Militância política e apadrinhamento na área de Letras das universidades públicas

Uma das grandes controvérsias que agitam o meio acadêmico na área de Letras é provocada pelo mau uso, decorrente do mau entendimento, da chamada teoria da variação linguística. Essa teoria, em sua essência, apenas revela o óbvio: que a língua varia de uma época para outra (é a chamada evolução linguística), de uma região para outra (dando origem aos regionalismos e, em certos casos, aos dialetos), de uma classe ou grupo social para outro e, finalmente, de uma situação de comunicação (como uma palestra ou um bate-papo entre amigos) para outra. Mais recentemente, acrescentou-se a essa teoria a variação entre língua falada e língua escrita.

Em nenhum momento, os propositores dessa teoria, como o linguista americano William Labov, disseram que determinada variedade linguística deveria ter mais direito à existência do que outra, assim como nunca disseram que qualquer variedade pode ser empregada em qualquer situação indiferentemente. No entanto, muitos maus linguistas, bem como muitos professores de língua mal formados (ou doutrinados em sala de aula), passaram a “politizar” a língua, vendo na defesa de certas variedades linguísticas e no ataque a outras uma bandeira político-ideológica a ser desfraldada.

E por que esses linguistas, invariavelmente encastelados em universidades públicas brasileiras, têm essa postura? Minha hipótese – e trata-se apenas disso, uma hipótese, pois, em conversas que tenho com eles, jamais confessam seus verdadeiros propósitos – é a de que, como militantes ou simpatizantes de certos partidos políticos de extrema esquerda, adotam a tese gramsciana de que é preciso fomentar a revolução aos poucos, de dentro para fora, “comendo pelas beiradas”, como se diz.

Mas por que esses profissionais e servidores públicos são, em sua grande maioria, de esquerda? Um observador ingênuo (ou nem tanto) diria que, por serem pessoas estudiosas e, portanto, esclarecidas, só poderiam situar-se no flanco esquerdo do espectro político. No entanto, conhecendo melhor os critérios utilizados pelas bancas examinadoras de concursos para preenchimento de vagas docentes em instituições públicas, percebe-se que a escolha feita por essas bancas não é neutra ou isenta nem prima exclusivamente pelo exame do mérito dos candidatos.

Quem já participou de algum desses concursos pode ter presenciado situações como as que eu presenciei ou das quais tive notícia e que passo agora a relatar.

Imagine um concurso para professor doutor em que há quatro candidatos, três dos quais doutorados pela maior universidade brasileira e um pela Sorbonne, sendo que um dos doutorados no Brasil já era professor de uma respeitada universidade pública, e, no entanto, todos os quatro foram reprovados porque aquela que seria a quinta candidata e que havia sido orientanda do presidente da banca no mestrado não pôde participar do concurso porque seu doutorado, feito no exterior, não havia sido convalidado no Brasil a tempo do concurso. Pois dois meses depois, foi aberto novo concurso para aquela mesma vaga, só que desta vez para professor mestre. E, para surpresa de todos (disclaimer: nesta expressão, uso ironia), a moça cujo doutorado não fora reconhecido no Brasil foi a vencedora!

Imagine agora um concurso que ainda nem havia sido oficialmente aberto, mas cujo vencedor já estava previamente escolhido. Um professor de determinado departamento de determinada faculdade de determinada universidade pública pretendia candidatar-se à vaga em outro departamento da mesma faculdade que havia sido aberta com a aposentadoria de determinado professor. O fato é que ele foi aconselhado a não concorrer, uma vez que, na própria reunião departamental que discutiu a abertura do concurso, veiculou-se a informação de que aquela vaga estava prometida a certa professora de uma certa PUC (não digo qual) que desejava encerrar sua carreira numa universidade pública. Realizado o concurso, adivinhem quem venceu? Quem disser que foi a professora vinda da PUC ganha um doce!

Para finalizar, pois os exemplos abundam, mas não quero abusar da paciência do leitor, tem aquele caso do concurso em que certo membro da banca atribuiu nota zero (ZERO!) a todos os candidatos exceto àquele que ele queria “emplacar”. Só que a presidente da banca fez o mesmo com todos os candidatos menos aquela que ela queria ver escolhida. Conclusão: todos os candidatos foram eliminados, a não ser os dois que não receberam zero. (E aqui vai uma consideração: por menos apto à vaga que seja um candidato, jamais alguém detentor de um doutorado é merecedor de uma nota zero.)

