Féria, feira, férias e feriado: o que essas palavras têm a ver?

Em novembro temos dois feriados próximos, a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra, sendo que, este ano, o segundo será um feriadão prolongado, e as pessoas já se preparam para viajar e curtir um pouco a vida fora das grandes cidades, em seus refúgios na praia ou no campo. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado — e consequentemente da palavra — era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”. E, por sinal, holiday é a contração de holy day, “dia santo”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

E a féria era originalmente o dinheiro arrecadado pelos comerciantes em um dia de feira. Daí que féria passou a significar o ganho diário de um profissional, a quantia ganha por ele durante uma diária de trabalho.

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs- (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com prudência nas estradas e moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto. E até a volta!

Cabelo tem a ver com pelo?

A pergunta do título admite duas respostas. Do ponto de vista biológico, a resposta evidentemente é sim: cabelos nada mais são do que os pelos que recobrem a cabeça, mais precisamente o couro cabeludo. Já do ponto de vista etimológico, há controvérsias. Há quem defenda que o latim capillus, “cabelo”, é o resultado da composição (com truncamento) de caput, “cabeça”, e pilus, “pelo”. Ou seja, cabelos nada mais seriam do que os pelos da cabeça. Mas estudos etimológicos mais rigorosos parecem desmentir essa hipótese tão intuitiva.

Em primeiro lugar, é difícil explicar porque capillus tem dois ll enquanto pilus tem um só. É bem verdade que o latim também tinha a palavra pilleus (com dois ll), que designava um barrete (espécie de boina) feito de lã de ovelha não tosquiada (portanto peluda) e que é da mesma origem de pilus. Ocorre que pilus provém da raiz indo-europeia primitiva *pil-, ao passo que pilleus vem da raiz derivada *pils- (com sufixo ‑s – o encontro consonantal ls passava a ll em latim). Então capillus teria a ver com pilleus em vez de pilus? Não parece ser o caso. Além disso, a composição entre caput e pilus daria algo como *capitipilus e não capillus.

Em segundo lugar, a raiz indo-europeia que originou caput em latim, a saber, *kap-ut, admitia também formas com l: *kap-(e)lo-. Desta segunda provêm, dentre outros, o sânscrito kapála, “tigela, panela, crânio”, e o antigo inglês hafola, “cabeça”.

Em face disso, muitos etimólogos e indo-europeístas acreditam que capillus é uma derivação da raiz *kap-(e)lo-, representando um antigo adjetivo referente a “cabeça” que depois passou a ser usado como substantivo. Então capillus significaria originalmente apenas “capilar” (subentendido “pelo”), nada tendo a ver com pilus.

Curiosamente, o espanhol até hoje denomina “cabelo” mais frequentemente por pelo, embora também disponha da palavra cabello. E nas línguas germânicas, o mesmo vocábulo denomina “pelo” e “cabelo”, como vemos, por exemplo, no inglês hair.

Em resumo, a semelhança entre pilus e capillus em latim pode ser apenas fortuita, uma dessas coincidências que dão pano para a manga em matéria de pesquisa linguística e, portanto, mais uma peça que a evolução cega das línguas nos prega.

Do telefone celular ao besouro

Do telefone celular ao besouro

Aprendemos na escola que a célula é o elemento básico constitutivo de todos os seres vivos, o tijolo da construção da vida. Então por que o telefone celular tem esse nome? O que ele tem a ver com a célula?

Na verdade, em relação à célula sobre a qual aprendemos em biologia, nada. O que acontece é que, para que a telefonia móvel funcione, é preciso que o território seja coberto por um grande número de antenas que atingem com seu sinal uma determinada porção desse território à qual os engenheiros idealizadores da tecnologia deram o nome de célula. Portanto, em matéria de telefonia móvel, uma célula é uma região (por exemplo, um conjunto de ruas da cidade) atendida por uma antena. Quando nos deslocamos ao longo do território, vamos passando sucessivamente de uma célula a outra, o que quer dizer que deixamos de receber o sinal de uma antena e passamos imediatamente a receber o sinal de outra.

