De onde vem o sufixo “‑alha”?

Olá, Professor! Gostaria de saber de onde vem o sufixo de palavras como “gentalha”, “parentalha” etc. Muito obrigado.
Wilberley Araújo Gomes

O português tem muitas palavras terminadas em -alha, como as citadas gentalha e parentalha, e também canalha, migalha, muralha, mortalha

Também tem palavras terminadas em -ália, como genitália, parafernália e Tropicália. Ambos os sufixos provêm do latim -alia, plural neutro de -alis, sufixo que em português forma adjetivos como nacional, central, cultural, etc. A diferença é que -alha nos chegou por herança latina ou empréstimo de outra língua românica, enquanto -ália é forma culta, vinda do latim por empréstimo.

O sentido latino desse sufixo era plural e coletivo. Assim, se genitale era a redução por elipse da expressão genitale organum (“órgão genital”), o plural genitalia significava “os genitais” (novamente subentendendo “órgãos”). Igualmente, Saturnalia eram as Saturnais, festas em honra do deus Saturno (redução de Saturnalia festa, plural de Saturnale festum, “festa saturnal”). Como a festa durava vários dias, era natural que se usasse sua denominação no plural. E paraphernalia eram os pertences pessoais que a noiva levava para seu novo lar após o casamento. Muitas dessas palavras passaram ao português em sua forma erudita, introduzidas por literatos, como genitália e parafernália. Outras herdamos diretamente do latim e, nesse caso, houve evolução fonética transformando o l seguido de i na consoante palatal lh. Foi assim que o latim Parentalia, “festa anual em homenagem aos parentes mortos” (plural neutro de parentalis, derivado de parentes, “antepassados, parentes”) resultou no português parentalha, com o sentido de “reunião de parentes, conjunto de todos os parentes”. A partir daí, o sufixo -alha se tornou produtivo na formação de coletivos, especialmente depreciativos, como gentalha (reunião de gente baixa, populacho, ralé). Aliás, canalha, que nos chegou do italiano canaglia (o sufixo italiano -aglia tem a mesma origem e significados que o português -alha) também significa “ralé, populacho, escória”, portanto tem sentido coletivo, e posteriormente passou a designar também o membro dessa classe. E como a tradição costuma associar às pessoas de baixa extração social os piores defeitos, daí para “canalha” passar a significar “calhorda, patife” foi um pulinho. Da mesma forma, migalha é um diminutivo um tanto quanto depreciativo de miga, que já é por si só qualquer coisa insignificante.

Aqui um comentário: o italiano canaglia era um coletivo de cães (cane em italiano), não em seu sentido literal de matilha de cachorros e sim no de pessoas biltres. É que em italiano cane também significa “biltre, patife, calhorda”, como na expressão figlio di un cane, cujo equivalente em português acho que não preciso mencionar, né?

Portanto, nós seres humanos sempre atribuindo aos pobres animais os defeitos que são nossos e exclusivamente nossos!

O sufixo culto -ália se presta à formação de nomes designativos de reuniões de pessoas, como o movimento musical da Tropicália (reunião de músicos de um país tropical) ou a Carnavália, feira de negócios relacionados ao Carnaval (e também título de uma canção dos Tribalistas).

Mas atenção: nem toda palavra portuguesa terminada em -alha ou -ália possui esse sufixo. Palha vem do latim palea, tralha vem de tragula, fornalha de fornacula, navalha de novacula, e assim por diante.

Cabelo tem a ver com pelo?

A pergunta do título admite duas respostas. Do ponto de vista biológico, a resposta evidentemente é sim: cabelos nada mais são do que os pelos que recobrem a cabeça, mais precisamente o couro cabeludo. Já do ponto de vista etimológico, há controvérsias. Há quem defenda que o latim capillus, “cabelo”, é o resultado da composição (com truncamento) de caput, “cabeça”, e pilus, “pelo”. Ou seja, cabelos nada mais seriam do que os pelos da cabeça. Mas estudos etimológicos mais rigorosos parecem desmentir essa hipótese tão intuitiva.

