Cultura é artigo de consumo?

Outro dia, em sua coluna Sala de Música, na rádio CBN, o produtor musical João Marcello Bôscoli explicou que a palavra cultura veio do latim colere, que significa “cuidar, cultivar”, e que consumir veio de consumere, que quer dizer “consumir, gastar, destruir”. A partir daí, defendeu a tese de que não se deveria dizer “consumir cultura”, já que isso implicaria a ideia de destruição. Em vez de “consumir música” ou “consumir teatro”, ele sustenta que deveríamos voltar a dizer, como antigamente, “ouvir música”, “assistir ao teatro”, e assim por diante.

As informações etimológicas passadas por ele estão corretas, mas palavras ganham novos significados ao longo de sua história. Assim, se na Roma antiga consumir tinha o sentido exclusivo de gastar e destruir (por exemplo, “as chamas consumiram completamente o edifício”), com o tempo passou-se a empregar o termo referindo-se ao consumo de alimentos, que não deixa de ser uma destruição: destruímos os alimentos ao comê-los para nos mantermos vivos e saudáveis. Mas já que, para comê-los, é preciso primeiro comprá-los – a menos que tenhamos uma propriedade rural que nos forneça todos os recursos alimentícios de que precisamos –, consumir tornou-se sinônimo de comprar, adquirir. E, na sociedade de consumo em que vivemos, em que tudo, inclusive a cultura, virou produto, não é estranho pensar-se em consumir música, teatro, dança, livros, etc.

Aliás, a cultura não deixa de ser uma espécie de alimento – para o espírito, no caso. Assim como devoramos uma fruta, e ela, além de nos alimentar e nutrir, nos dá prazer com seu sabor e suculência, a cultura é algo que devoramos (quem nunca “devorou” um livro ou um disco?) e que nutre nosso espírito, ampliando nossos horizontes mentais. Uma vez comida, a fruta se transforma inexoravelmente em excremento, mas suas vitaminas alimentam nossas células e garantem nossa vida. Uma vez lido, um livro pode até virar calço de mesa, mas seu conteúdo nutriu nossos neurônios e fez mesmo nascerem novos.

Concordo com Marcello que, em tempos em que o consumismo domina as relações sociais e em que também há forte reação contra ele por parte de setores mais esclarecidos da sociedade, falar em consumir cultura pode soar mercantilista ou, no mínimo, fútil. Quem consome não frui, e a cultura deveria ser antes de tudo fruição. Então me lembro de que meu pai, ao ouvir na TV certos roqueiros dizerem que faziam um som, retrucava afirmando que antigamente se fazia música e que os “cabeludos” de hoje em dia (esse “hoje em dia” já faz algumas décadas) só fazem som, isto é, barulho. Pois o “som” que tanto incomodava meu pai atualmente é rock clássico. Imaginem, se ele fosse vivo hoje, o que diria do funk proibidão!

Por outro lado, também podemos despir o termo consumo de seu véu capitalista selvagem e vê-lo como algo que sempre existiu. Afinal, em todas as épocas os artistas tiveram de vender suas criações para sobreviver. Quer fossem sustentados por mecenas ou vendessem seus livros e quadros, bem como recitassem seus versos em praça pública, alguém pagava para lê-los, ouvi-los, assisti-los (assistir a eles, como manda a gramática normativa, é muito feio): a arte, assim como a filosofia e, mais tarde, a ciência, também era um produto vendido no mercado. Van Gogh, que vendeu um único quadro durante a vida, ficaria feliz de saber que suas pinturas hoje são comercializadas aos milhões de dólares. Mozart não desgostaria do fato de suas composições serem vendidas em lojas de CDs (as que ainda existem) ou baixadas em plataformas de streaming. Os poetas gregos cantavam seus poemas acompanhados da lira (o violão da época) na ágora ateniense em troca de moedas e do aplauso dos espectadores. O que há de errado nisso?

Por mais etéreas que sejam, ou pretendam ser, certas criações culturais, seus autores precisam comer, vestir-se, locomover-se, pagar contas… Logo, tudo é produto, tudo é consumível, devorável, digerível e tudo – alimentos ou livros – é nutriente de nossa vida.

Programas, shows e concertos

Uma das coisas mais interessantes que a linguística nos ensina é que cada língua, espelho de uma cultura, “recorta” a realidade de modo diferente, mesmo quando se trata de línguas muito próximas, que partilham em grande parte uma mesma visão de mundo, como é o caso das línguas europeias.