Mas por que cada uma dessas regiões cobertas por antenas se chama célula? Obviamente não perguntei aos criadores da tecnologia, nem tenho como, mas a ideia parece evidente: o mapa do território atendido por uma operadora desse tipo de serviço aparece dividido em um sem-número de pequenas áreas, que estão justapostas como as células de um organismo (outra metáfora possível seria a dos favos numa colmeia).

Agora vem a pergunta mais importante (pelo menos para um etimólogo como eu): por que a célula se chama célula? Esse vocábulo veio por via culta, mais precisamente pela linguagem da ciência, do latim cellula, diminutivo de cella, que quer dizer “cela”, lugar pequeno em que se oculta alguma coisa, pequeno esconderijo, e também despensa ou celeiro (note que este último termo deriva de cela). A cella latina também era o local recluso em que os monges dormiam – aliás o fazem até hoje. E, mais recentemente, cela passou também a significar o recinto em que ficam presos os detentos.

A palavra latina cella (anteriormente *celna) provém do verbo celare, “ocultar”, que também aparece na forma celere. Esta última tem um derivado ob- + celere = occulere, cujo particípio é justamente occultus, “oculto”. Todas essas formas radicam no indo-europeu *k̂el-, que significa “ocultar”, e aparece também no latim clam, “às escondidas”, que deu clandestino, bem como no grego calyptós, “oculto”, donde apocalipse, isto é, revelação (retirada da cobertura do que estava oculto).

Como já deu para perceber, a raiz indo-europeia *k̂el- tinha um significado primeiro de “cobrir”, do qual decorre o de “ocultar”. Nesse sentido de cobrir, saíram as palavras latinas color, “cor” (originalmente “tinta”), isto é, aquilo que cobre uma superfície, pintando-a, e cilium, “cílio” (o que cobre o olho). Dessa raiz também nos chegou a palavra de origem germânica elmo – para quem não sabe, o capacete da armadura medieval, ou seja, aquilo que cobre e protege a cabeça.

De lá saiu também o inglês hell, “inferno, lugar subterrâneo e escondido”, bem como hole, “buraco”. Por fim, daí veio o grego koleón ou koleós, “vagina” (acho que não é preciso explicar por quê), do qual nasceu o termo científico coleóptero, um tipo de inseto mais conhecido como besouro.

Quantos significados diferentes se ocultam nessa simples raiz, não? E tudo começou com o nome do telefone celular. Nome, aliás, que esse aparelho tem no Brasil. Em Portugal, chama-se telemóvel. Curiosamente, o nome americano do celular é cell phone, também fazendo referência à ideia de célula, ao passo que seu nome britânico é mobile phone, ou simplesmente mobile. Ou seja, enquanto brasileiros e americanos ressaltam a conexão do aparelho às acima explicadas células, portugueses e ingleses destacam o aspecto móvel dessa tecnologia.

A realeza da língua

Como pesquisador da história das línguas e, mais especificamente, de suas palavras, sempre me interessei pelo estudo da língua que deu origem à maior parte dos idiomas europeus, inclusive o português, e por isso volta e meia falo dela: o indo-europeu. Mais ainda, quando abordo a origem das palavras do português, sempre gosto de recuar no tempo até o Cáucaso de 6 mil anos atrás e trazer a origem primeira de nossas palavras, qual seja, a raiz indo-europeia que lhes serviu de berço.

Diante do falecimento da rainha Elizabeth e consequente ascensão ao trono de seu filho Charles III, quero falar sobre uma raiz que foi muito produtiva nas línguas da Europa e, sem dúvida, na nossa e que tem tudo a ver com reis. Trata-se da raiz *rēĝ- (na verdade, *h3rēĝ- nas reconstruções mais recentes do indo-europeu). É uma raiz verbal que significa “conduzir, reger, liderar”, mas produziu também o adjetivo (particípio) *h3reĝtós, que quer dizer “reto” (já deu para perceber o que isso tem a ver com o português, né?).