Comentou-se à boca pequena que o embate entre os dois membros da banca, ocorrido a portas fechadas como manda o regulamento dos concursos, foi tão vigoroso que pôde ser ouvido do lado de fora. Ao final, venceu o concurso a candidata preferida da presidente da banca. Detalhe: a moça já havia sido coautora da professora em diversos trabalhos publicados, e ambas, ainda por cima, eram colegas de sinagoga.

Esses poucos exemplos mostram que, não raro, os vencedores de concursos docentes em universidades públicas, especialmente na área de Letras, são escolhidos por critérios de afinidade pessoal, profissional e também, como não poderia deixar de ser, político-partidária.

O politicamente correto, a ideologia da neutralização de gênero e a Constituição alemã

O politicamente correto e seu mais novo rebento, a ideologia da neutralização de gênero, têm dado muito o que falar – mal, principalmente. Não à toa, tal a bizarrice dessa proposta, que, apesar de bem-intencionada, promete não chegar a lugar algum, pois suas bases lógicas, científicas e políticas são frágeis como bolha de sabão em espinheiro.

O problema é que a vida imita a arte, e vice-versa, e aquilo que achamos absurdo a ponto de virar motivo de piada de repente é levado a sério por gente insuspeita. Pois ontem o humorista português Ricardo Araújo Pereira publicou uma crônica satírica cuja leitura recomendo vivamente às minhas leitoras e aos meus leitores e que deveria fazer corarem as defensoras e os defensores do tal gênero neutro. Só que elas e eles não coram. Pelo contrário, elas e eles levam muito a sério uma ideia que não tem a menor possibilidade de prosperar. Tanto que elas e eles chegam a redigir documentos oficiais como a Carta Magna de um país de respeito nessa linguagem que nenhum ser humano ou ser humana em estado normal consegue falar.

Para verem que não estou mentindo, transcrevo abaixo a tradução para o português de um pequeno trecho da Constituição da República Federal da Alemanha, em sua redação mais recente, após a reunificação.

  • O Governo Federal: O Governo Federal é composto pela Chanceler Federal ou Chanceler Federal e pelas Ministras Federais ou Ministros Federais. Juntos, elas ou eles compõem o Gabinete.
  • O papel da Chanceler Federal ou do Chanceler Federal: A Chanceler Federal ou o Chanceler Federal tem uma posição de destaque no governo. A Chanceler Federal ou  o Chanceler decide quem se torna membro do governo, pois só ela ou ele tem o direito de formar um Gabinete. A Chefe do Governo ou o Chefe do Governo escolhe as Ministras ou os Ministros e faz uma proposta vinculativa para a sua nomeação ou exoneração do Presidente Federal. Ela ou ele também decide sobre o número de Ministras ou de Ministros e define suas áreas de responsabilidade. A Chanceler Federal ou o Chanceler Federal determina os pilares da política governamental (Princípio do Chanceler).
  • O papel da Ministra ou do Ministro: Embora a Chanceler Federal ou o Chanceler Federal tenha o direito de emitir instruções às Ministras ou aos Ministros, a Constituição também enfatiza que as Ministras Federais ou os Ministros Federais administram sua área de responsabilidade de forma independente e sob sua própria responsabilidade dentro do quadro político definido (Princípio Departamental).

Pois é, minhas amigas, meus amigos e mees amigues, cabe a todas, todos e todes vocês julgar se esse negócio de linguagem neutra de gênero faz algum sentido ou não – ou, como se diz lá em Minas: Tem base esse trem?

O coronavírus e o renascimento da ciência

Se é que podemos dizer que há algo de positivo nessa pandemia de covid-19, é o retorno triunfante do pensamento racional, especialmente em sua forma mais elaborada, a ciência. A coitadinha andava desacreditada e com pouco ibope desde inícios do presente século, quando uma avalanche de tentativas de restabelecer os dogmas religiosos e ideológicos como verdades absolutas, chegando-se mesmo a lançar dúvidas sobre fatos cientificamente comprovados, como o de que a Terra é redonda e vacinas funcionam, passou a assolar a humanidade – principalmente sua parcela menos informada e mais temerosa do desconhecido, que ela erroneamente chama de sobrenatural ou de realidade transcendente.

