente naquela norma que vai lhe abrir as portas do mercado de trabalho qualificado, e não pelo rebaixamento da norma-padrão ao linguajar das pessoas menos escolarizadas. Essa proposta seria como se, em vez de lutar pela saúde bucal da população, tornando o tratamento dentário acessível a todos, se instituísse a boca banguela como padrão de normalidade.

O segundo problema é que a norma-padrão de uma língua se baseia no uso formal que as pessoas cultas fazem na modalidade ESCRITA. Embora a maioria de nós brasileiros use de fato esse no lugar de este mesmo referindo-se a um objeto próximo de quem fala, o uso do pronome este ainda está muito vivo em nossa escrita formal. Da mesma forma, todos nós dizemos “eu vi ela” quando falamos informalmente, mas nenhuma pessoa bem escolarizada, que é a que redige textos formais, escreveria dessa maneira num documento profissional, trabalho escolar ou na prova do Enem. Logo, o argumento de que nossa norma-padrão é uma peça de ficção, um retrato do português escrito de séculos atrás, como sustenta Bagno, não se sustenta.

É bem verdade que muitos profissionais de nível superior já não respeitam rigorosamente certas regras da gramática normativa quando escrevem, como, por exemplo, quando utilizam a próclise (anteposição do pronome oblíquo ao verbo) em contextos em que deveriam usar a ênclise (posposição do pronome ao verbo). Nesse sentido, a norma-padrão poderia, sim, ser flexibilizada, e creio que o será nos próximos anos, como é da dinâmica natural das gramáticas. Mas, se as pessoas cultas já escrevem assim — eu mesmo faço isso e, aliás, o fiz aqui neste texto — e essas construções são aceitas pacificamente, por que precisaríamos reformular radicalmente a norma-padrão? Não bastariam alguns pequenos ajustes? Por outro lado, que sentido há em institucionalizar uma construção como “eu vi ela” se nenhum redator culto a emprega em textos formais?

Nesse sentido, as críticas do Prof. Pestana à obra de Bagno são plenamente razoáveis e pertinentes. Além disso, a gramática em questão se baseia muito mais nas percepções pessoais do próprio autor sobre o português brasileiro do que num levantamento sistemático, segundo o método científico, de textos escritos formais do Brasil atual, ainda que ele afirme ter feito tal levantamento. Na prática, o que Bagno faz é tomar o português oral informal como padrão a ser adotado na escrita formal, algo que ainda está muito longe de acontecer e de ser aceito socialmente.

Mas o motivo deste meu artigo é que o linguista Marcos Bagno postou recentemente um texto no Facebook com o título “A calhordice do ‘ele não escreve como manda os outros escreverem’”. Embora não especifique a quem dirige sua ira, fica claro que o alvo é justamente o Prof. Pestana, primeiro porque, num trocadilho de gosto duvidoso, Bagno impreca a certa altura: “Vá queimar pestana, calhorda (…)”. E, em segundo lugar, porque as críticas que tenta rebater em sua postagem são exatamente aquelas feitas por Pestana.

A primeira coisa a observar é que Bagno não contra-argumenta, em nenhum momento afirma que os apontamentos de Pestana são inverdades, mas limita-se apenas a dizer que

a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia.

Só que, em sua gramática, Bagno não sustenta que se use indiferentemente quer a forma tradicional quer a inovadora, ele aconselha os professores a ensinar apenas esta segunda. Diz ele: “é perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença entre esse e este, que não existe na língua e que não é rigorosamente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos mais monitorados”.

Como não tem argumentos para negar que as críticas de Pestana têm fundamento, Bagno recorre ao argumentum ad hominem da retórica de Aristóteles e chama seu crítico de calhorda. Não podendo atacar o argumento, ataca o argumentador, numa atitude infantil de descontrole emocional de quem sabe que não tem razão. Ao contrário, Pestana critica Bagno com espírito científico, como é praxe no debate acadêmico, jamais em nível pessoal, jamais resvalando para a ofensa ou o insulto. Em outras palavras, ataca as ideias, não a pessoa.