Pois é, essa raiz deu palavras em muitas línguas indo-europeias, como o sânscrito, o persa, o grego, o russo, o lituano, o gaélico, mas o que nos interessa aqui são os vocábulos que passaram ao latim e deste ao português. O primeiro deles é rex, genitivo regis, cujo significado é “rei” (literalmente, “condutor, líder”) e que tem como feminino regina, “rainha”. Um cognato germânico dessa palavra é *riks, que aparece nos nomes próprios Érico, Frederico, Henrique e Rodrigo, dentre outros. Por exemplo, Teodorico é “rei do povo”, de *theudo, “povo”, e *riks, “rei”. E o nome próprio português Régis vem do genitivo de rex e significa “do rei”.

De rex saíram regalis, “real”, regius, “régio”, e regnum, “reino”. De real brotaram realeza e realista (isto é, adepto do rei, da monarquia). E de reino vieram reinar, reinado, reinante.

Mas a raiz *h3rēĝ- também produziu o verbo latino regere, “reger”, e seus derivados dirigere, “dirigir”, erigere, “erigir, erguer”, e corrigere, “corrigir”. Em todos há a ideia de linha reta, de direção (para frente ou para cima). E reto se liga à ideia de “certo, justo”. Logo, corrigir é tornar certo (fala-se na vida reta como aquela sem vícios, uma vida certa, correta, justa, bem como se fala da retidão de caráter). A ideia de linha reta também aparece em régua, que permite desenhar linhas retas, e regra, aquilo que dirige uma atividade.

Mas dos verbos acima vieram outras tantas palavras em nosso idioma: direito, direto, direção, diretor, diretriz, diretiva, dirigente, endireitar, correção, corretor, correto, corregedor, corregedoria, escorreito, ereção, ereto, regente, regência, reitor, reitoria, retificar, retificação, e até mesmo termos insuspeitos como endereçar, endereço, adereçar e adereço.

No antigo germânico, *h3reĝtós resultou em *rehtaz, que é a origem do inglês right e do alemão recht, “direito, certo”. O alemão também tem richtig, de mesma origem e mesmo significado.

Em francês, o latim directus, particípio de dirigere, produziu droit, que aparece no lema da monarquia britânica Dieu et mon Droit, “Deus e meu Direito”, ao passo que indirectus gerou o substantivo endroit, “lugar, local” (originalmente, “endereço”).

Mas o latim vulgar não documentado *directiare passou ao francês dresser, “endireitar, arranjar”, que por sua vez chegou ao inglês como to dress, “arranjar, adornar” e, por conseguinte, “vestir”, donde o substantivo dress, “vestido”.

E de dresser o francês criou por prefixação adresser, “endereçar”, e seu derivado adresse, “endereço”, que, mais uma vez, foram dar em inglês o verbo e o substantivo address.

Em linha reta ou às vezes fazendo algumas curvas, a raiz indo-europeia chegou até nós e enriqueceu muito nosso vocabulário. Ah, e antes que eu me esqueça, enriquecer vem de rico, do germânico *rikjaz, “régio, digno de rei”. Como é rica a história das palavras, não?

Por que flexionamos em gênero os numerais um e dois?

Boa noite, me chamo Rodrigo.

Acompanho seu blog (Diário de um Linguista), já há certo tempo.

Tenho uma dúvida que sempre quis saber a resposta, já perguntei a outro professor e ele não soube responder. Dado o seu óbvio conhecimento, acredito que o senhor poderia me ajudar.

Eu sempre quis saber a razão de alguns números variarem de acordo com o gênero e outros não. Entendo que o “um” varie pois além de número é artigo, mas por que há “dois” e “duas” mas não há “três” e “tresa”? Por que é correto falar que tenho duzentAs laranjas, mas não que tenho duzentas e quatrA laranjas?