Claro, a história passa por ciclos: já vivemos a Pré-História, o humanismo clássico da Grécia antiga, o obscurantismo da Idade Média, o novo culto do homem e da razão durante a Renascença e o Iluminismo, que desaguou no incrível avanço científico-tecnológico dos séculos XIX e sobretudo XX. Mas talvez a sordidez dos líderes políticos desse período, com seus campos de concentração, seus gulags e duas guerras mundiais, tenha levado certas pessoas a um desencanto com o racionalismo e, consequentemente, à busca do suposto transcendente.

No entanto, a crise do coronavírus está nos mostrando que somente a ciência pode nos tirar dessa encrenca em que nós mesmos nos metemos. Que me desculpem os terraplanistas e antivacinistas de plantão, mas o que vai nos salvar não são as preces do Papa nem o jejum do nosso Presidente da República. Aliás, as constantes e vexatórias derrotas que ele tem sofrido ao insistir em contrariar a ciência mostram que, se quisermos compreender pelo menos um pouquinho como a natureza funciona, não é nos livros sagrados que encontraremos as respostas – pelo menos não as verdadeiras.

Tudo bem, se você acredita que terremotos, tsunamis, pandemias e desastres aéreos são enviados por Deus para testar a fé dos homens e que, rezando para ele, você conseguirá escapar são e salvo, isso é problema seu. Mais do que isso, é um direito seu!

Porém, como diria Karl Marx, outro ideólogo dogmático, você pode saltar do vigésimo andar de um edifício e acreditar que, graças à sua fé, você sairá voando, mas infelizmente é no chão que você vai se arrebentar. Dito de outro modo, contra fatos não há argumentos.

É claro que a ciência, no seu atual estágio, não tem todas as respostas (e talvez nunca venha a ter, pois a própria mente humana tem seus limites), mas ela tem o método seguro que nos leva da dúvida à certeza. Mesmo que você não acredite no método científico (provavelmente não se trata de descrer mas de não conhecê-lo e compreendê-lo), não há nada que prove que as explicações metafísicas funcionam melhor. Senão, não teríamos hospitais, as igrejas dariam conta de tudo.

Também certas teorias pseudocientíficas, na verdade, dogmas disfarçados, precisam ser combatidos, como o de que o aquecimento global tem causas naturais, de que a culpa pela existência da pobreza é dos ricos, ou de que a desigualdade entre brancos e negros começou no século XVIII com a escravidão. Claro que é preciso eliminar a injustiça, bem como salvar o planeta, mas não é maquiando a verdade e apontando falsos culpados que conseguiremos isso.

Infelizmente, a crença em dogmas é inculcada no ser humano desde a mais tenra idade e em casa (quem nunca ouviu falar de papai do céu?). Já o ensino de ciência só começa bem mais tarde, na escola, é fraco, precário e sobretudo burocrático. Ou seja, é mais importante decorar fórmulas que cairão no vestibular do que compreender o método científico, com seus experimentos e observações, testes e refutações de hipóteses, até chegar a um conhecimento que, se não é completo, pelo menos funciona para nossas necessidades e avança cada vez mais.

Outro ponto que quero destacar é que mesmo as curas supostamente milagrosas não resistem a uma análise científica mais rigorosa. Ou seja, muitos santos do passado foram canonizados com base em “milagres” que hoje são perfeitamente explicáveis pela razão. É claro que o Papa nem cogita descanonizar essas pessoas, mas o fato é que os milagres de hoje serão os casos clínicos rotineiros de amanhã. Além disso, a religião se apega muito ao milagre que salvou uma pessoa, mas não ao descaso de Deus com os milhares de outras pessoas, que não receberam a graça divina.

Portanto, se lhe faz bem rezar, meditar, fazer rituais e frequentar cultos (virtualmente, é claro!), continue; não tenho nada contra isso. Mas, por favor, fique em casa, lave bem as mãos e, quando a vacina contra a covid-19 estiver disponível – e estará, pode confiar – não deixe de tomá-la. Não vale a pena apostar contra a ciência; o preço dessa aposta pode ser alto demais.

Escola sem partido e escola sem ciência

O movimento Escola sem Partido, que já havia chamado a atenção da opinião pública ao conseguir no Supremo Tribunal Federal que redações do ENEM que supostamente ferissem os direitos humanos não pudessem ser anuladas, mas tivessem de ser corrigidas e avaliadas como as demais, voltou a chamar a atenção. Agora, no último dia 12, quatro estudantes foram detidos ao protestar com violência na Câmara Municipal de São Paulo contra a votação de projeto de lei inspirado no movimento. Ou seja, o debate sobre se o ensino pode/deve ou não seguir esta ou aquela linha ideológica está esquentando.

