A plaga e a praia

Nesse verão dos infernos, que ainda nem começou, todo mundo sonha em estar numa praia, afinal o calor excessivo provocado pelas mudanças climáticas é uma praga, né? Mas o que praga tem a ver com praia, além da semelhança fonética? Na verdade, nada, a não ser uma proximidade etimológica fortuita. É que praga, assim como chaga, veio do latim plāga (com a longo), que quer dizer “golpe, pancada” e, por metonímia, “ferida causada por um golpe”. Já praia, bem como plaga, vem de plaga (com a breve), que significava originalmente uma extensão de terra ou mesmo qualquer superfície estendida, como uma rede de pesca (aliás, esta era uma das acepções de plaga em latim).

Uma plaga é um lugar, que pode ser desde um terreno até um país (quem já não ouviu a expressão “estas plagas” para referir-se ao nosso Brasil?). Mas a linguagem poética destinou esse termo sobretudo aos lugares aprazíveis, tanto que, na língua occitana ou provençal, falada no sul da França, o cognato plaia passou a designar especificamente a extensão de areia junto ao mar, isto é, a praia. Nossa palavra, por sinal, veio diretamente do provençal, assim como o francês plage e o espanhol playa.

Enquanto a praga destrói as plantações e a chaga é uma ferida aberta e dolorosa, a praia é uma plaga deveras agradável, especialmente em dias de calor. E tanto a palavra praga quanto chaga podem ser usadas em linguagem figurada, para denotar um infortúnio, como fiz com a primeira na frase inicial deste artigo. Por sinal, eu poderia ter dito que esse calor anormal é uma chaga, infelizmente produzida por nós mesmos, seres humanos.

Então, já que o estrago está feito e parece não haver vontade política de consertá-lo, o jeito é fazer o que diz o refrão daquela velha canção: “Vamos a la playa, oh oh oh oh oh”.

O que calma tem a ver com calor?

Nesse calorão que anda fazendo, é preciso beber muita água e manter a calma. Mas o que a calma tem a ver com o calor? Ao contrário do que possa parecer, tem muito a ver.

Tudo começa com o grego kaûma, “calor”, parente de palavras que deram em português cáustico, cautério e cauterizar, portanto termos que remetem à ideia de “fogo, queimar”. Kaûma passou ao italiano como calma, em que o u foi trocado pelo l por analogia com as palavras caldo, “quente”, e calore, “calor” — ocorreu aí a famosa pseudoetimologia, do mesmo modo como o nosso redemoindo virou rodamoinho por se acreditar que tenha algo a ver com rodar (afinal os redemoinhos são ventos que rodam).

Pois bem, o italiano calma significava originalmente o mesmo que o grego kaûma: calor. Mas, por uma metonímia do tipo “efeito pela causa”, passou a designar a pasmaceira provocada pelo calor, e daí quietude, falta de movimento, de agitação. Essa calma era especialmente a ausência de ventos no mar, a calmaria que impedia os navios de navegar ou os obrigava a utilizar remos. Daí para o sentido de tranquilidade enquanto ausência de tensão nervosa foi um pulinho. E daí também surgiram o adjetivo calmo e o verbo acalmar. Posteriormente apareceu o medicamento contra ansiedade chamado calmante.

Pois é, nestas noites quentes, abrasadoras, cáusticas, tem gente até tomando calmante para conseguir dormir.

Féria, feira, férias e feriado: o que essas palavras têm a ver?

Em novembro temos dois feriados próximos, a Proclamação da República e o Dia da Consciência Negra, sendo que, este ano, o segundo será um feriadão prolongado, e as pessoas já se preparam para viajar e curtir um pouco a vida fora das grandes cidades, em seus refúgios na praia ou no campo. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado — e consequentemente da palavra — era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”. E, por sinal, holiday é a contração de holy day, “dia santo”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

E a féria era originalmente o dinheiro arrecadado pelos comerciantes em um dia de feira. Daí que féria passou a significar o ganho diário de um profissional, a quantia ganha por ele durante uma diária de trabalho.