Em primeiro lugar, é difícil explicar porque capillus tem dois ll enquanto pilus tem um só. É bem verdade que o latim também tinha a palavra pilleus (com dois ll), que designava um barrete (espécie de boina) feito de lã de ovelha não tosquiada (portanto peluda) e que é da mesma origem de pilus. Ocorre que pilus provém da raiz indo-europeia primitiva *pil-, ao passo que pilleus vem da raiz derivada *pils- (com sufixo ‑s – o encontro consonantal ls passava a ll em latim). Então capillus teria a ver com pilleus em vez de pilus? Não parece ser o caso. Além disso, a composição entre caput e pilus daria algo como *capitipilus e não capillus.

Em segundo lugar, a raiz indo-europeia que originou caput em latim, a saber, *kap-ut, admitia também formas com l: *kap-(e)lo-. Desta segunda provêm, dentre outros, o sânscrito kapála, “tigela, panela, crânio”, e o antigo inglês hafola, “cabeça”.

Em face disso, muitos etimólogos e indo-europeístas acreditam que capillus é uma derivação da raiz *kap-(e)lo-, representando um antigo adjetivo referente a “cabeça” que depois passou a ser usado como substantivo. Então capillus significaria originalmente apenas “capilar” (subentendido “pelo”), nada tendo a ver com pilus.

Curiosamente, o espanhol até hoje denomina “cabelo” mais frequentemente por pelo, embora também disponha da palavra cabello. E nas línguas germânicas, o mesmo vocábulo denomina “pelo” e “cabelo”, como vemos, por exemplo, no inglês hair.

Em resumo, a semelhança entre pilus e capillus em latim pode ser apenas fortuita, uma dessas coincidências que dão pano para a manga em matéria de pesquisa linguística e, portanto, mais uma peça que a evolução cega das línguas nos prega.

Do telefone celular ao besouro

Do telefone celular ao besouro

Aprendemos na escola que a célula é o elemento básico constitutivo de todos os seres vivos, o tijolo da construção da vida. Então por que o telefone celular tem esse nome? O que ele tem a ver com a célula?

Na verdade, em relação à célula sobre a qual aprendemos em biologia, nada. O que acontece é que, para que a telefonia móvel funcione, é preciso que o território seja coberto por um grande número de antenas que atingem com seu sinal uma determinada porção desse território à qual os engenheiros idealizadores da tecnologia deram o nome de célula. Portanto, em matéria de telefonia móvel, uma célula é uma região (por exemplo, um conjunto de ruas da cidade) atendida por uma antena. Quando nos deslocamos ao longo do território, vamos passando sucessivamente de uma célula a outra, o que quer dizer que deixamos de receber o sinal de uma antena e passamos imediatamente a receber o sinal de outra.

Mas por que cada uma dessas regiões cobertas por antenas se chama célula? Obviamente não perguntei aos criadores da tecnologia, nem tenho como, mas a ideia parece evidente: o mapa do território atendido por uma operadora desse tipo de serviço aparece dividido em um sem-número de pequenas áreas, que estão justapostas como as células de um organismo (outra metáfora possível seria a dos favos numa colmeia).

Agora vem a pergunta mais importante (pelo menos para um etimólogo como eu): por que a célula se chama célula? Esse vocábulo veio por via culta, mais precisamente pela linguagem da ciência, do latim cellula, diminutivo de cella, que quer dizer “cela”, lugar pequeno em que se oculta alguma coisa, pequeno esconderijo, e também despensa ou celeiro (note que este último termo deriva de cela). A cella latina também era o local recluso em que os monges dormiam – aliás o fazem até hoje. E, mais recentemente, cela passou também a significar o recinto em que ficam presos os detentos.

