O Brasil que tem sotaque

O título deste artigo é propositalmente provocativo. Afinal, sotaque, todo mundo sabe, é aquela pronúncia que nós não temos, pois só os outros é que têm, certo? Ou seja, falando sério agora, todo indivíduo tem uma pronúncia da língua que é característica da sua região, da sua geração e da sua classe social. No entanto, há uma tendência chauvinista de achar que a nossa pronúncia, seja ela qual for, é que é a correta e aquelas que diferem muito da nossa são feias e erradas.

Obviamente, não há pronúncias certas ou erradas (desde que respeitem a grafia das palavras, é claro) nem muito menos feias ou bonitas, já que beleza ou feiura é questão de gosto. O que há em todas as línguas de cultura é a chamada pronúncia padrão, geralmente um misto das pronúncias mais prestigiadas, que, por sinal, costumam ser as dos maiores e mais influentes centros urbanos. A pronúncia padrão é aquela que mais costumeiramente se ensina aos estrangeiros e também a mais utilizada na mídia, por atores, locutores, jornalistas, apresentadores de televisão, etc. É, enfim, aquela que mais comumente se atribui aos cidadãos de um determinado país.

Portanto, o Brasil também tem uma pronúncia padrão da língua portuguesa aqui falada. Consequentemente, embora todos tenhamos nossa própria maneira de pronunciar, costuma-se dizer que têm sotaque aqueles cidadãos cuja pronúncia mais se distancia do padrão.

Nesse sentido, os “sotaques” brasileiros mais conhecidos são o caipira, o nordestino e o sulista, todos os três bastante estigmatizados pelas classes urbanas cultas do Centro-Sul. Exemplo disso é o uso desses sotaques para caracterizar personagens humorísticos. Enquanto isso, a pronúncia padrão, que seria um misto das pronúncias urbanas do Sudeste, corresponde mais ou menos ao que se ouve entre os falantes cultos nativos de Brasília, Vitória ou Belo Horizonte, mas que inclui também a fala culta das capitais do Sul e Centro-Oeste. Quanto ao sotaque carioca, apesar de seu prosaico chiado, também é tido como padrão por ser o Rio de Janeiro o segundo maior centro urbano do país e por dois séculos sua capital. Além disso, a maior parte da produção audiovisual brasileira sai de terras fluminenses.

araucaria_3

Dos três sotaques estigmatizados que citei acima, o sulista, com seu erre trinado e com seu e e o finais átonos destacados (imagine um paranaense pronunciando “docê dê leitê”), e o caipira, com seu erre retroflexo, são pronúncias predominantemente rurais e mais frequentes entre os menos escolarizados. Ou seja, a população culta das grandes cidades do Sul e de São Paulo, sul de Minas e do Centro-Oeste tende a falar mais ou menos de acordo com a pronúncia padrão do português brasileiro.

É claro que em todas as regiões, sobretudo nas grandes metrópoles, há “guetos linguísticos”, isto é, áreas urbanas que conservam um sotaque característico, como o das periferias de São Paulo, que virou padrão dos rappers, cujo erre “caipira” é cem por cento urbano, ou o da Mooca, também em São Paulo, com sua entonação tipicamente italiana.

Mas é o sotaque nordestino o que mais chama a atenção porque é a única pronúncia não padrão usada por todos, dos analfabetos aos doutores, na cidade e no campo. Mas, antes de falar do sotaque nordestino, é preciso explicar exatamente do que isso se trata. Acontece que o Brasil está dividido em quatro regiões dialetológicas (essa divisão leva em conta principalmente os aspectos fonético e lexical). A primeira região, chamada meridional, se estende a partir do Estado de São Paulo e sul de Minas Gerais (incluindo o Triângulo Mineiro) para todo o Sul e Centro-Oeste do Brasil, com exceção do Distrito Federal; por sinal, foi de São Paulo que saíram os bandeirantes que colonizaram toda essa região, o que explica a similaridade de pronúncias. A segunda região, chamada de central, inclui Rio de Janeiro, Espírito Santo, centro e norte de Minas Gerais e o Distrito Federal. Este último constitui um enclave da pronúncia central dentro do Centro-Oeste, explicado pela recente construção de Brasília, com a migração para lá de muitos brasileiros do Sudeste e do Nordeste. A terceira região, setentrional, divide-se em duas sub-regiões: a primeira, que inclui todo o Norte, com exceção talvez de Rondônia e parte de Tocantins, engloba também em parte a Bahia e os Estados do Ceará, Piauí e Maranhão. Já a região que vai de Sergipe ao Rio Grande do Norte e, portanto, abrange Alagoas, Pernambuco e Paraíba, é a segunda subdivisão da região setentrional e constitui o núcleo do falar nordestino, onde o sotaque é mais puro e mais “carregado”, já que a outra sub-região é uma zona de transição entre os sotaques do Sudeste e os desse núcleo (perceba, por exemplo, as semelhanças entre o sotaque de Belém do Pará e o do Rio, ou entre o da Bahia e o do norte de Minas).