Em outro momento, Bagno dá uma “carteirada” em Pestana, um típico “você sabe com quem está falando?”, ao dizer:

escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

Arrogante como sempre e detentor de uma postura de dono da verdade, como o são todos os extremistas, radicais e dogmáticos, Bagno se gaba de ter escrito uma gramática de mil páginas, o que, supostamente, Pestana não seria capaz de fazer. Ora, primeiramente, um livro grande não é necessariamente um grande livro, ou “tamanho não é documento”. Em segundo lugar, Pestana é autor d’A Gramática para Concursos Públicos, por sinal, a gramática mais vendida e a mais lida por concurseiros e vestibulandos, mas não só por eles.

A certa altura, Bagno coloca o pronome pessoal oblíquo antes do advérbio de negação (“…como se fosse possível algum trabalho que o não seja…”) e, pretensioso, desafia seu opositor como quem quer ensinar o padre-nosso ao vigário: “já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!”.

Bagno também afirma em sua postagem que sua gramática “descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas”. Será? “Eu vi ela” já está enraizado no uso ESCRITO das pessoas cultas? Diz também que “descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita”. No entanto, sua gramática se diz pedagógica justamente porque quer ensinar as pessoas a usar essas formas em sua escrita. Gramáticas descritivas descrevem a língua tal como é falada e escrita, tanto pelos mais cultos quanto pelos iletrados; já gramáticas normativas e pedagógicas normatizam a linguagem formal, isto é, estabelecem normas de como se deve ou não se deve escrever textos formais. A gramática de Bagno é pedagógica até no título, e seu conteúdo não é meramente descritivo, com fins unicamente científicos, é prescritivo e estimula os professores a ensinar a seus alunos um padrão que praticamente só o próprio Bagno utiliza. Afinal, quem mais no meio acadêmico ou profissional escreve “leia tudo o que tive de ler para escrever ELA”?

Em outra passagem de seu texto, Bagno se vangloria de ter escrito um romance em que não usou nenhuma vez a palavra cujo. Enquanto os grandes escritores se esmeram em produzir obras linguisticamente ricas, Bagno se orgulha de sua pobreza vocabular. E ainda assim se considera um literato!

Por fim, usando da falsa humildade característica dos cínicos, Bagno afirma: “aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito criticas e observações — mas calhordice, aceito não”. Coerência teórica?! Aceita críticas e observações?! Só se forem aquelas que não exponham sua incoerência ou a fragilidade de suas postulações. Do contrário, o crítico é calhorda, mesmo que todas as suas críticas estejam fundamentadas e apoiadas em dados colhidos por metodologia científica, como o fez o Prof. Pestana.

Mas, a certa altura de seu texto, Bagno também confessa: “na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese”. Pergunta que eu também me faço. O fato é que Marcos Bagno diz o tempo todo fazer ciência ao mesmo tempo em que confessa que todo o seu trabalho é eivado de ideologia (marxista, no caso), e que não é possível fazer ciência não ideológica. Na verdade, todo trabalho científico estritamente descritivo e explicativo que seja bem feito e metodologicamente correto, seja nas ciências naturais ou nas humanas, é não ideológico, já que se atém à realidade dos dados coletados, sem emitir opiniões ou juízos de valor. No entanto, Bagno advoga o tempo todo em favor de uma agenda política, como quando diz em sua postagem:

[o argumento] (é) calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc.

Em resumo, Bagno não faz ciência, faz política travestida de ciência. Como todo extremista, não se pauta por fatos objetivos e sim por dogmas. Como todo radical, é raivoso contra quem discorde de suas ideias. Como todo hipócrita, finge-se de democrata quando só dá ouvidos a quem lhe faz coro. Como todo aquele que se sabe medíocre (porque quem é bom de fato não precisa provar nada a ninguém), vomita o tempo todo seu currículo acadêmico e desqualifica seus adversários. Como militante político barulhento e rebelde sem causa, desprestigia os verdadeiros linguistas, aqueles que fazem ciência de verdade com seriedade e responsabilidade, que não misturam fatos com opiniões, que não falseiam dados para provar suas teses, que não atacam a honra de seus críticos ou adversários e que, além de tudo, escrevem num português que, mesmo não seguindo religiosamente a norma-padrão, é perfeitamente aceitável entre as pessoas de cultura. O que não é o caso do Sr. Marcos Bagno.

