Sotaque de novela

Todo falante (com exceção, talvez, dos estudiosos da linguagem) tem uma visão idealizada da língua que fala, e das outras também. Desde crenças infundadas sobre a “pureza” deste ou daquele idioma até alegações, por vezes cercadas de uma aura cientificista, de que tal língua se presta melhor do que outras a determinados propósitos (comércio, poesia, filosofia, etc.). Essa mesma visão romântica — e por que não dizer chauvinista? — da língua é que leva o paulistano que pronuncia “inteindeindo” ou o carioca que diz “meijmo” a acharem que falam sem nenhum sotaque, que quem tem sotaque são os outros. E aí nascem os estereótipos linguísticos, sobejamente explorados pelos programas humorísticos da TV, nos quais o traço caricatural da fala regional, mais do que tolerado, é enfatizado, haja vista o efeito cômico que produz.

Mas o que dizer de telenovelas “sérias”, em que a imitação da pronúncia ou da sintaxe de determinada região (ou da fala de imigrantes estrangeiros) deveria causar no telespectador uma sensação de ambiência realista, como que a transportá-lo para o meio daquelas pessoas distantes, de fala igualmente tão distante da nossa? Via de regra, o que se vê em nossos folhetins televisivos é um arremedo, às vezes patético, do linguajar dos lugares e épocas retratados.

Atualmente, a Rede Globo (que, por sinal, passou a assinar-se novamente como TV Globo ou simplesmente Globo, conforme aparece na logomarca da empresa) exibe três telenovelas “regionais”: O Rei do Gado, Mar do Sertão e Travessia. Nas três, temos pronúncias caricatas, seja a do caipira (isto é, qualquer cidadão natural do meio rural, desde Rondônia até o Rio Grande do Sul), seja a do nordestino.

Nossa idealização “sulista” da fala deste último nos leva, em primeiro lugar, a achar que em todo o Nordeste se fala igual, portanto numa novela passada na Bahia e noutra em Pernambuco os atores falarão do mesmo jeito. Por sinal, um jeito no qual nenhum nordestino de verdade se reconhece. Nem o baiano nem o pernambucano.

Em segundo lugar, temos a vaga ideia de que no Nordeste o não vem sempre depois do verbo (“— Você quer? — Quero não.”) e mais substitui a preposição com (“Severino saiu mais Maria.”). Só falta explicar que o advérbio não não se pospõe simplesmente ao verbo. O que ocorre é o redobro do não, comum em todas as regiões do país (“Não quero, não”), seguido do apagamento do primeiro não (por preguiça dos baianos, dirão os maldosos). Portanto, é pouco provável ouvir um não posposto ao verbo que não esteja em posição final na oração. Uma frase como “hoje vou não à escola porque está chovendo” é bem improvável em qualquer lugar do Brasil, inclusive no Nordeste.

Em segundo lugar, mais de fato substitui com no sentido de companhia, mas não em outros sentidos. “Este ano a eleição coincide mais a Proclamação da República” ou “ele cortou o pão mais a faca” são construções impossíveis. A não ser nas novelas. (Em 2012, no remake de Gabriela, de Jorge Amado, ouviam-se frases como “Mundinho Falcão casa não mais Gerusa!”.)

E o que dizer do italiano macarrônico que volta e meia assalta nossa telinha, como no caso dos patriarcas das famílias Mezzenga e Berdinazzi de O Rei do Gado? Talvez preocupados em fazer com que um público mal escolarizado entenda o que os imigrantes da estória estão dizendo, o que se faz é pôr na boca dos atores um sotaque artificialmente “cantado”, acrescido de falsos cognatos, como, por exemplo, empregar allora no sentido de “agora” (allora significa “então” em italiano): “Io vó lá allora mesmo!”.

