Quando Ferdinand de Saussure lançou as bases da linguística moderna, em princípios do século passado, uma de suas teses mais importantes era a de que a ciência da linguagem deveria se ocupar da língua oral, isto é, do modo como os falantes efetivamente falam, pois, para ele, a escrita era apenas uma roupagem, ou antes um disfarce, que encobria a realidade da língua.

De fato, a escrita em geral não reflete a língua real, falada todos os dias, até porque a maioria das coisas que escrevemos nós o fazemos no registro formal, seguindo as regras da gramática normativa, que é em grande parte artificial. A escrita, aliás, oculta as diferenças regionais de pronúncia, já que em todas as regiões se escreve da mesma maneira.
Por todas essas razões, durante praticamente todo o século XX os linguistas relegaram o estudo da escrita a segundo plano e voltaram-se para a modalidade oral da língua. Além disso, esse foi o momento em que os estudiosos europeus e americanos se debruçaram sobre as chamadas línguas ágrafas (sem escrita), que, por sinal, são a maioria das línguas do mundo. Nesse sentido, fizeram um belo trabalho, registrando e descrevendo os falares de povos tribais, de comunidades rurais, de minorias étnicas, chegando em alguns casos até mesmo a salvar determinadas línguas da extinção.
No entanto, ao priorizar o estudo da fala, Saussure jamais disse que a escrita não fosse importante para a pesquisa. A questão era que, até então, só a escrita havia sido estudada, já que a linguística que se fizera até aquele momento era eminentemente histórica, e o único modo de estudar o passado das línguas era por meio dos registros escritos que elas deixaram. Portanto, a priorização da fala era apenas um recorte metodológico.
Com efeito, até o advento das gravações de áudio e vídeo, a escrita foi o único meio de registrar a língua e deixou importantes pistas sobre como as pessoas falavam. Até bem recentemente em termos históricos, não havia uma ortografia oficial para a maioria dos idiomas, e os redatores frequentemente escreviam como falavam. Com isso, é possível hoje deduzir a pronúncia que as palavras tinham na época em que os documentos foram escritos, bem como perceber as diferenças regionais de pronúncia.
Rimas em poemas também ajudam nessa dedução. Por exemplo, a rima de “faz” com “mais” em textos do século XIX permite inferir que “faz” já se pronunciava “fais” naquela época. Nos dois últimos versos da epopeia Os Lusíadas, obra máxima da literatura em língua portuguesa, Luís de Camões rima “veja” com “inveja”. É difícil acreditar que o vate português teria utilizado uma rima imperfeita justamente nos versos finais de sua obra-prima. Por isso, o mais provável é que no século XVI “inveja” se pronunciasse “invêja” (o que, aliás, faz sentido, já que provém do latim invidia, e o i breve latino resulta em e fechado e não aberto em português).
Mas a grafia também influi sobre a pronúncia. A preposição “sob” se escrevia e pronunciava “so” até o século XVI. Foi quando, por imitação do latim sub, de que a preposição portuguesa descende, acrescentou-se a ela um b, que em princípio era mudo. Ou seja, grafava-se “sob”, mas continuava-se a pronunciar “so” (como ocorre hoje com os nomes “Jacob” e “David”, que se leem “Jacó” e “Davi”). Com o tempo, porém, esse b puramente gráfico passou a ser articulado pelas pessoas que sabiam ler mas desconheciam a história da palavra. Assim, a pronúncia “sob” passou a ser sentida como mais culta e, portanto, mais correta do que “so”. Por sinal, “sob” é a única palavra da língua portuguesa terminada em b, até porque as únicas consoantes que nossa língua admite em final de palavra são l, m, n, r, s, x (raro) e z.
No Renascimento, época em que “sob” ganhou seu b, muitas línguas europeias adotaram grafias etimológicas. Foi o momento da introdução de y, ph, th, etc., nesses idiomas. No francês, em que as consoantes frequentemente eram mudas, era muito fácil adotar grafias que nada tinham a ver com a pronúncia, mas imitavam o grego e o latim. Foi assim que doit, “dedo”, passou a doigt por influência do latim digitus, conter, “contar”, passou a compter por causa do latim computare, e assim por diante. Até alguns equívocos etimológicos foram cometidos. Por exemplo, pois, que significava “peso”, passou a ser grafada poids por se acreditar que descendesse do latim pondus, quando, na verdade, provém de pensum.
