A linguagem, a comunicação e a cultura

É lugar-comum que o que nos torna humanos – no sentido de seres cuja existência transcendeu os limites do estritamente biológico – é a aquisição da linguagem. De fato, a conquista da aptidão simbólica e, mais ainda, de uma aptidão simbólica articulada, foi o principal salto evolutivo de nossa espécie, mais até do que o andar bípede ou a capacidade preênsil de nossas mãos, que nos permitiu a confecção de artefatos. De origem relativamente tardia (entre 200 mil e 150 mil anos atrás), a linguagem verbal articulada propiciou, sobretudo nos últimos 10 mil anos, um avanço cultural mais rápido do que o verificado nos vários milhões de anos anteriores.

Mais ainda, o advento da escrita permitiu a preservação e o acúmulo de conhecimentos para além da memória individual e do curto tempo de vida do indivíduo em relação à espécie. A escrita permitiu a comunicação entre indivíduos distantes no espaço e no tempo; permitiu tornar complexas as relações sociais, fazendo-nos evoluir de sociedades ágrafas extremamente homogêneas e constituídas de uns poucos membros para as sociedades extremamente complexas da atualidade. Sobretudo na era pós-industrial e globalizada, podemos dizer que a humanidade como um todo foi transformada numa única sociedade global.

Assim, foi a passagem do Homo sapiens a Homo linguisticus o que permitiu o advento da comunicação social em larga escala e da sofisticação da cultura.

Neste ponto chegamos à questão da relação entre a linguagem e a comunicação. Em primeiro lugar, é forçoso dizer que a linguagem muito provavelmente não foi criada ou surgiu espontaneamente para servir à comunicação entre os indivíduos. A comunicação não linguística entre os animais o prova. Segundo a tese do matemático e estudioso da linguagem britânico Keith Devlin, ratificada por outros pesquisadores e pensadores, o homem discursa para dar-se conta de sua própria experiência e, apenas num segundo momento, para dar conta dessa experiência aos seus semelhantes. Para Devlin, existe uma diferença entre linguagem e comunicação. Esta seria a simples transmissão, de um indivíduo a outro, ou outros, de mensagens sobre situações concretas (como a existência de alimento ou de predadores) sempre in praesentia, isto é, na presença da coisa referida. Portanto, só existiria linguagem na comunicação capaz de fazer abstrações, de falar sobre objetos ou eventos ausentes, no tempo e/ou no espaço, o que inclui até mesmo eventos futuros, hipotéticos ou imaginários. Isso só é possível por meio da existência de uma propriedade inerente à linguagem verbal chamada sintaxe.

A língua não é o único sistema de comunicação de que dispomos, mas é o único dotado ao mesmo tempo de uma sintaxe ao nível do significante e do significado. Muitos autores, sobretudo na esteira da semiótica, chamam de linguagem a qualquer sistema de significação, não importa se articulado ou não, mas para Devlin apenas o sistema verbal é legitimamente uma linguagem. Tanto que o semioticista russo Yuri Lotman chamou a língua de sistema modelizante primário, em relação ao qual as demais “linguagens” seriam sistemas secundários. Isso significa que é sempre possível, com maior ou menor aproximação, traduzir experiências não linguísticas em palavras, mas a recíproca nem sempre é verdadeira.

Mas não é só a sintaxe em seu sentido estrito o que confere à língua o poder de permitir o pensamento articulado e abstrato. É evidente que, operando em módulos e estabelecendo uma hierarquia entre elementos aparentemente lineares, a sintaxe entre significantes contribui para a categorização e a organização do pensamento, mediante o estabelecimento de relações. Mas o pensamento, e consequentemente a comunicação, só é possível porque, subjacente às palavras e suas combinações sintagmáticas, existe um nível conceptual, no qual também atua uma sintaxe, mas agora não entre palavras e sim entre as partículas elementares da significação, os chamados núons, de que resultam os conceitos, que por sua vez se dividem em entes, atributos e processos, e também mantêm relações sintáticas entre si.

Pode-se dizer, então, que a primeira forma de comunicação ensejada pela linguagem verbal é a comunicação intrapessoal, ou pensamento. (Uma boa sugestão de leitura aqui é o texto “Linguagem, conhecimento e cultura” de Adam Schaff.) Mas a relação entre a linguagem e a comunicação – seja ela intra ou interpessoal, grupal ou social – é, a meu ver, uma relação de mão dupla. De um lado, não existiria, como vimos, comunicação social sem a língua, já que esta é, por excelência, a ferramenta da comunicação. De outro lado, parece ter sido a necessidade de comunicação, especialmente num nível mais abstrato, o que motivou a articulação dos signos e o surgimento da “gramática”, em seus vários níveis, transformando o primitivo sistema de emissões vocais em linguagem.

Finalmente, essa relação biunívoca entre linguagem e comunicação permitiu o advento do processo histórico da cultura. Conforme sustento em meu livro Anatomia da cultura, a cultura em seu sentido mais amplo, antropológico, é uma derivação da cultura num sentido mais estrito e tradicional. E este é fundamentalmente um conjunto de discursos sociais, assim definidos porque se destinam à sociedade como um todo. Portanto, a cultura é produto direto da comunicação social, ainda que decorra indiretamente de todos os processos comunicativos humanos.

2 comentários sobre “A linguagem, a comunicação e a cultura

  1. Aldo, tudo bem! Em qual livro Barthes fala sobre sistema modelizante primário e secundários? Eu achava que isso era de Yuri Lotman, da semiótica russa.
    Em tempo, o seu texto é maravilhoso.
    Bjs
    Ana

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