Na semana que passou, a cantora Anitta, que completa 29 anos hoje, realizou um feito inédito e memorável: tornou-se a primeira artista brasileira a chegar ao top one da plataforma de streaming Spotify com o sucesso Envolver. Claro que devemos estar contentes e orgulhosos com essa conquista, pela qual Anitta merece nossos parabéns, afinal trata-se de uma vitória no universo extremamente competitivo da música pop mundial. Mas acho que aqui também cabem algumas considerações sobre esse fato.
Em primeiro lugar, a música popular brasileira não vive hoje seu melhor momento. Pelo contrário, nosso país, que já produziu gênios como Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Elis Regina, hoje tem como mainstream musical gêneros popularescos como o sertanejo e o funk. Mesmo a MPB de hoje em dia não tem produzido nomes com perspectivas de passar à posteridade. Que me perdoem os fãs de Anitta e da música atual se meu comentário parece ter um ranço saudosista, mas qualquer crítico musical sério pode confirmar o que estou dizendo. Aliás, esse cenário é um reflexo do próprio momento que o Brasil e o mundo estão vivendo.
Nesse contexto, Anitta se torna a número um do ranking musical mundial com uma canção “descartável”, num ritmo caribenho que visa a atingir sobretudo o público da América Latina e o grande mercado dos hispânicos que vivem nos Estados Unidos, tudo produzido segundo uma estética estritamente norte-americana e cantada em… espanhol. Quanta brasilidade!
É neste último ponto que, como linguista, gostaria de centrar a minha análise. Embora o Brasil seja o mais importante país da América Latina tanto em termos políticos e econômicos quanto culturais, é a única nação do continente a falar português. E nosso idioma, assim como toda a cultura que produz, é bastante periférico em termos mundiais. Não só não tem a importância histórica de línguas europeias mais “centrais”, como o francês, o inglês, o italiano e o alemão, como ainda sofre a concorrência de uma língua muito próxima à nossa e que, no último meio século, ganhou importância internacional: o espanhol. Sim, a língua de Cervantes já é a terceira mais importante língua europeia (em alguns casos até mesmo a segunda), atrás apenas do inglês e do francês. Justifica essa posição a enorme presença dos países hispanofalantes no hemisfério ocidental e o gigantesco mercado que representam. A própria comunidade hispânica dos Estados Unidos, por seu tamanho e peso político, fez com que o espanhol se tornasse a segunda língua daquele país, o que, convenhamos, não é pouca coisa. Some-se a isso o aumento da relevância da Espanha no âmbito da União Europeia, no que não é acompanhada por Portugal.
Por outro lado, a semelhança entre o espanhol e o português leva muitos estrangeiros que já sabem falar castelhano a não se interessar em aprender nosso idioma, uma vez que conseguem se comunicar conosco sem maiores embaraços.
Não faz muito tempo, costumava-se dizer que a ignorância dos países desenvolvidos em relação a nós era tanta que os americanos acreditavam que a capital do Brasil fosse Buenos Aires. (Hoje eles já sabem que é o Rio de Janeiro rs rs.) Infelizmente, ainda hoje, as notícias que chegam a eles sobre nós continuam a ter grande dose de folclore, já que nada de importante acontece ao sul do Equador. Sem dúvida, temos grandes artistas que fazem sucesso lá fora, mas, na maioria dos casos, ainda se trata de um sucesso localizado (por exemplo, apenas no Japão ou em certos países europeus) e que atinge um público mais elitizado, de cabeça mais aberta, que conhece e aprecia música além do que é oferecido pelas plataformas de streaming e pela indústria do marketing cultural.
É certo que nem Carmen Miranda, nem Tom Jobim, nem Milton Nascimento chegaram ao top one do Spotify (na época em que brilharam, por sinal, nem havia essa tecnologia), mas fizeram – e ainda fazem – sucesso levando ao mundo uma música verdadeiramente brasileira, única e original mesmo quando incorpora aqui e ali, de maneira discreta, elementos do jazz ou do rock anglo-saxônicos. Não vejo essa mesma qualidade em Anitta: parece que ela se rendeu totalmente ao sistema do show business americano, pondo a meta do sucesso planetário e do dinheiro que o acompanha acima do primor estético, da riqueza de conteúdo e da exaltação da nossa cultura.
Ironicamente, o filme brasileiro que concorreu este ano ao Oscar é um documentário rodado nos Estados Unidos e falado em inglês abordando a questão dos sem-teto norte-americanos. Parece que é só assim, na terra e na língua deles, que nós brasileiros temos condições de competir hoje em dia.
Confesso que hei mínima preocupação com primeiro do topo do spotify ou outras mídias. Isso é cultura de massa, feita para vendagem, não para enaltecimento cultural. Apenas segue seu bom papel de promotor de consumo do paradigma capitalista que vivemos.
Porém, daqui à 100 anos uma música composta por um Hamilton de Holanda ainda estará sendo tocada em algum lugar. Em 3 meses haverei escutado tanto à músicas da Anitta quanto escutara antes na sua carreira, um nada absoltuto. Essa música brasileira cantada em espanhol, nem será lembrada no tempo que vier a próxima conta cartão de crédito do vulgo.
Veja esse caso: ontem, estava eu jogando um jogo chamado Civilization VI, mundialmente famoso de 2016-2017. Os desenvolvedores introduzem personagens históricos e civilizações que estes representam onde devemos certar com nossos hostes no jogo para lograr vitória. Normalmente eles colocam pra cada civilização um leque de músicas que a representa.
Experimentava eu jogar com o Império Brasileiro liderado pelo Dom Pedro II. Do outro lado estavam o Imperador Trajano, Edgar Roosevelt e Gilgamesh dos sumérios, se não me engano.
Assim que entro na partida comeca a tocar Brejeiro, de Ernesto Nazareth, 1893, numa versão lenta com uma cadência mais melódica, linda, irretocável, reconheci na hora.
Isso é um jogo eletrônico de mais de 1 século depois, extremamente popular, valorizando verdadeira qualidade musical cutural do nosso País. É disso que as próximas gerações, cada vez mais digitalmente abduzidas irão ter como contato e lembrança.
Música ultraprocessada é que nem lata de sardinha, barata, ao acesso de todos, desejante de ser olvidada na segunda garfada. Mas pra experiências que marcam e deixam memória busca-se sempre uma boa refeição de restaurante coceituado.
A carência que hoje temos de grandes artistas é conspícua em todos os outros países do mundo. Massificação de cultura é um termo demodê da década de 90 mas que, sinceramente, cada vez mais atual impossível. A diferença é que antes discutíamos massificação mas tinhamos grandes da MPB no seu auge. Hoje pois já é intrínseco a massificação em todos os meios: streamings de filmes e séries, nos cinemas só filmes de super heróis (americanos), redes sociais massificando a mediocridade de opiniões – já sibilado por um tal Umberto Eco– e padrões de consumo.
Qualquer conteúdo de qualidade demanda de tempo de formação humana e isso gera um custo que muitas vezes não tem o mesmo poder comercial, mas culturalmente é transcendental.
Um bom flautista da libra de Altamiro Carrilho demanda formação e dedicação. Eles existem por aí ainda mas não é o foco do capital.
Um bom exemplo de qualidade Brasileira que ainda há é o Caetano Brasil, o seu album Cartografias de 2019, muito premiado. Musica instrumental. Ele toca clarinete.
Tem que saber muito mais de escala cromática que de por quadril pra balançar e produzir ruídos em idiomas alheios pra conseguir produzir um álbum igual a esse Cartografias.
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