Neste ano em que o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa completa 10 anos de implantação, fui convidado pelo amigo Cássio Lucas a contribuir com um texto falando sobre o assunto para a página que ele mantém no Facebook, de nome NOLP – Nova Ortografia da Língua Portuguesa (disponível em www.facebook.com/projetonolp). Por razões técnicas, o texto não pôde ser publicado lá, mas vai publicado aqui.
Este ano, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa completa dez anos de vigência. Elaborado de modo tumultuado, com muitas idas e vindas e interferências políticas, marcado por várias concessões de todas as partes envolvidas, chegou-se finalmente a um acordo sobre o Acordo em 1990. No entanto, este somente entrou em vigor em 2009, com a adesão de Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e, posteriormente, Portugal. E desde então não se pouparam críticas à nova ortografia. Eu mesmo, que à época assinava uma coluna na extinta revista Língua Portuguesa, apresentei as minhas considerações e sugestões. Mas o fato é que esse Acordo, pelo próprio clima litigioso com que foi elaborado, acabou cheio de defeitos e criou novos problemas no lugar daqueles que pretendia solucionar.
De fato, a intenção inicial da realização de um concerto entre as nações de língua portuguesa era uma suposta unificação da grafia, pois, dizia-se, só o português dentre as grandes línguas europeias tinha duas ortografias, o que, para início de conversa, não é verdade: o inglês até hoje tem uma grafia britânica e outra americana, e nenhuma das duas tem caráter oficial (a tradição anglo-saxônica de pautar questões sociais pelo costume, sem a necessidade da adoção de leis, jamais impediu a unidade ortográfica da língua inglesa, exceto por uma ou outra palavra).
Mas a nova grafia proposta pelo Acordo de 1990 não só não eliminou as diferenças d’aquém e d’além-mar (fato e facto, gênio e génio permanecem) como ainda alterou pontos em que não havia discordância entre portugueses e brasileiros, como no caso do hífen, cuja regra de uso anterior não era boa e cuja atual consegue ser ainda pior.
O novo sistema ortográfico tem pontos positivos. Por exemplo, em Portugal desapareceram o c e o p mudos, como em acção, acto, adopção, baptismo, óptimo e Egipto (mas manteve-se em facto, por ser pronunciado), tornando a grafia dessas palavras igual à brasileira. Só que, por outro lado, recepção passou a grafar-se receção em Portugal – ou seja, iguala-se de um lado, desiguala-se do outro.
Entretanto, há vários pontos negativos, dos quais o principal é, sem dúvida, a regra de uso do hífen, que de um lado transformou anti-semita em antissemita, mas de outro converteu microondas em micro-ondas. Isso sem falar em incoerências como para-brisa em face de paraquedas, guarda-chuva em face de mandachuva, guarda-roupa de guardanapo, tira-manchas de Tiradentes, póstero-palatal de musculoarterial, e por aí vai.
Antes era possível distinguir uma palavra composta (Guardei um pé-de-meia para comprar um carro) de um sintagma nominal (Um pé de meia está bom, mas o outro está furado). Atualmente, temos palavras compostas sem hífen (pé de moleque) e sintagmas nominais com hífen (conta-corrente). Para os propositores da nova ortografia, os critérios para manutenção ou queda do hífen são a tradição e a percepção ou não dos falantes de que há composição. É por isso que temos guarda-chuva mas mandachuva, água-de-colônia mas água de cheiro, bem-me-quer mas malmequer, em cima mas embaixo. Ora, tradição não é critério científico; aliás, como determinar objetivamente quando uma tradição se consolida? Quem disse que mandachuva é mais tradicional do que guarda-chuva? Ou que em para-raios há a consciência da composição, mas em paraquedas não? Foram feitos levantamentos estatísticos exaustivos em amostras representativas de falantes, segundo metodologia amparada na literatura científica? E o que dizer de subumano em face de super-herói? Por que humano perde o h após o prefixo sub‑, mas herói não o perde após super‑? E por que água de cheiro mas ervilha-de-cheiro? E por que bico de papagaio quando se trata de doença na coluna e bico-de-papagaio quando nome de planta?
