Relembrando e refletindo sobre Belchior e seu legado

Nos últimos dias, acabei casualmente voltando a ter alguns contatos com a música de Belchior, que eu não ouvia há muito tempo. Primeiro, me deparei com um documentário na TV por assinatura sobre sua vida e obra; depois, um programa no rádio dedicado a ele; e mais algumas canções suas que tocaram no rádio do carro enquanto eu dirigia (“Dentro do carro / Sobre o trevo / A cem por hora, ó, meu amor”). Isso me fez refletir um pouco sobre esse ícone da música popular brasileira desaparecido há quase seis anos, em 30 de abril de 2017.

Por sinal, sua morte me pregou uma peça: alguns dias antes, eu havia participado de uma matéria para o Fantástico, da Rede Globo, sobre o Dia da Língua Portuguesa, que é comemorado em 5 de maio. Essa matéria iria ao ar exatamente em 30 de abril, mas, na hora agá, a morte do artista “derrubou”, como se diz no jargão jornalístico, a matéria de que eu participava. No domingo seguinte, o Dia da Língua já havia passado, e a reportagem jamais foi ao ar.

Mas não guardo mágoa de Belchior por ele ter roubado minha cena: sem dúvida, sua morte foi um fato muito mais relevante do que as minhas considerações sobre a língua portuguesa. Aliás, ele foi um grande cultor do idioma: suas letras são poemas impecáveis, de um vernáculo esmerado e burilado, e ele próprio se dizia um artesão da palavra, alguém que passava horas tentando melhorar um verso que já estava ótimo.

Antônio Carlos Belchior, que também se autodenominava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, portanto, como ele próprio jocosamente dizia, um dos maiores nomes da MPB, surgiu no cenário da música brasileira no âmbito de um movimento de artistas cearenses chamado “Pessoal do Ceará”, que também revelaria Fagner, Ednardo e Amelinha, dentre outros. No entanto, diferentemente destes, Belchior é um artista que eu tenho dificuldade em classificar como de MPB, pois sua música transitava entre o rock, o blues e as baladas românticas. Não que outros nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Jorge Ben Jor não tenham flertado com o pop-rock: após os Beatles, a Jovem Guarda e a Tropicália, praticamente todos eles fizeram isso em algum momento. Mas, no caso de Belchior, sua música revela algumas contradições.

Em primeiro lugar, seus versos eloquentes repisavam certos temas recorrentes: o desalento pelo fim do sonho hippie (The dream is over, lembram?), a juventude perdida, a inadequação do rapaz sertanejo na cidade grande, o sentimento de pertença latino-americana. Belchior era alguém que, já nos anos 1970 era um saudosista dos anos ’60. E isso com apenas 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Como ele próprio diz na canção A Palo Seco, aquele seu desespero era moda em 73. O problema é que essa temática do fim da contracultura foi ficando datado, mesmo a canção tendo sido reeditada três anos depois com a letra alterada para “76”. A década de ’70 passou, e com ela o sucesso de Belchior. Tanto que, nos anos ’80, ele basicamente lançou inúmeras regravações de seus sucessos da década anterior. O desespero de Belchior havia saído de moda.

Como apenas um rapaz latino-americano que era, ele afirmava, também nessa mesma canção, que “Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues”. Só que, contraditoriamente, a canção em questão é exatamente um blues. Por sinal, Belchior falava muito do sertão de onde saíra, mas sua música jamais teve um acento nordestino; ao contrário, era muito urbana e muito anglo-saxônica. Suas referências sempre foram John Lennon (“a felicidade é uma arma quente”), James Dean e outros símbolos da cultura pop internacional. Por isso, acho difícil enquadrar Belchior na mesma MPB de Edu Lobo, Chico Buarque, Dori Caymmi, Ivan Lins, Gonzaguinha, João Bosco, nossa recém-falecida Sueli Costa, e mesmo de nomes nordestinos como os já citados Caetano, Gil, Fagner, Djavan, além de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e outros mais fincados na herança da Bossa Nova e dos ritmos nacionais.

