O estilo “Carluxo” de Bolsonaro

Leio num site de notícias que no debate de hoje à noite na Rede Globo Bolsonaro deverá adotar o “estilo Carluxo”, isto é, aquela atitude mais radical, raivosa e aguerrida que, por sinal, notabilizou o presidente desde sempre e que contrasta com a imagem “Bolsonarinho paz e amor” que às vezes seus marqueteiros tentam vender ao eleitorado.

Esse tipo de postura política ganhou o nome de Carluxo por referência ao filho do presidente, Carlos Bolsonaro, principal idealizador e incentivador dessa postura, e cujo apelido – não sei se usado por ele próprio ou se a ele impingido pela imprensa – é um diminutivo carinhoso de Carlos. O que chama aqui minha atenção é a grafia com x desse apelido, a meu ver inadequada. Se a alcunha é utilizada pelo próprio Carlos e por seus íntimos, resta saber se o próprio filho do presidente a grafa com x. Se o faz, é um direito seu. Mas, se não, ou seja, se o apelido lhe foi dado pela mídia, então temos aí um deslize ortográfico. É que ‑ucho é um sufixo diminutivo, por vezes afetuoso, que ocorre em palavras como gorducho, pequerrucho, capucho, fofucho e outras e cuja grafia correta é com ch e não com x (falei semana passada sobre a questão da grafia com x ou ch de imbroxável; este é mais um caso em que a língua portuguesa nos coloca em situação de insegurança).

Mas por que o sufixo ‑ucho é com ch e não com x? Mais uma vez, temos de recorrer à etimologia para explicar. Acontece que esse sufixo é um empréstimo do sufixo diminutivo italiano ‑uccio, por sinal muito frequente em nomes de pizzarias como Micheluccio, Freduccio, etc. (Atenção: isto não é merchandising de pizzarias, ok?) Em italiano, o cc seguido de i soa como /tch/, portanto a pronúncia desse sufixo é /utcho/. Quando aportou em terras portuguesas, lá pelo século XVI, formando os primeiros derivados, o ch português também tinha som de /tch/, logo a transcrição de ‑uccio por ‑ucho foi natural. Somente tempos depois foi que o ch português perdeu o som /tch/ e assumiu a pronúncia atual, que se confunde com a do x. Mas a ortografia manteve o ch mesmo assim, pois nosso sistema é parcialmente fonético (melhor seria dizer fonológico) e parcialmente etimológico. É por isso, por exemplo, que eliminamos o h dos dígrafos th, rh, ph, mas mantivemos o h de hora, hoje, etc.

Conclusão: o colérico filho de Bolsonaro deveria ser Carlucho e não Carluxo. A menos que o próprio, como disse acima, prefira a grafia com x. Aí é uma escolha dele, e ninguém tem nada com isso.

Bom debate hoje à noite!

Um esclarecimento sobre o “imbrochável”

Há alguns dias, publiquei um artigo sobre a correta grafia do neologismo bolsonarista imbroxável. Desde então, tenho recebido vários comentários, alguns dos quais mal-educados e agressivos, que nem me dou ao trabalho de responder, argumentando que certos dicionários abonam a grafia brocha (com ch) com significado de “pincel”. Nesse caso, segundo esses dicionários, broxa (com x) é somente “pincel”, mas brocha (com ch) pode ser “prego” ou “pincel”.

É preciso fazer algumas considerações sobre isso. Em primeiro lugar, até a reforma ortográfica de 2009, os dicionários registravam exclusivamente broxa, “pincel”, e brocha, “prego”. Num primeiro momento, imaginei que talvez essa tendência de considerar que brocha também pode ser “pincel” fosse uma inovação introduzida pelo Acordo Ortográfico de 1990, implantado no Brasil em 2009. Por isso, fui consultar o VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, no site https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario. Pesquisando por brocha, encontro: brocha s.f. “prego”, etc.; cf. broxa “pincel”. Já ao pesquisar por broxa, encontro: broxa adj. 2g. s.f. “pincel” s.m.; cf. brocha “prego”, etc.

Como podemos ver, o VOLP distingue claramente os significados de brocha, “prego” e de broxa, “pincel”. Mais ainda, indica que broxa é substantivo feminino (referente a “pincel”), bem como adjetivo de dois gêneros e substantivo masculino (referente ao indivíduo sexualmente impotente). No verbete brocha, temos cf. (isto é, “confira”) broxa “pincel”. E no verbete broxa, temos cf. brocha “prego”. Fica claro que as duas grafias correspondem a dois significados distintos. E que em cada verbete o VOLP remete ao outro verbete, de grafia e significado diferentes.