A meu ver, devido a uma série de características fonético-fonológicas peculiares, além da acentuada variação de pronúncia entre os seus países falantes (que não é meramente fonética e sim fonológica), o português é uma língua que, a exemplo de outros idiomas europeus, como francês, inglês e alemão, não deveria buscar uma grafia cem por cento fonética. Assim, por exemplo, não vejo necessidade de distinguir graficamente entre vogais abertas e fechadas onde estas não se opõem fonologicamente, como diante de consoantes nasais. Isso quer dizer que, independentemente de pronunciarmos gênio e os portugueses, génio, a grafia da palavra poderia ser a mesma (digamos, génio) em ambos os países. De modo mais geral, poderíamos ter estabelecido que toda vogal tônica que exija acento receberá o acento agudo, independentemente de sua pronúncia. Somente se fará a distinção entre acento agudo e circunflexo nas vogais e e o não seguidas de consoante nasal. Com isso, unificaríamos parâmetro (Brasil) e parámetro (Portugal), gênio e génio, anônimo e anónimo, mas manteríamos intocados os acentos de até, você, édito, êxito, avó, avô, ótimo, sôfrego, e assim por diante. Consequência dessa regra é que desapareceria a distinção lusitana entre cantamos (presente) e cantámos (pretérito), independentemente de ela poder manter-se na pronúncia.
O resultado prático é que o Acordo de 1990 não conseguiu a unificação que se propôs fazer e ainda introduziu mudanças na grafia que não eram necessárias nem oportunas e conturbaram ainda mais um sistema já bastante confuso e frágil em seus fundamentos.
Mas penso que o principal problema que afeta nosso idioma não é nem a divergência ortográfica entre Brasil e Portugal, mas sim a divergência gramatical. Das grandes línguas de cultura da Europa ocidental, o português é a única em que a sintaxe é diferente em cada país. Algo que um português diz como “João disse-me que está a encontrar dificuldades para o fazer” um brasileiro dirá como “João me disse que está encontrando dificuldades para fazê-lo”. Em espanhol, francês, inglês, italiano ou alemão, essa frase teria uma única formulação em qualquer variedade do idioma. Essa dualidade gramatical obriga por vezes fabricantes de produtos a redigir manuais de instruções nas duas variedades de português, dificulta o aprendizado da língua por estrangeiros e, ainda, obstrui bastante sua difusão internacional, fato agravado pela concorrência do espanhol, língua muito próxima do português, mas muito mais difundida.
O fato é que o Acordo Ortográfico foi alinhavado a partir de mútuas concessões, em meio a muitas intransigências e imposições, de que resultou um “frankenstein”, nas palavras de Antônio Houaiss, um de seus primeiros idealizadores, segundo me confidenciara, cansado e desiludido, numa de nossas raras conversas.
Sem pretender invalidar o que diz, importa dizer que, em Portugal, se escreve também “parâmetro”, mesmo ao abrigo do AO 1990.
Obrigado pela informação. De todo modo, baseei-me em alguns dicionários de português lusitano que possuo, publicados anteriormente ao Acordo de 1990.
“Parâmetro” também se escreve assim em Portugal, “parámetro” não existe.
Obrigado pela informação. Como expliquei na resposta ao comentário de Carlos Rocha, baseei-me em dicionários lusitanos que possuo.
Provavelmente gralha? Melhor consultar outro dicionário e corrigir a sua publicação.
Uma coisa que me incomoda até hoje foi a abolição do trema, pois isso ajudava não só os estrangeiros como também os brasileiros que se importam com a pronúncia correta das palavras. Era útil aos professores ao ensinar a distinção da semivogal “u” antes de “e, i”, pronunciada e recebedora do trema, do “u” integrante dos dígrafos “gu” e “qu”, nunca pronunciado e não sinalizado com o trema. Leva um tempo para que crianças na fase de alfabetização ou mesmo durante o ensino fundamental entendam isso. Mesmo adultos cometem deslizes, e costumo ouvir “qÜestão”, “distingÜir”, “extingÜir”; por outro lado, o “u” de “quinquênio” por vezes não é pronunciado.
Acabaram com uma coisa que só ajudava. O escritor Luiz Rufatto há muitos anos escreveu um belo e precioso texto a respeito do trema. Não sei se ele já se conformou com o fim desse sinalzinho.
Corrigindo: Luiz Ruffato.
De fato, o trema faz falta, especialmente em palavras pouco conhecidas, como “quididade”, por exemplo.
Não conhecia “quididade”. Foi bom porque assim pude consultar o dicionário e aprender.
Muito significativa a sua referência a Antônio Houaiss. É sintomático saber que até ele acabou insatisfeito com o monstrengo que concorreu para produzir.