Ao mesmo tempo, não vejo Belchior como integrante do cenário roqueiro dos anos ’70, ao lado de Rita Lee, Sérgio Hinds, Arnaldo Batista, Raul Seixas, Erasmo Carlos…

Talvez essa dificuldade de se enquadrar em qualquer gênero dentro da música popular brasileira, embora revelasse a grande qualidade de ser único e revolucionário — além de sua figura exótica, com seu enorme bigode, que mais o aproximava dos cantores hispano-americanos ou talvez do country americano, além de sua voz rouca e fanhosa —, acabou por relegá-lo a um certo ostracismo. Com efeito, a partir dos anos 1990, ele vai aos poucos desaparecendo de cena até literalmente sumir. Especulações à época diziam que ele teria abandonado a carreira musical e fugido de seus credores. Belchior acumulou dívidas impagáveis — não no sentido do riso e da hilaridade, bem entendido, mas no da insolvência financeira —, abandonou bens, foi morar de favor até no Uruguai, tentou manter oculta sua identidade (se bem que isso era quase impossível em se tratando de uma figura como ele), foi descoberto por fãs e pela imprensa, voltou à obscuridade e finalmente morreu aos 70 anos, ofuscando minha estreia na televisão.

Lembro que a mãe de um colega meu de classe no colégio era muito fã de Belchior, tinha todos os discos dele, sabia de cor e cantava todas as suas canções, e eu, que na época curtia o pop internacional e a disco music, ou no máximo uma MPB mais ortodoxa, tipo Chico e Milton, achava estranho aquele gosto por um cantor bigodudo que eu, equivocadamente, equiparava aos bregas da época: Waldick Soriano, Odair José, Reginaldo Rossi, Altemar Dutra, Nelson Ned, y otros más. Demorei algum tempo para compreender a verdadeira dimensão da obra de Belchior, que, embora não seja dos meus artistas favoritos, é inegavelmente um dos gigantes da nossa música, além de um grande poeta.

Envolver a língua portuguesa

Na semana que passou, a cantora Anitta, que completa 29 anos hoje, realizou um feito inédito e memorável: tornou-se a primeira artista brasileira a chegar ao top one da plataforma de streaming Spotify com o sucesso Envolver. Claro que devemos estar contentes e orgulhosos com essa conquista, pela qual Anitta merece nossos parabéns, afinal trata-se de uma vitória no universo extremamente competitivo da música pop mundial. Mas acho que aqui também cabem algumas considerações sobre esse fato.

Em primeiro lugar, a música popular brasileira não vive hoje seu melhor momento. Pelo contrário, nosso país, que já produziu gênios como Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Elis Regina, hoje tem como mainstream musical gêneros popularescos como o sertanejo e o funk. Mesmo a MPB de hoje em dia não tem produzido nomes com perspectivas de passar à posteridade. Que me perdoem os fãs de Anitta e da música atual se meu comentário parece ter um ranço saudosista, mas qualquer crítico musical sério pode confirmar o que estou dizendo. Aliás, esse cenário é um reflexo do próprio momento que o Brasil e o mundo estão vivendo.

Nesse contexto, Anitta se torna a número um do ranking musical mundial com uma canção “descartável”, num ritmo caribenho que visa a atingir sobretudo o público da América Latina e o grande mercado dos hispânicos que vivem nos Estados Unidos, tudo produzido segundo uma estética estritamente norte-americana e cantada em… espanhol. Quanta brasilidade!

É neste último ponto que, como linguista, gostaria de centrar a minha análise. Embora o Brasil seja o mais importante país da América Latina tanto em termos políticos e econômicos quanto culturais, é a única nação do continente a falar português. E nosso idioma, assim como toda a cultura que produz, é bastante periférico em termos mundiais. Não só não tem a importância histórica de línguas europeias mais “centrais”, como o francês, o inglês, o italiano e o alemão, como ainda sofre a concorrência de uma língua muito próxima à nossa e que, no último meio século, ganhou importância internacional: o espanhol. Sim, a língua de Cervantes já é a terceira mais importante língua europeia (em alguns casos até mesmo a segunda), atrás apenas do inglês e do francês. Justifica essa posição a enorme presença dos países hispanofalantes no hemisfério ocidental e o gigantesco mercado que representam. A própria comunidade hispânica dos Estados Unidos, por seu tamanho e peso político, fez com que o espanhol se tornasse a segunda língua daquele país, o que, convenhamos, não é pouca coisa. Some-se a isso o aumento da relevância da Espanha no âmbito da União Europeia, no que não é acompanhada por Portugal.

Por outro lado, a semelhança entre o espanhol e o português leva muitos estrangeiros que já sabem falar castelhano a não se interessar em aprender nosso idioma, uma vez que conseguem se comunicar conosco sem maiores embaraços.