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs- (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com prudência nas estradas e moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto. E até a volta!

Uma correção e um brinde

Duas semanas atrás, apresentei aqui uma etimologia que depois constatei estar incorreta; por isso, hoje faço a retificação. Trata-se da expressão “não ter eira nem beira”, isto é, ser muito pobre. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que eira, do latim area, que também deu o português área, era uma espécie de roçado que os mais ricos tinham em suas casas e os pobres não. E beira era o beiral que supostamente cobria a eira. Supostamente porque é pouco crível que um pequeno beiral pudesse cobrir uma eira. O mais provável é que a palavra beira tenha entrado na expressão apenas para rimar com eira. Em resumo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente morava em péssimas condições.

A versão que apresentei no artigo anterior é bastante corrente entre os guias turísticos de cidades históricas brasileiras ao referirem-se às casas coloniais, mas infelizmente não corresponde à realidade. E o problema é que falsas etimologias às vezes enganam até os especialistas.

Mas vamos ao brinde: saber alguma coisa de cor é saber de memória, certo? Mas de onde vem a palavra cor, que só ocorre na expressão “de cor”? Em português medieval, cor, com o aberto, significava “coração”, do latim cor, cordis, donde o nosso cordial. Posteriormente, essa palavra foi suplantada pelo derivado coração, cujo sufixo ‑ção ainda não está bem explicado: alguns etimólogos o atribuem ao latim ‑tionem, sufixo que indica ação; outros veem aí um aumentativo de cor.

Mas por que saber algo de memória teria a ver com o coração se é no cérebro que armazenamos nossas memórias? É que os antigos não sabiam disso (não havia neurociência na época) e acreditavam que a sede dos pensamentos e sentimentos era o coração, afinal é ele que bate mais forte quando estamos emocionados.

Da expressão “saber de cor” saiu a mais extensa “saber de cor e salteado”, isto é, pulando partes, sem seguir a ordem em que as informações foram memorizadas.

Mais algumas palavras que se usam numa única expressão

Duas semanas atrás, publiquei uma lista de palavras da língua portuguesa que só ocorrem numa única expressão, isto é, estão fossilizadas numa fórmula pronta e jamais ocorrem fora dessa fórmula. Só que alguns leitores reclamaram da falta de certas expressões; por isso, estou elencando mais algumas. São elas “a esmo”, “às avessas”, “sem eira nem beira”, “ao deus-dará”, “de chofre”, “de enfiada” e “ao bel-prazer”.

“A esmo”, que significa “ao acaso” e é expressão equivalente à anteriormente citada “à toa”, contém o termo esmo, “cálculo aproximado, estimativa grosseira”, derivado de esmar, do latim aestimare, “estimar”. E aestimare contém o elemento aes, que quer dizer “bronze, metal precioso” e, consequentemente, “dinheiro”. Logo, estimar era primeiramente avaliar o preço de uma mercadoria.

“Às avessas” contém a palavra avessas, a qual tem a ver com avesso, do latim adversus, que também nos deu por via culta adverso. A ideia por trás dessa expressão é bem transparente: “às avessas” significa “de forma contrária ao usual ou ao que recomenda o bom senso”.

“Não ter eira nem beira”, como se sabe, é o mesmo que “não ter um tostão furado” ou “não ter onde cair morto”. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que, até o século XIX, eira e beira eram os nomes do térreo e do primeiro andar dos sobrados. Os ricos moravam em casas de dois andares; os pobres, em casas térreas. Logo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente não tinha onde morar, era morador de rua ou indigente.

