Pessoas que professam ideologias, sejam elas políticas, religiosas ou mesmo futebolísticas, tendem a achar que todos os seres humanos são igualmente ideológicos. Por sinal, uma frase frequentemente repetida pelos ideólogos de esquerda é “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”. Antes de mais nada, é preciso definir do que estou falando, já que essa palavra tem vários significados. Refiro-me à ideologia como crença numa doutrina, isto é, num conjunto de ideias e propostas que, para quem nelas crê, têm valor de verdade, portanto não são sentidas como crenças e sim como verdades absolutas. Pessoas assim não conseguem compreender a diferença entre crer e saber: para elas, tudo é objeto de crença, inclusive as afirmações embasadas em evidências concretas; logo, a própria ciência não passa de uma doutrina. Essas pessoas equiparam a eficácia de vacinas ou a esfericidade da Terra à virgindade de Maria ou a ressurreição de Jesus. E, obviamente, a ideologia em que acreditam é a verdadeira e as demais, falsas. Como, para elas, tudo é ideologia, elas não conseguem conceber uma postura filosófica e pessoal chamada pragmatismo, misto de ceticismo e bom senso, que consiste em não aceitar passivamente qualquer afirmação como verdade inquestionável e sempre preferir modelos de conduta e propostas de solução de problemas que já se tenham provado eficazes. Mas, sim, há pessoas pragmáticas, que não se deixam seduzir pelo canto da sereia de certas doutrinas e olham criticamente toda e qualquer afirmação ou proposta de solução. É verdade que são bem raras, até entre os chamados “intelectuais”, muitos deles também profundamente contaminados por ideologias, especialmente as políticas. E o mais irônico é que muitos desses intelectuais dizem ter uma visão “crítica” da realidade.
De fato, é bem difícil livrar-se das ideologias, primeiro porque, como disse acima, a maioria das pessoas não tem consciência de que é ideológica, mas pensa que sua crença é a própria Verdade; segundo porque somos doutrinados desde a infância por pais, professores, padres, pastores, lideranças políticas ou artísticas, influenciadores digitais, a mídia, etc.; terceiro porque, como humanos mortais que somos, padecemos de uma terrível fraqueza emocional que nos leva a nos agarrarmos desesperadamente a nossas próprias certezas, afinal a crítica pressupõe a dúvida, e temos aversão ao desconhecido, sobretudo ao desconhecido supremo que é a morte. Por isso, precisamos acreditar em divindades que nos protegem e salvam se formos devotados a elas, em vida após a morte e também em políticos salvadores da pátria, em sistemas políticos e econômicos que proporcionarão a felicidade e a paz eternas à humanidade, e assim por diante.
Só que as ideologias não são ideias isoladas, são conjuntos estruturados e coerentes de ideias e atitudes que são vendidos como um pacote completo. Se sou de direita, então tenho de ser contra o aborto, o casamento gay (e contra os gays de modo geral), as vacinas, a Teoria da Evolução e a favor da pena de morte, do armamento da população, do Estado mínimo, da privatização total e irrestrita de todos os serviços públicos, da inviolabilidade da propriedade privada, do garimpo na Amazônia, etc.
Já, se sou de esquerda, tenho de ser a favor do casamento gay, do ensino da ideologia de gênero nas escolas, da linguagem neutra de gênero, da liberação da maconha e das outras drogas, do controle estatal dos meios de comunicação, de um Estado forte e intervencionista, da estatização de todos os serviços públicos, do banimento dos dicionários de palavras que sejam consideradas politicamente incorretas, e por aí vai.
Quando se trata de ideologia, não há meio termo: ou se compra o pacote completo ou se é um traidor da causa, um alienado, um inocente útil, massa de manobra, um “isentão”, ou seja, alguém que, por ação ou omissão, serve à ideologia oposta. Não à toa, para os esquerdistas os isentões estão a serviço da direita, e vice-versa.
Só que a realidade é mais complexa do que sonha nossa vã filosofia — ou ideologia. Não há soluções mágicas para os problemas humanos, até porque somos criadores compulsivos de problemas. Nem o cristianismo, nem o islamismo, nem o marxismo, nem o neoliberalismo, nem a filosofia new age vão nos livrar de nós mesmos, embora os adeptos dessas doutrinas achem que sim.
Diante do cardápio de “soluções” oferecidas por essas ideologias, posso perfeitamente escolher aquelas que funcionam na prática, sejam elas de esquerda ou de direita, de modo frio e racional, portanto sem me deixar levar por paixões ou idiossincrasias. Posso concordar com a esquerda em certos pontos e discordar em outros, assim como posso fazer o mesmo com a direita. Mas, para que isso funcionasse na prática, seria preciso que todos fossem igualmente pragmáticos, o que está muito longe de acontecer.
