Nestas duas primeiras décadas do século XXI, temos visto o mundo passar por várias mudanças – a meu ver para pior. Como todos aqueles que têm um pouco mais de idade (no meu caso, nem tanta assim rs), sinto saudade dos meus tempos de infância e adolescência. Na verdade, acho que todo mundo já sentiu, sente ou sentirá saudade desses tempos de despreocupação com o futuro, algo ainda tão distante, e de quase nenhum passado a recordar, quando só o presente importa. E aí temos a tendência a achar que esses tempos foram os melhores não só para nós, mas para todas as pessoas. Olhamos para trás e achamos que nunca, nem antes nem depois, o mundo foi tão bom como naquela época em que éramos mais jovens. Não consultei muitas outras pessoas sobre isso, mas tenho para mim que essa sensação deve ser universal – exceto, é claro, para quem teve uma infância horrível, de privação e violência, por exemplo.
Todavia, no meu caso – e perdoem-me se estou sendo chauvinista –, fico achando que o tempo em que fui criança ou adolescente coincidiu de fato com a melhor época da humanidade, pelo menos nesta parte do planeta que convencionamos chamar de Ocidente.
Se fizermos um retrospecto do que foi a história da espécie humana e em particular a história de nossa civilização, talvez os amigos leitores concordem comigo. Comecemos pela Antiguidade clássica. A civilização greco-romana nos legou um inestimável patrimônio de cultura, arte, filosofia, ciência, fundamentos de ética e moral, mas era, ao mesmo tempo, uma sociedade escravagista, patriarcal, belicosa, xenófoba e dominada por tiranos – mesmo a chamada democracia ateniense não era assim tão democrática, já que excluía a maior parte da população. Portanto, foi uma época de muito arbítrio e pouca liberdade.
Então vieram os mil anos da Idade Média com seu obscurantismo, fanatismo religioso, guerras, fome, peste, falta de higiene, caça às bruxas, ódio a todo conhecimento que não estivesse de acordo com a Bíblia, fogueira aos hereges e nenhuma liberdade de pensamento.
As coisas parecem melhorar com o Renascimento e sua cultura do homem, mas a Santa Inquisição continua a postos, e ainda surgem os monarcas absolutistas. Há uma Revolução Científica acontecendo no século XVII, mas cientistas e pensadores ainda são condenados à prisão ou à morte (Galileu Galilei e Giordano Bruno que o digam). Há também um movimento chamado Iluminismo no século XVIII pregando o estado laico, a separação entre os poderes e o sistema democrático representativo. Mas ainda durante todo o século XIX pouco se pode falar de democracia. Mesmo os regimes republicanos que começam a surgir no Novo Mundo com a independência das antigas colônias europeias têm pouco de democráticos ou representativos. Talvez um pequeno respiro nessa sucessão de tragédias tenha sido a Belle Époque, breve intervalo entre guerras, de 1870 a 1914, em que floresceram as artes e as ciências, e o Ocidente respirou alguma liberdade.
Aí vem o primeiro grande abalo planetário com a Primeira Grande Guerra e seus milhões de mortos, seguida da epidemia conhecida como Gripe Espanhola. Esse conflito descortinou um período sombrio de crise econômica, com a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a subsequente recessão-depressão dos anos ’30, e de crise política, com a ascensão do fascismo e do nazismo, culminando numa convulsão global ainda maior, a Segunda Guerra Mundial.
