O óculos? A calça?

Os gramáticos reclamam quando o povo diz “vestir a calça” em vez de “vestir as calças”. O problema é que ninguém consegue vestir uma calça só! Ou seja, não faz sentido, segundo a lógica dos falantes, dar um nome plural a um objeto singular. Por isso, as pessoas dizem coisas do tipo “eu gozei duas férias, mas ele gozou só uma”. Só uma “férias”? Soa estranho, mas faz sentido: “férias” não é plural de “féria” (que é a renda que um prestador de serviço aufere por dia de trabalho), mas é uma outra coisa, e uma coisa só, indivisível (exceto quando alguém resolve gozar as férias em partes: uma quinzena no meio e outra no fim do ano, por exemplo).

Mais alarmante para os gramáticos do que “a calça” é “o óculos”. Dizem eles: óculos é substantivo plural (ou pluralício, isto é, que não admite singular), portanto o correto é “os óculos”. Mas, e se me perguntarem quantos óculos eu tenho, o que devo responder? Devo contar cada lente como um óculo separado? Ou devo computar os óculos aos pares? Se tenho dois pares de óculos, devo responder que tenho dois óculos ou quatro? (A expressão “usar um par de óculos” é tão pouco prática na comunicação cotidiana quanto “vestir um par de calças” e “pedir duas xícaras de café”: o comum é usar um óculos, vestir uma calça e pedir dois cafés.)

Esse rigor em relação à concordância de número é bem menor na língua inglesa, em que substantivos como means, news, politics e physics, por exemplo, têm forma plural mas concordam no singular (the news is not good), ao passo que people e police, dentre outros, têm forma singular e concordam no plural (two people, many people, the police were called). Os gramáticos de língua inglesa não veem muito problema nisso, tanto que até recomendam a concordância de um substantivo singular com um verbo no plural quando o sentido desse substantivo é coletivo, como no caso de police, que significa indiferentemente “a polícia” ou “os policiais”. Temos ainda casos como o de fish, que pode ser singular ou plural (one fish, two fish, etc.), sem que os gramáticos exijam a flexão fishes. Trata-se das idiossincrasias de cada idioma — e dos gramáticos de cada idioma.

3 comentários sobre “O óculos? A calça?

  1. Caro Aldo,

    Esse rigor na concordância de número não explicará também a tendência oposta de alguns linguistas a atribuírem a falta sistemática de concordância no PB popular à transmissão irregular (como o Dante Lucchesi) e, no caso de alguns, até mesmo à crioulização ou semi-crioulização (como o Alan Baxter)?

    Li um artigo muito interessante do crioulista sueco, Mark Parkvall, em que ele lembra que o sueco sofreu uma marcada simplificação do sistema de flexão nominal de número, e também do sistema de flexão verbal, não menor que a havida no PB, não atribuível a contato linguístico, que não houve nesse período da evolução do sueco.

    Nessa discussão sobre a genealogia do PB, onde está você: mais para a hipótese da deriva, mais para a do contato?

    Um abraço,
    Rodrigo.

    1. Caro Rodrigo,
      Essa drástica simplificação morfológica do sueco é, na verdade, comum a todas as línguas escandinavas e, em grau um pouco menor, também ao inglês, holandês e luxemburguês. Até o alemão sofreu alguma simplificação. Ou seja, a simplificação gramatical foi uma tendência geral das línguas germânicas em fins da Idade Média, e acho estranho que o autor citado por você não fale em contato linguístico nesse caso, especialmente entre as línguas escandinavas, que até o século XIV não haviam se diferenciado totalmente. Dito de outro modo, essa redução das formas não ocorreu propriamente em sueco, norueguês, dinamarquês e sim no antigo norreno, que deu origem a esses idiomas.
      Quanto ao caso brasileiro, acredito mais na crioulização, embora essa tese venha perdendo força nos últimos anos. De toda maneira, o caso de “o óculos, etc.”, me parece distinto do de “dois café, dez real”, pois a sensação de que óculos, calça, etc., são objetos unitários claramente se sobrepõe aos “erros” de concordância que os gramáticos normativos apontam no PB falado, já que até falantes altamente escolarizados dizem “vou pôr meu óculos”, “sujei minha calça”, e assim por diante.
      Um abraço.

      1. Caro Aldo,

        Também não acho que “meu óculos” equivalha a “dois café”. O trecho sobre o rigor das gramáticas normativas na concordância de número é que me fez lembrar sobre a ênfase que dão à simplificação da flexão de número no PB os que defendem a hipótese do contato.

        Quanto à crioulização propriamente dita, digo, plena, não tenho mais visto artigos que a defendam: passou-se a falar de semicrioulização e, mais recentemente, de transmissão irregular (o próprio Lucchesi fala agora de transmissão irregular e admite não haver um caso forte em favor da hipótese de crioulização prévia).