Finalmente, as novelas de época trazem janotas e donzelas do século XIX falando como surfistas: “eu vi ela saindo”, “eu queria muito que a gente ficasse juntos”, e por aí vai. Somem-se a isso cenários caríssimos reproduzindo o Rio de Janeiro dos tempos imperiais onde se leem placas com dizeres como farmácia e comércio, assim mesmo, com f no lugar do ph e m em vez de mm. Sem falar no acento agudo! (Parece que a televisão brasileira, ciosa do seu papel educativo e cultural, adota nas novelas de época a ortografia pós-Acordo Ortográfico de 2009.) Mais convincente do que isso só me lembro do Márcio Garcia fazendo papel de indiano na novela Caminho das Índias, de 2009.

Riberrô? Vierrá?

Outro dia ouvi num intervalo comercial de uma TV pública que uma certa cantora lírica francesa, cujo nome me parece que era Catherine Ribeiro (ou Marguerite, ou Jacqueline…), viria se apresentar no Brasil. O curioso – e, para mim, principalmente irritante – é que o locutor pronunciava o seu sobrenome como “riberrô”. Tudo bem que os franceses pronunciem nomes estrangeiros à moda deles, afinal nós também fazemos isso. Aliás, todos os povos fazem isso. É por essa razão que eles pronunciam os sobrenomes do falecido antropólogo Lévi-Strauss (de origem alemã) e do eterno craque do futebol Platini (do italiano) como “levistrrôss” e “platiní”, respectivamente. Como esses sobrenomes são estrangeiros também para nós, tanto faz dizê-los à maneira dos franceses, dos alemães ou dos italianos. Optamos então por pronunciá-los como os próprios donos dos sobrenomes os pronunciam. Pela mesma razão, o linguista Noam Chomsky é conhecido como “tchómski” tanto aqui quanto nos EUA, sua terra natal, embora a pronúncia original do sobrenome, de origem judeu-russa, seja “khómski”.

Agora, pronunciar à moda estrangeira nomes que são legitimamente portugueses já é demais! Lembro que nas Copas do Mundo de futebol de 1998 e 2002 tivemos que aguentar os narradores esportivos brasileiros chamando os jogadores franceses Vieira, Pires e Fernandez de “vierrá”, “pirrés” e “fernandês”. (Na contramão dessa tendência, esses mesmos narradores chamam o futebolista colombiano James Rodríguez de “rames”, à moda espanhola, quando os próprios colombianos – e o próprio detentor do nome – o chamam de “djeims”, tal como o fazem os ingleses, criadores do nome.)

Mas será que os franceses são tão zelosos assim com nossa pronúncia quando se referem a brasileiros com nomes de origem francesa, como o infeliz eletricista-confundido-com-terrorista Jean Charles de Menezes, morto pela polícia londrina em 2005? Há no Brasil uns poucos sobrenomes franceses, como Bittencourt e Fleury, que pronunciamos erradamente como “bitencur” e “fleurí” quando o certo seria “bitãcur” e “flörrí”. E também pronunciamos Jean como “jiã” e não “jã”, e Charles como “xarles” e não “xarl”. Também temos inúmeros brasileirinhos chamados Rian (ou Ryan), nome inglês que virou moda nas classes mais baixas, onde são chamados de “riã” e não de “ráian”. E “riã” (isto é, rien) quer dizer “nada” em francês. Se for mesmo verdade que um nome pode determinar o futuro de uma pessoa…

Mas voltando ao ponto: será que franceses e ingleses pronunciam Jean, Charles, Rian, Bittencourt e Fleury à moda brasileira quando os donos de tais nomes são nossos patrícios? Certa vez ouvi numa emissora de rádio em Buenos Aires o locutor mencionar um filósofo suíço de nome Rota Punto Rota Punto Ru-ce-au e só após alguns segundos de perplexidade compreendi tratar-se de J. J. Rousseau (ou melhor, Jean-Jacques Rousseau), que muitos no Brasil, inclusive na universidade, tratam na intimidade por “jiã-jaques”.

A intérprete da pronúncia

Hoje o Brasil está completando quatro décadas sem Elis Regina. A Pimentinha, como era chamada, foi indubitavelmente uma das maiores intérpretes de nossa música popular, não só por seu grande talento e estilo inconfundível, mas também por ter lançado ao estrelado alguns dos maiores compositores da MPB dos anos 60 e 70 do século passado, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco e tantos outros.