A palavra latina cella (anteriormente *celna) provém do verbo celare, “ocultar”, que também aparece na forma celere. Esta última tem um derivado ob- + celere = occulere, cujo particípio é justamente occultus, “oculto”. Todas essas formas radicam no indo-europeu *k̂el-, que significa “ocultar”, e aparece também no latim clam, “às escondidas”, que deu clandestino, bem como no grego calyptós, “oculto”, donde apocalipse, isto é, revelação (retirada da cobertura do que estava oculto).

Como já deu para perceber, a raiz indo-europeia *k̂el- tinha um significado primeiro de “cobrir”, do qual decorre o de “ocultar”. Nesse sentido de cobrir, saíram as palavras latinas color, “cor” (originalmente “tinta”), isto é, aquilo que cobre uma superfície, pintando-a, e cilium, “cílio” (o que cobre o olho). Dessa raiz também nos chegou a palavra de origem germânica elmo – para quem não sabe, o capacete da armadura medieval, ou seja, aquilo que cobre e protege a cabeça.

De lá saiu também o inglês hell, “inferno, lugar subterrâneo e escondido”, bem como hole, “buraco”. Por fim, daí veio o grego koleón ou koleós, “vagina” (acho que não é preciso explicar por quê), do qual nasceu o termo científico coleóptero, um tipo de inseto mais conhecido como besouro.

Quantos significados diferentes se ocultam nessa simples raiz, não? E tudo começou com o nome do telefone celular. Nome, aliás, que esse aparelho tem no Brasil. Em Portugal, chama-se telemóvel. Curiosamente, o nome americano do celular é cell phone, também fazendo referência à ideia de célula, ao passo que seu nome britânico é mobile phone, ou simplesmente mobile. Ou seja, enquanto brasileiros e americanos ressaltam a conexão do aparelho às acima explicadas células, portugueses e ingleses destacam o aspecto móvel dessa tecnologia.

A realeza da língua

Como pesquisador da história das línguas e, mais especificamente, de suas palavras, sempre me interessei pelo estudo da língua que deu origem à maior parte dos idiomas europeus, inclusive o português, e por isso volta e meia falo dela: o indo-europeu. Mais ainda, quando abordo a origem das palavras do português, sempre gosto de recuar no tempo até o Cáucaso de 6 mil anos atrás e trazer a origem primeira de nossas palavras, qual seja, a raiz indo-europeia que lhes serviu de berço.

Diante do falecimento da rainha Elizabeth e consequente ascensão ao trono de seu filho Charles III, quero falar sobre uma raiz que foi muito produtiva nas línguas da Europa e, sem dúvida, na nossa e que tem tudo a ver com reis. Trata-se da raiz *rēĝ- (na verdade, *h3rēĝ- nas reconstruções mais recentes do indo-europeu). É uma raiz verbal que significa “conduzir, reger, liderar”, mas produziu também o adjetivo (particípio) *h3reĝtós, que quer dizer “reto” (já deu para perceber o que isso tem a ver com o português, né?).

Pois é, essa raiz deu palavras em muitas línguas indo-europeias, como o sânscrito, o persa, o grego, o russo, o lituano, o gaélico, mas o que nos interessa aqui são os vocábulos que passaram ao latim e deste ao português. O primeiro deles é rex, genitivo regis, cujo significado é “rei” (literalmente, “condutor, líder”) e que tem como feminino regina, “rainha”. Um cognato germânico dessa palavra é *riks, que aparece nos nomes próprios Érico, Frederico, Henrique e Rodrigo, dentre outros. Por exemplo, Teodorico é “rei do povo”, de *theudo, “povo”, e *riks, “rei”. E o nome próprio português Régis vem do genitivo de rex e significa “do rei”.

De rex saíram regalis, “real”, regius, “régio”, e regnum, “reino”. De real brotaram realeza e realista (isto é, adepto do rei, da monarquia). E de reino vieram reinar, reinado, reinante.