Um exemplo disso é o curioso caso das palavras programa, show e concerto. Para nós brasileiros, a primeira representa um espetáculo de televisão, seja um musical, uma série, um documentário, uma atração humorística ou “de auditório”, como se diz. Já a segunda é para nós essencialmente um espetáculo de música popular a que se assiste num teatro ou casa de espetáculos (mais raramente num ginásio ou estádio) e que pode eventualmente ser transmitido pela TV. Finalmente, a terceira é um espetáculo de música erudita – também chamada de música clássica, sinfônica ou de concerto –, seja ele presencial ou televisionado.

Em contraste, a língua inglesa raramente emprega program (ou programme) para programas de TV: o usual nesse caso é falar-se em TV show. Em compensação, o que aqui chamamos de show lá nos países de língua inglesa eles chamam de concert, isto é, “concerto”. Igualmente, os concertos de música erudita são concerts para os anglofalantes. O que, a meu ver, faz todo o sentido. Afinal, até o século XIX havia uma clara distinção entre a música erudita, que tinha esse nome justamente por ser consumida pela elite econômica e cultural da sociedade, e a música popular, essencialmente tocada e dançada nos folguedos e festas populares com instrumentos rústicos como pandeiro e banjo.

Naquela época, a música chamada erudita tinha nomes como “Concerto n.º 1 para piano e orquestra opus 31” e era executada em um teatro centenário, com acústica que dispensava microfones e amplificadores, por uma orquestra sinfônica composta de músicos trajando casaca e regida por um maestro que ficava de costas para a plateia. Enquanto isso, a música popular eram valsinhas e modinhas ou então aquilo que hoje chamamos de música folclórica (coco, caboclinho, maracatu, xote, catira, vanerão, fandango, polca, tarantela) e tinha nomes como “A primeira vez em que te vi”, “Não te apartes de mim, ó, linda dama”, e outras cousas do gênero.

O fato é que, a partir do século XX, quando a música sinfônica descamba para coisas como música estocástica e música eletroacústica, utilizando até utensílios como panelas, bigornas e folhas de zinco como instrumentos musicais, e a música popular se torna um conjunto de gêneros muito diferentes entre si, como jazz, tango, bolero, rumba, salsa, merengue, samba, MPB, rock, pop, soul, blues, rhythm’n’blues, funk, dance, house, lounge, K-pop, world music, etc., utilizando orquestras, instrumentos eletrônicos e produções milionárias, fica difícil dizer o que é erudito e o que é popular. Ou seja, atualmente existe apenas música, e a própria música sinfônica ou de concerto se tornou apenas mais um dentre os muitos gêneros que encontramos nas lojas de discos (as que ainda existem, evidentemente) e nas plataformas de streaming.

Hoje, temos o jazz moderno e a música instrumental em geral, além de música new age, jazz-rock, rock progressivo e rock sinfônico, que se aproximam muito da música erudita. Aliás, muitos arranjos do pop internacional e da MPB abusam de elementos sinfônicos, como naipe de cordas ou metais, piano, cravo, órgão, harpa, tímpanos, enquanto músicos sinfônicos compõem peças para sintetizadores, guitarra elétrica, violão, cavaquinho, etc. Isso sem falar de arranjos sinfônicos para canções populares, tipo The Royal Symphony Orchestra Plays Beatles. E sem falar também que compositores populares como Paul McCartney, Robin Gibb e Francis Hime já enveredaram pelos concertos e sinfonias.

Temos ainda as trilhas sonoras incidentais de filmes, compostas por mestres como John Williams, Ennio Morricone, Nino Rota, Michel Legrand e outros grandes nomes com formação erudita e tocadas por orquestras sinfônicas. Temas como os de Indiana Jones, E.T. e Superman são verdadeiras sinfonias.

Ao mesmo tempo, quão populares são Tom Jobim, Burt Bacharach ou Yanni? Dá para metê-los no mesmo balaio de Zeca Pagodinho, Anitta, Michel Teló e Bonde do Tigrão?

Ou seja, voltamos ao que a música era na Antiguidade e Idade Média: uma única forma de arte e uma única profissão, a de músico, que apenas se divide em gêneros por razões estéticas. Sempre haverá aquela música que agrada mais ao ouvido apurado do ouvinte culto e refinado e aquela que agita as multidões, o chamado “povão”. Mas também sempre haverá literatura, teatro, cinema, dança, teledramaturgia e artes visuais para todos os gostos. No entanto, Marcel Proust e cordel nordestino são apenas literatura e não literatura erudita e literatura popular. O mesmo se diga de Leonardo da Vinci e dos grafittis de rua (é bem verdade que, na dança, ainda há quem distinga entre balé clássico e balé moderno, mas as companhias de dança de hoje em dia sabiamente misturam as duas coisas, e as escolas de dança atualmente formam bailarinos versáteis).

