Desde que o presidente Jair Bolsonaro concedeu ao seu aliado político, o deputado Daniel Silveira, o indulto individual à pena a que fora condenado pelo Supremo Tribunal Federal, indulto esse chamado tecnicamente de graça, essa palavra veio à baila e ao noticiário nesse sentido em que quase ninguém, a não ser os juristas, a conhecia. Vamos então falar sobre esse vocábulo, um dos mais polissêmicos (isto é, que têm mais significados) da língua portuguesa.
Em primeiro lugar, graça quer dizer favor, mercê. Mas também pode ser benevolência, estima, amizade. Pode ainda, segundo a teologia, ser a participação do homem na vida divina, antes do pecado, assim como um socorro espiritual concedido por Deus. E também perdão, indulgência, indulto (aqui temos o sentido do ato de Bolsonaro). Pode ser algum atrativo pessoal, físico ou moral, um certo charme ou elegância. Pode ser um chiste, uma pilhéria. E ainda o nome de uma pessoa (Qual é a sua graça?). Isso sem falar que há mulheres cujo nome é Graça. Como nome próprio, é também o designativo de três deusas gregas, as três Graças. E de graça quer dizer “grátis”. Pode-se ainda cair nas graças de alguém ou estar em estado de graça. E, até que, no século XVI, o rei de França Francisco I instituísse o tratamento de “majestade” para reis, os súditos se dirigiam ao soberano pelo pronome de tratamento Vossa Graça. Finalmente, é graças à graça presidencial (desculpem o trocadilho) que trato hoje deste assunto aqui no blog.
O que há de comum entre as palavras graça, grato, gratidão, agradecer, agradar, desgraça, desgraçado, engraçado, grátis, gratificar, congratular, agraciar, congraçar, e destas com favor, mercê e obrigado? Na primeira série de palavras fica clara a presença de um radical graç‑, graci‑, grat‑ ou grad‑, que remete à raiz latina grat‑, de gratus, “grato, agradecido”. Portanto, o latim gratia, qualidade de gratus, e que deu o nosso graça, era não só a gratidão de quem recebe um favor, mas também o próprio favor (e está aí a relação com a palavra favor, da qual falarei mais adiante). É que havia entre os antigos a obrigação da reciprocidade, isto é, quem recebe um favor fica em débito, portanto está obrigado a retribuir ao seu donatário (será que hoje essa reciprocidade ainda existe?). E assim temos a explicação de por que dizemos obrigado ao agradecer um favor.
É que favores ou graças são algo que não se tem nenhuma obrigação de prestar, mas se faz por mera generosidade, isto é, “de graça” ou “grátis”. Por isso, em espanhol se diz gracias, em italiano grazie e em francês merci (que quer dizer “mercê”, ou seja, “favor”) em lugar do nosso obrigado. Por isso também, a Virgem Maria é “cheia de graça”, de generosidade. E a exclamação “Graças a Deus!” é uma expressão de agradecimento por uma graça alcançada.
Logo, agradar significa “tornar grato, receptivo, simpático”. E como se granjeia a simpatia de alguém? Sendo alegre, descontraído, bem-humorado, “engraçado”. Daí que graça também passou a significar “alegria, jovialidade” (por exemplo, a graça da mulher brasileira) e, por extensão, “hilaridade, comédia”. Como resultado, o bom humor evoluiu para o senso de humor e o humorismo.
Outra maneira de agradar alguém é gratificando-o – financeiramente, de preferência. Mas há muitas atividades que, mesmo não remuneradas, são gratificantes. E quando alguém faz algo gratificante, para si ou para a coletividade, nós nos congratulamos com ele.
Mas, se a pessoa perde a confiança de seu benfeitor, cai em desgraça. Na Idade Média, o fiel que supostamente caíra em desgraça em relação a Deus se tornava um desgraçado. Esse adjetivo, que inicialmente significava apenas “infeliz”, assumiu uma forte conotação pejorativa, tendo sido até algumas décadas atrás um dos insultos mais contundentes de que dispúnhamos. Hoje em dia, parece estar caindo em desuso, substituído por xingamentos de mais baixo calão.
Voltando ao caso Silveira, é possível dizer que ele foi “agraciado” com o perdão presidencial.
Finalmente, favor, que não tem relação etimológica com graça, mas é seu sinônimo em muitos contextos, também nos deu, através do italiano, favorito, que quer dizer “favorecido”. Assim, quando dizemos que numa licitação pública houve favorecimento a um dos concorrentes, o que estamos dizendo é que a empresa vencedora era favorita desde o início, portanto sua vitória já estava decidida previamente. Fato corriqueiro, mas nem um pouco engraçado, no nosso país. Da mesma forma que anistiar por razões políticas ou pessoais quem é condenado pela justiça não tem a menor graça.
Em português, o termo «obrigado», de tão usado, gastou-se. Perdeu o sentido primitivo de reconhecimento de dívida. Entre nós, aquele que pronuncia a fórmula, por mais graça que ponha nos lábios, não admite estar assumindo compromisso de retribuir.
Em línguas aparentadas à nossa, como o francês e o italiano, o agradecimento por favor recebido segue outras fórmulas. Devido a isso, o étimo de nosso “obrigado” (obligé, obbligato) manteve o sentido originário de reconhecimento de dívida.
No discurso de vitória, pronunciado dois dias atrás, Emmanuel Macron, presidente da França, fez alusão às circunstâncias particulares de sua reeleição. Logo no início, disse: “Votre vote m’oblige!” – ‘O voto de vocês cria uma obrigação para mim’. A frase foi comentadíssima por analistas políticos.
Podia também ter dito “Je vous suis obligé” – ‘Fico obrigado para com vocês’. Faria efeito idêntico e se aproximaria ainda mais de nossa fórmula corriqueira de agradecimento. Que, entre nós, não obriga ninguém a nada. Coisa mais sem graça, não?
Pois é, antigamente os italianos até costumavam agradecer dizendo “grazie, obbligato”. Certa vez, o Prof. Pasquale corrigiu na TV a expressão até então muito usada pelos brasileiros “obrigado eu”, dita em resposta a um “obrigado”, dizendo que o certo é “obrigado a você”. Ele entendeu que as pessoas queriam dizer “sou eu que agradeço”, mas a expressão “obrigado eu” não está errada se assumirmos o sentido etimológico de “obrigado”. Nesse aspecto, “obrigado eu” significaria “eu é que estou obrigado”, o que faz sentido.
O engraçado é que antes, gratias dare, ‘dar graças’, era fazer um favor e quem recebia graças deveria gratias referre, ‘referir ou carregar de volta as graças’. Era uma relação recíproca realmente.
Ajudar também significava fazer um favor ou uma preferência. Adiuvare ou simplesmente iuvare era preferir algo ou alguém e favorecê-los, fazer/dar favor ou graças.
Faltou aludir ainda obséquio, dom e regalo, que em algumas situações tem relação com favor, graça e ajuda.
Por favor
Por obséquio (seguir ao encontro)