Elis dava às músicas interpretações definitivas, tanto que alguns autores admitiam compor para ela, mesmo que a canção acabasse gravada por outro intérprete.

Elis brincava com a voz, cantava rindo, chorando, resmungando, imitando vozes e sotaques, da impostação à la Ângela Maria ao caipirês de Renato Teixeira e ao bexiguês de Adoniran Barbosa. Da dicção afetada das socialites ao timbre rouco de Louis Armstrong, tudo era pretexto para um malabarismo melódico-rítmico-fonético. Elis explorou como poucos as potencialidades da voz e fala humanas ao cantar. Mas, além das vozes e sotaques que simulava, tinha sua própria pronúncia, que evoluiu ao longo da carreira, confirmando o traço camaleônico de sua personalidade.

É difícil, se não impossível, saber o quanto de intencionalidade havia nas pronúncias que Elis adotou, o quanto esse processo era consciente e deliberado.

Sabe-se que há pessoas mais propensas do que outras a incorporar hábitos linguísticos do lugar em que passam a viver. Embora a idade seja um fator importante na sedimentação desses hábitos (quanto mais jovem alguém muda de cidade ou país, maior sua facilidade em incorporar o novo padrão sem deixar vestígios do antigo), algumas pessoas imitam com perfeição a fala alheia, enquanto outras são capazes de viver décadas numa nova terra sem jamais perder as características de sua fala original.

O fato é que, se num primeiro momento, Elis simplesmente adotou a pronúncia carioca, talvez para se inserir melhor num mercado profissional em que o sotaque sulista não seria bem aceito, após algum tempo desenvolveu uma pronúncia própria e única, um sotaque “elisiano”, se é que se pode assim chamá-lo.

Elis Regina Carvalho Costa era natural de Porto Alegre, portanto imagina-se que, até o momento de abraçar a carreira musical, falasse como uma típica cidadã gaúcha. No entanto, ao lançar seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, em 1961, ela já esboça uma pronúncia carioca que, por conta da Bossa Nova, começava a se tornar hegemônica na MPB, substituindo a articulação (e a impostação vocal) operística que predominara nas décadas de 1930 e 40.

Elis fixou residência em São Paulo a partir de 1964, e nessa cidade permaneceu até sua morte, em 1982. Seu s carioca (isto é, palatalizado em fim de sílaba) permaneceu inalterado até meados dos anos 1970, quando, aos poucos, foi substituído pelo impropriamente denominado s paulista (não palatalizado).

Pessoas não versadas em fonética ou dialetologia costumam referir-se a certos sons da fala brasileira por seus modelos prototípicos. Assim, o chamado r carioca (velar ou uvular, tecnicamente falando) não é próprio só do Rio, é padrão em boa parte do país. Da mesma forma, o r caipira deixou há muito de ser só interiorano, já que é usado por nativos de cidades como São Paulo e Curitiba.

As gravações de Elis entre 1975 e 1979 revelam características fonéticas um pouco diferentes do período anterior: um r cada vez mais gutural, incomum até no Rio de Janeiro; um l mais velarizado (como na pronúncia lusitana) e, vez por outra, a abertura das vogais pré-tônicas à maneira nordestina; momentos em que a voz soa mais anasalada, em outros menos; e assim por diante.

Especificamente em relação ao s final de sílaba, pode-se reconhecer em Elis três fases:

1) a primeira, em que o fonema soa tal como pronunciado no Rio (por exemplo, “casas” pronunciado como “cásach” ou “cásaich”);

2) a seguir, uma pronúncia mais próxima do brasileiro padrão (“cásaç”);

3) finalmente, um misto dos dois: “cásaiç”. Esta pronúncia a levou a articular “céus” como “céuis” em determinada canção.

Nossa querida Pimentinha constitui um riquíssimo caso de estudo, não só para musicólogos e críticos, mas também para linguistas.