Antes de mais nada, convém explicar o que defende o referido movimento. Segundo seu próprio site (www.escolasempartido.org),

[n]uma sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade.

No Brasil, entretanto, a despeito da mais ampla liberdade, boa parte das escolas, tanto públicas, como particulares, lamentavelmente já não cumpre esse papel. Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, essas escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes.

[…]

O EscolasemPartido.org – único site em língua portuguesa inteiramente dedicado ao problema da instrumentalização do ensino para fins políticos e ideológicos – foi criado para mostrar que esse problema não apenas existe, como está presente, de algum modo, em praticamente todas as instituições de ensino do país.

[…]

O objetivo do movimento é claramente combater a doutrinação ideológica em sala de aula, notadamente de esquerda, visto ser a mais frequente em nosso país, bem como eventuais doutrinações de natureza religiosa ou moral. Isso inclui tudo – desde a pregação pró-marxista ou antimarxista até pregações contra ou a favor da teoria da evolução ou da conduta homossexual. Em outras palavras, tudo pode e deve ser discutido na escola, mas sem viés persuasivo, isto é, com neutralidade, isenção e direito dos alunos de conhecer todos os lados da questão.

Muitos detratores do movimento dizem que não é possível educar sem uma visão crítica da realidade. Sem dúvida, a escola deve ser um espaço crítico, no sentido de fazer o aluno pensar e não apenas aceitar passivamente o que lhe é imposto como verdade. No entanto, educação crítica é muito diferente de educação esquerdista, embora muitos pensadores de esquerda achem e defendam que somente a esquerda tem a capacidade de exercer a crítica. Por sinal, a teoria da comunicação desenvolvida pelos filósofos da chamada Escola de Frankfurt, que se autointitula “teoria crítica da comunicação”, é declaradamente anticapitalista (eu diria até “rancorosa” com o capitalismo), o que nos obriga a ter certa cautela no emprego da palavra “crítica”.

Antes de mais nada, é papel da escola difundir conhecimento, sobretudo o científico; valores políticos, morais e religiosos são atribuição da família. Como diz o educador Mário Sérgio Cortella, à família cabe educar, à escola cabe escolarizar. E, nesse sentido, não tenho notícia de forma de conhecimento mais crítica que a ciência. Não por acaso, cientistas sempre foram perseguidos pelas religiões, pelos monarcas absolutistas e por todo tipo de ditadores.

A meu ver, o grande problema da escola é que as chamadas “ciências humanas” muitas vezes não se comportam realmente como ciências: em áreas como história e sociologia, por exemplo, a postura científica por vezes dá lugar à ideologia. Lembro de um colega, professor de sociologia, que ensinava aos alunos que o amor é uma construção social. Ora, isso está em flagrante contradição com o que dizem – e provam – a biologia e a neurociência. Não só o amor é um sentimento universal (está presente em todas as culturas) decorrente de nossa bioquímica cerebral como existe também entre os animais (ao menos os superiores, como aves e mamíferos), assim como entre animais e humanos (quem tem um animal de estimação sabe muito bem disso!).

Essa ideia de que tudo é construção social, inclusive nossos traços biológicos mais básicos, como a identidade de gênero, é bastante difundida entre os humanistas e bastante cara aos professores das disciplinas de humanas. Portanto, falta às ciências humanas um pouco de cientificidade.

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Se os leões caçam e comem antílopes, para o zoólogo isso não é nem bom nem mau, é um fato natural, já que a natureza não se pauta por princípios morais e sim por leis físicas. Do mesmo modo, se uma estrela, ao fim de sua vida, se expande e engole todos os corpos celestes que orbitam à sua volta, isso tampouco é bom ou mau para o astrônomo, é apenas mais um fenômeno físico do qual ele deve dar conta com o conhecimento científico de que dispõe.

Do mesmo modo, guerras, massacres, ondas migratórias, episódios de fome ou de epidemias e a própria evolução das sociedades, que gera desigualdades dentro delas e entre elas, tudo isso faz parte dos mecanismos naturais que regem as sociedades humanas e que os sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e historiadores devem saber explicar de forma objetiva por meio da enunciação de leis gerais. Dito de outro modo, cabe à ciência fazer juízos de verdade e não juízos de valor. Cabe aos cientistas constatar os fatos, ver neles o que há de geral, repetitivo e previsível e, sem atribuir à natureza ou à sociedade fins morais, elaborar um modelo teórico que seja capaz de explicar e prever a maioria dos fenômenos observáveis.