Portanto, quando edições pós-reforma ortográfica de dicionários estabelecem que brocha (com ch) significa tanto “prego” quanto “pincel” e põem ambas as acepções no mesmo verbete, ao mesmo tempo em que desaconselham a grafia broxa (com x), temos aí vários problemas.

O primeiro é que não cabe ao dicionário proscrever uma grafia: ou ela é válida porque reconhecida pelo VOLP ou é inexistente. Ora, a grafia broxa consta no Vocabulário Ortográfico, logo é válida e sua interdição pelos dicionários é indevida.

Em segundo lugar, temos o problema etimológico. Broxa vem do francês brosse, que quer dizer “pincel”. Já brocha vem do francês broche, que significa “broca, tacha, prego, fuso de tear” e também “broche” (tendo dado, por sinal, a palavra broche em português). Logo, a diferença de grafia se justifica, afinal o ch francês passa ao português também com ch (veja, por exemplo, chauffeur > chofer), ao passo que ss corresponde em português ora a ss mesmo ora a x (francês passer x português passar, francês caisse, coussin x português caixa, coxim).

Mesmo que a reforma ortográfica tivesse instituído a substituição da grafia broxa por brocha – o que, a meu juízo, não fez –, os vocábulos brocha, “pincel”, e brocha, “prego”, teriam de constituir dois verbetes separados. Dito de outro modo, não seriam duas acepções da mesma palavra e sim duas palavras homônimas. Portanto, os dicionários “moderninhos” erram também aí.

Por fim, se, por absurdo, admitíssemos que os dois significados do termo pertencem à mesma palavra, teríamos o único caso na língua portuguesa de palavra única com duas grafias possíveis e autorizadas. O que temos em nosso idioma e também em muitos outros são palavras homógrafas (mesma grafia e pronúncias diferentes), como leste (do verbo ler) e leste (ponto cardeal), palavras homófonas (mesma pronúncia e grafias diferentes), como concerto e conserto, palavras homônimas (mesma grafia e pronúncia, mas significados e etimologias distintas) como manga (fruta, do malaio) e manga (de camisa, do latim). Temos ainda os chamados alomorfes, palavras de grafia e pronúncia parcialmente diferente, mas com significado idêntico. É o caso de loiro e louro, catorze e quatorze. Aproveito aqui para alertar que alguns dicionários chamam a esses alomorfes de formas divergentes, o que é errado: formas divergentes, alótropos ou dobretes são palavras totalmente distintas, com mesma origem mas étimos (isto é, trajetórias de chegada à língua) diferentes. São formas divergentes aurícula e orelha; desígnio e desenho; prumo e chumbo; defensa, defesa e devesa; plano, porão, piano e chão, dentre outros.

Em resumo e como resposta aos leitores que me advertiram de que eu estaria errado – alguns, como disse, de modo rude e contrário aos princípios da civilidade –, reafirmo que broxa é pincel, brocha é prego e que imbroxável no sentido dado por nosso histriônico presidente é com x e apenas com x. E tenho dito!

Motociata ou motosseata?

Neste Sete de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez promoveu uma motociata – e mais uma vez sem usar capacete –, o que, por sinal, se tornou marca registrada de seu governo. Tanto que essa prática até plasmou a própria palavra motociata, uma passeata de motocicleta. Mas quem consolidou a grafia do termo foi a imprensa escrita. E de maneira errada.

Em primeiro lugar, voltemos à palavra passeata, a primeira da família que surgiu em nosso idioma, como empréstimo do italiano passeggiata, “passeio”, derivada do verbo passeggiare, que, como o nosso passear, remete ao primitivo vocábulo passo. Ou seja, trata-se de um percurso cumprido a pé, dando passos. O que o português fez foi aclimatar o termo italiano ao nosso idioma, substituindo o radical original do verbo passeggiare pelo do verbo vernáculo passear. Em ambas as línguas, a palavra passou em certo momento a designar um deslocamento coletivo, especialmente para protestar ou comemorar.