Caro Rodrigo, a explicação de por que o português flexiona em gênero os numerais um, dois, duzentos, trezentos e demais centenas está no latim. Como você sabe, o português descende do latim, e nessa língua havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Consequentemente, o latim flexionava nesses três gêneros os numerais de um a três e mais as centenas a partir de duzentos. Tínhamos então: unus, una, unum; duo, duae, duo; tres, tres, tria; ducenti, ducentae, ducenta; trecenti, trecentae, trecenta, e assim por diante. Observe que em espanhol, francês e italiano, línguas-irmãs do português, somente o um admite flexão no feminino, os demais numerais são invariáveis. Lembro também que o numeral um não é flexionável porque também é artigo indefinido; na verdade, ocorreu o oposto: o artigo indefinido derivou do numeral, até porque em latim não havia artigos.

Mas por que os numerais acima de três não se flexionavam em latim? Para responder a essa pergunta, temos de retroceder ainda mais no tempo, até cerca de 4 mil anos a.C., quando se falava a língua-mãe do latim, o indo-europeu. Nessa língua, somente os numerais de um a três eram flexionáveis. Isso leva os linguistas históricos, como eu, a pensar que o indo-europeu descendia de uma outra língua, nomeada pelos especialistas de nostrático, que só tinha numerais de um a três, o que, aliás, é a situação verificada na maioria das línguas do mundo.

De fato, línguas ágrafas, como são os idiomas de tribos primitivas, só contam até dois ou no máximo três porque culturas simples como as tribais não têm muito o que contar. Essas línguas são chamadas de one-two-many, ou “um-dois-muitos” porque quantidades acima de dois são genericamente tratadas como “muito”.

Em resumo, o nostrático, que teria dado origem ao indo-europeu, deve ter sido falado por volta de 8 mil anos a.C. por uma população de caçadores-coletores nômades, portanto uma sociedade tribal extremamente simples.

A título de curiosidade, a origem remota do numeral latino tres é a mesma da preposição trans, que quer dizem “além” (como em transnacional, por exemplo). Ou seja, tres designava originalmente tudo o que está além de dois, algo como um, dois e o resto.

Dobrando as palavras

Boa tarde, não sei se a pergunta chega valer um artigo em seu blog, mas aí vai: queria saber qual o significado da raiz “plic” (ou ao menos me parece ser uma só raiz). Percebo que tem um monte de verbos com essa raiz, mas não consigo discernir um conceito comum entre eles. Só agora de cabeça, lembro de: aplicar, complicar, explicar, replicar, suplicar, implicar. Lembro também dos baseados em números, como duplicar e triplicar, mas imagino que estes não sejam da mesma raiz, pois vêm de adjetivos como duplo e triplo, a não ser que os adjetivos é que venham dos verbos…
Um abraço,
Cleverson

Caro Cleverson, sua pergunta vale sim um artigo! E aqui vai ele.

Todos os verbos que você menciona vêm do latim e são derivados de plicare, que significa “dobrar”. É desse verbo que saiu o português prega (de vestido), que é uma dobra no tecido.

Além dos verbos applicare, complicare, explicare, replicare, supplicare, implicare, duplicare, triplicare, etc., também temos em latim os adjetivos formados a partir do elemento de composição ‑plex, ‑plicis, como, por exemplo, simplex, “simples”, duplex, “dúplice”, triplex, “tríplice”, e assim por diante. Ou seja, adjetivos com o sentido de “dobrado uma, duas, três, etc. vezes”.

A par desse elemento ‑plex, há também o elemento ‑plus de simplus, duplus, triplus, que deu em nossa língua duplo, triplo, etc. E ambos os elementos radicam no indo-europeu *‑pel, “dobrar”. Esse radical também aparece no grego haplós, dyplós, etc., que igualmente significa “simples, duplo” e que aparece em português em palavras como haplologia, haploide e diploide.

Agora algumas curiosidades: os apartamentos duplex e triplex (inclusive o do Guarujá) na verdade deveriam chamar-se dúplex e tríplex, mantendo, portanto, a acentuação latina. (Na verdade, é assim que eles se chamam segundo a gramática normativa, que nenhum corretor de imóveis segue.)