Por isso, certos estão os ingleses e americanos, que chamam qualquer espetáculo de música, das sinfonias de Beethoven ao rap de Eminem, de concerto. Afinal, as palavras ganham novos significados conforme evolui a sociedade. Por exemplo, hoje um estúdio é um local onde se gravam discos, vídeos, filmes e novelas e também se fazem fotos e produtos gráficos enquanto, no passado, um estúdio era, como diz o próprio nome, o lugar onde se estuda – um misto de biblioteca e escritório. De uma década para cá, estúdio passou também a ser um nome chique para apartamento conjugado ou quitinete. O mundo muda, a língua muda junto. Simples assim.

Envolver a língua portuguesa

Na semana que passou, a cantora Anitta, que completa 29 anos hoje, realizou um feito inédito e memorável: tornou-se a primeira artista brasileira a chegar ao top one da plataforma de streaming Spotify com o sucesso Envolver. Claro que devemos estar contentes e orgulhosos com essa conquista, pela qual Anitta merece nossos parabéns, afinal trata-se de uma vitória no universo extremamente competitivo da música pop mundial. Mas acho que aqui também cabem algumas considerações sobre esse fato.

Em primeiro lugar, a música popular brasileira não vive hoje seu melhor momento. Pelo contrário, nosso país, que já produziu gênios como Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Elis Regina, hoje tem como mainstream musical gêneros popularescos como o sertanejo e o funk. Mesmo a MPB de hoje em dia não tem produzido nomes com perspectivas de passar à posteridade. Que me perdoem os fãs de Anitta e da música atual se meu comentário parece ter um ranço saudosista, mas qualquer crítico musical sério pode confirmar o que estou dizendo. Aliás, esse cenário é um reflexo do próprio momento que o Brasil e o mundo estão vivendo.

Nesse contexto, Anitta se torna a número um do ranking musical mundial com uma canção “descartável”, num ritmo caribenho que visa a atingir sobretudo o público da América Latina e o grande mercado dos hispânicos que vivem nos Estados Unidos, tudo produzido segundo uma estética estritamente norte-americana e cantada em… espanhol. Quanta brasilidade!

É neste último ponto que, como linguista, gostaria de centrar a minha análise. Embora o Brasil seja o mais importante país da América Latina tanto em termos políticos e econômicos quanto culturais, é a única nação do continente a falar português. E nosso idioma, assim como toda a cultura que produz, é bastante periférico em termos mundiais. Não só não tem a importância histórica de línguas europeias mais “centrais”, como o francês, o inglês, o italiano e o alemão, como ainda sofre a concorrência de uma língua muito próxima à nossa e que, no último meio século, ganhou importância internacional: o espanhol. Sim, a língua de Cervantes já é a terceira mais importante língua europeia (em alguns casos até mesmo a segunda), atrás apenas do inglês e do francês. Justifica essa posição a enorme presença dos países hispanofalantes no hemisfério ocidental e o gigantesco mercado que representam. A própria comunidade hispânica dos Estados Unidos, por seu tamanho e peso político, fez com que o espanhol se tornasse a segunda língua daquele país, o que, convenhamos, não é pouca coisa. Some-se a isso o aumento da relevância da Espanha no âmbito da União Europeia, no que não é acompanhada por Portugal.

Por outro lado, a semelhança entre o espanhol e o português leva muitos estrangeiros que já sabem falar castelhano a não se interessar em aprender nosso idioma, uma vez que conseguem se comunicar conosco sem maiores embaraços.

Não faz muito tempo, costumava-se dizer que a ignorância dos países desenvolvidos em relação a nós era tanta que os americanos acreditavam que a capital do Brasil fosse Buenos Aires. (Hoje eles já sabem que é o Rio de Janeiro rs rs.) Infelizmente, ainda hoje, as notícias que chegam a eles sobre nós continuam a ter grande dose de folclore, já que nada de importante acontece ao sul do Equador. Sem dúvida, temos grandes artistas que fazem sucesso lá fora, mas, na maioria dos casos, ainda se trata de um sucesso localizado (por exemplo, apenas no Japão ou em certos países europeus) e que atinge um público mais elitizado, de cabeça mais aberta, que conhece e aprecia música além do que é oferecido pelas plataformas de streaming e pela indústria do marketing cultural.

É certo que nem Carmen Miranda, nem Tom Jobim, nem Milton Nascimento chegaram ao top one do Spotify (na época em que brilharam, por sinal, nem havia essa tecnologia), mas fizeram – e ainda fazem – sucesso levando ao mundo uma música verdadeiramente brasileira, única e original mesmo quando incorpora aqui e ali, de maneira discreta, elementos do jazz ou do rock anglo-saxônicos. Não vejo essa mesma qualidade em Anitta: parece que ela se rendeu totalmente ao sistema do show business americano, pondo a meta do sucesso planetário e do dinheiro que o acompanha acima do primor estético, da riqueza de conteúdo e da exaltação da nossa cultura.