“Viver ao deus-dará” é viver sem recursos, sujeito às vicissitudes da sorte, abandonado ao próprio destino. É que antigamente, diante de tantas adversidades, os desvalidos, geralmente muito religiosos, costumavam dizer num tom misto de conformismo e esperança que na hora do aperto Deus lhes proveria. Perguntados como iriam se virar, respondiam: “Deus dará”.

“De chofre” e “de enfiada” são expressões um tanto antiquadas, mas cuja menção vale a pena. Chofre, palavra onomatopaica, quer dizer “choque repentino” e também “tiro ao pombo”, prática abjeta que alguns idiotas chamam de esporte, além de “tacada de bilhar”. Portanto, “de chofre” significa “repentinamente”.

Enfiada é uma fileira de coisas, especialmente objetos atravessados por uma mesma linha, como as contas de um colar. Logo, “de enfiada” remete a uma grande quantidade de coisas entrouxadas de uma só vez, como um amontoado de informações que se dá a alguém sem que haja tempo de o cérebro processá-las. Antigamente se dizia, por exemplo, que fulano havia dito uma enfiada de disparates.

Finalmente, “fazer algo ao seu bel-prazer” contém a palavra composta bel-prazer, junção de bel, forma apocopada de belo, e prazer, cujo significado é “arbítrio, vontade própria”.

Não é curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes?

Palavras que se usam numa única expressão

Vocês já devem ter notado que o português tem várias palavras ou expressões que se usam num único contexto e por isso mesmo estão dicionarizadas junto a esse contexto, não é?

Palavras como tona, toa, léu, dentre outras, só ocorrem em expressões como “vir à tona”, “estar à toa”, “andar ao léu”… Além dessas, temos “à queima-roupa”, “por um triz”, “em riste” (referindo-se unicamente a “dedo”), “breca” (só nas expressões “com a breca”, hoje desusada, e “levado da breca”), “caramba” (só em “pra caramba” e na exclamação “Caramba!”), “de soslaio”, “às pressas”, “de esguelha”, “de supetão”, “às arrascas”, “tintim por tintim”, além dos antiquados “à socapa”, “à sorrelfa”, “sem tir-te nem guar-te”, “de truz”, “à mancheia” e “aos borbotões”.

Muitas dessas palavras eram de uso corrente no passado (por exemplo, truz significa “ruído de queda, estrondo”), mas caíram em desuso, ficando cristalizadas apenas em expressões que usamos no dia a dia, as mais das vezes sem sequer suspeitar de seu significado ou sua origem.

Tona é a superfície da água, logo “vir à tona” é emergir até a superfície. Só que (quase) ninguém diz: “Tenho medo de me afogar, por isso não mergulho, só fico boiando na tona da piscina”. Uma curiosidade: tona, do latim tunna, significava originalmente “casca de árvore, pele fina”; foi daí que surgiu a metáfora de designar a superfície da água de tona.

Do mesmo modo, toa, do inglês tow, era a corda que amarrava um navio a outro; hoje, “andar à toa” é “andar a esmo, sem destino”. Quem está à toa na vida, como na canção de Chico Buarque, está sem fazer nada, sem propósito; quem diz coisas à toa é porque não tem o que dizer.

E léu? Vinda do occitano, língua do sul da França que foi muito importante na Idade Média e legou muitos vocábulos ao português, essa palavra quer dizer “ócio”. “Estar ou andar ao léu” é não ter nada para fazer (quem me dera!).

Queima-roupa, palavra composta que só ocorre em “atirar à queima-roupa” e, metaforicamente, em “dizer ou perguntar à queima-roupa”, é autoexplicativo: quando se atira em alguém de muito perto, a pólvora da bala queima a roupa da vítima. Logo, “à queima-roupa” é usado em diversas situações em que se age agressivamente e sem rodeios.

E por falar em atirar, quando se diz que “a bala passou por um triz” ou que “Fulano escapou por um triz”, a ideia é que faltou muito pouco para que algo muito ruim acontecesse. Triz, do grego thrix, “fio de cabelo”, é um quase nada. Um fio de cabelo é a distância entre a trajetória da bala e o corpo do alvo.

