O imbroxável e a parassíntese

Algum tempo atrás, publiquei neste espaço um artigo comentando o neologismo imbroxável, da lavra do nosso futuro ex-presidente (ufa!). Na ocasião, a polêmica era se essa palavra deveria ser grafada com x ou ch. Mas uma outra polêmica surgiu à época, a qual não tive então a oportunidade de abordar e o faço agora. Trata-se da questão de se o termo em questão é ou não uma formação por derivação parassintética.

Para quem não sabe, parassíntese é o processo de derivação em que ocorrem simultaneamente prefixação e sufixação, como em noiteanoitecer, por exemplo. No entanto, as gramáticas tradicionais costumam fazer uma distinção entre a prefixação e sufixação simultâneas e a parassíntese, afirmando que esta última só ocorre quando a palavra não existe só com o prefixo ou só com o sufixo. Nesse sentido, teríamos prefixação e sufixação simultâneas em infelizmente porque também temos infeliz e felizmente. Já em anoitecer, teríamos parassíntese porque não existe *anoite nem *noitecer. Essas gramáticas nos dão uma série de exemplos: abençoar, amanhecer, entardecer, envelhecer, envernizar, enrijecer, entristecer, emagrecer, engaiolar, avistar, resfriar, desalmado, ensurdecer, etc. Notem que a maioria dos exemplos é de verbos, e boa parte deles termina com o sufixo ‑ecer.

Essa definição é problemática. Em primeiro lugar, não existe prefixação e sufixação simultâneas a não ser na parassíntese. O exemplo de infelizmente não é de prefixação e sufixação simultâneas porque podemos perfeitamente pensar que infelizmente resulta de felizmente por prefixação ou de infeliz por sufixação. Logo, a prefixação e a sufixação não são simultâneas. Por outro lado, afirmar que anoitecer é parassíntese porque não existem *anoite ou *noitecer é arriscado. Essas palavras não existem, mas poderiam perfeitamente existir. Na língua, nada é impossível, portanto quem pode garantir que essas palavras não venham a ser criadas futuramente? A partir do adjetivo fresco criou-se refrescar por suposta parassíntese. Só que, tempos depois, surgiu por derivação regressiva o substantivo refresco. Se não soubermos quem surgiu primeiro, podemos perfeitamente considerar que refrescar deriva de refresco por sufixação e não de fresco por parassíntese.

Se o argumento em favor da parassíntese for o de que anoitecer surgiu primeiro que um suposto futuro *noitecer, então teremos que datar a criação de cada palavra na língua para saber quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

Talvez os gramáticos pensem na parassíntese como uma prefixação e sufixação simultâneas em que somente a prefixação ou somente a sufixação são impossíveis. Mas será que existem casos assim? Como eu disse, na língua nada é impossível.

No meu entender, só há duas saídas: ou se considera que parassíntese é a criação de uma palavra por prefixação e sufixação simultâneas quando não existem (ainda) os termos derivados só com prefixo ou só com sufixo (essa definição de parassíntese salvaria casos como o de anoitecer) ou então se considera que a parassíntese simplesmente não existe.

A questão levantada sobre o imbroxável foi que aí, contrariamente ao que eu havia afirmado naquele artigo, não haveria parassíntese porque é perfeitamente possível a existência do adjetivo *broxável, derivado do verbo efetivamente existente broxar. A questão é: *broxável é possível, mas não existe. Portanto, quando o ilustre futuro ex-presidente criou o vocábulo, juntou prefixo e sufixo simultaneamente ao verbo broxar. Se *broxável vier a ser criado, teremos uma situação idêntica à de refresco em face de refrescar.

Esse critério adotado pelas gramáticas da inexistência da palavra só com o prefixo ou só com o sufixo é, como se vê, sujeita a críticas. Afinal, *noitecer, *rijecer, *magrecer ou *gaiolar não existem, mas poderiam existir, uma vez que de amarelo se fez amarelecer, sem prefixo.

O gramático mais arguto poderia objetar que são casos diferentes, pois todo adjetivo iniciado pelo prefixo in‑ ou suas variantes im‑ e i‑ pressupõe um adjetivo primitivo sem o prefixo: infelizfeliz, impossívelpossível, imortalmortal. Logo, imbroxável pressupõe *broxável. Mas voltamos à questão: *broxável poderia existir, mas não existe, assim como *noitecer poderia existir, mas tampouco existe. Então por que temos parassíntese num caso e não no outro?

Se, toda vez que aplicássemos o sufixo ‑ecer a um adjetivo, fôssemos obrigados a aplicar também um prefixo, isso não seria parassíntese e sim circunfixação. Circunfixo, figura desconhecida da maioria dos gramáticos, é um tipo de afixo que se aglutina tanto antes quanto depois do radical. Por exemplo, em alemão o particípio passado dos verbos se faz com o circunfixo ge‑…‑t. Por exemplo, o particípio de tanzen, “dançar”, é getanzt, “dançado”, o de machen, “fazer”, é gemacht, “feito”, e assim por diante. Somente na circunfixação é que o prefixo e o sufixo são agregados simultânea e indissociavelmente ao radical. Por via de consequência, casos como o de anoitecer ou imbroxável não são circunfixações. Então, pelo critério gramatical, devemos concluir que a parassíntese não existe, pois ou temos circunfixação (que não é parassíntese) ou temos prefixação e sufixação simultâneas, mas que poderiam não ser simultâneas, já que a forma só com prefixo ou só com sufixo não existe, mas poderia muito bem existir — e pode vir a existir a qualquer momento, especialmente em Minas Gerais: “O cumpade gaiolô o passarim, depois sortô ele bunitim na mata”. (Brincadeirinha —mineiros, eu amo vocês!)

Resumo da ópera: imbroxável é, sim, uma parassíntese. Se um dia surgir *broxável, será uma derivação regressiva de imbroxável.

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