Não faz muito tempo, costumava-se dizer que a ignorância dos países desenvolvidos em relação a nós era tanta que os americanos acreditavam que a capital do Brasil fosse Buenos Aires. (Hoje eles já sabem que é o Rio de Janeiro rs rs.) Infelizmente, ainda hoje, as notícias que chegam a eles sobre nós continuam a ter grande dose de folclore, já que nada de importante acontece ao sul do Equador. Sem dúvida, temos grandes artistas que fazem sucesso lá fora, mas, na maioria dos casos, ainda se trata de um sucesso localizado (por exemplo, apenas no Japão ou em certos países europeus) e que atinge um público mais elitizado, de cabeça mais aberta, que conhece e aprecia música além do que é oferecido pelas plataformas de streaming e pela indústria do marketing cultural.

É certo que nem Carmen Miranda, nem Tom Jobim, nem Milton Nascimento chegaram ao top one do Spotify (na época em que brilharam, por sinal, nem havia essa tecnologia), mas fizeram – e ainda fazem – sucesso levando ao mundo uma música verdadeiramente brasileira, única e original mesmo quando incorpora aqui e ali, de maneira discreta, elementos do jazz ou do rock anglo-saxônicos. Não vejo essa mesma qualidade em Anitta: parece que ela se rendeu totalmente ao sistema do show business americano, pondo a meta do sucesso planetário e do dinheiro que o acompanha acima do primor estético, da riqueza de conteúdo e da exaltação da nossa cultura.

Ironicamente, o filme brasileiro que concorreu este ano ao Oscar é um documentário rodado nos Estados Unidos e falado em inglês abordando a questão dos sem-teto norte-americanos. Parece que é só assim, na terra e na língua deles, que nós brasileiros temos condições de competir hoje em dia.

A intérprete da pronúncia

Hoje o Brasil está completando quatro décadas sem Elis Regina. A Pimentinha, como era chamada, foi indubitavelmente uma das maiores intérpretes de nossa música popular, não só por seu grande talento e estilo inconfundível, mas também por ter lançado ao estrelado alguns dos maiores compositores da MPB dos anos 60 e 70 do século passado, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco e tantos outros.

Elis dava às músicas interpretações definitivas, tanto que alguns autores admitiam compor para ela, mesmo que a canção acabasse gravada por outro intérprete.

Elis brincava com a voz, cantava rindo, chorando, resmungando, imitando vozes e sotaques, da impostação à la Ângela Maria ao caipirês de Renato Teixeira e ao bexiguês de Adoniran Barbosa. Da dicção afetada das socialites ao timbre rouco de Louis Armstrong, tudo era pretexto para um malabarismo melódico-rítmico-fonético. Elis explorou como poucos as potencialidades da voz e fala humanas ao cantar. Mas, além das vozes e sotaques que simulava, tinha sua própria pronúncia, que evoluiu ao longo da carreira, confirmando o traço camaleônico de sua personalidade.

É difícil, se não impossível, saber o quanto de intencionalidade havia nas pronúncias que Elis adotou, o quanto esse processo era consciente e deliberado.

Sabe-se que há pessoas mais propensas do que outras a incorporar hábitos linguísticos do lugar em que passam a viver. Embora a idade seja um fator importante na sedimentação desses hábitos (quanto mais jovem alguém muda de cidade ou país, maior sua facilidade em incorporar o novo padrão sem deixar vestígios do antigo), algumas pessoas imitam com perfeição a fala alheia, enquanto outras são capazes de viver décadas numa nova terra sem jamais perder as características de sua fala original.

O fato é que, se num primeiro momento, Elis simplesmente adotou a pronúncia carioca, talvez para se inserir melhor num mercado profissional em que o sotaque sulista não seria bem aceito, após algum tempo desenvolveu uma pronúncia própria e única, um sotaque “elisiano”, se é que se pode assim chamá-lo.

Elis Regina Carvalho Costa era natural de Porto Alegre, portanto imagina-se que, até o momento de abraçar a carreira musical, falasse como uma típica cidadã gaúcha. No entanto, ao lançar seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, em 1961, ela já esboça uma pronúncia carioca que, por conta da Bossa Nova, começava a se tornar hegemônica na MPB, substituindo a articulação (e a impostação vocal) operística que predominara nas décadas de 1930 e 40.

Elis fixou residência em São Paulo a partir de 1964, e nessa cidade permaneceu até sua morte, em 1982. Seu s carioca (isto é, palatalizado em fim de sílaba) permaneceu inalterado até meados dos anos 1970, quando, aos poucos, foi substituído pelo impropriamente denominado s paulista (não palatalizado).