Quando essas passeatas de celebração ou protesto passaram a ser feitas de carro, cunhou-se o termo carreata utilizando o mesmo sufixo ‑ata de passeata. Agora que Bolsonaro introduziu o hábito de fazer passeatas de motocicleta, o lógico é que se fizesse um mix (chamado de palavra-valise) de moto e passeata, que resultaria na grafia motosseata e não motociata, como trazem a mídia impressa e a eletrônica.

Será que quem cunhou essa grafia motociata estava pensando em negociata, por exemplo? Não seria estranho em se tratando do governo Bolsonaro e seus aliados do Centrão ou da quantidade de imóveis que sua família comprou com dinheiro vivo. Mas não deve ter sido esse o caso. Acho mais provável creditar essa grafia esquisita à ignorância do jornalista que deu à luz o termo, seguida da ignorância dos jornalistas que o replicaram. O problema é que, uma vez consolidada uma grafia errada, leva tempo para consertá-la. Haja vista o tempo que demorou para que as pessoas entendessem que grafar mussarela com ss era errado e começassem a escrever muçarela corretamente com ç.

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Em tempo: como brasileiro, me sinto envergonhado pelo papel ridículo que fizemos mais uma vez perante o mundo na comemoração dos 200 anos da independência. “Imbrochável”, comparação machista entre primeiras-damas, uso da cerimônia para fazer campanha política em vez de saudar a importância da data, menosprezo ao convidado de honra da solenidade, o presidente de Portugal, posto no palanque em posição secundária enquanto a lateral do presidente Bolsonaro era ocupada por um Luciano Hang fantasiado de Zé Carioca… Enfim, nenhum respeito à liturgia e às responsabilidades do cargo de Presidente da República, ainda mais em data tão importante e que só se repetirá daqui a 100 anos. Que lástima!

Além do erro ortográfico

Estreou semana passada na Rede Globo a nova novela das 18 horas, Além da Ilusão, que conta a história do romance proibido entre um jovem ilusionista e uma moça rica. Mais uma vez, a Globo se esmera na reconstituição de época (anos 1930 e 1940), nos cenários, figurinos, locações, etc. – e mais uma vez escorrega na linguagem. Num dos capítulos, o mágico é preso injustamente e, ao ser fichado, aparece na tradicional foto de frente e de lado segurando uma plaquinha com seu nome e data de nascimento (hoje em dia, essas placas também trazem o artigo do Código Penal em que o suspeito está incurso). Pois não é que nessa placa aparece o nome Davi e a data de nascimento cujo ano é 1934? E o que há de errado nisso? É que em 1934, portanto antes da reforma ortográfica de 1943, o nome Davi se grafava David, com d final mudo. Ou seja, a Globo usou a ortografia atual numa novela de época, o que revela que, mais uma vez (casos semelhantes comentei no artigo A língua portuguesa e as novelas de época), a preocupação com a recriação realista de um momento histórico passado não se estendeu à língua. Falta à Vênus Platinada uma boa consultoria linguística – aproveito para avisar que estou disponível para prestar esse serviço – se for bem pago, é claro!

Ainda hoje há muitas pessoas com o nome David, da mesma forma como meu nome do meio é Luiz com z. Trata-se de uma grafia tradicional, assim como Mello, Mattos, etc. No entanto, pessoas de baixa cultura, que desconhecem ser essa grafia legitimamente portuguesa, costumam pronunciar o nome como Dêivid, achando que se trata de nome inglês. (Aliás, os de mais baixa extração social acham até chique essa pronúncia.) O desconhecimento dos mais jovens e dos menos letrados quanto à grafia antiga dos nomes portugueses faz com que se pronuncie consoantes que deveriam ser mudas, como o c de Victor e o p de Baptista. Só falta agora pronunciarem Jacob como Jacobe – se é que já não há alguém que o faça!

Feliz Ano Novo ou feliz Ano-Novo?

Estranharam o título desta postagem? Pois saibam que ambas as grafias existem – e significam coisas diferentes. Quem deseja feliz Ano-Novo (com hífen) está fazendo votos de que a noite do Réveillon e o subsequente primeiro dia do ano sejam felizes. Já quem deseja feliz Ano Novo (ou mesmo em minúsculas: ano novo) deseja que todo o ano que se inicia seja feliz, aquilo a que todos nós ansiamos, mesmo sabendo de antemão que é muito difícil de acontecer, pois momentos felizes e momentos infelizes ocorrem todos os anos a todas as pessoas.