Extremismos na língua e o “caminho do meio”

Como todos sabemos e sentimos, o Brasil atravessa uma excruciante polarização política entre extremos. Cada uma de seu lado, esquerda e direita se digladiam em defesa de suas ideologias enquanto a maioria silenciosa, adepta da moderação e do equilíbrio, permanece tal, silenciosa – ou melhor, silenciada pela grita histérica que se eleva das extremidades do espectro político.

Pois a mesmíssima coisa está ocorrendo neste momento no âmbito da língua. Temos de um lado uma esquerda radical, com sua neutralização de gênero, seu “todos, todas, todes e todxs”, sua defesa incondicional do “se deu pra intendê, tá tudo certo” e outras bandeirolas ideológicas; de outro, temos os guardiães da tradição, que veem a norma-padrão do idioma como entidade metafísica, sacrossanta, impoluta e inquestionável, e que advoga a normatização gramatical com base na tradição pré-científica que remonta à Grécia antiga e no uso da arte literária em lugar da ciência como parâmetro para essa normatização.

O grande “muso” da extrema esquerda, o super-herói defensor dos fracos e oprimidos da língua é Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília, que, embora o negue, é o paladino do vale-tudo linguístico, o salvador das variedades estigmatizadas, vítimas do preconceito linguístico (conceito que ele mesmo criou), um sujeito que diz coisas como “o ensino explícito da gramática, como objeto de reflexão e teorização, deve ser abandonado” ou “toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o fascismo”, ou ainda “a norma culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! Saber falar o ‘bom português’ nunca permitiu a ascensão social de ninguém, ao contrário do que prega a propaganda enganosa da pequena, pequeníssima burguesia”.

No outro extremo, cujo pontífice é o finado Napoleão Mendes de Almeida, temos os gramáticos normativos tradicionalistas, cujo método de descrição gramatical remonta a Dionísio, o Trácio (séculos II-I a.C.) e sua Tekhné Grammatiké (“Arte Gramatical”), e cujo corpus de onde extraem os modelos de “língua exemplar” são as obras dos grandes literatos, especialmente os clássicos.

Para esses gramáticos puristas, a palavra de ordem é tradição; ou seja, devemos falar e escrever como nossos antepassados o fizeram e como o fazem os mais ilustres prosadores de nosso idioma, especialmente os ficcionistas, aqueles que levam a língua ao “estado mais puro de arte” e fazem malabarismos linguísticos como “fá-lo”, “fê-lo”, “fi-lo”, “pô-lo”, “pu-lo” ou mesmo “qué-lo” (outra variante seria “quere-o”), sem falar nas mesóclises do tipo “dar-lho-ás” e “dir-no-los-ia”.

Enquanto isso, os pobres mortais que apenas desejam – ou pior, têm por obrigação – redigir textos formais e para os quais a norma-padrão tem valor meramente operacional, isto é, como ferramenta de trabalho e não de criação artística, se veem diante de um emaranhado pouco lógico de regras e exceções, de definições francamente falhas porque não científicas (“sujeito é aquele de quem se declara algo” ou “é o autor da ação”; “os termos essenciais da oração são sujeito e predicado” – só que existem orações sem sujeito, e por aí vai).

Ou seja, para uma maioria “de centro”, tanto política quanto linguisticamente, nem tanto ao mar nem tanto à terra: nem a abolição total da norma-padrão e sua substituição pelo “cada um fala como pode e como qué” nem a idolatria de uma norma anacrônica, pedante mesmo, vista como sagrada.

O fato é que as línguas mudam com o tempo (a isso se chama evolução), e a norma-padrão também precisa ser atualizada periodicamente. Como instrumento de comunicação formal que deve ser, sobretudo, funcional, ela tem de ser estabelecida com base no conhecimento científico e não nos arroubos estéticos de escritores que, por mais prestigiados que sejam, também erram (José de Alencar, por exemplo, costumava separar sujeito e predicado por vírgula). Ela deve ter como norte a simplicidade, regularidade e racionalidade. Nesse sentido, gramáticos que abonam certas construções que tornam a regra mais complexa e criam exceções de difícil explicação apenas porque um grande literato as usou prestam um grande desserviço à língua e seus usuários.