E mais, “dobrar” é plegar em espanhol, plier em francês e piegare em italiano, todos provenientes do latim plicare. E também o inglês fold, o alemão falten e o sueco fålla, “dobrar”, são parentes distantes de plicare, já que também provieram do indo-europeu *‑pel.

O nosso verbo chegar também veio de plicare. Mas o que chegar tem a ver com dobrar? É que na Roma antiga a expressão plicare vela significava “dobrar as velas do navio ao atracar no cais”. Com o tempo, plicare passou a significar “chegar ao cais” e, por extensão, “chegar” (a qualquer lugar).

Curiosamente, em romeno, outra língua neolatina, o verbo a pleca quer dizer exatamente o oposto, ou seja, “partir”. É que no latim dos soldados romanos plicare tentorium era “dobrar a tenda” e plicare sarcinam, “dobrar (isto é, fechar) a mochila”, duas atitudes de quem desmonta o acampamento para ir embora.

O que o câncer tem a ver com o caranguejo?

Este fim de semana foi marcado pela tristeza de duas grandes perdas: a morte da atriz Eva Wilma e a do prefeito de São Paulo Bruno Covas, ambas causadas pelo câncer.

Falar sobre essa doença ainda é tabu para certas pessoas, que, imbuídas da chamada concepção metonímica de signo, acreditam que o nome é a própria coisa nomeada e que, portanto, pronunciar o nome é invocar a coisa. Por isso muitos ainda dizem que fulano morreu da doença ruim, daquela doença ou mesmo daquilo.

Mas por que o câncer tem esse nome? Em latim, cancer quer dizer simplesmente “caranguejo”, da mesma forma que o grego karkínos (de carcinoma, por exemplo). Aliás, em alguns horóscopos, o signo de câncer é mencionado como caranguejo. Mas os médicos da Antiguidade já atribuíam à doença esse nome. A explicação corrente é que o tumor canceroso se espalha pelo corpo como as patas e pinças do caranguejo, ou que as próprias ramificações do tumor lembram os membros desse crustáceo.

No entanto, o etimologista Mário Eduardo Viaro, meu colega na USP, propõe outra explicação para essa denominação. Segundo ele, o que motivou a analogia não foi propriamente o caranguejo e sim a craca, um outro crustáceo, que adere à superfície do primeiro e ali vive como parasita. Esta sim, a craca, teria o aspecto similar ao de um tumor maligno. Tanto que uma certa doença que atinge os chifres dos bovinos e os deixa com aspecto apodrecido também é chamada de craca, embora não tenha nenhuma relação biológica com a craca marinha.

Mas de onde vem a palavra latina cancer? A hipótese mais provável é que proceda de um latim arcaico *carcros por dissimilação dos dois rr, em que o primeiro deles se transformou em n. Isso se confirma pelo testemunho do grego karkínos (de *karkrínos, igualmente com dissimilação) e também do sânscrito karkaṭaḥ, “caranguejo”,  e karkaraḥ, “duro”. Todas essas palavras remontam à raiz indo-europeia *kar-, “duro”, que deu também o inglês hard. Ou seja, trata-se de uma referência à carapaça dura do crustáceo.

A própria palavra portuguesa caranguejo provém do latim vulgar cancridium, diminutivo de cancer. É interessante que em Portugal a doença, cujo nome técnico é neoplasia maligna, se chame cancro, denominação que se dá no Brasil a outro tipo de doença, de natureza venérea. Aliás, essa distinção brasileira entre câncer e cancro também é feita em francês e inglês, línguas em que temos cancer e chancre.

A origem da palavra “trabalho”

Hoje, Dia do Trabalho, o assunto não podia ser outro se não ele mesmo, o trabalho – ou melhor, a palavra trabalho. Se hoje se acredita que o trabalho dignifica o homem (isto é, o ser humano, o que inclui evidentemente as mulheres), a origem da palavra não é tão digna assim. Afinal, durante muito tempo, a ideia de trabalho esteve ligada às classes mais baixas da sociedade, ou seja, escravos, servos e operários. Tanto que trabalho se origina do latim tardio tripalium, um instrumento de tortura formado de três estacas de madeira cruzadas (tripalium quer dizer literalmente “três paus”), em que os escravos eram amarrados para ser açoitados.