Já que falamos em triz, vamos ao truz. Como disse mais acima, trata-se de uma onomatopeia para ruído de golpe ou queda. Só que “pessoa de truz” é pessoa notável, distinta, de valor. Será que pessoas assim fazem esse ruído?

Na Idade Média, riste, do espanhol ristre, era o suporte em que os cavaleiros repousavam a lança em posição horizontal. Daí o “dedo em riste”, uma analogia com a posição horizontal da lança e seu formato retilíneo e agudo. Hoje, quando não há mais cavaleiros nem justas medievais em que se usam lanças, o significado original de riste se perdeu.

Breca, “cãibra”, passou a ser uma das denominações do Diabo (como cão, tinhoso, cramulhão, etc.). Daí que a exclamação “Com a breca!” é equivalente a “Com os diabos!” e subentende a imprecação “Vá com os diabos, vá para o Inferno!”. Pela mesma razão, uma criança “levada da breca” é um pimpolho cuja alma foi levada pelo Diabo, portanto uma criança endiabrada.

Caramba, de origem sânscrita, mas que nos chegou pelo espanhol, denota admiração, mas passou a ser usado como eufemismo para um termo chulo de sonoridade parecida, o qual originalmente era apenas uma estaca ou mastro de navio, que, por sua forma ereta, se tornou metáfora para “pênis”.

Também  do espanhol, soslaio é “posição oblíqua”, donde “olhar de soslaio” é “olhar de esguelha”, outra palavra de pouco e restrito uso.

A expressão “de supetão” contém a palavra de uso único supetão, corruptela de subitâneo, derivado de súbito; por sinal, paralelamente a súbito, temos em português os adjetivos  populares súpeto e súpito.

Arrascas, da expressão “às arrascas”, vem do verbo espanhol arrascar, forma popular de rascar, “raspar” (daí falar-se de uma voz rascante). Fazer algo às arrascas é fazer à força, como que raspando.

Tintim é onomatopaico e representa o ruído de copos de vidro colidindo — é por isso que, ao brindarmos, dizemos “Tintim!”. Mas “tintim por tintim” é “nos mínimos detalhes”; nesse caso, tintim é sinônimo de detalhe, pormenor.

Bem, faltou falar daquelas expressões que hoje não se usam mais, mas com as quais nos deparamos ao ler os clássicos. “À socapa” significa “às escondidas” (por sinal, escondidas só se usa nessa expressão, assim como pressas em “às pressas”, cujo termo usual é pressa). Sua origem é a expressão sob capa, isto é, oculto sob uma capa. Já “à sorrelfa” remete a sorrelfa, “disfarce para enganar”, portanto o sentido é o mesmo de socapa.

“Sem tir-te nem guar-te” quer dizer “sem cerimônia, repentinamente, sem aviso prévio”. Trata-se de uma corruptela da antiga expressão “sem tira-te nem guarda-te”, isto é, sem que a pessoa pudesse tirar-se ou guardar-se, logo proteger-se de algum ataque.

Mancheia vem de “mão cheia, punhado”. Quem lembra destes versos de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia livros, / livros à mancheia. / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar.”? Talvez poucos lembrem, já que livros hoje em dia têm tido pouca chance de germinar palmas e, por conseguinte, fazer pensar, não é?

Mas “livros à mancheia” é o mesmo que “livros aos borbotões”. E borbotão é um forte jorro d’água, como o de uma grande cascata. A metáfora com a ideia de “grande quantidade” é óbvia, não? É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas).

Qual é o correto: pulso ou punho?

Certa vez, tive uma dor no pulso, provavelmente causada pelo uso do computador, e procurei um ortopedista, que me corrigiu dizendo que eu não tinha dor no pulso e sim no punho, pois pulso é a pulsação cardíaca, que antigamente se media apalpando o punho (alguns médicos ainda fazem isso hoje).