Pessoas não versadas em fonética ou dialetologia costumam referir-se a certos sons da fala brasileira por seus modelos prototípicos. Assim, o chamado r carioca (velar ou uvular, tecnicamente falando) não é próprio só do Rio, é padrão em boa parte do país. Da mesma forma, o r caipira deixou há muito de ser só interiorano, já que é usado por nativos de cidades como São Paulo e Curitiba.

As gravações de Elis entre 1975 e 1979 revelam características fonéticas um pouco diferentes do período anterior: um r cada vez mais gutural, incomum até no Rio de Janeiro; um l mais velarizado (como na pronúncia lusitana) e, vez por outra, a abertura das vogais pré-tônicas à maneira nordestina; momentos em que a voz soa mais anasalada, em outros menos; e assim por diante.

Especificamente em relação ao s final de sílaba, pode-se reconhecer em Elis três fases:

1) a primeira, em que o fonema soa tal como pronunciado no Rio (por exemplo, “casas” pronunciado como “cásach” ou “cásaich”);

2) a seguir, uma pronúncia mais próxima do brasileiro padrão (“cásaç”);

3) finalmente, um misto dos dois: “cásaiç”. Esta pronúncia a levou a articular “céus” como “céuis” em determinada canção.

Nossa querida Pimentinha constitui um riquíssimo caso de estudo, não só para musicólogos e críticos, mas também para linguistas.

Os estranhos nomes da MPB

A música popular brasileira atual tem sido marcada por um fenômeno incomum em outras épocas, bem como em outros países: a modificação dos sobrenomes dos artistas. Às vezes, o erro pode ser do próprio tabelião, e por isso um sobrenome italiano como Calcagnotto se torna Calcanhoto. Mas o mais frequente é que os próprios artistas simplifiquem seus nomes para facilitar a venda de discos, num claro reconhecimento de que o público tem dificuldade de soletrar nomes estrangeiros. Aí Vercillo vira Vercilo, Cañas vira Canhas, e assim por diante.

Curiosamente, isso ocorre com artistas, digamos, mais elitizados. Os mais populares têm feito o movimento inverso, duplicando consoantes para dar um ar sofisticado a nomes absolutamente comuns. E assim temos Gusttavo, Leitte, e uma série de grafias pouco ortodoxas, para não dizer estranhas mesmo.

Isso também acontece com atores de televisão. De um tempo para cá, tornaram-se frequentes as Alinnes, Paollas, etc. Há até uma atriz cujo sobrenome passou do prosaico Oliveira para Ólive, Óllive e finalmente Óliive (!). O motivo alegado em geral é a numerologia: tais grafias supostamente favorecem o sucesso. Crendices à parte, o êxito ou fracasso ligado à grafia do nome se deve mais ao gosto do público. Aparentemente, pessoas menos escolarizadas preferem nomes com grafias estrambóticas, cheios de k’s, w’s e y’s. Ao contrário, as de maior instrução optam pela simplicidade. Talvez por isso, a cantora Cláudia, cujo trabalho sempre teve por foco a MPB de boa qualidade, tenha caído em certo ostracismo, apesar do inequívoco talento, depois que, por razões numerológicas, passou a assinar-se Cláudya.

A intérprete da pronúncia

Esta semana Elis Regina teria completado 76 anos de vida. A Pimentinha, como era chamada, foi indubitavelmente uma das maiores intérpretes de nossa música popular, não só por seu grande talento e estilo inconfundível, mas também por ter lançado ao estrelado alguns dos maiores compositores da MPB dos anos 1960 e ’70, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco e tantos outros.

Elis dava às músicas interpretações definitivas, tanto que alguns autores admitiam compor para ela, mesmo que a canção acabasse gravada por outro intérprete.

Elis brincava com a voz, cantava rindo, chorando, resmungando, imitando vozes e sotaques, da impostação à la Ângela Maria ao caipirês de Renato Teixeira e ao bexiguês de Adoniran Barbosa. Da dicção afetada das socialites ao timbre rouco de Louis Armstrong, tudo era pretexto para um malabarismo melódico-rítmico-fonético. Elis explorou como poucos as potencialidades da voz e fala humanas ao cantar. Mas, além das vozes e sotaques que simulava, tinha sua própria pronúncia, que evoluiu ao longo da carreira, confirmando o traço camaleônico de sua personalidade.

É difícil, se não impossível, saber o quanto de intencionalidade havia nas pronúncias que Elis adotou, o quanto esse processo era consciente e deliberado.

Sabe-se que há pessoas mais propensas do que outras a incorporar hábitos linguísticos do lugar em que passam a viver. Embora a idade seja um fator importante na sedimentação desses hábitos (quanto mais jovem alguém muda de cidade ou país, maior sua facilidade em incorporar o novo padrão sem deixar vestígios do antigo), algumas pessoas imitam com perfeição a fala alheia, enquanto outras são capazes de viver décadas numa nova terra sem jamais perder as características de sua fala original.