Ironicamente, o filme brasileiro que concorreu este ano ao Oscar é um documentário rodado nos Estados Unidos e falado em inglês abordando a questão dos sem-teto norte-americanos. Parece que é só assim, na terra e na língua deles, que nós brasileiros temos condições de competir hoje em dia.

Qual a sua playlist preferida?

Assim como as línguas, os seres vivos e as sociedades, a tecnologia também evolui – nem sempre para melhor, diga-se de passagem. A pergunta do título é bastante frequente hoje em dia, em que a maioria das pessoas baixa músicas de aplicativos de celular. Sou do tempo, não tão distante assim, em que, para colecionarmos as canções de que gostávamos, precisávamos ficar ouvindo o rádio com o gravador a postos e, quando a canção começava a tocar, imediatamente a púnhamos para gravar. Às vezes, o locutor falava durante a execução da dita cuja, o que estragava nossa gravação. Mas a ansiedade com que esperávamos para poder gravá-la e o prazer de conseguir essa proeza é que eram o grande barato de toda a operação. E, além disso, era de graça.

Hoje as pessoas precisam pagar para baixar suas músicas prediletas – como aliás precisam pagar para assistir TV de qualidade (e a qualidade da TV paga nem sempre é lá essas coisas), pagar para acessar a internet, e assim por diante.

Mas o maior problema que eu vejo é que a possibilidade de comprar canções isoladas simplesmente acabou com o conceito de álbum, aquela obra que cada artista só lançava uma vez por ano e que trazia em geral 10 a 12 faixas embaladas numa capa que era uma obra de arte. Aliás, às vezes até o selo do disco era uma obra de arte.

Pois é, minha gente, o álbum de música, seja ele um LP ou CD, não era um simples amontoado de canções ou temas instrumentais colocados ali a esmo: a ordem das faixas tinha um propósito, havia uma faixa principal (a chamada música de trabalho), que era a que tocava nas rádios e aguçava em nós a vontade de comprar o disco inteiro para poder ouvir mais daquela maravilha.

Havia até álbuns em que a sequência das faixas contava uma história, de modo que ouvi-las fora de ordem, apertando o botão shuffle do toca-CD, não fazia sentido.

Mas o álbum, assim como o livro físico, feito de papel, tem uma mística que a playlist do celular não tem. Em primeiro lugar, havia a magia das lojas de discos, em que podíamos passar uma tarde inteira vasculhando as novidades, garimpando preciosidades, degustando faixa por faixa de cada disco, escolhendo o que íamos comprar. Hoje esse prazer só resiste nos velhos sebos de discos, único lugar em que ainda podemos ter contato físico com a obra do artista.

E esse contato incluía o cheiro típico do vinil e do papelão, a contemplação da capa, a possibilidade de ler na contracapa um texto que funcionava como espécie de prefácio em que o autor do álbum ou um crítico musical apresentava a obra ao público, a capa interna dos álbuns duplos, que geralmente traziam fotos do making of (os músicos dentro do estúdio ou em momentos de descontração entre as gravações), o famoso encarte, em que vinham escritas as letras das canções – o que era especialmente útil no caso das cantadas em inglês – e também os créditos (quem compôs cada canção, quem tocou o quê, quem produziu, onde e quando).

O álbum físico podia ser dado de presente, e em sua capa podíamos escrever uma dedicatória à pessoa presenteada, assim como podíamos guardar cartas de amor e pétalas de flores dentro dos álbuns. Quem hoje em dia presenteia playlists? E quem escreve cartas de amor hoje em dia?

Todo mundo já deve ter ouvido falar do álbum branco dos Beatles, ou do Abbey Road, ou do Sgt. Pepper’s, não? Pois é, existem até antologias do tipo 1.001 Álbuns que Você Precisa Ouvir antes de Morrer ou coisa parecida. Não acredito que futuramente se escreva algum livro do tipo 1.001 Playlists que Você Precisa Ouvir… Na verdade, ouvir playlists é para mim como ler um capítulo de cada livro: você nunca vai entender a história.

É claro que os mais jovens, que não conheceram outra realidade, podem achar perfeitamente mágico e maravilhoso ouvir playlists e podem até achar careta este meu papo. Na verdade, todos nós, à medida que vamos ficando mais velhos, temos a tendência de achar que nosso tempo de adolescência é que era bom. Mas, vendo a maneira veloz como o mundo atual está se deteriorando em todos os aspectos (social, afetivo, político, econômico, cultural, ambiental), chego a pensar que os mais velhos não estão de todo errados.