Um amigo meu, que está concluindo sua dissertação de mestrado, me pergunta se é possível falar em empobrecimento da cultura ou da língua e, mais, se é possível medir esse empobrecimento, caso ele exista.
Trata-se de um tema espinhoso, pois o próprio conceito de empobrecimento é relativo: pode-se argumentar que o que realmente ocorre é uma mudança de paradigmas, que a cultura e a língua são dinâmicas, portanto a ideia de que algo está se perdendo é mera perspectiva saudosista, já que algo novo está sempre surgindo em seu lugar.
No entanto, muitos intelectuais de respeito apontam o fato de que está efetivamente havendo uma perda em termos tanto quantitativos quanto qualitativos; Gilles Lapouge, por exemplo, fala disso em vários de seus escritos.
Em minha visão, esse empobrecimento tem a ver com a decadência da educação e também com as novas tecnologias, fenômeno mundial, embora mais perceptível em nações como o Brasil, em que o sistema educacional e a condição social da população são mais frágeis. Antigamente, a cultura era transmitida basicamente pelos livros, e ler tanto literatura quanto ciência e filosofia era um hábito entre as famílias da elite, mas também uma imposição da escola. E liam-se os clássicos da literatura, cujo linguajar era muito rico, os grandes pensadores de todos os tempos, desde os gregos até os mais modernos e mesmo jornais e revistas, que naquela época eram muito bem escritos.
Então veio o rádio, a seguir a televisão, depois os sites de internet e, mais recentemente, as redes sociais. Sobretudo os mais jovens passaram a valorizar mais a informação midiática do que a literária, talvez por seu apelo audiovisual e seu marketing. Mas também porque a linguagem desses meios se aproximava mais do coloquial desses jovens. Até mesmo os filmes e as telenovelas foram pouco a pouco incorporando um linguajar mais despojado, mais próximo do dia a dia: a fala impostada e teatral dos anos 1940 e ’50 cedeu às gírias e expressões cotidianas. Também os temas mudaram: as antigas telenovelas, que adaptavam para a TV grandes romances do passado ou eram ambientadas numa Europa longínqua e medieval passaram a abordar a vida presente das cidades brasileiras, com seus dramas e contradições — drogas, violência, choque de gerações, racismo, machismo, homofobia. Mesmo as poucas novelas de época que temos hoje procuram adaptar-se à ideologia presente, lançando uma visão crítica à escravidão que certamente não constava na maioria das obras clássicas.
Como disse no início, pode ser que estejamos apenas substituindo uma cultura por outra: saem os mitos gregos, entram os super-heróis norte-americanos. Mas a educação atual privilegia sem dúvida o conhecimento tecnológico em detrimento da cultura clássica, afinal nossa sociedade capitalista espera que a escola forme mão de obra qualificada para as empresas, e dominar tecnologia da informação é mais importante hoje em dia do que saber latim ou ser versado em literatura grega.
Quanto à língua, é possível mensurar objetivamente se há ou não um empobrecimento, mas essa mensuração terá de restringir-se aos registros que temos, isto é, aos textos escritos de hoje em dia e do passado. Na verdade, não temos como saber se a fala informal das pessoas comuns da atualidade é mais ou menos rica que a de nossos antepassados, pois não há registros daquelas falas a não ser episodicamente na reprodução que algum escritor fez da fala popular ao retratar um personagem.
Mas há pistas. Por exemplo, minha falecida mãe me legou a cartilha em que estudara as primeiras letras. E é possível ver nos textos desse livro didático dirigido a crianças de seis, sete anos uma riqueza vocabular que deixa embaraçados hoje em dia até estudantes universitários. A comparação entre textos escritos de décadas ou séculos passados e atuais permite avaliar, dentre outras coisas, a complexidade das estruturas gramaticais, a já mencionada riqueza vocabular, o uso de figuras de linguagem, a elaboração estilística e mesmo a variedade e a erudição das referências temáticas (filosofia, mitologia, alta literatura). Mesmo a extensão dos textos pode nos revelar algo: parece que hoje, até pela falta de tempo imposta por nossa vida corrida, os textos costumam ser mais curtos, concisos e objetivos — às vezes até lacônicos. E um texto mais curto é também mais pobre linguisticamente.