Mas o que importa aqui é que o Ano-Novo dura somente um dia enquanto o Ano Novo dura 365 dias. Essa distinção também é feita em outras línguas. Por exemplo, o inglês distingue entre New Year’s Eve (o nosso Réveillon) e New Year (o novo ano). Por isso, a saudação Happy New Year sugere 365 dias de felicidade. Em italiano, pode-se desejar Buon Capodanno (bom começo de ano) ou Buon Anno (o ano inteiro). Os franceses dizem sempre Bonne Année (bom ano) almejando 12 meses felizes. O mesmo se aplica ao alemão Fröhliches Neues Jahr.

Portanto, quando enviamos saudações de Feliz Ano Novo a nossos amigos e parentes, o que queremos é que eles tenham um ano inteiro de paz, harmonia, realizações, sucesso, prosperidade e um mínimo de dissabores – se possível, nenhum.

Então quando se usa Ano-Novo? Usa-se em contextos como “Vou passar o Ano-Novo na praia”, o que significa que estarei à beira-mar nos dias 31 de dezembro e 1º de janeiro, não o ano todo. Por sinal, tenho um amigo que sempre me deseja um feliz Ano-Novo e um feliz Ano Novo. Trata-se de um gracejo que, afinal de contas, faz sentido, mas que, provavelmente, só é plenamente compreendido por quem conhece as minúcias da nossa ortografia.

Bem, o Ano-Novo já passou, e eu espero que tenha sido feliz para os meus leitores. Então agora quero desejar-lhes um feliz e maravilhoso Ano Novo, com 12 meses, 52 semanas e 365 dias de alegrias.

A ioga ou o yôga?

Hoje é o Dia Internacional da Ioga – ou do Yôga, como querem os mais pedantes. Essa palavra veio do sânscrito, língua sagrada do hinduísmo e significa “união, junção”. O que ocorre é que ela foi há muito aportuguesada, assim como futebol, abajur, contêiner, uísque, etc., de modo que sua grafia é com i e sua pronúncia com o aberto. Além disso, em nossa língua ela é do gênero feminino.

No entanto, de algum tempo para cá os professores de ioga passaram a referir-se a essa técnica milenar como “o yoga”, com y, o fechado e no masculino. Alguns até chegam a corrigir a pronúncia dos alunos que dizem corretamente “a ióga”. Mas afinal, qual é o certo, o que dizem os dicionários ou o que dizem os iogues? É óbvio que corretos estão o dicionário e a gramática; essa onda de pronunciar “o yôga” é pura mania de prestigiar o que é estrangeiro em detrimento do vernáculo. Chamar a ioga de “o yôga” é como chamar o futebol de football. Você faria isso? Se não, não tenha medo de corrigir o seu professor de ioga, pois ele pode até entender muito dessa arte indiana, mas quem entende de língua portuguesa são os linguistas, os gramáticos, os dicionaristas e os professores de português.

Esfia de muçarela?

Muitas palavras estrangeiras acabam cedo ou tarde sendo aportuguesadas. Num primeiro momento, mantém-se a grafia importada e tenta-se tanto quanto possível preservar também a pronúncia original. O que, por sinal, é bem difícil. Pronunciar, ainda que com alguma adaptação, sons estranhos aos nossos hábitos articulatórios gera dois tipos de embaraço: em primeiro lugar, é preciso parar no meio da frase para mudar de “registro” fonético (isto é, a programação motora dos músculos fonadores, há muitos anos consolidada) no momento de articular a palavra alienígena; em segundo lugar, tal pronúncia frequentemente soa afetada e causa estranheza.

Depois que a pronúncia da palavra já se aclimatou em nosso sistema fonológico, chega a hora de adaptar a grafia a essa pronúncia. Foi assim que football (pronunciado “fútbol”) passou, primeiro foneticamente, depois graficamente, a futebol.

Mas há palavras cuja versão nacionalizada simplesmente não pega, ou porque a forma estrangeira está demasiado consagrada, ou talvez porque o aportuguesamento lhe dê um aspecto “vulgar”. É o caso de garçom e acordeom, que, malgrado o m final em lugar do n original, mantêm incólume a terminação francesa. As versões portuguesas garção e acordeão, embora registradas nos dicionários e propugnadas por gramáticos, quase não se ouvem nas ruas.

Às vezes, a grafia incorreta de uma palavra se torna tão disseminada que a certa é que parece errada. Quem sabe por isso a maioria dos restaurantes self-service venda comida a kilo e não a quilo. Por essa mesma razão, poucos sabem que a grafia correta de mussarela é muçarela – assim mesmo, com cê-cedilha e tudo! Há também mozarela, mais aderente ao étimo italiano mozzarella, mas quem grafa ou pronuncia assim?

