A educação para a arte

Um dos papéis da educação é estimular nos indivíduos o gosto pela arte de qualidade. Para isso, ela parte do princípio de que é preciso “educar” os olhos e os ouvidos. Caso contrário, as pessoas só apreciariam obras vulgares e de pouco conteúdo. Não há nessa proposta algo de preconceituoso ou de elitista?

As crianças adoram certos alimentos, enquanto outros elas só comem obrigadas. Adultos acham gostosos certos alimentos porque foram acostumados desde pequenos a consumi-los. É por isso que em alguns lugares do mundo se come peixe cru, insetos, etc.

Uma piada que precisa ser explicada é realmente engraçada?

Em resumo, há certas obras que nos agradam naturalmente, sem que tenhamos de aprender a gostar delas; outras só são apreciadas por quem foi “condicionado” a gostar delas. Não é que estas não deem prazer, mas se trata de um prazer “oculto”, não óbvio, um prazer “iniciático”, que só alguns conseguem sentir.

Isso põe a questão: será que uma obra é intrinsecamente boa (por exemplo, quando produz prazer de modo instintivo, em mentes não treinadas) ou tudo não passa de condicionamento?

É função da escola “educar” o olhar e o ouvido no sentido de condicioná-lo a um padrão estético arbitrariamente estabelecido como de bom gosto por uma elite cultural ou econômica?

O que ocorre é que a escola tenta fazer — sem muito sucesso, devido aos seus métodos repressivos — o que a mídia deveria fazer, mas não faz: apresentar ao público a maior diversidade possível de gêneros artísticos para que cada um possa escolher do que gosta mais. O problema é que os meios de comunicação sempre oferecem mais do mesmo — e trata-se de obras que não primam pelo conteúdo, mas por serem vendáveis. Fica aí a questão: não serão elas vendáveis justamente porque coincidem com nosso modelo “instintivo” de prazer? Ou seja, não serão populares essas obras exatamente porque ativam as zonas de prazer do cérebro de pessoas não treinadas? Será então que a “educação do olhar” feita pela escola não é uma ação contrária à natureza? Mas ser o contrário da natureza não é exatamente a definição de cultura?

Fica aqui a reflexão.

A ciência do gosto

Outro dia, estava participando de um bate-papo em uma rede social quando veio à baila a questão do preconceito de uma suposta elite socioeconômica contra certas formas de expressão artística mais populares, ou popularescas – para falar português claro, bregas. Aí se incluiriam gêneros musicais como o sertanejo universitário (até hoje não entendi o que há de universitário nesse tipo de música), o pagode, o forró (igualmente universitário), a axé music, bem como as telenovelas mexicanas, os livros de Paulo Coelho, e por aí vai.

A tese de um dos debatedores era que há um preconceito por parte “da zelite” que têm dinheiro e estudo contra as formas de expressão do “povão” e que o gosto é uma construção social e cultural, sendo, pois, arbitrário, de modo que, por via de conclusão, a pecha de brega não se justifica, sendo mera perseguição simbólica daqueles que podem mais contra os que podem menos.

Essa história de que tudo é construção social, de que nada no ser humano é natural, é uma tese muito cara às chamadas ciências sociais (sociologia, história, política, etc.), mas que, as mais das vezes, não tem base científica alguma; pelo contrário, a ciência demonstra que a biologia quase sempre se sobrepõe à ideologia.

Deixando de lado o fato de que por trás dessa cultura extremamente popular está uma indústria milionária, cujos agentes (empresários, produtores, artistas) estão mais para elite do que para povo, o fato é que há muito tempo a filosofia e a ciência vêm se perguntando se o belo é uma convenção social, que portanto muda de sociedade para sociedade e de época para época, ou se é algo universal, que obedece às mesmas leis e critérios em todas as sociedades e em todas as épocas.

Aristóteles já havia se debruçado sobre a questão há 2.300 anos na sua Arte Poética. Antes dele, Sócrates e Platão também já haviam se perguntado sobre o que torna algo belo. A indagação perpassou a Idade Média, Renascença e Idade Moderna. Mas a ciência atual lançou alguma objetividade sobre o tema de modo a mostrar que beleza não é mera questão de gosto, mas o próprio bom-gosto pode ter raízes em nossa biologia.

Em primeiro lugar, descobriu-se que algo não é considerado de bom-gosto porque é apreciado pelas classes mais altas da sociedade, mas bem o contrário: os estratos superiores, por deterem o maior conhecimento, é que apreciariam o que é de fato bom. Isto é, a sensibilidade estética decorreria de um refinamento dos sentidos proporcionado pelo estudo, proporcionado por sua vez pelo dinheiro. Seja como for, dá-se um círculo virtuoso em que o refinamento intelectual busca o bom-gosto, e este gera mais refinamento.