A análise comparativa de textos antigos e atuais nos aspectos linguísticos acima mencionados pode ser feita por meio de softwares especializados que devolvem dados quantitativos e estatísticas sobre a frequência de uso de palavras, expressões, construções sintáticas, etc., classificados por gênero textual, por época, por autor, e assim por diante. Os linguistas estatísticos e computacionais, assim como os especialistas em linguística de corpus, têm bastante familiaridade com esses programas.
Em resposta ao meu amigo, não posso dizer assim de chofre se a cultura e a língua estão empobrecendo, pois seria preciso empreender o estudo que acima mencionei para ter dados concretos em que pudéssemos apoiar nossas afirmações. Do contrário, eu estaria apenas emitindo uma opinião pessoal e, como cientista, sei mais do que ninguém que, em ciência, opiniões pessoais não valem nada. Mas, se me permitem um palpite — afinal este texto não é um artigo científico —, acho que nossa educação indigente, somada à pouca importância que uma parcela significativa de nossa população dá a ela, tem contribuído muito para a derrocada da qualidade dos textos que se produzem hoje, pelo menos no Brasil. Mas é possível que a progressiva substituição de Chico Buarque e Elis Regina por Anitta, a de Machado de Assis por Paulo Coelho, a de Beatles e Burt Bacharach por Rihanna, a de Ernest Hemingway por Harold Robbins estejam de fato assinalando um empobrecimento cultural, com seu inevitável corolário linguístico.
Uma última consideração: a história é feita de ciclos. A eras de apogeu cultural sucedem-se eras de decadência e trevas para novamente ressurgir o esplendor da cultura, e assim sucessivamente. Talvez estejamos de fato vivenciando uma época de obscuridade; tomara seja apenas um interregno a anunciar um futuro novo boom de cultura.
Excelente.
Outro dia um contato meu postou dois vídeos do programa Fantástico da Globo. O primeiro é de 1978; a fala ainda era um pouco teatral e o sotaque era o chamado brasileiro padrão, semelhante ao paulistano.
https://www.youtube.com/watch?v=wCpwehz4QDo
Já este de baixo é de 1986 e o sotaque já é o natural de cada região do falante, quer dizer, a coisa mudou rápido.
Uau! Queria ver a cartilha de sua mãe.
Professor,utilizei seu texto numa aula para alunos de um projeto onde atuo como voluntária.
Acredito que não seja crime xerocar e distribuir,né??
O texto foi aquele sobre norma culta ou padrão.
Bom, se você me deu o devido crédito e não comercializou o texto e ganhou dinheiro com ele, não é crime não.
🤣🤣🤣
No caso o único que saiu lucrando foi o colega que xerocou rsrs
Claro,que os alunos com acesso ao seu texto lucram ainda mais já que agora têm conhecimento de um nome e tanto.
Obrigada! Serei cautelosa para não virar uma criminosa das letras.
Criminosa das letras foi ótimo! kkk
Parabéns!
Muito obrigado!
A gente tem duas impressões, duvidosas: “Cultura boa era a de antes”; “Cultura boa é a clássica”. Mas como assim, “cultura boa”? A cultura boa não é aquela que atende aos anseios do indivíduo? Ah, mas a cultura X atenta contra a dignididade humana e a possibilidade do crescimento intelectual. Só que “dignidade” e “crescimento intelectual” são os chavões que atribuímos ao outro, como se o outro nos devessem explicações. Queremos no outro as nossas qualidades, mas nunca pensamos em adotar do outro as suas qualidades.
O ser humano, se não existisse, precisava ser inventado! Onde está escrito que o outro tem de ser como nós, se nem sabemos se nós, como somos, somos melhores?