Mas a raiz *h3rēĝ- também produziu o verbo latino regere, “reger”, e seus derivados dirigere, “dirigir”, erigere, “erigir, erguer”, e corrigere, “corrigir”. Em todos há a ideia de linha reta, de direção (para frente ou para cima). E reto se liga à ideia de “certo, justo”. Logo, corrigir é tornar certo (fala-se na vida reta como aquela sem vícios, uma vida certa, correta, justa, bem como se fala da retidão de caráter). A ideia de linha reta também aparece em régua, que permite desenhar linhas retas, e regra, aquilo que dirige uma atividade.

Mas dos verbos acima vieram outras tantas palavras em nosso idioma: direito, direto, direção, diretor, diretriz, diretiva, dirigente, endireitar, correção, corretor, correto, corregedor, corregedoria, escorreito, ereção, ereto, regente, regência, reitor, reitoria, retificar, retificação, e até mesmo termos insuspeitos como endereçar, endereço, adereçar e adereço.

No antigo germânico, *h3reĝtós resultou em *rehtaz, que é a origem do inglês right e do alemão recht, “direito, certo”. O alemão também tem richtig, de mesma origem e mesmo significado.

Em francês, o latim directus, particípio de dirigere, produziu droit, que aparece no lema da monarquia britânica Dieu et mon Droit, “Deus e meu Direito”, ao passo que indirectus gerou o substantivo endroit, “lugar, local” (originalmente, “endereço”).

Mas o latim vulgar não documentado *directiare passou ao francês dresser, “endireitar, arranjar”, que por sua vez chegou ao inglês como to dress, “arranjar, adornar” e, por conseguinte, “vestir”, donde o substantivo dress, “vestido”.

E de dresser o francês criou por prefixação adresser, “endereçar”, e seu derivado adresse, “endereço”, que, mais uma vez, foram dar em inglês o verbo e o substantivo address.

Em linha reta ou às vezes fazendo algumas curvas, a raiz indo-europeia chegou até nós e enriqueceu muito nosso vocabulário. Ah, e antes que eu me esqueça, enriquecer vem de rico, do germânico *rikjaz, “régio, digno de rei”. Como é rica a história das palavras, não?

Os poderes da República

Nos últimos tempos, os três Poderes da República não têm saído dos noticiários. E, como todos sabemos, esses poderes são: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A Constituição de 1988 separou uma quarta instituição, o Ministério Público, desses poderes, dando-lhe autonomia. Embora do ponto de vista jurídico não seja propriamente um dos poderes, o Ministério Público pode, de alguma forma, ser considerado uma espécie de quarto poder. E nos tempos do Império havia ainda o Poder Moderador, exercido pelo imperador, que dava a este, dentre outras, a prerrogativa de dissolver o parlamento e convocar novas eleições, o que o tornava quase um monarca absoluto.

Mas de onde vêm as palavras legislativo, executivo e judiciário?

Legislativo deriva de legislar, palavra formada a partir de legislador por derivação regressiva (derivação regressiva é aquela em que, em vez de acrescentar, subtraem-se afixos). Já legislador e legislação provêm, respectivamente, do latim legislator e legislatio, sendo que legis é o genitivo de lex, “lei”, ao passo que lator, “aquele que leva”, e latio, “ato de levar”, decorrem do particípio latus do verbo ferre, “levar, transportar” e, por conseguinte, “propor”. (Sim, o particípio de ferre é latus, por incrível que pareça!) Portanto, legislar significa “propor uma lei”, logo o Poder Legislativo é a instituição responsável pela elaboração das leis.

executivo vem de executar, formado a partir do particípio latino executus ou exsecutus do verbo exsequi, “seguir até o fim, levar a cabo, executar”. Esse verbo subsiste em português no adjetivo exequível, “que pode ser executado, factível”. O Poder Executivo é então aquele que executa as leis e também projetos, políticas e demais ações de gestão de um governo.

