Outro dia, estava participando de um bate-papo em uma rede social quando veio à baila a questão do preconceito de uma suposta elite socioeconômica contra certas formas de expressão artística mais populares, ou popularescas – para falar português claro, bregas. Aí se incluiriam gêneros musicais como o sertanejo universitário (até hoje não entendi o que há de universitário nesse tipo de música), o pagode, o forró (igualmente universitário), a axé music, bem como as telenovelas mexicanas, os livros de Paulo Coelho, e por aí vai.
A tese de um dos debatedores era que há um preconceito por parte “da zelite” que têm dinheiro e estudo contra as formas de expressão do “povão” e que o gosto é uma construção social e cultural, sendo, pois, arbitrário, de modo que, por via de conclusão, a pecha de brega não se justifica, sendo mera perseguição simbólica daqueles que podem mais contra os que podem menos.
Essa história de que tudo é construção social, de que nada no ser humano é natural, é uma tese muito cara às chamadas ciências sociais (sociologia, história, política, etc.), mas que, as mais das vezes, não tem base científica alguma; pelo contrário, a ciência demonstra que a biologia quase sempre se sobrepõe à ideologia.
Deixando de lado o fato de que por trás dessa cultura extremamente popular está uma indústria milionária, cujos agentes (empresários, produtores, artistas) estão mais para elite do que para povo, o fato é que há muito tempo a filosofia e a ciência vêm se perguntando se o belo é uma convenção social, que portanto muda de sociedade para sociedade e de época para época, ou se é algo universal, que obedece às mesmas leis e critérios em todas as sociedades e em todas as épocas.
Aristóteles já havia se debruçado sobre a questão há 2.300 anos na sua Arte Poética. Antes dele, Sócrates e Platão também já haviam se perguntado sobre o que torna algo belo. A indagação perpassou a Idade Média, Renascença e Idade Moderna. Mas a ciência atual lançou alguma objetividade sobre o tema de modo a mostrar que beleza não é mera questão de gosto, mas o próprio bom-gosto pode ter raízes em nossa biologia.
Em primeiro lugar, descobriu-se que algo não é considerado de bom-gosto porque é apreciado pelas classes mais altas da sociedade, mas bem o contrário: os estratos superiores, por deterem o maior conhecimento, é que apreciariam o que é de fato bom. Isto é, a sensibilidade estética decorreria de um refinamento dos sentidos proporcionado pelo estudo, proporcionado por sua vez pelo dinheiro. Seja como for, dá-se um círculo virtuoso em que o refinamento intelectual busca o bom-gosto, e este gera mais refinamento.
Em segundo lugar, foram conduzidos experimentos com o objetivo de determinar se o sentido do belo é universal ou varia segundo parâmetros puramente culturais. Por exemplo, estudiosos pediram que voluntários dos mais diversos países e backgrounds culturais, divididos por gênero, idade, nível de escolaridade, classe social, etc., observassem fotos de rostos e apontassem aqueles que achavam bonitos. Havia rostos de todos os tipos: de homens, mulheres, crianças, brancos, negros, amarelos, jovens, velhos, e assim por diante. A pesquisa concluiu que os rostos escolhidos pela maioria dos voluntários tinham algo em comum: a simetria e proporcionalidade das feições. Mais ainda, os rostos mais belos na opinião das pessoas submetidas à experiência eram aqueles que melhor se enquadravam na chamada proporção áurea.

Em termos matemáticos, a proporção áurea é a que se tem quando o lado menor de um retângulo está para o maior assim como este está para a soma dos dois. De modo mais geral, temos essa proporção quando a parte menor está para a maior assim como a maior está para o todo. Por sinal, um exemplo clássico de beleza corporal que baliza os artistas plásticos desde o Renascimento é o chamado homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, desenho em que se pode perceber as partes do corpo humano obedecendo claramente à proporção áurea.

Outro experimento lidou com combinações de cores. Pedia-se aos voluntários, igualmente possuidores dos mais diversos perfis, que fizessem combinações entre cores previamente dadas. Ao final, certas combinações prevaleceram sobre outras. Por exemplo, as que uniam uma cor quente, isto é, tendente ao vermelho, e uma cor fria (tendente ao azul) eram preferidas às que uniam duas cores quentes ou duas frias. Combinações entre tons claros e escuros também foram preferidos a combinações mais monótonas.