O fato é que, se num primeiro momento, Elis simplesmente adotou a pronúncia carioca, talvez para se inserir melhor num mercado profissional em que o sotaque sulista não seria bem aceito, após algum tempo desenvolveu uma pronúncia própria e única, um sotaque “elisiano”, se é que se pode assim chamá-lo.

Nossa querida Pimentinha constitui um riquíssimo caso de estudo, não só para musicólogos e críticos, mas também para linguistas.

Luso e nordestino numa só voz
As gravações de Elis entre 1975 e 1979 revelam características fonéticas um pouco diferentes do período anterior: um “r” cada vez mais gutural, incomum até no Rio de Janeiro; um “l” mais velarizado (como na pronúncia lusitana) e, vez por outra, a abertura das vogais pré-tônicas à maneira nordestina; momentos em que a voz soa mais anasalada, em outros menos; e assim por diante.
O sotaque carioca da gaúcha
Elis Regina Carvalho Costa era natural de Porto Alegre, portanto imagina-se que, até o momento de abraçar a carreira musical, falasse como uma típica cidadã gaúcha. No entanto, ao lançar seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, em 1961, ela já esboça uma pronúncia carioca que, por conta da bossa-nova, começava a se tornar hegemônica na MPB, substituindo a articulação (e a impostação vocal) operística que predominara nas décadas de 1930 e ’40.
O falar paulista de Elis
Elis fixou residência em São Paulo a partir de 1964, e nessa cidade permaneceu até sua morte, em 1982. Seu “s” carioca (isto é, chiado em fim de sílaba) permaneceu inalterado até meados dos anos 70, quando, aos poucos, foi substituído pelo impropriamente denominado “s” paulista (não chiado). Pessoas não versadas em fonética ou dialetologia costumam referir-se a certos sons da fala brasileira por seus modelos prototípicos. Assim, o chamado “r” carioca (velar ou uvular, tecnicamente falando) não é próprio só do Rio, é padrão na maior parte do país. Da mesma forma, o “r” caipira deixou há muito de ser só interiorano, já que é usado por nativos de cidades como São Paulo e Curitiba.
As três fases do s “elisiano”
Especificamente em relação ao “s” final de sílaba, pode-se reconhecer em Elis três fases: 1) a primeira, em que o fonema soa tal como pronunciado no Rio (por exemplo, “casas” pronunciado como “cásach” ou “cásaich”). 2) A seguir, uma pronúncia mais próxima do brasileiro padrão (“cásaç”). 3) Finalmente, um misto dos dois: “cásaiç”. Esta pronúncia a levou a articular “céus” como “céuis” em determinada canção.

MPB, MPP e pop

Outro dia, ouvi um cantor português relatar que os intérpretes da terrinha em geral não gostam de cantar MPB por causa do uso do pronome “você” nas letras. É que em Portugal “você” é tratamento formal, de modo que um verso como “eu amo você” significa para eles algo como “eu amo o senhor” ou “eu amo a senhora”, o que parece uma declaração de amor aos avós.

Por outro lado, se cantores brasileiros cantassem canções portuguesas (o que, por sinal, não fazem), letras dizendo “tu és”, “tu foste”, “dizes” ou “fizeste” soariam para nós como aquelas valsas antigas com letras parnasianas dos tempos de Vicente Celestino, Pixinguinha e Ernesto Nazareth.

Ou seja, diferenças linguísticas acabam por atrapalhar o intercâmbio cultural entre nações irmãs. O fato é que a música popular brasileira faz algum sucesso em Portugal porque, apesar das letras, nossa música é realmente muito boa. Já a MPP (música popular portuguesa, na sigla inventada por mim) não é sequer conhecida por aqui e, pelo que sei, não faz sucesso nem entre os demais europeus.

Enquanto isso, a música pop anglo-saxônica circula livremente entre todos os países anglófonos sem obstáculos linguísticos. É que, salvo uma ou outra palavra, uma ou outra gíria, a língua inglesa é exatamente a mesma em todos os lugares. Aliás, a própria difusão internacional de filmes, séries de TV e canções de língua inglesa se encarrega de espalhar as novas gírias.

É claro que o soft power exercido pelas nações anglófonas se deve a uma série de razões, históricas, políticas, econômicas, sociais e culturais. Mas que a homogeneidade da língua contribui para isso não há dúvida.