        O artigo do Parkvall a que me referi tinha justamente a preocupação de, por assim dizer, limpar o meio de campo da crioulística, que é o dele, porque, segundo ele, o uso um tanto livre do termo semicrioulo, relacionado com o PB popular e com o inglês afroamericano, derivava de certos equívocos e resultava em outros tantos. Ainda de acordo com ele, até as marcas deixadas no dialeto de Helvécia podem ter resultado de outros processos que não a crioulização, pois nem sequer traços se podem apontar hoje que sugiram ter havido algo além de reduções paradigmáticas “moderadamente revolucionárias e altamente variáveis”:

        “Helvécia (Ferreira 1984-5; Baxter 1992; Baxter e Lucchesi 1997) é um dos lugares onde pode ter existido uma crioulização prévia. Dados levantados nessa comunidade indicam que pelo menos alguns dos escravos falavam um português realmente reduzido. Mas embora a existência de um tal crioulo seja possível, não podemos apontar traços, nas variantes atuais, que sugiram que o processo tenha ido além de certas reduções paradigmáticas moderadamente revolucionárias e altamente variáveis. Ainda assim, o dialeto de Helvécia continua sendo a forma mais parecida com um crioulo de base portuguesa até hoje documentado no Brasil. Note-se, porém, que nos dados de Baxter que indicam que há variação esporádica no que diz respeito à marcação de tempo, as formas generalizadas são as da terceira pessoa do singular do presente (como acontece normalmente nas línguas não-crioulas), e não o infinitivo, como é o caso da maioria dos crioulos do Atlântico. Isso – associado à natureza esporádica dessa fusão – sugere que outros processos, sem ser a crioulização, deixaram marcas na língua. Enquanto Holm vê um crioulo nos dados de Hel- vécia, Baxter (1997:281) sugere que o dialeto nunca careceu totalmente de distinções de tempo, aspecto e modo, uma característicados pidgins não-expandidos, ou seja, os predecessores dos crioulos.” (Fonte: https://www.academia.edu/26188593/Português_vernáculo_brasileiro_e_a_hipótese_da_semi_crioulização)

        Li um artigo de outro crioulista, o John McWhorter, que segue mais ou menos a mesma linha: não atribui a processos de crioulização prévia os traços característicos nem do PB popular nem do inglês afroamericano.

        Enfim, achei bem interessante os artigos, porque, com base na composição demográfica colonial, em que era enorme a desproporção dos negros relativamente aos brancos no Brasil, eu dava como certo que tivesse havido crioulização, mas até disto não se poderia inferir ter havido necessariamente crioulização:

        “Por outro lado, tem-se apontado a impossibilidade de definir os crioulos a partir de bases lingüísticas, e a necessidade de fazê-lo,
        exclusivamente, a partir da sua história social (cf. Carvalho 1984:50;Chaudenson 1992:136; Corne 1995:121; de Rooij 1997:310; Huber 1995:219; Jennings 1995:63; Kapanga 1993:452; Kihm1980:212).

        Embora a definição de Holm acima citada só faça referência a fatores lingüísticos, é possível invocar a história social em defesa da classificação do PVB entre os semi-crioulos. Falta saber quais os dados sócio-históricos que identificariam o PVB como um semi-crioulo. A passagem de um grande grupo de falantes de a língua para outra não seria suficiente, já que esse argumento faria do inglês americano um semi-crioulo (80% dos falantes dessa língua não são originários das Ilhas Britânicas). Esta proposta poderia ser igualmente válida no que diz respeito às línguas românicas e a outras variantes lingüísticas. Um exemplo interessante em relação à passagem de uma língua para outra, em grande escala e sem maiores conseqüências lingüísticas, seria a língua silozi, na Zâmbia, que surgiu através da passagem dos falantes de seluyana para o seshuto, após mais de vinte anos de domínio político de uma pequena elite de falantes de seshuto. As escassas influências de substrato encontram-se, sobretudo, no campo da fonologia, e o selozi ainda é inteligível para os falantes de seshuto (Givón 1979:11-12). Em outras palavras, a passagem rápida de uma língua de uma minoria para um grupo maior nem sempre leva à transmissão interrompida. Supondo que quem propõe uma crioulização prévia do PVB não exija que o grupo que muda de língua seja constituído de afrodescendentes, o critério da escravatura seria o único que resta. O sistema escravocrata teria feito com que o português padrão, a língua-alvo, se tornasse tão inacessível para os escravos, que a reestruturação lingüística teria sido inevitável. Mas não temos certeza de que a sociedade escravocrata tenha tido esse efeito (McWhorter 1999b;Parkvall 2000b). Aliás, ainda faltaria provar se houve realmente uma diferença no que diz respeito a acessibilidade entre a exposição dos povos do sul da Europa ao latim e a dos africanos escravizados no Brasil à língua portuguesa”.

        Enfim, a mensagem já ficou longa demais, e eu estou muito além das minhas sandálias.

        Um abraço,
        Rodrigo.

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