Da mesma forma, linguistas “progressistas” que defendem a incorporação à norma de certos usos populares que irregularizam o que até então era regular apenas porque tais usos são isso mesmo, “populares” – e é preciso valorizar a fala do povo para ser um verdadeiro democrata, não é mesmo? – igualmente mais atrapalham do que ajudam.

A realidade é que nossa norma-padrão precisa, sim, ser atualizada, racionalizada e simplificada, da mesma maneira como o fizeram nos últimos cem anos outras línguas neolatinas, notadamente o espanhol e o italiano. Precisamos, sim, de gramáticas normativas que incorporem o método científico e substituam definições, categorias e terminologias ultrapassadas por outras, sustentadas por dados e modelos fornecidos pela ciência.

Mas também é fato que precisamos da norma-padrão, pois nenhuma língua de cultura existe sem ela, e é ela que garante a intercomunicação dos variados grupos que constituem a sociedade sem que haja mal-entendidos, seja em nível profissional, acadêmico ou mesmo prático, como num manual de instruções, por exemplo. É ela que nos dá acesso a direitos e à cidadania; é ela que permite ascensão social a quem não sabe jogar futebol nem cantar pagode; é ela que nos possibilita ler e entender o que lemos; é ela que nos permite redigir e ser compreendidos.

Por via de consequência, a posição “centrista”, de bom senso, livre de extremismos demagógicos, é a que defende ambos os movimentos: de um lado, através da educação, a aproximação dos falantes à gramática normativa; de outro, por meio da reforma desta, a aproximação da gramática aos falantes. É pena que, nesse ambiente radicalizado em que vivemos, a voz da sensatez e da razoabilidade não esteja sendo ouvida.

As raízes biológicas do preconceito

Vê-se, nos dias atuais, um grande esforço em prol da inclusão social, por meio de campanhas educativas, ações afirmativas, valorização da diversidade, repressão à intolerância, adoção de cotas para minorias, e outras. No entanto, por mais que se tente combatê-lo, o preconceito segue firme e forte em todas as sociedades, das mais primitivas às mais desenvolvidas.

Discriminação por motivos étnicos, raciais, religiosos, sociais e até linguísticos parece uma chaga longe de ser superada.

A explicação para esse comportamento pode estar em nossa biologia. Estudos conduzidos de maneira independente em diversas universidades, uns com viés biológico, outros com foco psicológico ou social, apontam que a rejeição que sentimos pelo diferente pode ter sido moldada por milênios de evolução da espécie humana.

Para a bióloga Marta Fischer, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, o preconceito é algo natural. “É um estímulo discriminatório essencial à manutenção do grupo. Pode ser entendido como algo genético e vital para a evolução das espécies”, afirma a especialista.

Como o homem é um ser gregário, o sentimento de pertencer a um grupo e, consequentemente, o impulso a rechaçar os elementos estranhos foi uma estratégia inteligente de sobrevivência numa época em que estávamos longe de dominar o planeta. Criar vínculos sociais com base em características semelhantes parece natural e é algo que transcende a espécie humana.

Segundo Marta, ao formarmos grupos, atentamos ao que nos aproxima de determinados indivíduos e que nos diferencia dos demais. “Assim, a discriminação ajuda a manter a identidade e união do nosso grupo. Isso nada mais é do que o preconceito. Um animal com cheiro ou aparência distinta dos demais de sua espécie pode chamar a atenção de predadores. Isso faz com que seja discriminado, abandonado ou até mesmo morto por alguém do grupo.”

Em Prejudice, its social psychology (Preconceito, sua psicologia social), Rupert Brown, professor de psicologia da Universidade de Sussex, descreve várias experiências sugerindo que superestimamos características que fogem da normalidade, especialmente em relação a minorias. “Coisas menos comuns que a média, ou que acontecem raramente, parecem atrair uma parcela desproporcional da nossa atenção e são lembradas mais facilmente. Esse fenômeno pode dar origem a estereótipos.”