A partir daí, apesar do início da chamada Guerra Fria e das tensões políticas dela advindas, a Europa ocidental, reconstruída pelo Plano Marshall, e a América vitoriosa começam a viver um período de paz, democracia, mobilidade social, secularismo, liberdade sexual, de costumes e de expressão e florescimento cultural nunca antes vistos: é a era da cultura pop, dos Beatles, de Woodstock, da televisão, da social-democracia e seu estado de bem-estar social. A Europa ainda é atormentada de vez em quando por alguns atentados terroristas de inspiração comunista, mas o clima em geral é de tranquilidade e de efervescência intelectual e artística. Além disso, é a época do conforto: da refrigeração, do aquecimento central elétrico, do chuveiro elétrico, dos eletrodomésticos…
A queda do muro de Berlim em fins dos anos ’80 e o consequente fim da Guerra Fria, aliados ao surgimento da globalização, parecem apontar o início de uma nova era de prosperidade e paz. Só parece. O atentado do 11 de Setembro de 2001 substitui o terrorismo de esquerda pelo terrorismo islâmico. Novos inimigos surgem no horizonte: o Estado Islâmico, a China, ditadura que desponta como a segunda maior potência econômica mundial, a Rússia de Putin e seu desejo de ser o novo imperador do mundo e de nos pôr à beira da Terceira Guerra Mundial. Paralelamente, democracias até então sólidas começam a periclitar: Orban na Hungria, Salvini e Meloni na Itália, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil… A guinada à direita já se esboçava nos anos ’80 com Thatcher, Kohl, Reagan e João Paulo II, ladeada pelo retorno triunfante das religiões e do misticismo na virada do milênio e a progressiva derrocada do laicismo e ascensão de fantasmas como negacionismo, pós-verdade, fake news e outros venenos do esclarecimento.
Como cereja do bolo, chegam as modernas tecnologias, como a inteligência artificial, trazendo o emburrecimento das mentes e a robotização do ser humano, e o aquecimento global, causador das mudanças climáticas, querendo indicar que nosso modelo de civilização globalizado e consumista está chegando aos estertores.
Enfim, o ciclo de paz, prosperidade e resplendor cultural que se estendeu de aproximadamente 1950 a 2000 parece que terminou. Curiosamente, esse período histórico coincide com o reinado da recém-finada rainha Elizabeth, o que de fato sinaliza o fim de uma era.
Pareço muito pessimista? Talvez. Mas creio que o pessimismo é a melhor forma de realismo. Certa vez disseram ao mestre José Saramago que ele parecia um profeta, tal era o grau de acerto de suas previsões sobre o futuro da humanidade. Ao que ele respondeu que é fácil ser profeta: basta prever o pior cenário possível; certamente será este o que se verificará.
Acho sua visão bastante comedida. Por tudo que tenho “revisado”, nossa história decadente é muito mais horrorosa em suas finalidades. O lema de alguns, “do caos nasce a ordem”, determina para onde vamos. O ser humano não é mais necessário para eles.
Prezado Aldo:
Você foi criança e adolescente no Ocidente como americanos e europeus ocidentais entendem, hoje, essa palavra? Ou foi, como imagino, criança e adolescente no Brasil? Porque, aqui, decaímos sem nunca termos atingido o apogeu…
Um abraço,
Rodrigo.
P.S.: Nunca li nada a respeito, mas deve ser universal. Nunca passei nenhum tipo de privação, mas morava no interior do interior de Minas, numa cidade que até hoje não tem nada. E foi uma infância maravilhosa. Pela alegria com que eu vejo até crianças de rua brincarem, isso deve valer até para as que passam privações.
Rodrigo, conforme expus em outro artigo (https://wp.me/p6Nigb-sw), considero que o Brasil e toda a América Latina também fazem parte do Ocidente. De fato, nunca atingimos o apogeu – e talvez nunca o atinjamos (olha eu aqui sendo pessimista de novo!) -, mas vivemos tempos melhores no passado. Eu até arriscaria dizer que este país já foi mais desenvolvido do que é hoje, especialmente em termos culturais.
É, eu sei, lembro-me desse texto, mas é que, neste, você falou de uma fase de prosperidade e paz que diz mais respeito ao “centro” do Ocidente que à sua “periferia”; ou, para o dizer mais à moda de hoje, mais ao Norte que ao Sul global.
Eu arriscaria dizer o mesmo, mas sei que tendemos a buscar no passado “eras de ouro”. Na literatura brasileira, pelo menos, eu seria capaz de apostar dinheiro que decaímos muito. Basta ver os galardoados pelo Jabuti, ou os “imortais” mais recentes.