O peso das palavras

A linguagem é a mais maravilhosa invenção humana, aquilo que de fato nos tornou humanos e nos distinguiu para sempre dos outros animais, para o bem e para o mal – embora o linguista israelense Guy Deutscher faça a ressalva de que a linguagem nunca foi realmente inventada, já que é, ao que tudo indica, um instinto natural. De todo modo, poder fazer os outros compreenderem o que estamos pensando, transplantar para eles o nosso pensamento e os nossos sentimentos por meio da fala ou da escrita é verdadeiramente sensacional.

Mas a linguagem também tem sido ao longo dos tempos a principal fonte de discórdias e mesmo de conflitos sangrentos. Por isso, é preciso sempre dosar as palavras que empregamos, pois elas têm um peso que às vezes não somos capazes de avaliar. E palavra dita não volta atrás. Além disso, o que importa na comunicação não é o que dizemos, mas o que o outro entende daquilo que dizemos.

Nessa guerra da Ucrânia, estamos tendo vários exemplos de como as palavras são manipuladas para produzir certos efeitos de sentido. Em primeiro lugar, a própria guerra está sendo chamada pelo governo Putin de “operação militar especial” e a invasão de um país soberano, de “libertação”. E quem na Rússia utilizar os termos “guerra” ou “invasão” pode pegar até 15 anos de cadeia. Aliás, a própria censura imposta por Putin à imprensa e à internet mostra como os poderosos, especialmente os autocratas, têm medo das palavras e da informação que elas portam.

A resolução votada e aprovada pela ONU semana passada substituiu o termo “condena” por “lamenta” em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia por receio de irritar ainda mais um indivíduo que já provou não estar na plenitude de sua sanidade mental e tem o dedo no botão vermelho das armas nucleares.

Enquanto isso, o chanceler brasileiro Carlos França substitui a palavra “neutralidade”, usada por Bolsonaro, por “equilíbrio”, tentando dar um ar positivo à indiferença pelos mortos, feridos, desabrigados e exilados, pois o que importa são nossos interesses comerciais – leia-se fertilizantes –, mesmo sabendo que nossa neutralidade, ou melhor, equilíbrio, não vai permitir a importação desses insumos de que éramos autossuficientes décadas atrás, já que o comércio com a Rússia está internacionalmente bloqueado.

Por outro lado, é também com palavras que o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, insufla em seu povo a coragem e o patriotismo para lutar contra os invasores. Zelensky, inicialmente desacreditado por ser um comediante que chegou ao poder na onda da antipolítica, revela-se com sua retórica poderosa um grande estadista, um verdadeiro líder, cuja maior arma, na falta de material bélico efetivo, são suas palavras. E que, com elas, conseguiu a proeza de unir o Ocidente e fazê-lo tomar medidas corajosas que, de outro modo, jamais seriam tomadas contra uma potência como a Rússia.

Neste grave momento da História, é preciso mais do que nunca saber usar bem as palavras, seja para aplacar ditadores, seja para enfrentá-los. Só o que não se pode é ficar calado.

Os cães e a comunicação

O que cachorros passeando têm a ver com a comunicação humana? Pois estava eu, certo dia, bem antes da pandemia, passeando na rua com os meus dois “filhos” de quatro patas quando me dei conta de que, guardadas as devidas proporções, cães e homens têm muito em comum, inclusive em seus interesses sociais. Durante um passeio, os cães basicamente farejam tudo à sua volta em busca de indícios da passagem de outros cães pelo mesmo local. Aliás, cachorros deixam seu rastro de xixi nos postes e troncos das árvores para marcar território, ou seja, para que outros animais saibam que eles passaram por ali. Quando um cão encontra outro na rua (e eles não se estranham logo de cara), é normal que um cheire a glândula anal e os órgãos sexuais do outro. Esse comportamento permite saber algo da vida do novo conhecido: se é macho ou fêmea, se é castrado, que tipo de alimento come, se é amistoso…

Ora, nós humanos nos comunicamos fundamentalmente pelo mesmo motivo – para saber da vida alheia. Algumas teorias sobre a origem da linguagem especulam, por sinal, que a aptidão linguística do homem teria se desenvolvido graças a uma prática cada vez mais comum no tempo das cavernas: a fofoca. Isso mesmo, a fofoca! Falar do outro – bem ou, principalmente, mal – sempre foi o nosso esporte preferido.

Pois a comunicação, especialmente a de massas, existe para nos informar da vida alheia – e não estou falando só das revistas e programas de mexericos sobre celebridades. Se pensarmos bem, tudo o que lemos, ouvimos ou vemos nos meios de comunicação nos conta o que os outros estão fazendo. Seja as notícias dos jornais, as entrevistas da TV e até mesmo as obras de ficção (porque nossa curiosidade sobre a vida alheia é tanta que mesmo a vida de personagens inventados nos interessa e prende nossa atenção), tudo nos mostra, voyeuristicamente, o que se passa com o outro. Parece que temos a crença de que a vida alheia é sempre mais excitante do que a nossa. Até quando descobrimos que a vida privada dos artistas também tem momentos de tédio, isso nos conforta e alivia o nosso próprio tédio.

Além disso, assim como os cães deixam suas marcas urinárias para que os demais saibam de sua existência, nós humanos temos uma necessidade muito grande de ser conhecidos. Aquela artista famosa que se queixa de não poder ir à praia em paz, tão assediada que é pelos paparazzi, está simplesmente blefando: ela fica realmente preocupada quando, por mais de duas semanas, não sai nenhuma nota sobre a sua pessoa na imprensa. Algumas celebridades até convocam os indiscretos fotógrafos para flagrá-las em situações íntimas – mesmo que depois ameacem processá-los por invasão de privacidade, ameaça aliás nunca levada adiante.

