The times they are a-changing
Bob Dylan
Você já deve ter notado – se é que você próprio não faz isso – que hoje em dia está cada vez mais comum as pessoas dobrarem o sujeito da oração. Se antigamente se dizia (e os muito cultos ainda dizem) “Pedro foi à farmácia”, hoje o normal é “O Pedro ele foi na farmácia”. Pois é, “o Pedro ele”. Essa construção está generalizada nas conversas do dia a dia e nas comunicações de massa (rádio, TV, internet). Se você duvida, assista a um pouco de televisão e procure observar como as pessoas falam – inclusive repórteres e apresentadores.
Muitos linguistas tratam esse cacoete verbal como um caso de topicalização do sujeito, tese da qual eu discordo, conforme vou expor adiante. Mas antes vamos explicar que diabos é essa tal de topicalização.
Há duas maneiras de construir uma oração. A primeira é usando a estrutura sujeito-predicado, que todos conhecem (espero). A outra é com a estrutura tópico-comentário. O tópico é um substantivo sem função sintática, colocado de forma isolada no início da frase, ao qual se segue uma frase completa (o comentário) falando sobre ele. Algo do tipo “O Pedro, a irmã dele vai casar”. Há até mesmo frases com tópico e subtópico, como “A Maria, o carro dela, o pneu furou”.
Nas construções do tipo tópico-comentário, o tópico, por ser elemento isolado e sem função sintática, vem separado por vírgula (ou por pausa, no discurso oral). Mas o que está acontecendo atualmente em português brasileiro é outra coisa, diferente da topicalização. Tanto que o sujeito não vem separado por vírgula ou pausa, mas ligado diretamente ao pronome pessoal que lhe serve de eco. Percebe-se isso claramente na fala rápida. No exemplo que dei, “O Pedro ele foi na farmácia”, não há nada separando “Pedro” de “ele”.
O que está ocorrendo, na verdade, é um outro fenômeno, chamado tecnicamente de deslocamento à esquerda. O que vem a ser isso? É a tendência que nós brasileiros temos de explicitar os elementos gramaticais que ficam no início da frase (portanto, à esquerda de quem lê) e ocultar os que estão mais ao fim, isto é, à direita.
Na frase “Os menino foi tudo na roça”, note que a única marca de plural está no primeiro elemento da esquerda, o artigo “os”. As demais marcas de plural foram simplesmente apagadas. Essa é a tendência oposta à dos nossos irmãos portugueses, que omitem à esquerda e explicitam à direita. A uma pergunta como “Você viu o João”, um português responderia “Não o vi”, ao passo que um brasileiro responde “Eu não vi”. Ou seja, os lusitanos apagam o pronome reto “eu” enquanto nós apagamos o pronome oblíquo “o”.
Nesse sentido, o reforço do sujeito com o pronome pessoal seria um desdobramento dessa tendência de explicitar o sujeito sempre. Tanto que isso ocorre também em orações subordinadas adjetivas, em que o sujeito é o pronome relativo “que”. Temos então casos como “O João é um cara que ele não leva desaforo pra casa”, “Eu sou uma pessoa que eu ponho a amizade acima de tudo”, e assim por diante. Perceba que, neste último caso, o sujeito não precisa estar na terceira pessoa, pois o sujeito “eu” da oração principal é reforçado pela própria repetição do “eu” na oração subordinada mesmo embora esta já tenha um sujeito, no caso o pronome relativo “que”.
Casos como esse não podem ser considerados de topicalização porque simplesmente não há tópico e comentário, há apenas duplicidade do sujeito. A linguista Charlotte Galves chama a isso de “pronome lembrete”. E cita outros exemplos:
- Os linguistas, eles estão sempre mudando de teoria.
- Tenho um amigo que ele vai todos os dias ao cinema.
- A moça que eu vim com ela já foi embora.
- O rapaz que o irmão dele dançava no circo acabou mal.
Ao que parece, o português brasileiro vai pouco a pouco adquirindo a mesma estrutura sintática do veneziano, língua minoritária falada na região do Vêneto, Itália, e que já foi um idioma muito importante na Idade Média. Em veneziano, ou vêneto, como também é chamado, a repetição do sujeito por meio da colocação de nome e pronome lado a lado é perfeitamente gramatical e obrigatória no padrão culto da língua. Mas não deixa de ser algo linguisticamente pouco econômico.