Portanto, se os nazistas mataram seis milhões de judeus durante o Holocausto, isso não deveria ser visto pelos historiadores nem ensinado pelos professores de História como algo bom ou ruim: trata-se de mais um dentre tantos fatos históricos que obedecem a uma lógica, e descobrir qual é essa lógica que norteou centenas de outros massacres e centenas de outros regimes tirânicos ao longo da história é a tarefa de uma ciência que pretenda explicar a evolução temporal das sociedades humanas. Se o nazismo foi bom ou mau, cabe aos próprios educandos, mediante a apresentação isenta de todos os fatos que o precederam e motivaram, concluir. Isso sim é exercício do senso crítico.

A partir do momento em que um professor discursa em sala de aula sobre a “crueldade” do capitalismo e sobre como somente o socialismo de modelo petista, cubano ou venezuelano poderá levar os seres humanos à felicidade eterna, ou quando aponta a “perversidade” da civilização branca cristã europeia contra os pobres e indefesos negros africanos, sem contextualizar os fatos históricos e mostrando apenas os aspectos positivos de um lado e os aspectos negativos do outro, ele não está fazendo ciência, está promovendo ideologia. E a ideologia é o revés da ciência, já que esta se apoia em fatos e aquela, em crenças. Mesmo que a maior parte da sociedade acredite que o homem descende de Adão e Eva, isso é uma crença, não um fato. Já a evolução das espécies pela seleção natural é um fato em favor do qual existem inúmeras evidências e que pode ser constatado empiricamente a qualquer momento. Aliás, a própria ação humana tem influído na evolução das espécies diante de nossos olhos. O problema é que o ensino das chamadas ciências humanas se assemelha mais à pregação criacionista do que ao ensino da teoria da evolução. Penso mesmo que a antipatia dos estudantes de humanas pelas ciências naturais, assim como a péssima qualidade do nosso ensino de ciências, tem contribuído para o divórcio entre ciências do homem e ciências da natureza. A partir daí, temos desde professores de humanas que acreditam não serem os fatos sociais explicáveis pelo método científico, como se uma intervenção divina a todo momento impedisse as sociedades de seguir seu curso natural, até educadores que, crendo em determinada doutrina, seja ela o criacionismo bíblico ou o marxismo, tomam sua crença por verdade absoluta e passam a sentir-se no dever de “salvar as almas dos alunos”, levando-lhes a iluminação dessa Verdade. Ou seja, ainda que bem-intencionados, tais professores cedem ao dogmatismo, cuja consequência prática é a doutrinação, que em casos extremos pode chegar a tentativa de lavagem cerebral. E ninguém é mais inimigo do dogmatismo, portanto ninguém tem mais senso crítico do que a ciência. Falta aos humanistas descobrir isso.

A censura ideológica

Estamos vivendo tempos estranhos e perigosos. Na era da pós-verdade, opiniões valem mais do que fatos, e posições divergentes da ideologia dominante, isto é, ditada por certos grupos de influência, são prontamente criminalizadas. Hoje, a democracia  nos permite pensar e dizer o que quisermos, desde que pensemos e falemos “dentro de certas caixinhas”, a mais famosa das quais atende pelo nome de “politicamente correto”.

Atualmente, a ciência está desacreditada. A opinião arrogante de políticos populistas vale mais do que o parecer de dezenas, centenas de especialistas. Basta ver o modo como Donald Trump trata a questão do aquecimento global e das mudanças climáticas – que para ele não passam de invenção dos chineses para arruinar a economia americana.

A formatação das ideias é promovida hoje em dia tanto pela esquerda quanto pela direita, e tanto em regimes de força como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte quanto em sociedades supostamente democráticas, como os Estados Unidos e o Brasil.

Discutir temas polêmicos ou delicados, como os que envolvem drogas, aborto, religião, homossexualidade, racismo ou diversidade cultural, longe de ser algo salutar para o convívio social e o aperfeiçoamento democrático, como já foi no passado, tornou-se algo extremamente perigoso: basta ferir a suscetibilidade de algum grupo de pressão – as chamadas “minorias” – para ser colocado na berlinda e exposto à execração pública, além de sofrer consequências mais graves, como demissão, processo judicial, etc.