A ioga ou o yôga?

Hoje é o Dia Internacional da Ioga – ou do Yôga, como querem os mais pedantes. Essa palavra veio do sânscrito, língua sagrada do hinduísmo e significa “união, junção”. O que ocorre é que ela foi há muito aportuguesada, assim como futebol, abajur, contêiner, uísque, etc., de modo que sua grafia é com i e sua pronúncia com o aberto. Além disso, em nossa língua ela é do gênero feminino.

No entanto, de algum tempo para cá os professores de ioga passaram a referir-se a essa técnica milenar como “o yoga”, com y, o fechado e no masculino. Alguns até chegam a corrigir a pronúncia dos alunos que dizem corretamente “a ióga”. Mas afinal, qual é o certo, o que dizem os dicionários ou o que dizem os iogues? É óbvio que corretos estão o dicionário e a gramática; essa onda de pronunciar “o yôga” é pura mania de prestigiar o que é estrangeiro em detrimento do vernáculo. Chamar a ioga de “o yôga” é como chamar o futebol de football. Você faria isso? Se não, não tenha medo de corrigir o seu professor de ioga, pois ele pode até entender muito dessa arte indiana, mas quem entende de língua portuguesa são os linguistas, os gramáticos, os dicionaristas e os professores de português.

A intérprete da pronúncia

Esta semana Elis Regina teria completado 76 anos de vida. A Pimentinha, como era chamada, foi indubitavelmente uma das maiores intérpretes de nossa música popular, não só por seu grande talento e estilo inconfundível, mas também por ter lançado ao estrelado alguns dos maiores compositores da MPB dos anos 1960 e ’70, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco e tantos outros.

Elis dava às músicas interpretações definitivas, tanto que alguns autores admitiam compor para ela, mesmo que a canção acabasse gravada por outro intérprete.

Elis brincava com a voz, cantava rindo, chorando, resmungando, imitando vozes e sotaques, da impostação à la Ângela Maria ao caipirês de Renato Teixeira e ao bexiguês de Adoniran Barbosa. Da dicção afetada das socialites ao timbre rouco de Louis Armstrong, tudo era pretexto para um malabarismo melódico-rítmico-fonético. Elis explorou como poucos as potencialidades da voz e fala humanas ao cantar. Mas, além das vozes e sotaques que simulava, tinha sua própria pronúncia, que evoluiu ao longo da carreira, confirmando o traço camaleônico de sua personalidade.

É difícil, se não impossível, saber o quanto de intencionalidade havia nas pronúncias que Elis adotou, o quanto esse processo era consciente e deliberado.

Sabe-se que há pessoas mais propensas do que outras a incorporar hábitos linguísticos do lugar em que passam a viver. Embora a idade seja um fator importante na sedimentação desses hábitos (quanto mais jovem alguém muda de cidade ou país, maior sua facilidade em incorporar o novo padrão sem deixar vestígios do antigo), algumas pessoas imitam com perfeição a fala alheia, enquanto outras são capazes de viver décadas numa nova terra sem jamais perder as características de sua fala original.

O fato é que, se num primeiro momento, Elis simplesmente adotou a pronúncia carioca, talvez para se inserir melhor num mercado profissional em que o sotaque sulista não seria bem aceito, após algum tempo desenvolveu uma pronúncia própria e única, um sotaque “elisiano”, se é que se pode assim chamá-lo.

Nossa querida Pimentinha constitui um riquíssimo caso de estudo, não só para musicólogos e críticos, mas também para linguistas.