Finalmente, judiciário radica no latim judiciarius, derivado de judex, “juiz”, por sua vez formado de jus, “direito, justiça”, e do verbo dicare, “indicar, mostrar”, relacionado com dicere, “dizer”. Ou seja, o juiz é aquele que diz ou mostra o que é justo, aquele que arbitra um conflito, buscando uma solução satisfatória a ambas as partes.

Sobre o extinto Poder Moderador, podemos dizer que moderar é diminuir, restringir, tornar menos intenso (por exemplo, moderar na bebida, moderar os gastos, etc.). Nesse sentido, o poder dado ao imperador do Brasil era o de moderar, isto é, de restringir os três demais poderes (na prática, de interferir nas decisões deles). E moderar, do latim moderari, provém de modo (latim modus), que quer dizer originalmente “medida”. Logo, moderar é manter dentro da medida, do aceitável, do razoável. É por essa razão, aliás, que a mãe costuma dizer ao filho desobediente “menino, tenha modos!”, isto é, “contenha-se!”.

O dia dos que se finaram

Amanhã é Dia de Finados, e, ao que parece, o nome dessa data em que celebramos a memória de nossos entes queridos que já se foram é um dos poucos exemplos de uso em português atual do substantivo finado, que, como todos sabem, quer dizer “falecido”. Pesquisas por essa palavra no Google demonstram que a ocorrência de finado em contextos outros que não a expressão Dia de Finados (ou simplesmente Finados) é pouco frequente. Antigamente era comum dizer-se “meu finado marido”, “minha finada avó”, mas parece que esse uso está em franca decadência: hoje é muito mais comum dizer “meu falecido marido”, “minha falecida avó”.

Finado é o particípio do igualmente raro verbo finar, derivado de fim. Mais comuns são os verbos acabar, terminar, concluir e mesmo findar, este derivado do adjetivo findo, herdado do latim finitus.

Mas a palavra latina finis, que quer dizer “fim”, produziu derivados na própria língua de Cícero e César. Por exemplo, o verbo finire, “acabar”, que existe até hoje em italiano, bem como seu cognato francês finir e o português de origem espanhola fenecer, “morrer”.

Em francês, tínhamos na Idade Média o verbo finer com o significado de “pagar, quitar uma dívida” (literalmente, “pôr fim a uma dívida”), cujo derivado finances, “pagamentos”, originou o nosso finanças. Desse verbo francês também proveio o inglês to fine, “multar” (o sentido original era “pagar uma multa”).

Ou seja, finados são aqueles que se finaram, isto é, morreram, chegaram ao fim da vida. Trata-se de uma maneira sutil de referir-se à morte. Em algumas regiões do Brasil, esse feriado de 2 de novembro também é chamado de Dia dos Mortos, denominação mais direta e menos cerimoniosa. Tenho a impressão – mas não dados empíricos sobre isso – de que os termos falecido e falecer são em geral usados como eufemismos para abrandar a carga semântica negativa das palavras morto e morrer.

Melhor ainda faz o inglês, que chama à data All Souls’ Day, “Dia de Todas as Almas”, certamente por influência da efeméride celebrada exatamente hoje, 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, ou All Saints’ Day.

Bom feriado!

A origem da palavra “feriado”

Eis que chegou mais um feriado. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado – e consequentemente da palavra – era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs‑ (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, como o dia de Nossa Senhora Aparecida, comemorado hoje, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto.

Por que flexionamos em gênero os numerais um e dois?

Boa noite, me chamo Rodrigo.

Acompanho seu blog (Diário de um Linguista), já há certo tempo.

Tenho uma dúvida que sempre quis saber a resposta, já perguntei a outro professor e ele não soube responder. Dado o seu óbvio conhecimento, acredito que o senhor poderia me ajudar.

Eu sempre quis saber a razão de alguns números variarem de acordo com o gênero e outros não. Entendo que o “um” varie pois além de número é artigo, mas por que há “dois” e “duas” mas não há “três” e “tresa”? Por que é correto falar que tenho duzentAs laranjas, mas não que tenho duzentas e quatrA laranjas?