Segundo uma pesquisa americana, bebês de menos de dois anos usando a mesma roupa tendem a não brincar com uma criança vestida com roupas de cores diferentes das suas.

O papel da evolução biológica na formação do preconceito é claro: toda vez que nossos ancestrais pré-históricos ouviam um barulho estranho, imaginavam algum perigo iminente, como um predador, por exemplo, e tratavam de se proteger. Poderia não ser nada, apenas o vento entre as folhagens, mas, como diz o biólogo britânico Richard Dawkins, um falso positivo pode ser apenas perda de tempo; já um falso negativo pode significar a morte. Ou seja, a seleção natural favoreceu aqueles que tinham um olhar mais desconfiado sobre os outros à sua volta, isto é, os mais preconceituosos.

O mesmo raciocínio se aplica ainda hoje: se estou caminhando por uma rua escura e avisto um sujeito mal-encarado caminhando em minha direção, minha tendência natural – se eu for esperto, claro – é fugir dali. É bem possível que o tal sujeito não seja de fato um criminoso, mas vinha visão preconcebida sobre o seu caráter baseada em sua aparência pode, eventualmente, salvar a minha vida.

Dentre as várias formas de discriminação, está o preconceito linguístico. Esse termo, difundido por Marcos Bagno, da Universidade de Brasília, denomina a aversão por aqueles que falam de modo diferente, especialmente as pessoas menos escolarizadas, por isso mesmo mais distantes do padrão linguístico, e as provenientes de rincões afastados dos grandes centros, cuja fala é mais regional. Em suma, pessoas que utilizam variedades linguísticas de menor prestígio.

Segundo Bagno, o preconceito linguístico encobre, na verdade, formas mais profundas de discriminação. O indivíduo cuja fala revela origem rural é identificado com traços como pobreza, ignorância, alienação, falta de polidez, de bom gosto, bom senso, cidadania… Ou seja, sua pronúncia e sua gramática nos levam a traçar um raio X — verdadeiro ou equivocado, mas de todo modo preconcebido — dessa pessoa. E aí o preconceito linguístico se torna preconceito social, étnico, religioso ou racial.

Mas, se o preconceito, seja linguístico ou de qualquer outra natureza, existe e é um instinto biológico instalado em nossos genes, então a educação pode — como em relação aos nossos demais instintos —, no máximo, atenuar essa pulsão, jamais eliminá-la: até as pessoas mais cultas e conscientes do problema deixam extravasar, em momentos de descontrole emocional (quando aflora o “instinto animal”), sua ira contra o diferente, em especial se este é visto como inferior.

No caso específico da língua, o preconceito tem duas vertentes: uma de índole grupal e chauvinista, resquício de nossa herança tribal, e outra social, ligada à dinâmica da vida numa sociedade estratificada.

De um lado, o falante reage positivamente a quem se expressa como ele (há imediata identidade: se ele fala como eu, é porque é igual a mim) e negativamente a quem fala de modo diferente. A lógica subjacente, ainda que inconsciente, é: pessoas de outras regiões, classes sociais, credos religiosos, modos de vida não podem me compreender, nem eu as compreendo, então eu as vejo com desconfiança.

De outro lado, há uma tendência a valorizar o que pertence às classes sociais mais elevadas. Assim, tudo o que foge ao padrão, à norma, ao bom uso da língua deve ser rechaçado.

Embora essa postura seja de fato um preconceito e, como tal, seja injusta na maioria das vezes, é um dado real com o qual se tem de lidar. É preciso ter claro que ações educativas ou coercitivas podem reduzir o problema, mas dificilmente erradicá-lo, já que suas causas são biológicas.

Nesse sentido, muitos trabalhos teóricos têm equivocadamente enfatizado os aspectos sociais da questão — alguns linguistas, como Marta Scherre, da Universidade Federal do Espírito Santo, chegam a defender a criminalização do preconceito linguístico — quando seria mais proveitoso unir as teorias da linguagem aos conhecimentos da biologia, psicologia e neurociência para compreender melhor o fenômeno e saber até que ponto somos ou não capazes de combatê-lo. A ciência deve primeiro conhecer os fatos para depois julgar os valores.