Essa estrutura igual à do veneziano é bem comum mesmo, mas não é de hoje. Na minha humilde opinião, feia que dói. O grande escritor João Ubaldo Ribeiro, que me alegrava todos os domingos com suas crônicas irônicas, escreveu diversos textos sobre o assunto. Um desses textos de que me lembro é este: https://almacarioca.wordpress.com/2008/10/01/escrevendo-muderno-joao-ubaldo-ribeiro/, escrito há mais de dez anos. Existem outros. Vou tentar achá-los.
O último exemplo dado por você, professor, é ainda mais triste porque o “cujo” deveria ter sido usado, mas o que
ouvimos é justamente o que você escreveu.
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Caro Patrick, quando digo que hoje em dia se fala assim, não quero com isso dizer que o famigerado cacoete linguístico surgiu o ano passado. Na verdade, as mudanças linguísticas são lentas e progressivas, de modo que a origem do fenômeno pode recuar a mais de trinta anos. Apenas ele vem se intensificando nos últimos tempos, isto é, de alguns anos para cá, certamente incluindo o período em que João Ubaldo escreveu.
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Eu entendi, professor! Só quis citar o escritor João Ubaldo para enriquecer e confirmar o que você disse. Abraço.
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Muito obrigado, prof. Aldo, por escrever textos a respeito da Língua Portuguesa. Tenho saudade dos tempos em que era fácil encontrar colunistas de Língua Portuguesa nos grandes jornais do país.
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É um prazer, Patrick.
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Achei o outro texto que eu queria. A conclusão é fantástica.
https://almacarioca.wordpress.com/2010/08/01/o-caderninho-pela-ltima-vez-joo-ubaldo-ribeiro/
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Não podia deixar esta de fora:
https://almacarioca.wordpress.com/2009/06/07/vergonha-da-mesoclise/
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Ótimo texto, Aldo. Esclarece muita coisa quanto ao esquema tópico-comentário (ou o assim indevidamente chamado, conforme você observa). Interessa-me saber como o professor de português deve se comportar quando se depara com ocorrências iguais ou semelhantes a essas. Entre as frases que você arrola, há casos de emprego do chamado relativo universal (“A moça que eu vim com ela”, “O rapaz que o irmão dele”). Já me deparei com construções desse tipo em redações e, obviamente, corrigi. Vejo significativa diferença entre “Os linguistas, eles estão sempre mudando de teoria” e “Tenho um amigo que ele vai todos os dias ao cinema”. A primeira construção me parece defensável. A segunda, não; parece haver nela um pleonasmo que supõe ignorância quanto ao papel anafórico do relativo. Enfim, são reflexões que o seu excelente texto me suscita.
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Prof. Chico, assim como a segunda construção ‘supõe ignorância quanto ao papel anafórico do relativo’, acredito que a primeira construção supõe ignorância quanto à estrutura das orações em Português, com sujeito + verbo + objeto.
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Chico, em “Os linguistas, eles estão sempre mudando de teoria”, temos de fato um tópico e um comentário, o que é confirmado pela vírgula separando os dois. Já em “Os linguistas eles estão sempre mudando de teoria” (sem vírgula”, o que temos é um redobro do sujeito mesmo.
Obrigado pelo comentário sempre inteligente!
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Excelente texto.
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Gostaria de sugerir um texto sobre a construção formada pelo VERBO “DAR” + UM PARTICÍPIO SUBSTANTIVADO NO FEMININO. Assim como o caso do sujeito pleonástico, não se trata de um hábito novo. Até diria que é mais antigo. Só que, atualmente, se acentuou demais. Vou citar alguns exemplos colhidos na TV brasileira. Observe que, nos casos abaixo, o termo não existe como substantivo. Mais grave: há casos em que o substantivo existe, mas é substituído pelo particípio substantivado. Exemplos: A torcida de uma VAIADA depois que o time deu uma DESCUIDADA. A troca de posição deu uma AJUDADA. O jogador de uma CADENCIADA depois que i time deu uma CANSADA. Na cadeia, o criminoso deu uma DESABAFADA. O cartão recebeu uma CARIMBADA. O diretor fez uma LIMPADA geral. Agora, uma rápida ANALISADA na camisa do jogador. A temperatura deu uma DIMINUÍDA. O jogador deu uma SENTIDA. Quase todos os casos ocorrem com verbos da primeira conjugação, mas há espaço para os da terceira também.
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