Não há como negar que o acesso à voz e à visibilidade por parte de grupos que anteriormente não eram sequer levados em conta representou um grande progresso social, assim como a luta por direitos iguais, uma questão indiscutível de justiça, só pode ser digna de aplauso. O problema é quando os papéis se invertem, e o grupo oprimido se torna opressor. Toda vez que se rompe o equilíbrio dos contrários, e um dos lados subjuga o outro, o resultado é violência, seja ela física ou simbólica.

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Terça-feira passada, dia 8, o engenheiro de software americano James Damore acabou demitido do Google por ter publicado em seu blog pessoal um artigo em que justifica a ausência de diversidade de gênero (leia-se “reduzido número de mulheres”) no Vale do Silício por diferenças biológicas entre os dois sexos. Sua publicação foi considerada “uma asneira sexista”, que dissemina “estereótipos de gênero”, dentre outras tantas críticas.

Em seu artigo, Damore afirmou que “as opções e as capacidades de homens e mulheres divergem, em grande parte devido a causas biológicas, e essas diferenças podem explicar por que não existe uma representação igual de mulheres (em posições) de liderança”.

Segundo o engenheiro, aptidões naturais levam os homens a ser programadores de informática enquanto as mulheres tendem mais “aos sentimentos e à estética do que às ideias”, o que as levaria a escolher carreiras nas áreas “social e artística”.

A argumentação de Damore, considerada sexista pela imprensa americana, reacendeu a polêmica sobre a existência de uma certa cultura machista no universo da tecnologia, majoritariamente composto por homens. No próprio Google, 69% dos funcionários são homens, proporção que chega a 80% na área tecnológica; no Facebook, 73% dos cargos de chefia eram ocupados por homens em 2016. Na Apple, o percentual chega a 63%.

A questão é que a diversidade de aptidões entre homens e mulheres é objeto de discussão até no meio acadêmico, em que, de um lado, especialistas das ciências biológicas, como neurocientistas, apresentam dados concretos, obtidos em experimentos controlados e com a utilização de alta tecnologia, mostrando as diferenças entre o cérebro masculino e o feminino e suas repercussões na realização das mais diversas atividades, e, de outro, estudiosos das ciências sociais argumentam que a histórica preferência das mulheres por carreiras humanísticas é fruto de condicionamento social e não de pendor genético.

Pelo menos, já está provado cientificamente que homens e mulheres têm habilidades distintas, o que, teoricamente, impactaria na escolha da profissão. Qualquer um sabe que as mulheres são em geral mais habilidosas que os homens na realização de tarefas que exijam coordenação motora fina (além, é claro, de terem mãos mais delicadas), o que faz com que as indústrias prefiram ter mulheres na linha de montagem de equipamentos minúsculos, por exemplo. A mesma ciência demonstra que os homens têm geralmente mais facilidade para lidar mentalmente com sistemas tridimensionais, que envolvam as noções de espaço e profundidade, como a concepção de estruturas arquitetônicas ou a operação de veículos. (Um amigo meu costuma comentar maldosamente que é fácil descobrir num estacionamento quais carros pertencem a mulheres.) Portanto, não se pode excluir por princípio a hipótese de que a aptidão lógica e matemática também esteja ligada a fatores sexuais.

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Todos sabemos que bilhões de anos de evolução biológica moldaram diferentemente os cérebros do homem e da mulher em função das próprias necessidades de sobrevivência da espécie. Foi a tarefa de caçar o que fez no macho desenvolverem-se os músculos, assim como a delicadeza da fêmea era essencial no cuidado da prole. Essa divisão primitiva de tarefas, que partilhamos com muitas outras espécies animais, certamente moldou também nossas capacidades cerebrais.

A ideia de que os homens são mais agressivos, decididos, pragmáticos, lógicos, materialistas, enquanto as mulheres são mais sensíveis, carinhosas, atenciosas, delicadas, místicas, é, sem dúvida, um estereótipo. Mas os estereótipos, assim como os preconceitos, nascem da observação de certas tendências que se repetem. Dito de outro modo, todo estereótipo tem um fundo de verdade. O erro está na generalização. Há homens sensíveis e mulheres com instinto de liderança. Há decoradores e engenheiras, bailarinos e jogadoras de futebol. Mas que há um predomínio masculino nas profissões “tecnológicas”, assim como uma maior presença feminina em áreas como Letras, Pedagogia, Psicologia e Fonoaudiologia, é um fato inegável. Se é produto de nossa biologia ou de nossa cultura patriarcal, trata-se de um ponto ainda em aberto, mas as pesquisas nesse campo avançam sem parar, e em breve deveremos ter uma resposta definitiva.