Essa palavra latina também passou a outras línguas românicas como o espanhol trabajo, o catalão treball e o francês travail, sempre com o sentido de “trabalho”. Do francês, passou ao inglês travel, “viajar”, pois, segundo consta, as estradas inglesas na Idade Média eram tão ruins que viajar por elas era um verdadeiro suplício.

Menos estigmatizada que trabalho era a palavra lavor, do latim labor, tanto que os intelectuais não se referiam à sua atividade como um trabalho e sim como um lavor do espírito.

Labor e seu derivado laborare deram em português, além de lavor, o verbo lavrar (isto é, trabalhar a terra para semeá-la) e, deste, os substantivos lavra e lavrador, assim como lavoura (do latim laboria, derivado de labor). “Trabalho” em italiano é até hoje lavoro, derivado de lavorare, do latim laborare. Esse verbo também aparece em termos cultos como elaborar e colaborar, designativos de ações que implicam a ideia de trabalho: elaborar é criar do nada, e colaborar é trabalhar juntos.

O adjetivo “trabalhista” em espanhol é laboral e o partido trabalhista inglês é o Labour Party.

Mas também em outros idiomas a palavra para “trabalho” remete às classes baixas. Por exemplo, o alemão Arbeit provém de uma raiz indo-europeia *orbh, que significava “órfão” (por sinal, o português órfão vem do grego orphanós, que descende dessa raiz indo-europeia). Mas o que tem o órfão a ver com trabalho? É que, na Antiguidade e Idade Média, as crianças órfãs eram recolhidas pelas famílias na condição de serviçais, ou seja, não tinham os direitos que tem hoje uma criança adotada; os órfãos eram meros prestadores de serviços, em troca dos quais recebiam casa e comida, mas não tinham direito a herança. (E aqui vai mais uma curiosidade: a palavra alemã para “herdeiro” é Erbe, que também procede da raiz indo-europeia *orbh. É que o herdeiro só tinha acesso aos bens dos pais quando estes morressem, ou seja, quando se tornasse órfão.

Mas vou parando por aqui porque este texto está me dando trabalho, e hoje, Dia do Trabalho, é dia de descanso. Até a próxima!

A origem da palavra “luto”

Hoje, dia de Finados, vou responder à pergunta do leitor Paulo Sérgio Rezende Santos, que vem a calhar:

Bom dia. Ouvi dizer que a palavra “luto” veio do latim “lutus” porque o amarelo era a cor do luto na Roma antiga. Isso é verdade? Obrigado.

Meu caro Paulo, quem lhe disse isso fez uma pequena confusão entre duas palavras latinas, que são lūteus (e não lutus), adjetivo que significa “amarelo”, e lūctus, substantivo derivado do verbo lūgēre, que quer dizer exatamente “luto”.

Ou seja, a palavra portuguesa “luto” é empréstimo do latim lūctus, de mesmo significado. Quanto à ideia incorreta de que “luto” teria algo a ver com lūteus, isto é, com a cor amarela, justifica-se o equívoco: é que, na Roma antiga, as pessoas em estado de luto se vestiam de amarelo. Aliás, no Oriente, a cor do luto é o branco; a cor preta é uma adoção do Cristianismo. Esse hábito de vestir-se de negro após a morte de um ente querido surge na Idade Média e provavelmente tem origem na associação da morte com a escuridão e, consequentemente, com o desconhecido e também o sono eterno.

O fato é que muitos povos têm o costume de demonstrar pesar através da roupa. Mesmo os índios brasileiros, que geralmente não usam roupas, têm uma pintura corporal específica para celebrar os mortos.