Outros tantos experimentos manipularam sons, vozes humanas, objetos bi e tridimensionais, texturas e muito mais. Aplicados à estética, esses resultados indicam que o bom-gosto está ligado ao equilíbrio, à simetria, à regularidade. Isso não quer dizer que uma forma assimétrica não possa ser bonita: a arte moderna rompeu em grande parte esse paradigma. No entanto, esse tipo de arte apela para outro dado igualmente importante quando se trata da criação artística: o efeito-surpresa. Nosso cérebro foi programado para prever eventos; e ele o faz baseado em experiências anteriores memorizadas. Por exemplo, se lemos uma frase como “Ele passou ___ no pão”, temos a tendência natural de completar a lacuna com palavras tais como “manteiga”, “geleia”, “margarina”, etc. De repente, se a lacuna é preenchida com a palavra “graxa”, nossas ondas cerebrais, monitoradas por um aparelho de eletroencefalografia, apresentarão um comportamento anormal, o que não acontece se a palavra oculta fosse “manteiga”, por exemplo. É que nossa mente reage ao que não espera. É isso que torna uma anedota engraçada: um final surpreendente, que contraria nossa expectativa. Diante dessa quebra de expectativa, desse estranhamento, temos a reação instintiva de rir. O elemento-surpresa é também fartamente explorado por narrativas de suspense e terror, mas, de forma geral, toda boa história tem enredo e sobretudo desfecho pouco óbvios.
Um terceiro elemento frequentemente ligado à sensação do belo é a complexidade. Embora também se possa encontrar muita beleza em coisas simples, a complexidade instiga nossa mente e aguça nossa curiosidade. Está aí a chave do prazer que nos causam os quebra-cabeças, as estórias policiais, os arabescos, a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach…
O que se pode dizer da arte popularesca é que, de modo geral, ela vai na contramão desses princípios: uso e abuso de clichês, desfechos óbvios, rimas pobres e previsíveis (como “sorte” e “morte” ou “paixão” e “coração”), repetição de fórmulas desgastadas, que um dia foram originais mas não são mais, e outros truques semelhantes.
Se a mente treinada pelo estudo e pela exposição ao maior número possível de experiências sensoriais busca a harmonia combinada à originalidade e à elaboração formal, o intelecto simplório das pessoas que não tiveram a oportunidade de viver experiências mentais instigantes se sente confortável diante do já conhecido, da expectativa não frustrada, da facilidade de decodificação, da oferta de mais do mesmo. E a indústria cultural de massas sabe bem disso (há inclusive especialistas da academia trabalhando para ela) e explora esse tipo de cultura à exaustão.
Portanto, deixando de lado o preconceito dos que preferem música clássica, jazz ou MPB à música brega, o fato é que os gêneros mais “elitizados”, digamos assim, de arte forçam nosso cérebro a formar novas conexões neuronais, ao passo que a arte mais popular e simplista apenas reforça as conexões já formadas. Dito de outro modo, a mente desafiada se torna mais inteligente, e a mente inteligente busca sempre mais desafios. É claro que, no frigir dos ovos, gosto não se discute, e há obras para todos os gostos. Mas bom-gosto se aprende, e todo gosto, seja ele bom ou mau, se pode estudar cientificamente.
Excelente texto. [ . . . ] “há um preconceito por parte “da zelite” que têm dinheiro e estudo contra as formas de expressão do “povão” e que o gosto é uma construção social e cultural, sendo, pois, arbitrário, de modo que, por via de conclusão, a pecha de brega não se justifica, sendo mera perseguição simbólica daqueles que podem mais contra os que podem menos”. Já ouvi muitas opiniões desse tipo, principalmente de linguistas mal preparados e/ou de ideologia de esquerda.
Obrigado, Patrick! Para o pessoal das ciências sociais, que em sua maioria é de esquerda, tudo é construção social, até o nosso organismo.
Um abraço!
Dá gosto ler!
Chico e suas sacadas de mestre!
Caro Aldo,
Essa é uma falsa polêmica, resultante de uma falsa oposição.
Caso se pergunte a um apreciador de sertanejo se ele prefere Teló a Beethoven, ele será capaz de reconhecer a maior complexidade musical da Quinta Sinfonia mesmo se gostar mais de “Ai, se eu te pego”: pode não o dizer nestes termos, mas talvez chame à sinfonia “música de igreja” ou “música de velho”, em reconhecimento tácito à sua maior complexidade.
Por isso é uma falsa polêmica: são cepas diferentes de música. Só pela cabeça de esquerdista defensor dos oprimidos passa a ideia de que um frequentador da Festa do Peão equipararia música clássica e sertanejo no mesmo eixo: música clássica é mais sofisticada; sertanejo é mais divertido.
Você poderia retorquir chamando falsa à minha distinção: o apreciador de sertanejo o acha mais divertido justamente por lhe faltar apuro; do contrário, sertanejo o aborreceria em vez de o divertir. Mas este seria um mau contra-argumento; a minha distinção resistiria, de qualquer modo, se se levassem em conta os contextos de apreciação.
Salvo se me disser preferir música clássica a qualquer outro tipo de música, independentemente do contexto de apreciação, algo muito improvável, deverá admitir que, num churrasco com direito a boi no rolete na fazenda de um amigo (pode ser um PhD em Astrofísica virtuoso no piano, mas criado no interior de Goiás, ouvindo sertanejo desde a infância até descobrir outros estilos), pôr música clássica (ou jazz, ou rock, ou mesmo MPB) para tocar seria um erro equivalente ao cometido por um advogado ao falar no bar como fala no tribunal. Assim como pôr MPB num bar punk (se ainda existir algum) é pedir por confusão.