Por exemplo, uma discussão como a que ocorre sobre a legalização do aborto em todos os casos e não só nos atualmente previstos na lei brasileira deveria dar-se com base em dados objetivos e não em dogmas religiosos. Primeiro, um embrião é um ser vivo e, mais, um ser humano ou só um projeto, um amontoado de células? Um embrião ou um feto pode ser considerado juridicamente um sujeito dotado de direitos? Ele tem consciência, é um ser senciente, ele sente dor, ele sabe que está vivo? A possível vida desse embrião vale mais do que a de um jovem negro morto pela polícia? Vale mais que a de um cão ou gato morto por maus tratos? Vale mais que a de uma galinha morta em ritual religioso? Vale mais que a dos insetos nos quais pisamos no dia a dia? E, se vale, com base em qual ética? Essa ética é universal? Tem amparo em evidências fáticas? Até qual fase da gestação o aborto deveria ser permitido, caso o fosse? As mulheres deveriam ser consultadas sobre algo que diz respeito a seus próprios corpos?
Indo além, a liberação do aborto melhoraria ou pioraria as condições de saúde pública? Aumentaria ou reduziria a criminalidade? Aumentaria ou diminuiria a mortalidade de mulheres jovens? Contribuiria ou não para a paternidade e maternidade responsáveis, para o planejamento familiar, para a erradicação da pobreza e da desigualdade social, para a superpopulação mundial? Como é a vida em países em que o aborto é legalizado e em países em que não é: melhor ou pior do que aqui?
Evidentemente, não tenho resposta a todas essas questões, embora saiba que especialistas no tema as têm para a maioria delas. Só que, nesse debate, o que prevalece não é o parecer técnico de quem estuda há décadas o problema, é a pressão de grupos ideológicos, tanto de um lado quanto de outro, os quais defendem suas posições apenas porque acreditam cegamente nelas — e acreditam porque foram condicionados desde muito cedo a acreditar. A ideologia é uma máscara que, de tanto ser usada, se cola de tal modo ao rosto de seu usuário que ele acaba por confundi-la com sua própria face.
Citei como exemplo a questão do aborto, mas poderia tratar igualmente da pena de morte, da redução da maioridade penal, do controle de natalidade, da descriminalização das drogas, das privatizações, da taxa de juros, do novo arcabouço fiscal, da linguagem neutra de gênero ou qualquer outra. Como sempre digo, teríamos o melhor dos mundos se todas as pessoas fossem racionais, bem educadas, bem informadas, emocionalmente equilibradas, bem intencionadas e, mais, altruístas, generosas, empáticas, simpáticas e sobretudo pragmáticas em vez de ideológicas, mas isso é utopia demais para a nossa comezinha humanidade, não é? Por isso, pragmatismo é mercadoria escassa no mercado. Abundantes mesmo são as crenças cegas e fanáticas e seus decorrentes atos de violência contra os defensores de outras ideologias ou do pragmatismo, atos esses sempre justificáveis por quem os pratica, já que estes são os detentores e conhecedores únicos da Verdade absoluta.
Aldo… utopia à vista! Toda vez que se desenha o ser humano perfeito…. utopia.
Mas eu vou mais além. Suponhamos que se defina, pragmaticamente, cientificamente, que o ser humano se forma na concepção. Ninguém pode garantir que as ideologias vão nessa conversa.
Quer um ser humano ideal? É aquele que pensa por si mesmo. Logo, vai se dar o contrário, mais contrário do que já existe: as divergências de posicionamento não vão perdoar o pragmatismo e o cientificismo. Vai tudo pro ralo…
Sei muito bem a diferença entre o ser humano ideal (que maravilha seria o mundo se ele existisse!) e o real. E sei que a maioria dos seres humanos se comporta e pensa de maneira puramente irracional – para não dizer estúpida! No entanto, minha crítica mais uma vez é contra as ideologias políticas (que nem são só políticas, já que também dão pitaco em questões de costumes, por exemplo) como pacotes prontos que você deve comprar por inteiro. Ser pragmático não é ser não ideológico (no sentido de visão de mundo, bem entendido), é assumir como ideologia uma postura de ponderação, racionalidade, bom senso e não de adesão fanática e incondicional a certas agendas. Em resumo, o ser humano perfeito não existe e nunca existirá – até porque acredito que nossa espécie vai se extinguir antes disso -, mas há pessoas que tentam ser o mais perfeitas possível, ao passo que outras não fazem a menor questão disso – muito pelo contrário!
Em tempo: muito obrigado por ter passado o fim de semana lendo meus artigos. Espero que lhe tenham sido úteis, ou pelo menos agradáveis.
Um abraço!
Seus artigos são ótimos. Escreve muito bem, se posiciona muito bem. Não vejo descompasso com as ideias linguísticas. O problema está em mim. Eu, confesso, sou um cara muito chato. Sabe aquela estória: é unanimidade – todos me acham chato demais. Mas é porque eu gosto de polemizar. É impressionante, não consigo mudar! Eu não sei vocês outros, mas eu estou aqui apenas passando uma chuva, e até espero que a chuva passe logo, porque, ao contrário do que possa parecer, não gosto de ficar perturbando ninguém. Eu me sinto enchendo a paciência dos outros, e isto nos dá uma péssima sensação.