Respeito muito a terminologia médica, embora ainda não tenha assimilado muito bem o porquê de certas mudanças, como a de rótula para patela ou de aparelho digestivo para sistema digestório, mas isso é outra conversa. Também compreendo que os médicos não queiram confundir o pulso, no sentido de pulsação, com o punho, parte do antebraço que se liga à mão. Mas o fato é que eu não estava errado ao chamar o punho de pulso, pois, primeiramente, os dicionários efetivamente registram no verbete pulso a acepção de “parte do antebraço”. Em segundo lugar, quase toda designação tem uma origem metafórica ou metonímica. Assim, o pulso enquanto parte do corpo tem esse nome justamente porque é nele que os médicos verificam a pulsação cardíaca. Logo, tomar o pulso passou a significar tanto “tomar, pegar o punho do paciente” quanto “tomar (isto é, examinar) a pulsação cardíaca”. Na verdade, faz-se o primeiro para fazer o segundo. Se devêssemos rejeitar a denominação pulso enquanto parte do corpo por ser uma metonímia, então também deveríamos rejeitar punho, já que vem do latim pugnus, que significa “soco” e deriva do verbo pungere, “bater”. Aliás, daí vêm os verbos impugnar, repugnar e propugnar, bem como pungir, pungente e punção. Por fim, teríamos de renomear o relógio de pulso para relógio de punho. Será que pegaria?

Espera, expectativa e esperança

O verbo esperar tem vários significados em português. Pode-se esperar um ônibus, uma promoção no emprego ou um milagre. A cada um dos significados desse verbo corresponde um substantivo diferente. No caso do ônibus, temos espera; no da promoção, expectativa; no do milagre, esperança.

O verbo esperar proveio do latim sperare, derivado de spes, “esperança”, e teve como derivados espera e esperança. Já expectativa veio do latim expectare ou exspectare, formado de ex‑, “para fora”, e spectare, “assistir, olhar” (daí, os nossos espectador e espetáculo). Significava “olhar de longe, de fora”, mas podia significar também “olhar para fora”, como quando se olha pela janela à espera de alguém.

De fato, o latim fazia distinção entre sperare, “ter esperança”, e exspectare, “ter expectativa” ou mesmo “aguardar”. Essa distinção se conservou em algumas línguas irmãs do português, como o francês espérer x attendre e o italiano sperare x aspettare. As línguas germânicas também fazem tal distinção: por exemplo, o inglês to wait x to expect x to hope.

A diferença entre espera, expectativa e esperança é o grau de certeza que temos de que algo aconteça. A espera se dá por algo ou alguém que temos certeza de que virá, como o ônibus, por exemplo. A expectativa se refere a algo provável, mas não totalmente certo, como a promoção no emprego. Finalmente, a esperança recai sobre algo bastante improvável, como um milagre ou o fim da corrupção e da impunidade no Brasil.

Em muitas línguas, os verbos referentes a “esperar” estão semanticamente ligados ao ato de olhar, como em exspectare, derivado de spectare. O nosso aguardar provém de um verbo germânico *wardon, que queria dizer justamente “olhar, vigiar”. Tanto que “olhar” é regarder em francês e guardare em italiano. E, em português, guardar algo é manter sob vigilância (provavelmente para que não suma ou não roubem). Por essa mesma razão, o policial que vigia as ruas é chamado de guarda.

Por que o nome do signo de aquário está errado

Aquário, um dos signos do zodíaco, que supostamente rege as pessoas nascidas entre 21 de janeiro e 19 de fevereiro, tem a origem de seu nome no latim aquarius, que, como adjetivo, significa “relativo a água, aquático” e, como substantivo masculino, quer dizer “aguadeiro, escravo incumbido de abastecer de água as casas” e também “vendedor de água”. Por outro lado, o latim tinha o substantivo neutro aquarium, “aquário de peixes” e também “bebedouro do gado”.