Outros exemplos de influência da grafia sobre a pronúncia são as palavras portuguesas nascer e crescer e a palavra francesa joug, “jugo”. Até a Renascença, escrevia-se e falava-se “nacer” e “crecer”. Então, por razões etimológicas, passou-se a grafar “nascer” e “crescer”, com o sc do latim nascere e crescere. Hoje, em Portugal, essas palavras se pronunciam “nachcer” e “crechcer” (em algumas regiões, soam mesmo “nacher” e “crecher”). Em certos lugares do Brasil, hoje se diz “naicer” também por influência do sc.
Quanto a joug, sua forma medieval era jou, pronunciada “ju”. Com a introdução do g por analogia ao latim jugum, do qual deriva, os franceses passaram progressivamente a pronunciar “jug”. Essa é, que eu saiba, a única palavra francesa em que o g final não é mudo.
Finalmente, a pronúncia vulgar “tóchico” da palavra “tóxico” não é tão vulgar quanto parece. Afinal, ela é motivada pela grafia com x da palavra. O que quer dizer que quem começou a pronunciar “tóchico” em lugar de “tócsico” sabia ler, embora tivesse pouca cultura.
Sobretudo em idiomas com longa tradição escrita, como são as línguas europeias, é impossível estudar a língua sem levar em conta o modo como as palavras se escrevem. Embora as chamadas línguas de cultura, como o português e o inglês, representem apenas 4% das línguas do mundo, elas são faladas por 96% da população mundial. Ou seja, de longe os idiomas que mais despertam o interesse científico são os que têm ortografia.
Prof. Aldo, fico às vezes preocupado com o rumo do ensino de L. Portuguesa no país, pois os novos professores têm relegado o estudo da língua escrita e como consequência não ensinam a língua padrão escrita com base na gramática normativa. São poucos os linguistas, como o senhor, que se preocupam com isso. Sinceramente nem sei se ainda existe mestrado ou doutorado em Filologia. Talvez a preocupação com a língua oral nos EUA e na Europa seja sensata, mas no Brasil . . . Estou exagerando? Acho muito mais fácil alguém aprender a falar bem com base nos conhecimentos da língua escrita do que o inverso.
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Caro Patrick, a própria razão de ser do ensino de Língua Portuguesa na escola é o aprendizado da norma culta, afinal o popular se aprende sozinho. Essa postura dos professores que você menciona revela o descalabro da educação no Brasil. Além de serem poucos – e ruins – os cursos de formação de professores (até porque, com os péssimos salários da profissão, quase não há demanda), muitos formadores de docentes, inclusive na universidade pública, a título de contemplar uma agenda “de esquerda”, desprestigiam a escrita culta e promovem pseudociência em matéria de língua.
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Tem razão, prof. Aldo.
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[…] do mundo não têm expressão escrita (são as chamadas línguas ágrafas). Em outros dois artigos (A importância da escrita na pesquisa linguística e Língua oral ou língua escrita: qual é melhor?), no entanto, já expliquei que a modalidade […]
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Uma curiosidade um pouco fora de tópico:
Em Português, temos muitas palavras homógrafas, cuja pronúncia varia conforme sejam verbos ou substantivos. Notam-se elas ao formar frases do tipo “eu jogo o jogo”, “eu almoço o almoço”, “eu zelo com zelo” etc.
Em Espanhol, as palavras equivalentes não apenas se escrevem mas se pronunciam do mesmo jeito: “yo juego el juego”, “yo almuerzo el almuerzo”, “yo celo kon celo” etc.
Será que já houve uma época que em Português também se pronunciava tudo igual, fosse a vogal aberta ou fechada ?
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No período pré-histórico da língua (séculos VIII a XII), é bem provável que substantivo e verbo tivessem a mesma pronúncia, mas sabe-se que essa metafonia (isto é, alternância vocálica) começou bem cedo no idioma.
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