Temos ainda a esfia, forma preferida pelos gramáticos a esfirra e sobretudo a esfiha, que nem é compatível com a nossa ortografia. Não obstante, é esta última forma a única que se lê nos anúncios das pastelarias e restaurantes de comida árabe. Esfia tem, aliás, o inconveniente de omitir um fonema (rr ou h aspirado) que todos pronunciam. Portanto, soa profundamente artificial.

Como o uso é o senhor absoluto da língua, é de se questionar se a grafia não deveria pautar-se justamente por ele, especialmente em casos consagrados como esses, em que o certo parece errado. É o que fazem outros idiomas, cujas regras ortográficas são bem menos rígidas que as nossas. Afinal, que comerciante teria coragem de anunciar esfias de muçarela? Grafado assim, esse prato fica até sem gosto!

Como se grafa “superbém”?

Olá, queria saber qual a forma correta: “superbém”, “super-bem” ou “super bem”? Um abraço e obrigada.
Sônia Regina Santiago

A palavra em questão é uma daquelas cuja grafia gera dúvidas porque fazem parte da oralidade informal e raramente aparecem escritas. Nem mesmo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) registra esse vocábulo, e os dicionários em geral hesitam em incluir em seu acervo palavras desse tipo, tidas como gírias efêmeras.

Mas, segundo as regras da nova ortografia, “super-” é um prefixo que se liga sem hífen ao radical, exceto se este começa por “h”, portanto teríamos “superbém”, com acento agudo no último “e”, já que o resultado é uma palavra oxítona terminada em “em”, como “também”, “porém”, etc. As grafias “super-bem” e “superbem” são incorretas, a primeira por usar hífen num caso não previsto na regra ortográfica, a segunda por soar paroxítona (com o acento tônico caindo na sílaba “per”).

No entanto, já vi em alguns lugares (em geral postagens em redes sociais e chats) a grafia “super bem”, o que indica que muitos não sentem “super” como prefixo, mas como palavra autônoma, no caso, um advérbio de intensidade equivalente a “muito”. Já ouvi mesmo usarem “super” como forma desacompanhada: “Fulano é um sujeito super!”. Se de fato “super” está ganhando vida própria, poderíamos pensar em “super bem” como duas palavras. A questão agora é a grafia correta de “super”: como paroxítona terminada em “r”, deveria ter acento agudo na primeira sílaba (“súper”); se, por outro lado, admitirmos que, sendo palavra latina, não deve levar acento, então deveríamos grafá-la em itálico, como se faz com toda palavra estrangeira. Conclusão: as grafias “súper bem” e “super bem” também poderiam ser admitidas.

Eu particularmente prefiro “superbém”, mas o fato é que, enquanto os dicionários não registrarem o termo, sua grafia ficará ao sabor das preferências individuais, transitando em textos que, por sua própria informalidade, abrem mão do rigor ortográfico.

Qual é o correto: “pra” ou “prá”?

Caro Aldo, boa tarde.
Vejo em muitos lugares a preposição “pra” escrita como “prá”. Afinal qual é o correto, “pra” ou “prá”? Obrigado.
Kléber Araújo dos Santos

Caro Kléber, a rigor, nenhuma das duas grafias está correta, pelo menos em termos do português padrão. Acontece que “pra” é forma coloquial da preposição “para”, logo só deveria ser usada em textos escritos que procurem reproduzir a fala informal, como é o caso da transcrição de diálogos em obras de ficção.

No entanto, muitas propagandas (talvez a maioria delas) utilizam correntemente “pra” em lugar de “para” com o objetivo de assumir um tom mais intimista, menos sisudo, e assim criar um vínculo maior com o público-alvo. Coisas do marketing.