Mas quem lhe disse que “luto” vem de lutus também deve ter confundido lūteus, “amarelo”, com lutum, “lodo”, já que a inexistente palavra lutus parece resultar do cruzamento de lutum com lūteus, talvez motivado pela impressão de que a lama às vezes tem cor amarelada. Mas trata-se de mera etimologia popular, isto é, sem base científica, pois em latim há o adjetivo lūteus (com u longo), que, como vimos, significa “amarelo” e luteus (com u breve), derivado de lutum, “lama”, que significa “feito de lama, feito de argila” e também conotativamente “negro, sujo”. Portanto, para os romanos a lama era negra e não amarela.

Uma última curiosidade: a palavra latina lūteus, “amarelo”, deriva de lūtum, nome de uma planta (a gauda, ou lírio-dos-tintureiros) que era justamente usada para tingir os tecidos de amarelo. E a origem remota de lūtum é a raiz indo-europeia *gl̥tom, que também deu em inglês gold, “ouro” (pois o ouro é amarelo).

Bom feriado a todos!

A origem do nome da Páscoa

Estamos na Semana Santa (por sinal, uma semana particularmente triste para os franceses e os amantes da civilização, dado o incêndio na catedral de Notre-Dame de Paris), e, assim, achei oportuno falar um pouco sobre a origem da palavra Páscoa. Esse termo nos chegou através do latim Pascha – donde o adjetivo pascal ao lado de pascoal –, por sua vez do grego Πάσχα (Páskha), empréstimo direto do aramaico PasHâ’. Para quem não sabe, o aramaico, língua semítica descendente do hebraico, foi a língua nativa de Jesus.

PasHâ’ proveio do hebraico פֶּסַח (Pessach ou Pesaḥ), termo usado originalmente para designar uma festa judaica comemorando o Êxodo e cujo significado é “passagem”. (Aqui cabe um alerta: a semelhança fonética entre o hebraico pessach e o português passagem é fortuita, pois não são cognatos.) Como se sabe, Jesus foi a Jerusalém para as comemorações da Pessach, ou Páscoa Judaica, quando foi preso, torturado e morto na cruz. Segundo os Evangelhos, Jesus foi crucificado na sexta-feira e teria ressuscitado exatamente no domingo da Pessach, razão pela qual a Páscoa passou a ser também uma festividade cristã, com novo significado: agora não mais a fuga do povo judeu do cativeiro no Egito, mas a ressurreição de Cristo.

Curiosamente, o inglês e o alemão utilizam termos de outra etimologia para designar a Páscoa: o termo em inglês é Easter, proveniente do antigo inglês Ēastre ou Ēostre; em alemão, temos Ostern, descendente do antigo alto alemão Ōstarun. A hipótese geralmente aceita afirma que Ēostre era originalmente o nome da deusa anglo-saxônica do amanhecer. Ou seja, a data celebrava originalmente uma divindade pagã. Não por acaso, Easter e Ostern têm relação com as palavras East em inglês e Osten em alemão, ambas significando “leste, oriente, nascente”, já que o amanhecer se dá nesse ponto cardeal. Também cognatos são o sânscrito uṣrā́, o grego ἠώς (ēṓs) e o latim aurora, todos com o significado de “amanhecer”. E todos radicados no indo-europeu *aus‑ (ou h2us‑), “branco, brilhante”, que em português sobrevive nas palavras austral e ouro (do latim aurum).

A relação entre a festa pagã e a cristã não é clara, mas possivelmente tenha sido motivada pela ideia de renascimento, já que o Sol renasce todas as manhãs, assim como Jesus teria renascido após a crucificação. Outra explicação liga a ideia de “aurora” com a alba paschalis (aurora pascal), designação que aparece já no século V para a manhã da Páscoa. E albus, alba, album significa “branco” em latim (“alvo” em português, donde a “estrela d’alva” ou “estrela da manhã”).

As demais línguas germânicas utilizam palavras derivadas de Pascha, como o holandês Pasen, o sueco Påsk e o antigo gótico Pāska. Daí também provêm o espanhol Pascua, o francês Pâques e o italiano Pasqua.

Feliz Páscoa a todos!