A autoajuda e a etimologia

Os gurus da autoajuda, dentre os quais até médicos, psicólogos, especialistas em gestão, etc., costumam apresentar argumentos retirados das mais diversas fontes para embasar seus ensinamentos. E aí entra ciência, pseudociência, filosofia, religião, misticismo, astrologia… Por exemplo, esses gurus adoram usar física quântica em suas argumentações: para eles, tudo pode ser explicado pelos quanta! O problema é que nenhum físico quântico de verdade endossa as afirmações desses mentores da autoajuda.

Mas um conhecimento que eles adoram invocar para sustentar suas teses é a etimologia. Só que a de araque, não a etimologia séria, científica. Ouço frequentemente na boca de palestrantes motivacionais que a palavra crise é da mesma origem de crescimento e que, portanto, toda crise por que passamos é uma oportunidade para nosso crescimento pessoal, profissional e mesmo espiritual. Belo ensinamento, sem dúvida, com a única ressalva de que a origem comum de crise e crescimento é uma fake news: crise, do grego krísis, vem de uma raiz indo-europeia que significa “separar” (um cognato é o latim cernere, que nos deu discernir), ao passo que crescimento, do latim crescere, vem de outra raiz, igualmente indo-europeia, que significa “crescer, florescer, brotar”.

Também já ouvi um palestrante de autoajuda associar a palavra coluna, referindo-se à coluna vertebral, ao latim cum luna, “com a lua”, e costela a cum stella, “com a estrela”. A partir daí, ele estabeleceu relações mirabolantes entre dores nas costas e a influência dos astros.

Outra pérola que ouvi numa palestra de autoajuda (antes que me perguntem, não, não costumo frequentar esse tipo de evento, mas já fui a alguns) foi a associação feita entre as palavras livro e livre. Como resultado, o palestrante proclamou uma verdade — que a leitura de bons livros liberta a alma —, só que com base em outra fake news etimológica. Livro vem do latim lĭbĕr, lĭbrī, que significa “casca de árvore” e, por metonímia, “livro”, já que esse material era usado para escrever antes da descoberta do papiro. Já livre vem de lībĕr, lībĕră, lībĕrŭm, adjetivo latino que, pela própria grafia e flexão, revela ser de outra origem.

O fato é que, em matéria de língua, todo mundo se acha doutor, que dirá esses gurus que cobram fortunas por suas palestras! Logo, consultar um dicionário etimológico ao preparar suas preleções não faz parte da rotina desses profissionais. Aliás, desconfio de que muitos até sabem que suas informações linguísticas estão erradas, mas as veiculam mesmo assim porque causam impacto positivo — e é isso que eles visam em primeiro lugar.

2 comentários sobre “A autoajuda e a etimologia

    1. Esses vídeos de reconstrução de línguas antigas são muito interessantes, ainda mais quando usam inteligência artificial. O único problema é que não temos muita segurança para reconstruir a fonética de idiomas antigos; a morfologia e a sintaxe são bem mais fáceis e confiáveis. Não à toa, as pronúncias de todas essas línguas se parecem, e temos a impressão de que estamos ouvindo sempre a mesma língua.

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