Embora todos os falares nordestinos tenham muito mais semelhanças entre si do que diferenças (por exemplo, o e e o abertos de émoção e córação), é nesse núcleo onde estão os nordestinos “da gema”, terra do cangaço, do forró, do jabá, da peixeira, dos cabras machos, da literatura de cordel e dos repentistas. É onde se pronuncia “tia” e “dia” sem nenhuma palatalização de t e d, traço característico da fala brasileira. É também onde mais frequentemente se ouvem coisas como nuvidade, tumate, pumada, Ricife, cunhicê, aparicê, biolugia, meteorulugia, inucente, corrúpito, corrupição, oitcho (isto é, “oito”), muitcho (“muito”), gochtcho (“gosto”), kæro (“quero”), contnua, vitma, ultmo, a rente tarra (“a gente tava”), aquela cidad’ali, cidad’do Rio, ũa, algũa, ninhũa, ãmar, agôra, ele não dir nada (“ele não diz nada”), dotôo, pudêe, cunzinha (“cozinha”), cãmíum (“caminho”)… É ainda o lugar onde muitas vezes “lá” e “na” soam como lhá e nha, onde o l entre vogais é mais velarizado, onde a voz é mais anasalada, e assim por diante.

sertao

Fatores históricos e geográficos explicam as peculiaridades não só do sotaque nordestino mas da própria região Nordeste. Foi a primeira região a ser colonizada pelos portugueses, o que significa que a fala nordestina retém muitas características do português lusitano dos séculos XVI e XVII, ao passo que o português brasileiro do Centro-Sul espelha melhor a língua da corte portuguesa do início do século XIX, época da transmigração da família real para o Rio de Janeiro, somada à contribuição dos imigrantes europeus que aqui chegaram nos séculos XIX e XX.

Por essas e outras razões, o Nordeste se tornou uma região sui generis dentro do Brasil; há quem diga até que o Nordeste é outro país – o que o resultado destas últimas eleições não deixa de, até certo ponto, reforçar. De fato, a própria designação “nordestino” individualiza esse povo dentre os brasileiros. Afinal, embora também haja nortistas e sulistas, nunca se ouviu falar de sudestinos ou de centro-oestinos. Paulistas, cariocas e mineiros não têm entre si o espírito de fraternidade que têm os nordestinos de todos os Estados. Existe até o Dia do Nordestino, comemorado exatamente hoje, 8 de outubro, mas não um Dia do Sulista e menos ainda o Dia do Sudestino. Embora os sulistas também sejam muito ciosos de suas tradições, e por isso a região Sul do Brasil também tenda a diferenciar-se, a fala sulista, embora típica, está foneticamente menos distante do padrão geral brasileiro do que a nordestina, principalmente a da segunda sub-região setentrional (a “da gema”). Eu chegaria a dizer – mas é apenas a minha opinião pessoal – que essa pronúncia chega a constituir uma terceira variedade de português, distinta tanto da brasileira quanto da europeia. Tanto que os repórteres do Nordeste são praticamente os únicos a disfarçar o sotaque quando falam no rádio ou na TV (acho gritante, por exemplo, a diferença entre a pronúncia da repórter pernambucana da Globo e a das pessoas que ela entrevista).

*-*-*

Resumo da ópera: todo falante tem sotaque, só que aqueles mais distanciados do que foi eleito como padrão são os mais estigmatizados e os que mais chamam a atenção de quem não é nativo das regiões onde eles são usados. Este é um fato do qual devemos ter consciência, mas contra o qual é inútil lutar, pois a variação regional (pomposamente chamada de diatópica pelos sociolinguistas) é um dado universal em termos linguísticos, isto é, existe, sempre existiu e sempre existirá em todas as línguas, em todas as nações.