O signo do zodíaco em latim era Aquarius e não Aquarium, tanto que, segundo os místicos, já estamos em plena era de aquário, uma era de paz e prosperidade, o que motivou aquela famosa canção Aquarius do musical Hair, cuja letra diz: “When the moon is in the Seventh House / And Jupiter aligns with Mars / Then peace will guide the planets / And love will steer the stars” (Quando a lua estiver na Sétima Casa / E Júpiter se alinhar com Marte / Então a paz guiará os planetas / E o amor guiará as estrelas). Parece que nada disso aconteceu ainda, e eu particularmente duvido que um dia aconteça, mas o fato que quero tratar aqui é que em português esse signo não deveria chamar-se Aquário e sim Aguadeiro.

Esse equívoco de tradução também é cometido pelo espanhol Acuario e pelo italiano Acquario, idiomas em que as palavras para “aguadeiro” são respectivamente aguador e acquaiolo. Já em francês, o signo se chama Verseau e em alemão, Wassermann, que corretamente significam “aguadeiro”. O inglês manteve o nome do signo em latim, Aquarius, fugindo, assim, do risco de cometer tal erro de tradução.

A autoajuda e a etimologia

Os gurus da autoajuda, dentre os quais até médicos, psicólogos, especialistas em gestão, etc., costumam apresentar argumentos retirados das mais diversas fontes para embasar seus ensinamentos. E aí entra ciência, pseudociência, filosofia, religião, misticismo, astrologia… Por exemplo, esses gurus adoram usar física quântica em suas argumentações: para eles, tudo pode ser explicado pelos quanta! O problema é que nenhum físico quântico de verdade endossa as afirmações desses mentores da autoajuda.

Mas um conhecimento que eles adoram invocar para sustentar suas teses é a etimologia. Só que a de araque, não a etimologia séria, científica. Ouço frequentemente na boca de palestrantes motivacionais que a palavra crise é da mesma origem de crescimento e que, portanto, toda crise por que passamos é uma oportunidade para nosso crescimento pessoal, profissional e mesmo espiritual. Belo ensinamento, sem dúvida, com a única ressalva de que a origem comum de crise e crescimento é uma fake news: crise, do grego krísis, vem de uma raiz indo-europeia que significa “separar” (um cognato é o latim cernere, que nos deu discernir), ao passo que crescimento, do latim crescere, vem de outra raiz, igualmente indo-europeia, que significa “crescer, florescer, brotar”.

Também já ouvi um palestrante de autoajuda associar a palavra coluna, referindo-se à coluna vertebral, ao latim cum luna, “com a lua”, e costela a cum stella, “com a estrela”. A partir daí, ele estabeleceu relações mirabolantes entre dores nas costas e a influência dos astros.

Outra pérola que ouvi numa palestra de autoajuda (antes que me perguntem, não, não costumo frequentar esse tipo de evento, mas já fui a alguns) foi a associação feita entre as palavras livro e livre. Como resultado, o palestrante proclamou uma verdade — que a leitura de bons livros liberta a alma —, só que com base em outra fake news etimológica. Livro vem do latim lĭbĕr, lĭbrī, que significa “casca de árvore” e, por metonímia, “livro”, já que esse material era usado para escrever antes da descoberta do papiro. Já livre vem de lībĕr, lībĕră, lībĕrŭm, adjetivo latino que, pela própria grafia e flexão, revela ser de outra origem.

O fato é que, em matéria de língua, todo mundo se acha doutor, que dirá esses gurus que cobram fortunas por suas palestras! Logo, consultar um dicionário etimológico ao preparar suas preleções não faz parte da rotina desses profissionais. Aliás, desconfio de que muitos até sabem que suas informações linguísticas estão erradas, mas as veiculam mesmo assim porque causam impacto positivo — e é isso que eles visam em primeiro lugar.