De todo modo, defender qualquer das duas correntes é legítimo, já que a própria ciência ainda não bateu o martelo. O problema é que, nos dias de hoje, a ciência, mesmo com seu método lógico, sistemático e abundantemente provido de evidências concretas, nada pode contra a ideologia, essa tapa que se tenta pôr nos olhos das pessoas para que vejam apenas a parte da realidade que interessa a certos grupos que elas vejam. Pouco importa que as geleiras estejam derretendo, o nível dos oceanos subindo e ilhas paradisíacas já estejam desaparecendo do mapa; tudo não passa de invenção dos chineses!

As razões da desigualdade entre ricos e pobres, entre a Europa e a África, entre homens e mulheres, entre gays e héteros, nada disso pode ser livre e democraticamente discutido, mesmo que à luz da ciência, quando o debate é sombreado pelo medo da represália, pela censura ideológica, pela ameaça da excomunhão moral, versão moderna da Inquisição. Não importa quantas evidências você tenha em favor de um argumento; se ele consta no index das opiniões não autorizadas pela patrulha do politicamente correto, é melhor calar-se para preservar sua paz de espírito – e seu pescoço!

Quão humano é ser desumano?

 “A humanidade é desumana”
Renato Russo

Lá pelos idos de 2008, após uma visita a várias penitenciárias brasileiras, o então relator da Comissão Parlamentar de Inquérito do sistema carcerário, deputado federal Domingo Dutra, afirmou que “grande parte dos presídios visitados não serve nem para bichos”. Essa frase, cunhada para produzir indignação na opinião pública pelas condições subumanas em que se encontravam (e ainda se encontram) os presos no Brasil, causou, na época, algumas manifestações de indignação em sentido inverso e revela muito da ideologia subjacente à língua. Afinal, o que se subentende é que criminosos, inclusive os frios, violentos e irrecuperáveis, merecem um tratamento mais digno do que animais inocentes e indefesos apenas por serem… humanos.

Volta e meia, ouve-se algum comentário de que os pacientes do sistema público de saúde brasileiro são tratados como bichos, ou de que o filho rebelde trata a mãe feito um bicho. No entanto, a expressão “tratado como bicho”, usada para indicar desrespeito à dignidade humana, não é exclusividade do português, já que existe em muitas outras línguas.

Na verdade, ao usar a metáfora animal para criticar os presídios brasileiros, o deputado valeu-se de uma retórica que remete à ética judaico-cristã, segundo a qual o homem é a imagem e semelhança de Deus e, portanto, a vida humana – inclusive a dos mais abjetos criminosos – é sagrada; já a dos animais não é, tanto que os judeus tinham o hábito de sacrificá-los em honra ao sanguinário deus Javé. Alguns desses sacrifícios eram bem cruéis (deixava-se sangrar um carneiro até que morresse de hemorragia; outras vezes, imolava-se o animal vivo), e tudo isso era feito com os mais elevados sentimentos “humanos”.

Pela mesma razão, a Igreja Católica se opõe veementemente ao aborto e à eutanásia entre humanos, mas nada diz das milhares de clínicas veterinárias que, todos os dias, “sacrificam” (percebam a conotação religiosa desse termo) cães e gatos sem nenhum drama de consciência, nem dos médicos nem dos donos, provavelmente porque “animal não tem alma”, logo não vai para o Paraíso nem para o inferno. (Por que será que “Paraíso” se escreve com maiúscula e “inferno” não?)

A ética, predominante em nossa cultura, que norteia a expressão “tratar como bicho” não tem por critério de julgamento categorias como puro x impuro, inocente x criminoso, útil x nocivo, etc. Seu critério é humano x não humano. Por essa ética, o mais sórdido e canalha dos seres humanos ainda é melhor do que o mais puro e indefeso dos animais só porque é humano. Trata-se de uma ética especista enraizada na língua. (Especismo é a discriminação que o ser humano pratica contra as demais espécies biológicas. Portanto, algo não menos abominável do que o racismo, com a diferença de que este, por se dar contra humanos, causa mais revolta – pelo menos hoje em dia, quando a Igreja já reconheceu que negros e índios são humanos e, por conseguinte, têm alma, coisa que eles não tinham no tempo da escravidão.)