10 comentários sobre “O Brasil que tem sotaque

  1. Parabéns pelo ótimo artigo, que não deixa de (sem bairrismo) homenagear a minha região. Vou compartilhá-lo e indicá-lo à turma como subsídio para a redação sobre o preconceito linguístico (um dos temas cotados para o Enem).

  2. De fato a pronúncia de Camões pelo que sei era parecido com o nosso nordestino nas vogais, que eram todas meio anasaladas inclusive longe de m e n, mas o r e o s eram como no sul, isto é, r dental e não gutural e s sibilante e não chiado.

    queria saber é como seria o Português dos trovadores dos séculos XII e XIII… Será que já fizeram gravação reconstituindo ?

    O Espanhol também, supondo que o artigo da Wikipédia seja confiável, mudou muito nas consoantes. No século XII ele tinha os mesmos sons que nós ainda temos para j, x e z, mas depois os perdeu…

    1. Achei interessantes os vídeos que você me enviou. A reconstrução do inglês shakespeariano é bem verossímil, primeiro porque os ingleses pesquisam muito sobre a própria língua, segundo porque foi feita por um grande linguista, David Crystal. Já a reconstrução do português foi feita por um sujeito que eu não sei se é linguista, mas que me pareceu meio maluco. De todo modo, sabe-se que o “s” do português renascentista era mais palatalizado, como é ainda hoje o “s” do espanhol madrilenho. Ele também erra ao pronunciar o “m” final, que sempre foi mudo e serve apenas para nasalizar a vogal anterior.
      Sobre o galego-português do tempo dos trovadores, há reconstruções sim, mas feitas por atores e não por linguistas.
      Finalmente, o artigo da Wikipédia sobre o espanhol é confiável sim.

    1. Sim, são verossímeis. Lembrando que na época dos trovadores não havia língua portuguesa, havia o galaico-português, que depois se cindiu em galego e em português. A língua das líricas medievais está mais próxima do galego atual do que do português, que, por originar-se mais ao sul, tem características fonético-fonológicas diferentes.

  3. Então as diferenças entre o Galaico-Português e o Galego atual não se devem à influência espanhola ? O que eu li há um tempo é que, a partir do século XVI, os espanhóis passaram a disseminar entre os próprios galegos que o Galego seria um idioma “errado” e o Espanhol seria o correto, por razões geopolíticas.

    1. Parte se deve à influência espanhola e parte não. Na Idade Média, castelhano e galaico-português eram dialetos bem próximos. O galego atual conservou muito do medieval, ao passo que o português e o castelhano mudaram bastante.

  4. Prá falá a verdade, o tar sotaque “sulista” é basicamênte um variação do dialeto caipira. Ieu sei, é comum um curitibano falá “leitÊ” (com um ‘E’ bem forte, sem iotização), mas isso tamêm é notáve no sur de São Paulo ô ne ôtas (muintas) cidades paulista. Num se trata d’um tipo de remedação ô um trem ansim, basicamênte os denominados “sulistas” e os paulista tem ũa orige em comum, inda mai se tratano de paranaenses.

    1. De fato, os sotaques tanto do Sul quanto do Centro-Oeste do Brasil nasceram em São Paulo e lá chegaram com a ação dos bandeirantes paulistas. Tanto o “r” caipira quanto o “dentÊ dÊ leitÊ”, sem falar no “r” vibrante alveolar múltiplo inicial de palavra, são características cujo epicentro é o interior de São Paulo.

      1. Só o interior? A São Paulo capital do século XX é absolutamente, em quase todos os sentidos possíveis e imagináveis, uma outra cidade que não a São Paulo capital, para lá de periférica, dos 1800 para trás.

        A italianização de São Paulo capital, que mudou muito a cara e o a fala dos paulistanos, é dos 1900 em diante.

        Não sei se é possível fazer essa distinção capital/interior no contexto de que falamos: parece-me bastante anacrônica.

        O ê em leitê quentê dá dor nos dentê não me parece tampouco comum a toda a extensa área do dialeto caipira: sou mineiro, de família goiana e mineira, e não me lembro de ter ouvido isso seja em Minas, seja em Goiás.

Deixe uma resposta