Caro Rodrigo, a explicação de por que o português flexiona em gênero os numerais um, dois, duzentos, trezentos e demais centenas está no latim. Como você sabe, o português descende do latim, e nessa língua havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Consequentemente, o latim flexionava nesses três gêneros os numerais de um a três e mais as centenas a partir de duzentos. Tínhamos então: unus, una, unum; duo, duae, duo; tres, tres, tria; ducenti, ducentae, ducenta; trecenti, trecentae, trecenta, e assim por diante. Observe que em espanhol, francês e italiano, línguas-irmãs do português, somente o um admite flexão no feminino, os demais numerais são invariáveis. Lembro também que o numeral um não é flexionável porque também é artigo indefinido; na verdade, ocorreu o oposto: o artigo indefinido derivou do numeral, até porque em latim não havia artigos.

Mas por que os numerais acima de três não se flexionavam em latim? Para responder a essa pergunta, temos de retroceder ainda mais no tempo, até cerca de 4 mil anos a.C., quando se falava a língua-mãe do latim, o indo-europeu. Nessa língua, somente os numerais de um a três eram flexionáveis. Isso leva os linguistas históricos, como eu, a pensar que o indo-europeu descendia de uma outra língua, nomeada pelos especialistas de nostrático, que só tinha numerais de um a três, o que, aliás, é a situação verificada na maioria das línguas do mundo.

De fato, línguas ágrafas, como são os idiomas de tribos primitivas, só contam até dois ou no máximo três porque culturas simples como as tribais não têm muito o que contar. Essas línguas são chamadas de one-two-many, ou “um-dois-muitos” porque quantidades acima de dois são genericamente tratadas como “muito”.

Em resumo, o nostrático, que teria dado origem ao indo-europeu, deve ter sido falado por volta de 8 mil anos a.C. por uma população de caçadores-coletores nômades, portanto uma sociedade tribal extremamente simples.

A título de curiosidade, a origem remota do numeral latino tres é a mesma da preposição trans, que quer dizem “além” (como em transnacional, por exemplo). Ou seja, tres designava originalmente tudo o que está além de dois, algo como um, dois e o resto.

Só o português tem saudade?

Um dos mitos mais arraigados entre os falantes do português é o de que só a nossa língua tem uma palavra para denotar o sentimento de tristeza causado pela ausência de algo ou alguém. Em primeiro lugar, é bom ter em mente que, se nem mesmo dentro de uma língua é possível encontrar sinônimos perfeitos, muito menos quando passamos de um idioma a outro.

No entanto, há expressões equivalentes em várias línguas para o sentimento que chamamos de saudade. Por exemplo, o espanhol tem añoranza, o inglês tem longing e yearning, o alemão tem Sehnsucht e Heimweh… Dizem mesmo que o polonês tem um equivalente exato (embora seja arriscado falar em exatidão em matéria de línguas) para o português “saudade”: é tęsknota.

E para expressar a falta de alguém querido, temos expressões como te extraño (espanhol), I miss you (inglês), tu me manques (francês), e assim por diante. Sem falar em nostalgia, palavra presente em muitos idiomas e originária do grego, em que quer dizer “saudade do lar, desejo de regressar” (de nóstos, “volta para casa”, e álgos, “dor”), sentimento experimentado pelos navegantes que passavam anos longe de casa e da família, como Ulisses na Odisseia (esse sentido também está presente no alemão Heimweh, de Heim, “lar”, e Weh, “dor”). Evidentemente, a nostalgia é, pelo menos para os falantes de português, um tipo específico de saudade: a que sentimos do passado, de um tempo em que éramos – ou pensávamos ser – mais felizes.

Seja como for, a nossa saudade provém do latim solitatem, “solidão”, a mesma palavra que deu o espanhol soledad. O que significa que a saudade estava originalmente ligada ao sentir-se só, abandonado, distante dos entes queridos. Para muitas pessoas, por sinal, estar longe de quem se ama é o mesmo que estar sozinho, ainda que em meio a uma multidão.