Mas a questão é: já que essa forma popular da preposição aparece cada vez mais em textos escritos, seja via literatura ou via publicidade, deve haver uma grafia recomendada para ela, certo? Nesse ponto, a maioria dos dicionários se cala, já que formas populares como “tó”, “ói”, “tô”, “tá”, “peraí”, etc., não costumam ser dicionarizadas. Em contrapartida, o VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) elenca “pra” (sem acento). Só que temos um complicador: a preposição “para” é frequentemente seguida de artigos (“para o”, “para a”, “para os”, “para as”), no que é seguida por sua forma alternativa “pra” (“pra o”, “pra a”, “pra os”, “pra as”). Essa pronúncia, comum no Nordeste, evoluiu no Centro-Sul do país para as formas contraídas “pro”, “pros”, etc. Se “pra” + “o” = “pro”, então “pra” + “a” deveria ser algo diferente do próprio “pra”, ou seja, deveria valer nesse caso a mesma regra da crase (“a” + “o” = “ao”, “a” + “a” = “à”).

Segundo esse raciocínio, a contração de “pra” com “a” ou “as” deveria ser grafada “prà”, “pràs”. Como essa grafia não existe, é possível que alguém (provavelmente em Portugal, onde a distinção de timbre entre “a” e “à” é bastante forte) tenha adotado a grafia “prá” a fim de indicar a contração de “pra” com “a”.

Só que, como estamos no âmbito da informalidade, a ausência de uma norma ortográfica que reja expressões coloquiais faz com que as pessoas grafem essas palavras a seu bel-prazer, sem nenhum critério morfológico ou etimológico. Conclusão: “pra” e “prá” andam juntos e misturados. Pelo sim e pelo não, prefira a grafia “pra”, que ao menos está registrada no VOLP. Além disso, se você não é escritor nem publicitário, certamente ninguém o censurará por escrever errado, num bilhete ou e-mail informal, uma palavra que não está nos dicionários.

Desinfectar é o mesmo que desinfetar?

Quando pensamos que já sabemos tudo sobre a língua, ela nos prega peças, criando nuances de expressão ou de sentido surpreendentes. É o que tem acontecido nestas últimas semanas, diante da pandemia do novo coronavírus. A imprensa tem repetidamente falado sobre as medidas de descontaminação de ambientes como hospitais, aeroportos, trens, metrô, ônibus e demais locais de circulação pública, afirmando que estão sendo devidamente desinfectados. É perfeitamente compreensível que, se o vírus infecta lugares, objetos e pessoas, o inverso desse processo se designa apondo o prefixo des- ao verbo infectar, o que produz desinfectar. O problema é que já dispomos do verbo desinfetar, antônimo de infectar (que também admite a forma infetar).

Resulta daí que desinfetar e desinfectar passaram a ser coisas diferentes: desinfetamos uma torneira, pia, ralo ou objeto (tesoura, alicate, talher) com água e sabão ou com um desinfetante desses que se compram no supermercado; já o ambiente hospitalar contaminado por vírus e bactérias de grande letalidade e alto poder de contágio é desinfectado com procedimentos que envolvem o uso de roupas, equipamentos e produtos especiais, obedecendo a normas rígidas e protocolos internacionais.

Ou seja: se o emprego de desinfectar for chancelado pelas gramáticas e abonado pelos dicionários, o verbo infectar terá dois antônimos, e estes não serão sinônimos entre si (algo como a palavra humano, que, dependendo da acepção, admite os antônimos inumano e desumano).

Só que a coisa não é tão simples assim. Tradicionalmente, o encontro consonantal ct recebe dois tratamentos em português quando se trata do empréstimo de palavras latinas por via culta: ou mantém-se intacto, como em detectar e octógono, ou simplifica-se para t, como em contato, ator e fato (do latim contactus, actor e factus). Em português brasileiro, esse grupo consonântico se grafa como se pronuncia. Por isso, dizemos e escrevemos infectar mas desinfetar. Em português lusitano, a letra c se mantinha, até o Acordo Ortográfico de 2009, mesmo quando era muda; daí que em Portugal se grafava contacto e actor e ainda se grafa facto, uma vez que neste último caso o c nunca deixou de ser pronunciado.

Em face dessa divergência ortográfica que o Acordo visou minimizar, nós brasileiros grafamos infectar mas desinfetar, ao passo que os portugueses grafavam infectar e desinfectar e hoje grafam infetar e desinfetar. Portanto, o neologismo brasileiro desinfectar não faz nenhum sentido em Portugal, isto é, provavelmente é só a imprensa brasileira que está fazendo distinção entre as ações de desinfetar e desinfectar. Somente o tempo dirá se essa nova forma vingará ou não. Afinal, para a maioria dos brasileiros e a totalidade dos portugueses, pouco importa se estamos eliminando vírus letais ou meros germes de banheiro: o verbo desinfetar já dá conta de ambos os sentidos.