Luso e nordestino numa só voz
As gravações de Elis entre 1975 e 1979 revelam características fonéticas um pouco diferentes do período anterior: um “r” cada vez mais gutural, incomum até no Rio de Janeiro; um “l” mais velarizado (como na pronúncia lusitana) e, vez por outra, a abertura das vogais pré-tônicas à maneira nordestina; momentos em que a voz soa mais anasalada, em outros menos; e assim por diante.
O sotaque carioca da gaúcha
Elis Regina Carvalho Costa era natural de Porto Alegre, portanto imagina-se que, até o momento de abraçar a carreira musical, falasse como uma típica cidadã gaúcha. No entanto, ao lançar seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, em 1961, ela já esboça uma pronúncia carioca que, por conta da bossa-nova, começava a se tornar hegemônica na MPB, substituindo a articulação (e a impostação vocal) operística que predominara nas décadas de 1930 e ’40.
O falar paulista de Elis
Elis fixou residência em São Paulo a partir de 1964, e nessa cidade permaneceu até sua morte, em 1982. Seu “s” carioca (isto é, chiado em fim de sílaba) permaneceu inalterado até meados dos anos 70, quando, aos poucos, foi substituído pelo impropriamente denominado “s” paulista (não chiado). Pessoas não versadas em fonética ou dialetologia costumam referir-se a certos sons da fala brasileira por seus modelos prototípicos. Assim, o chamado “r” carioca (velar ou uvular, tecnicamente falando) não é próprio só do Rio, é padrão na maior parte do país. Da mesma forma, o “r” caipira deixou há muito de ser só interiorano, já que é usado por nativos de cidades como São Paulo e Curitiba.
As três fases do s “elisiano”
Especificamente em relação ao “s” final de sílaba, pode-se reconhecer em Elis três fases: 1) a primeira, em que o fonema soa tal como pronunciado no Rio (por exemplo, “casas” pronunciado como “cásach” ou “cásaich”). 2) A seguir, uma pronúncia mais próxima do brasileiro padrão (“cásaç”). 3) Finalmente, um misto dos dois: “cásaiç”. Esta pronúncia a levou a articular “céus” como “céuis” em determinada canção.

Qual a pronúncia correta de sintaxe?

Prof. Aldo, gostaria de saber qual é a pronúncia correta da palavra “sintaxe”: “sintasse” ou “sintacse”? Muito obrigado.
Fábio Luiz Cerqueira

Essa é uma questão interessante de ortoépia. Trata-se de uma dessas palavras que, por serem escritas com “x”, letra de inúmeros valores fonológicos em português, acabam por confundir até os falantes mais cultos. Há uma crença disseminada na sociedade de que palavras de origem grega ou latina pertencentes à esfera da cultura devem ser pronunciadas tal como o eram naquelas línguas. E assim acaba ocorrendo o fenômeno da hipercorreção, em que o falante articula “x” como /ks/ e “qu” como /kw/ mesmo onde essa pronúncia não existe. Exemplos clássicos disso são “mácsimo” e “inqüérito”.

Todos os dicionários que consultei recomendam a pronúncia “sintasse”. E a razão é simples: o todo-poderoso uso. Isso porque “sintaxe”, “máximo” e “próximo” são empréstimos latinos antigos, em que a pronúncia /ss/, embora inicialmente errada, acabou se consagrando pelo uso repetido, tornando arcaica, pedante ou simplesmente errada a pronúncia latinizante /ks/.

Só que a coisa não é tão simples assim. “Sintaxe” é um termo técnico da linguística e da gramática cujo sentido é “ordenação”. A sintaxe se divide em dois processos: parataxe (isto é, coordenação) e hipotaxe (subordinação). Nestes dois últimos termos, a pronúncia do “x” é /ks/, o que tornaria lógica a pronúncia de “sintaxe” da mesma forma. No meu entender, articular “sintacse” não é um erro do mesmo nível de “mácsimo”, “inqüérito” ou “tóchico”. Por sinal, uma reforma ortográfica que venha a substituir “x” por “ss” terá de levar em conta essas variações.

Falo mais sobre esse assunto no meu vídeo “Palavras com duas pronúncias” do meu canal do YouTube Planeta Língua.

O Brasil que tem sotaque

O título deste artigo é propositalmente provocativo. Afinal, sotaque, todo mundo sabe, é aquela pronúncia que nós não temos, pois só os outros é que têm, certo? Ou seja, falando sério agora, todo indivíduo tem uma pronúncia da língua que é característica da sua região, da sua geração e da sua classe social. No entanto, há uma tendência chauvinista de achar que a nossa pronúncia, seja ela qual for, é que é a correta e aquelas que diferem muito da nossa são feias e erradas.