Quanto à separação silábica de saudade, os dicionários atuais só admitem sau-da-de. Entretanto, dicionários mais antigos, especialmente lusitanos, admitiam sa-u-da-de, com hiato – e muitos poemas até a época parnasiana trazem grafada a palavra como saüdade, para acentuar a separação entre o a e o u. Essa escansão se deve em parte às necessidades da métrica clássica e em parte a uma aproximação sonora com saúde e saudar (que se conjuga saúdo, saúdas, saúda, etc.). Aliás, o latim solitatem passou primeiro ao português soidade e só depois se tornou saudade. A explicação para essa passagem é obscura, mas uma hipótese plausível é que, assim como temos as variantes louro e loiro, coisa e cousa, soidade admitisse a variante dialetal soudade, que, por dissimilação ou influência de saudar, resultou na nossa saudade. O fato é que, embora o português e o espanhol sejam línguas irmãs, cada uma desenvolveu sua maneira própria de denominar esse sentimento.

O teste e a testa

A etimologia é uma ciência fascinante porque, volta e meia, nos pega de surpresa, revelando relações insuspeitas entre palavras que à primeira vista não teriam qualquer parentesco. Apesar da semelhança fonética, o que poderia haver de comum entre a testa, parte frontal da nossa cabeça, e o teste, isto é, o ensaio, a prova, o exame? Pois essas duas palavras têm muito em comum.

Para entendermos isso, é preciso recuar até o latim testa e testu, respectivamente “vaso de barro cozido” e “tampa do vaso”. Esta última palavra, que também se encontra na forma testum, significa igualmente o vaso e o próprio barro de que é feito, ambos por metonímia. Temos, aliás, em português o desusado testo, com o significado de vaso de barro e de tampa de vaso.

Mas como essas palavras latinas deram testa e teste em nossa língua? É que, como pote ou vaso de barro, testa passou desde logo a ser uma gíria para “cabeça” no latim popular (assim como capitia, “capuz”, que deu cabeça em português, também). Por essa razão, “cabeça” se diz testa em italiano e tête em francês.

Ao mesmo tempo, testu deu o já citado testo em português e têt (antigamente grafado test) em francês, este com os sentidos de pote, vaso e crânio. Acontece que nos domínios da alquimia, test não era um vaso qualquer, mas uma espécie de tubo de ensaio, ou seja, recipiente onde os alquimistas faziam seus experimentos, misturando substâncias (que às vezes explodiam) na busca de remédios miraculosos ou da transubstanciação de metais sem valor em ouro.

Por nova metonímia, test passou a ser não só o tubo de ensaio, mas o próprio ensaio, a prova, o experimento… numa palavra, o teste. Foi com esse sentido que a palavra ganhou o inglês e daí se espalhou pelo mundo (o próprio francês tem hoje a palavra test como empréstimo do inglês, ao passo que têt caiu em desuso).

Em português, o que ocorreu foi que testa, apelido de cabeça, se especializou designando apenas a parte frontal do crânio, enquanto teste nos chegou por via inglesa e, tal qual na língua de origem, sofreu um alargamento semântico, denominando não só testes científicos, mas qualquer tipo de prova, inclusive escolar.

Nesta última acepção, por sinal, teste sofreu um estreitamento semântico, tornando-se a redução da expressão teste de múltipla escolha. Por isso, de certa maneira, quando algum professor diz que aplicará uma prova teste (por oposição à prova dissertativa), está inconscientemente cometendo um pleonasmo, já que teste é em sua origem sinônimo de prova.

Uma advertência: o latim testari não significa “testar” e sim “testemunhar”, sendo derivado de testis, “testemunha”, que é de outra origem e nada tem a ver com vasos ou tampas de vasos, muito menos com cabeça.