Uma correção e um brinde

Duas semanas atrás, apresentei aqui uma etimologia que depois constatei estar incorreta; por isso, hoje faço a retificação. Trata-se da expressão “não ter eira nem beira”, isto é, ser muito pobre. Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que eira, do latim area, que também deu o português área, era uma espécie de roçado que os mais ricos tinham em suas casas e os pobres não. E beira era o beiral que supostamente cobria a eira. Supostamente porque é pouco crível que um pequeno beiral pudesse cobrir uma eira. O mais provável é que a palavra beira tenha entrado na expressão apenas para rimar com eira. Em resumo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente morava em péssimas condições.

A versão que apresentei no artigo anterior é bastante corrente entre os guias turísticos de cidades históricas brasileiras ao referirem-se às casas coloniais, mas infelizmente não corresponde à realidade. E o problema é que falsas etimologias às vezes enganam até os especialistas.

Mas vamos ao brinde: saber alguma coisa de cor é saber de memória, certo? Mas de onde vem a palavra cor, que só ocorre na expressão “de cor”? Em português medieval, cor, com o aberto, significava “coração”, do latim cor, cordis, donde o nosso cordial. Posteriormente, essa palavra foi suplantada pelo derivado coração, cujo sufixo ‑ção ainda não está bem explicado: alguns etimólogos o atribuem ao latim ‑tionem, sufixo que indica ação; outros veem aí um aumentativo de cor.

Mas por que saber algo de memória teria a ver com o coração se é no cérebro que armazenamos nossas memórias? É que os antigos não sabiam disso (não havia neurociência na época) e acreditavam que a sede dos pensamentos e sentimentos era o coração, afinal é ele que bate mais forte quando estamos emocionados.

Da expressão “saber de cor” saiu a mais extensa “saber de cor e salteado”, isto é, pulando partes, sem seguir a ordem em que as informações foram memorizadas.

2 comentários sobre “Uma correção e um brinde

  1. Realmente, um brinde valioso!
    Na hora me saltou à memória o provérbio do Rei Salomão (Provérbios; 3:1-3):
    “Meu filho, não te esqueças da Minha Lei, e que saiba teu coração guardar Meus Mandamentos; pois eles aumentarão teus dias e proporcionarão paz em tua vida. Não renuncies, jamais, à Verdade e à Caridade [destes]; ATA-OS A TEU PESCOÇO E GRAVA-OS NA LÁPIDA DE TEU CORAÇÃO.”
    Essa tradução não está perfeita; ela só permite transparecer a ideia de retenção das Palavras de Deus próximo ao peito. Na versão hebraica o ditado diz: ATA-OS A TUA GARGANTA, sugerindo que não se cesse a repetição, em voz, da lei e dos mandamentos; E ESCREVE-OS NA LÁPIDA DE TEU CORAÇÃO – por acreditar-se haver nele um quadro todo riscado de memórias, que à força da constância tornam-se gravuras legíveis.

  2. Penso que tem que corrigir de novo. A expressão não é “não ter eira nem beira”, mas “estar sem eira nem beira”, e se refere a alguém que está desnorteado, ou mesmo algo desarmonizado e/ou cuja função está comprometida. Pode até ser que a pobreza torne uma pessoa sem eira nem beira, mas este não é o único fator, pois a traição da mulher amada também contribui para esse estado de coisas… rsrsrs.
    “Beira” não teria alguma relação com alguma região ou cidade de Portugal? Lembre-se de que “legítimo de braga”, tem.

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