Obviamente, não há pronúncias certas ou erradas (desde que respeitem a grafia das palavras, é claro) nem muito menos feias ou bonitas, já que beleza ou feiura é questão de gosto. O que há em todas as línguas de cultura é a chamada pronúncia padrão, geralmente um misto das pronúncias mais prestigiadas, que, por sinal, costumam ser as dos maiores e mais influentes centros urbanos. A pronúncia padrão é aquela que mais costumeiramente se ensina aos estrangeiros e também a mais utilizada na mídia, por atores, locutores, jornalistas, apresentadores de televisão, etc. É, enfim, aquela que mais comumente se atribui aos cidadãos de um determinado país.

Portanto, o Brasil também tem uma pronúncia padrão da língua portuguesa aqui falada. Consequentemente, embora todos tenhamos nossa própria maneira de pronunciar, costuma-se dizer que têm sotaque aqueles cidadãos cuja pronúncia mais se distancia do padrão.

Nesse sentido, os “sotaques” brasileiros mais conhecidos são o caipira, o nordestino e o sulista, todos os três bastante estigmatizados pelas classes urbanas cultas do Centro-Sul. Exemplo disso é o uso desses sotaques para caracterizar personagens humorísticos. Enquanto isso, a pronúncia padrão, que seria um misto das pronúncias urbanas do Sudeste, corresponde mais ou menos ao que se ouve entre os falantes cultos nativos de Brasília, Vitória ou Belo Horizonte, mas que inclui também a fala culta das capitais do Sul e Centro-Oeste. Quanto ao sotaque carioca, apesar de seu prosaico chiado, também é tido como padrão por ser o Rio de Janeiro o segundo maior centro urbano do país e por dois séculos sua capital. Além disso, a maior parte da produção audiovisual brasileira sai de terras fluminenses.

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Dos três sotaques estigmatizados que citei acima, o sulista, com seu erre trinado e com seu e e o finais átonos destacados (imagine um paranaense pronunciando “docê dê leitê”), e o caipira, com seu erre retroflexo, são pronúncias predominantemente rurais e mais frequentes entre os menos escolarizados. Ou seja, a população culta das grandes cidades do Sul e de São Paulo, sul de Minas e do Centro-Oeste tende a falar mais ou menos de acordo com a pronúncia padrão do português brasileiro.

É claro que em todas as regiões, sobretudo nas grandes metrópoles, há “guetos linguísticos”, isto é, áreas urbanas que conservam um sotaque característico, como o das periferias de São Paulo, que virou padrão dos rappers, cujo erre “caipira” é cem por cento urbano, ou o da Mooca, também em São Paulo, com sua entonação tipicamente italiana.

Mas é o sotaque nordestino o que mais chama a atenção porque é a única pronúncia não padrão usada por todos, dos analfabetos aos doutores, na cidade e no campo. Mas, antes de falar do sotaque nordestino, é preciso explicar exatamente do que isso se trata. Acontece que o Brasil está dividido em quatro regiões dialetológicas (essa divisão leva em conta principalmente os aspectos fonético e lexical). A primeira região, chamada meridional, se estende a partir do Estado de São Paulo e sul de Minas Gerais (incluindo o Triângulo Mineiro) para todo o Sul e Centro-Oeste do Brasil, com exceção do Distrito Federal; por sinal, foi de São Paulo que saíram os bandeirantes que colonizaram toda essa região, o que explica a similaridade de pronúncias. A segunda região, chamada de central, inclui Rio de Janeiro, Espírito Santo, centro e norte de Minas Gerais e o Distrito Federal. Este último constitui um enclave da pronúncia central dentro do Centro-Oeste, explicado pela recente construção de Brasília, com a migração para lá de muitos brasileiros do Sudeste e do Nordeste. A terceira região, setentrional, divide-se em duas sub-regiões: a primeira, que inclui todo o Norte, com exceção talvez de Rondônia e parte de Tocantins, engloba também em parte a Bahia e os Estados do Ceará, Piauí e Maranhão. Já a região que vai de Sergipe ao Rio Grande do Norte e, portanto, abrange Alagoas, Pernambuco e Paraíba, é a segunda subdivisão da região setentrional e constitui o núcleo do falar nordestino, onde o sotaque é mais puro e mais “carregado”, já que a outra sub-região é uma zona de transição entre os sotaques do Sudeste e os desse núcleo (perceba, por exemplo, as semelhanças entre o sotaque de Belém do Pará e o do Rio, ou entre o da Bahia e o do norte de Minas).