Em segundo lugar, foram conduzidos experimentos com o objetivo de determinar se o sentido do belo é universal ou varia segundo parâmetros puramente culturais. Por exemplo, estudiosos pediram que voluntários dos mais diversos países e backgrounds culturais, divididos por gênero, idade, nível de escolaridade, classe social, etc., observassem fotos de rostos e apontassem aqueles que achavam bonitos. Havia rostos de todos os tipos: de homens, mulheres, crianças, brancos, negros, amarelos, jovens, velhos, e assim por diante. A pesquisa concluiu que os rostos escolhidos pela maioria dos voluntários tinham algo em comum: a simetria e proporcionalidade das feições. Mais ainda, os rostos mais belos na opinião das pessoas submetidas à experiência eram aqueles que melhor se enquadravam na chamada proporção áurea.

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A proporção áurea

Em termos matemáticos, a proporção áurea é a que se tem quando o lado menor de um retângulo está para o maior assim como este está para a soma dos dois. De modo mais geral, temos essa proporção quando a parte menor está para a maior assim como a maior está para o todo. Por sinal, um exemplo clássico de beleza corporal que baliza os artistas plásticos desde o Renascimento é o chamado homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, desenho em que se pode perceber as partes do corpo humano obedecendo claramente à proporção áurea.

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O homem vitruviano, de Da Vinci

Outro experimento lidou com combinações de cores. Pedia-se aos voluntários, igualmente possuidores dos mais diversos perfis, que fizessem combinações entre cores previamente dadas. Ao final, certas combinações prevaleceram sobre outras. Por exemplo, as que uniam uma cor quente, isto é, tendente ao vermelho, e uma cor fria (tendente ao azul) eram preferidas às que uniam duas cores quentes ou duas frias. Combinações entre tons claros e escuros também foram preferidos a combinações mais monótonas.

Outros tantos experimentos manipularam sons, vozes humanas, objetos bi e tridimensionais, texturas e muito mais. Aplicados à estética, esses resultados indicam que o bom-gosto está ligado ao equilíbrio, à simetria, à regularidade. Isso não quer dizer que uma forma assimétrica não possa ser bonita: a arte moderna rompeu em grande parte esse paradigma. No entanto, esse tipo de arte apela para outro dado igualmente importante quando se trata da criação artística: o efeito-surpresa. Nosso cérebro foi programado para prever eventos; e ele o faz baseado em experiências anteriores memorizadas. Por exemplo, se lemos uma frase como “Ele passou ___ no pão”, temos a tendência natural de completar a lacuna com palavras tais como “manteiga”, “geleia”, “margarina”, etc. De repente, se a lacuna é preenchida com a palavra “graxa”, nossas ondas cerebrais, monitoradas por um aparelho de eletroencefalografia, apresentarão um comportamento anormal, o que não acontece se a palavra oculta fosse “manteiga”, por exemplo. É que nossa mente reage ao que não espera. É isso que torna uma anedota engraçada: um final surpreendente, que contraria nossa expectativa. Diante dessa quebra de expectativa, desse estranhamento, temos a reação instintiva de rir. O elemento-surpresa é também fartamente explorado por narrativas de suspense e terror, mas, de forma geral, toda boa história tem enredo e sobretudo desfecho pouco óbvios.

Um terceiro elemento frequentemente ligado à sensação do belo é a complexidade. Embora também se possa encontrar muita beleza em coisas simples, a complexidade instiga nossa mente e aguça nossa curiosidade. Está aí a chave do prazer que nos causam os quebra-cabeças, as estórias policiais, os arabescos, a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach…

O que se pode dizer da arte popularesca é que, de modo geral, ela vai na contramão desses princípios: uso e abuso de clichês, desfechos óbvios, rimas pobres e previsíveis (como “sorte” e “morte” ou “paixão” e “coração”), repetição de fórmulas desgastadas, que um dia foram originais mas não são mais, e outros truques semelhantes.

Se a mente treinada pelo estudo e pela exposição ao maior número possível de experiências sensoriais busca a harmonia combinada à originalidade e à elaboração formal, o intelecto simplório das pessoas que não tiveram a oportunidade de viver experiências mentais instigantes se sente confortável diante do já conhecido, da expectativa não frustrada, da facilidade de decodificação, da oferta de mais do mesmo. E a indústria cultural de massas sabe bem disso (há inclusive especialistas da academia trabalhando para ela) e explora esse tipo de cultura à exaustão.

Portanto, deixando de lado o preconceito dos que preferem música clássica, jazz ou MPB à música brega, o fato é que os gêneros mais “elitizados”, digamos assim, de arte forçam nosso cérebro a formar novas conexões neuronais, ao passo que a arte mais popular e simplista apenas reforça as conexões já formadas. Dito de outro modo, a mente desafiada se torna mais inteligente, e a mente inteligente busca sempre mais desafios. É claro que, no frigir dos ovos, gosto não se discute, e há obras para todos os gostos. Mas bom-gosto se aprende, e todo gosto, seja ele bom ou mau, se pode estudar cientificamente.