Por outro lado, a maioria dos não esquerdistas que apontam para a baixa complexidade musical do sertanejo não ouve necessariamente música clássica, mas rock (principalmente), MPB e jazz. Qualquer dos três últimos é mais complexo que o sertanejo, mas só o jazz o é a ponto de estar mais próximo da música clássica que do sertanejo. Há muito rock e muita MPB de letra pobre, e melodia, idem, à semelhança do sertanejo.
O populismo estético empobrece a cultura porque iguala os desiguais naquilo em que se desigualam: complexidade musical. Já o elitismo estético empobrece a cultura porque desiguala os desiguais naquilo em que se igualam: a satisfação às demandas dos seus respectivos contextos de apreciação.
Rodrigo, quem sugeriu/provocou essa polêmica foi um seguidor meu que eu suspeito ser de esquerda, mas não tenho certeza. De fato, há uma música adequada para cada ocasião (se bem que, para mim, sertanejo é insuportável em qualquer ocasião, até em churrasco), mas já foram feitos alguns experimentos em que foi apresentada música clássica a pessoas que nunca a tinham ouvido, como moradores de favelas, e a grande maioria delas gostou. Já funk, breganejo, pagode, axé desagrada grande parte das pessoas mais escolarizadas e de maior poder aquisitivo. Ou seja, não é nem a complexidade que está em jogo, é a originalidade, a suavidade e até mesmo alguns elementos acústicos que agem diretamente no nosso inconsciente. Por exemplo, está provado que vacas que ouvem Mozart produzem mais leite. E vacas não estão inseridas num contexto cultural ou foram educadas musicalmente.
Por último, considero que certas canções da MPB de autores como Tom Jobim, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Ivan Lins e outros têm tanta complexidade harmônica e melódica quanto o jazz, até porque foram em grande parte influenciadas por ele.
Aldo, eu já tinha ouvido falar da pesquisa que demonstrou o incremento da produção leiteira depois que se expuseram vacas a Mozart, mas achei que fosse picaretagem acadêmica, rs.
Imagino que dependa da música: Bolero de Ravel deve aumentar a produção, mas a Cavalgada das Valquírias talvez a diminua, exceto se as vacas forem da raça Heck, rs.
Eu também não ouço sertanejo, mas, a depender do meu estado de embriaguez, do lugar e das circunstâncias, rs, me sai um “Dormi na praça” sem nenhum constrangimento; desde que ninguém me filme, é claro, rs.
E não o digo para tentar legitimar algum gosto envergonhado por sertanejo: detesto-o mesmo.
De todo modo, acho que você se surpreenderia com a quantidade de pessoas de alta renda e de bom nível de escolaridade que ouve músicas que fazem Deus duvidar da viabilidade da Sua obra.
Acho que você, como acadêmico, deve andar mais amiúde em boa companhia que a média das pessoas de alta renda e alta escolaridade…
Aldo,
Pelo que li, há indícios de que qualquer música calma incrementa a produção leiteira.
Encontrei também referências ao efeito Mozart sobre a inteligência humana, das quais algumas apontam que qualquer música, desde que seja apreciada ativamente por quem a ouve, surte o mesmo efeito, o qual talvez resulte, portanto, do prazer e do envolvimento, e não da música.
Se for assim, um funk “calminho” como “Eu só quero é ser feliz” talvez resulte no mesmo incremento, de leite ou de inteligência, que “Eine kleine Nachtmusik”.
Em tempo: o efeito sobre a inteligência, seja o de Mozart, seja o da música pop preferida do ouvinte, é efêmero, não dura mais que alguns poucos minutos.
Um abraço,
Rodrigo.
P.S.: Que não lhe passe pela cabeça nem por um segundo que eu seja um relativista da cepa do seu seguidor esquerdista: além de não o ser, sou um elitista convicto, do tipo que não pede nem licença nem desculpas por isto. Mas pesquisas como estas sobre o “efeito Mozart” acendem todos os meus alarmes contra picaretagem acadêmica. E, neste caso específico, os alarmes parecem não ter soado de modo inteiramente injustificado.
Na verdade, Rodrigo, o que a ciência diz sobre o efeito Mozart é que a música, diferentemente das outras artes, age fisicamente sobre nós. Quantas vezes você já não se pegou ouvindo uma música e batendo o pé no ritmo dela? As vibrações sonoras agem sobre nós de um modo que nem palavras nem imagens conseguem. Por isso, o prazer musical independe de cultura ou contexto situacional.
Quanto a pessoas de alta renda e escolaridade que gostam de “breganejo”, não tenho nenhuma dúvida disso. Eu mesmo conheço muitas assim. É que antigamente havia um abismo entre a elite e o populacho: diferenças linguísticas, de gosto musical, culinário, indumentário, etc. Hoje, nossas elites emergem em grande parte da própria massa; além disso, há uma massificação cultural à qual ninguém escapa ileso. Hoje, ricos e cultos também erram a concordância, usam camiseta e tênis, curtem música popular, gostam de feijoada, assistem Netflix… E eu me incluo nesse grupo (dos cultos, não dos ricos, evidentemente rs).