Embora todos os falares nordestinos tenham muito mais semelhanças entre si do que diferenças (por exemplo, o e e o abertos de émoção e córação), é nesse núcleo onde estão os nordestinos “da gema”, terra do cangaço, do forró, do jabá, da peixeira, dos cabras machos, da literatura de cordel e dos repentistas. É onde se pronuncia “tia” e “dia” sem nenhuma palatalização de t e d, traço característico da fala brasileira. É também onde mais frequentemente se ouvem coisas como nuvidade, tumate, pumada, Ricife, cunhicê, aparicê, biolugia, meteorulugia, inucente, corrúpito, corrupição, oitcho (isto é, “oito”), muitcho (“muito”), gochtcho (“gosto”), kæro (“quero”), contnua, vitma, ultmo, a rente tarra (“a gente tava”), aquela cidad’ali, cidad’do Rio, ũa, algũa, ninhũa, ãmar, agôra, ele não dir nada (“ele não diz nada”), dotôo, pudêe, cunzinha (“cozinha”), cãmíum (“caminho”)… É ainda o lugar onde muitas vezes “lá” e “na” soam como lhá e nha, onde o l entre vogais é mais velarizado, onde a voz é mais anasalada, e assim por diante.

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Fatores históricos e geográficos explicam as peculiaridades não só do sotaque nordestino mas da própria região Nordeste. Foi a primeira região a ser colonizada pelos portugueses, o que significa que a fala nordestina retém muitas características do português lusitano dos séculos XVI e XVII, ao passo que o português brasileiro do Centro-Sul espelha melhor a língua da corte portuguesa do início do século XIX, época da transmigração da família real para o Rio de Janeiro, somada à contribuição dos imigrantes europeus que aqui chegaram nos séculos XIX e XX.

Por essas e outras razões, o Nordeste se tornou uma região sui generis dentro do Brasil; há quem diga até que o Nordeste é outro país – o que o resultado destas últimas eleições não deixa de, até certo ponto, reforçar. De fato, a própria designação “nordestino” individualiza esse povo dentre os brasileiros. Afinal, embora também haja nortistas e sulistas, nunca se ouviu falar de sudestinos ou de centro-oestinos. Paulistas, cariocas e mineiros não têm entre si o espírito de fraternidade que têm os nordestinos de todos os Estados. Existe até o Dia do Nordestino, comemorado exatamente hoje, 8 de outubro, mas não um Dia do Sulista e menos ainda o Dia do Sudestino. Embora os sulistas também sejam muito ciosos de suas tradições, e por isso a região Sul do Brasil também tenda a diferenciar-se, a fala sulista, embora típica, está foneticamente menos distante do padrão geral brasileiro do que a nordestina, principalmente a da segunda sub-região setentrional (a “da gema”). Eu chegaria a dizer – mas é apenas a minha opinião pessoal – que essa pronúncia chega a constituir uma terceira variedade de português, distinta tanto da brasileira quanto da europeia. Tanto que os repórteres do Nordeste são praticamente os únicos a disfarçar o sotaque quando falam no rádio ou na TV (acho gritante, por exemplo, a diferença entre a pronúncia da repórter pernambucana da Globo e a das pessoas que ela entrevista).