Mas o que significa, afinal, o termo “humano”? Como designação de uma espécie biológica – o ser humano, ou Homo sapiens –, “humano” opõe-se a “inumano” (isto é, animal, vegetal, mineral, extraterrestre, ou o que mais se possa imaginar). Já oposto a “desumano”, “humano” refere-se a certos atributos de bondade, generosidade e piedade que, supostamente, só nós humanos possuímos. (A crença de que só nós temos essas qualidades de caráter é bem questionável: animais também se expõem ao perigo para salvar seus filhotes ou mesmo seu dono, humano. Podem dizer que isso é instinto; mas, nesse caso, o altruísmo humano também o seria.) A língua inglesa faz uma interessante distinção entre human e humane, em que o primeiro termo tem sentido biológico e o segundo, moral.

Todo conceito linguístico implica seu oposto. No livro Semântica estrutural, o linguista e semioticista lituano Algirdas J. Greimas demonstrou que qualquer significado se organiza numa rede semântica que estabelece ligações com seus contrários e contraditórios – mesmo quando nem todos esses termos lógicos encontrem expressão linguística em determinada língua. Portanto, “bondade” implica “maldade” e também “não bondade” e “não maldade” (é possível não ser nem bom nem mau: é o chamado termo neutro da semiótica greimasiana). Se nos vangloriamos de ter a virtude da bondade, é porque está implícito em nós o vício da maldade. Os animais não são nem bons nem maus: são naturais.

A palavra “desumano” como sinônimo de “cruel” remete ao seu antônimo “humano” como sinônimo de “generoso, piedoso, solidário”. Está implícita aí a associação do atributo de humanidade ao de bondade. No entanto, o homem é o único ser na face da Terra capaz de ser desumano. A crueldade é um atributo típica e exclusivamente humano (os animais podem ser ferozes, jamais cruéis), afinal o homem é o único ser que tortura e mata por prazer. Enquanto nos outros animais a violência é um instinto de sobrevivência e, portanto, desprovida de maldade, em animais autodenominados “racionais” como nós, que podemos refletir sobre os nossos atos e garantir a nossa sobrevivência por outros meios, a brutalidade deliberada é movida por um desejo sádico de prazer. Por isso, nos regalamos com o sofrimento de nossos inimigos (aliás, só o homem tem inimigos – os animais têm predadores).

A natureza selvagem nos parece bruta, cruel, por isso mesmo imperfeita, como se Deus tivesse criado o mundo de maneira displicente e deixado a nós, humanos, a tarefa de concluir o trabalho, criando uma segunda natureza, chamada civilização, em que as “falhas” deixadas pelo Criador seriam corrigidas por nossa racionalidade e senso ético. A caçada, com toda a sua sanguinolência, seria substituída por uma prática bem mais racional e piedosa: a pecuária. Entretanto, a maneira como o gado ou as aves são tratados em criadouros para o abate (isto é, tratados “como bichos”) é bem pior – e mais desleal – do que o modo como um leão caça um antílope.

Em resumo, na natureza não há bem nem mal: os juízos morais são invenção humana. É por isso que reconhecemos em nós mesmos – e apenas em nós mesmos – os atributos da bondade e da maldade. Porém, somos presunçosos o suficiente para estabelecer – inclusive linguisticamente – que em nós a bondade é natural e a maldade, um desvio. Não obstante, todos nós praticamos ou aceitamos que se pratiquem crueldades contra a natureza (como a derrubada de árvores, as queimadas nas florestas, o abate, a caça predatória, o uso de animais em experiências científicas e até mesmo a poluição ambiental para a qual todos nós contribuímos, consciente ou inconscientemente) ou contra nossos semelhantes e, mesmo assim, continuamos dormindo com a consciência tranquila. Essa visão antropocêntrica da realidade, eivada de juízos de valor altamente tendenciosos, não poderia deixar de se refletir na língua que falamos e, portanto, nas expressões que utilizamos. E aí caímos num círculo vicioso: a ideologia especista enseja expressões linguísticas que, usadas inconscientemente no dia a dia, reforçam e reafirmam essa ideologia. É por isso que o relator da CPI dos presídios conseguiu provocar indignação com sua frase – embora, em alguns casos, por motivo oposto ao pretendido.

Uma última reflexão: um grande amigo meu costuma dizer que a educação serve para ensinar o que é certo, pois o errado se aprende sozinho. Nada mais verdadeiro, nada mais “humano”.