O fato é que precisamos desesperadamente saber da vida alheia, assim como precisamos que os outros saibam da nossa. Talvez até esta crônica seja, no fundo, uma forma de eu me mostrar. É, nós e os cachorros temos mesmo muito em comum…

A linguagem, a comunicação e a cultura

É lugar-comum que o que nos torna humanos – no sentido de seres cuja existência transcendeu os limites do estritamente biológico – é a aquisição da linguagem. De fato, a conquista da aptidão simbólica e, mais ainda, de uma aptidão simbólica articulada, foi o principal salto evolutivo de nossa espécie, mais até do que o andar bípede ou a capacidade preênsil de nossas mãos, que nos permitiu a confecção de artefatos. De origem relativamente tardia (entre 200 mil e 150 mil anos atrás), a linguagem verbal articulada propiciou, sobretudo nos últimos 10 mil anos, um avanço cultural mais rápido do que o verificado nos vários milhões de anos anteriores.

Mais ainda, o advento da escrita permitiu a preservação e o acúmulo de conhecimentos para além da memória individual e do curto tempo de vida do indivíduo em relação à espécie. A escrita permitiu a comunicação entre indivíduos distantes no espaço e no tempo; permitiu tornar complexas as relações sociais, fazendo-nos evoluir de sociedades ágrafas extremamente homogêneas e constituídas de uns poucos membros para as sociedades extremamente complexas da atualidade. Sobretudo na era pós-industrial e globalizada, podemos dizer que a humanidade como um todo foi transformada numa única sociedade global.

Assim, foi a passagem do Homo sapiens a Homo linguisticus o que permitiu o advento da comunicação social em larga escala e da sofisticação da cultura.

Neste ponto chegamos à questão da relação entre a linguagem e a comunicação. Em primeiro lugar, é forçoso dizer que a linguagem muito provavelmente não foi criada ou surgiu espontaneamente para servir à comunicação entre os indivíduos. A comunicação não linguística entre os animais o prova. Segundo a tese do matemático e estudioso da linguagem britânico Keith Devlin, ratificada por outros pesquisadores e pensadores, o homem discursa para dar-se conta de sua própria experiência e, apenas num segundo momento, para dar conta dessa experiência aos seus semelhantes. Para Devlin, existe uma diferença entre linguagem e comunicação. Esta seria a simples transmissão, de um indivíduo a outro, ou outros, de mensagens sobre situações concretas (como a existência de alimento ou de predadores) sempre in praesentia, isto é, na presença da coisa referida. Portanto, só existiria linguagem na comunicação capaz de fazer abstrações, de falar sobre objetos ou eventos ausentes, no tempo e/ou no espaço, o que inclui até mesmo eventos futuros, hipotéticos ou imaginários. Isso só é possível por meio da existência de uma propriedade inerente à linguagem verbal chamada sintaxe.

A língua não é o único sistema de comunicação de que dispomos, mas é o único dotado ao mesmo tempo de uma sintaxe ao nível do significante e do significado. Muitos autores, sobretudo na esteira da semiótica, chamam de linguagem a qualquer sistema de significação, não importa se articulado ou não, mas para Devlin apenas o sistema verbal é legitimamente uma linguagem. Tanto que o semioticista russo Yuri Lotman chamou a língua de sistema modelizante primário, em relação ao qual as demais “linguagens” seriam sistemas secundários. Isso significa que é sempre possível, com maior ou menor aproximação, traduzir experiências não linguísticas em palavras, mas a recíproca nem sempre é verdadeira.

Mas não é só a sintaxe em seu sentido estrito o que confere à língua o poder de permitir o pensamento articulado e abstrato. É evidente que, operando em módulos e estabelecendo uma hierarquia entre elementos aparentemente lineares, a sintaxe entre significantes contribui para a categorização e a organização do pensamento, mediante o estabelecimento de relações. Mas o pensamento, e consequentemente a comunicação, só é possível porque, subjacente às palavras e suas combinações sintagmáticas, existe um nível conceptual, no qual também atua uma sintaxe, mas agora não entre palavras e sim entre as partículas elementares da significação, os chamados núons, de que resultam os conceitos, que por sua vez se dividem em entes, atributos e processos, e também mantêm relações sintáticas entre si.

Pode-se dizer, então, que a primeira forma de comunicação ensejada pela linguagem verbal é a comunicação intrapessoal, ou pensamento. (Uma boa sugestão de leitura aqui é o texto “Linguagem, conhecimento e cultura” de Adam Schaff.) Mas a relação entre a linguagem e a comunicação – seja ela intra ou interpessoal, grupal ou social – é, a meu ver, uma relação de mão dupla. De um lado, não existiria, como vimos, comunicação social sem a língua, já que esta é, por excelência, a ferramenta da comunicação. De outro lado, parece ter sido a necessidade de comunicação, especialmente num nível mais abstrato, o que motivou a articulação dos signos e o surgimento da “gramática”, em seus vários níveis, transformando o primitivo sistema de emissões vocais em linguagem.

Finalmente, essa relação biunívoca entre linguagem e comunicação permitiu o advento do processo histórico da cultura. Conforme sustento em meu livro Anatomia da cultura, a cultura em seu sentido mais amplo, antropológico, é uma derivação da cultura num sentido mais estrito e tradicional. E este é fundamentalmente um conjunto de discursos sociais, assim definidos porque se destinam à sociedade como um todo. Portanto, a cultura é produto direto da comunicação social, ainda que decorra indiretamente de todos os processos comunicativos humanos.