*-*-*

Resumo da ópera: todo falante tem sotaque, só que aqueles mais distanciados do que foi eleito como padrão são os mais estigmatizados e os que mais chamam a atenção de quem não é nativo das regiões onde eles são usados. Este é um fato do qual devemos ter consciência, mas contra o qual é inútil lutar, pois a variação regional (pomposamente chamada de diatópica pelos sociolinguistas) é um dado universal em termos linguísticos, isto é, existe, sempre existiu e sempre existirá em todas as línguas, em todas as nações.

Qual o sotaque mais bonito? E o mais feio?

Essa pergunta volta e meia surge em bate-papos e reacende uma velha discussão, que dá muito pano pra manga – e também dá margem a muitos preconceitos e discriminações. Há até tópicos em fóruns da internet com esse tema, e é curioso perceber que, neles, boa parte das pessoas tem uma posição chauvinista em relação ao assunto: o sotaque mais bonito é o da minha região, da minha cidade, do meu estado. E o sotaque mais feio é, em geral, o das pessoas mais pobres, das classes mais baixas, das regiões menos desenvolvidas.

Ora, não existem pronúncias feias ou bonitas – pelo menos, objetivamente falando. Beleza é questão de gosto. Afinal, quais seriam os critérios objetivos para determinar quem fala bonito ou feio?

Outra decorrência do chauvinismo linguístico é o sentimento que a maioria das pessoas tem de que elas não têm sotaque, são os outros que têm. Como se fosse possível falar uma língua desprovida de pronúncia! (Só se for a linguagem de sinais dos surdos-mudos.) Afinal, qualquer pessoa que fale um idioma utiliza uma pronúncia característica, que revela a sua região de origem, mas também a sua classe social, o seu nível de escolaridade e, em alguns casos, até a nacionalidade dos seus antepassados.

Na verdade, se quisermos pôr um pouco de objetividade nessa discussão, o que existe é uma pronúncia padrão do idioma, isto é, um modo de falar, típico dos atores e dos locutores de rádio, que se baseia na fala de uma determinada região do país (em geral, a mais influente econômica, política ou culturalmente), mas que é em grande medida artificial, já que resulta de treino profissional, e dificilmente se encontra nas ruas, mesmo na região da qual se origina.

Essa pronúncia padrão nasceu com a necessidade de veicular nos meios eletrônicos de massa (rádio e TV, principalmente) uma pronúncia que fosse bem aceita em todos os lugares. Por isso, a fala padrão costuma ser uma “média” das falas das pessoas cultas da maioria das regiões do país. Seu objetivo é ser o mais “neutra” possível (se é que isso é possível).

Quando se ensina um idioma estrangeiro, é a pronúncia padrão dessa língua que vai ser usada em sala de aula e no material didático audiovisual. É por isso que, quando se estuda francês, o que se ensina é a pronúncia de Paris e não a do Quebec ou do Senegal. Mesmo assim, boa parte dos parisienses não fala segundo esse padrão.

Aliás, algumas pessoas são mais “afetadas” do que outras, ou seja, têm uma pronúncia mais “carregada”, em que os traços característicos da sua localidade são mais acentuados. E, estranhamente, isso não tem a ver necessariamente com a cidade ou o bairro de origem do cidadão. Por exemplo, costuma-se pensar que aqueles paulistanos que falam cantado, com forte sotaque italiano (“cê tá mi inteindeindo?”), são naturais da Mooca ou do Bexiga. No entanto, há pessoas com esse sotaque em todas as regiões da cidade de São Paulo (e até no interior do estado), assim como nem todos os nascidos nesses bairros falam de maneira carregada.

Portanto, excluindo-se o chauvinismo puro, que só enaltece o que é da própria terra e execra o que é de fora, aquilo que as pessoas entendem como um falar bonito é um falar bem próximo do padrão. Do mesmo modo, quanto mais distante desse padrão, mais feia e esquisita é considerada a fala das pessoas. Em todas as regiões tem gente que fala segundo o padrão e gente que não. O mais é puro preconceito.